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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO GRADUAÇÃO EM DIREITO

MARIANNA MENDES PEREIRA GOMES

A extensão dos efeitos da celebração de Acordo de Leniência com o CADE perante a Administração Pública

Rio de Janeiro, 18 de novembro de 2013

JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO GRADUAÇÃO EM DIREITO

MARIANNA MENDES PEREIRA GOMES

A extensão dos efeitos da celebração de Acordo de Leniência com o CADE perante a Administração Pública

Trabalho de Conclusão de Curso, sob orientação da professora Patrícia Regina Pinheiro Sampaio, apresentado à FGV DIREITO RIO como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito.

Rio de Janeiro, 18 de novembro de 2013

JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO GRADUAÇÃO EM DIREITO

A extensão dos efeitos da celebração de Acordo de Leniência com o CADE perante a Administração Pública

Elaborado por MARIANNA MENDES PEREIRA GOMES

Trabalho

de

Conclusão

de

Curso

apresentado à FGV DIREITO RIO como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito.

Comissão Examinadora: Nome da Orientadora: Patrícia Regina Pinheiro Sampaio Nome do Examinador 1: Mariana Villela Nome do Examinador 2: Marcelo Rangel Lennertz

Assinaturas: __________________________________________________ Patrícia Regina Pinheiro Sampaio __________________________________________________ Mariana Villela ___________________________________________________ Marcelo Rangel Lennertz

Nota final:____ Rio de Janeiro, ___ dezembro de 2013 JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

TERMO DE COMPROMISSO DE ORIGINALIDADE A presente declaração é termo integrante de todo trabalho de conclusão de curso (TCC) a ser submetido à avaliação da FGV DIREITO RIO como requisito necessário e obrigatório à obtenção do grau de bacharel em direito. Eu, Marianna Mendes Pereira Gomes, brasileira, solteira, portadora da identidade nº 22376093-5, DETRAN-RJ, na qualidade de aluna da Graduação em Direito da Escola de Direito FGV DIREITO RIO, declaro, para os devidos fins, que o Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em anexo, requisito necessário à obtenção do grau de bacharel em Direito da FGV DIREITO RIO, encontra-se plenamente em conformidade com os critérios técnicos, acadêmicos e científicos de originalidade. Nesse sentido, declaro, para os devidos fins, que: O referido TCC foi elaborado com minhas próprias palavras, ideias, opiniões e juízos de valor, não consistindo, portanto PLÁGIO, por não reproduzir, como se meus fossem, pensamentos, ideias e palavras de outra pessoa; As citações diretas de trabalhos de outras pessoas, publicados ou não, apresentadas em meu TCC, estão sempre claramente identificadas entre aspas e com a completa referência bibliográfica de sua fonte, de acordo com as normas estabelecidas pela FGV DIREITO RIO. Todas as séries de pequenas citações de diversas fontes diferentes foram identificadas como tais, bem como às longas citações de uma única fonte foram incorporadas suas respectivas referências bibliográficas, pois fui devidamente informado(a) e orientado(a) a respeito do fato de que, caso contrário, as mesmas constituiriam plágio. Todos os resumos e/ou sumários de ideias e julgamentos de outras pessoas estão acompanhados da indicação de suas fontes em seu texto e as mesmas constam das referências bibliográficas do TCC, pois fui devidamente informado(a) e orientado(a) a respeito do fato de que a inobservância destas regras poderia acarretar alegação de fraude. O (a) Professor (a) responsável pela orientação de meu trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentou-me a presente declaração, requerendo o meu compromisso de não praticar quaisquer atos que pudessem ser entendidos como plágio na elaboração de meu TCC, razão pela qual declaro ter lido e entendido todo o seu conteúdo e submeto o documento em anexo para apreciação da Fundação Getulio Vargas como fruto de meu exclusivo trabalho.

Data: _____________________________________________ _____________________________________________ Assinatura da Aluna JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à minha avó Julieta, por todo o esforço que tornou possível a realização desse nosso sonho. Também a agradeço pelo apoio incondicional e por sempre estar ao meu lado. Você é o meu maior exemplo!

Ao meu avô Avelino (in memorian), que infelizmente não está presente nesse momento tão feliz da minha vida. Agradeço a ele, por todos os ensinamentos e valores que me foram passados. A saudade é grande!

Ao meu namorado Pedro Salgueiro, pelo seu companheirismo, apoio e suporte sempre que foi preciso nessa jornada, sendo responsável por grande parte desta realização. Fica aqui registrado, o meu muito obrigado!

Aos

meus

professores,

pelo

aprendizado

ministrado ao longo destes cinco anos, principalmente à minha orientadora Patrícia Sampaio.

Ao Dr. Aluizio Napoleão de Freitas Rego Neto por toda a compreensão e apoio despendidos para a elaboração desse trabalho.

Aos meus grandes amigos conquistados durante esses anos de convívio diário e intenso, especialmente ao João Paulo Assunção e Fernanda Cunha, cuja amizade e parceria tornaram esse longo caminho mais agradável.

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RESUMO: Através do presente trabalho, buscar-se-á analisar os efeitos e a extensão dos benefícios conferidos com a celebração do acordo de leniência com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”), principalmente no que se refere à garantia de imunidade quanto às sanções administrativas.

Nesse contexto, o presente trabalho procurará verificar se a celebração do acordo de leniência com o CADE extingue a ação punitiva da Administração Pública, ou seja, se nenhum outro ente da Administração Pública direta e indireta pode aplicar qualquer sanção administrativa à empresa leniente. Em outras palavras, se a imunidade prevista na Lei nº 12.529/2011 é restrita ao âmbito do CADE ou engloba toda a Administração Pública.

Esse estudo revela-se importante, pois a possibilidade de outro órgão, também integrante da Administração pública, aplicar sanções administrativas à empresa leniente, violaria o sistema punitivo da Administração Pública, visto que o mesmo deve ser analisado e interpretado de maneira uniforme e interligada, além dos incentivos para a celebração do citado acordo de leniência serem reduzidos significativamente, caso outros órgãos da Administração Pública possam aplicar sanções administrativas, como, por exemplo, a declaração de inidoneidade.

Portanto, a análise que será desenvolvida neste trabalho de conclusão de curso envolverá institutos e discussões presentes no Direito Administrativo e também no Direito Concorrencial Brasileiro, especificamente no que se refere aos benefícios garantidos com a celebração do acordo de leniência, instituto que foi criado para combater as práticas anticompetitivas colusivas.

PALAVRAS-CHAVE: Acordo de leniência. CADE. Imunidade. Sanções administrativas. Administração Pública. Declaração de inidoneidade.

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ABSTRACT:

This monograph will analyze the extent and the effects of the benefits relating to the execution of the leniency agreement between the leniency party and the Administrative Commission of Economic Defense (CADE), in particular with regard to the guarantee of immunity to administrative sanctions.

In this context, this monograph will verify if the execution of the leniency agreement with CADE will suspend the penalty imposed by the public administration, that is, if no other entity of direct or indirect public administration would be entitled to apply any administrative sanction to the lenient party. In other words, if the immunity provided in Law No. 12.529/2011 is restricted to the scope of CADE or encompasses the entire public administration.

The present analysis is important, because the possibility of another entity, also a member of the public administration, apply administrative sanctions to the lenient party, would violate the punitive system of public administration, due to the fact that it must be interpreted in an uniform and interconnected manner. Furthermore, the incentives for the execution of the leniency agreement will be reduced significantly, if other public administration may apply administrative sanctions, such as the declaration of disreputable. Therefore, the analysis will be developed in this monograph will involve discussions and institutes under the Administrative Law and also under the Brazilian Competition Law, specifically with regard to guaranteed benefits with the execution of the leniency agreement, institute that was created to combat anti-competitive collusive practices.

KEYWORDS:

Leniency

agreement.

CADE.

Administrative

Administration. Declaration of disreputable. Immunity.

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sanctions.

Public

SUMÁRIO RESUMO: .............................................................................................................................................................. 6

ABSTRACT: .......................................................................................................................................................... 7

SUMÁRIO.............................................................................................................................................................. 8

1.

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................. 8

2.

CAPÍTULO I ............................................................................................................................................... 10 2.1 A Importância do Programa de Leniência no Combate aos Cartéis ........................................................ 10 2.2. O Instituto do Acordo de Leniência no Cenário Norte-Americano ........................................................ 14 2.3. O Programa de Leniência Brasileiro ...................................................................................................... 16 2.3.1. A Proposta do Acordo de Leniência ............................................................................................. 19 2.3.2. Requisitos para a Celebração do Acordo de Leniência ............................................................... 20 2.4. A Efetividade do Programa de Leniência Brasileiro .............................................................................. 21 2.4.1. Requisitos necessários para a efetividade dos programas de leniência ......................................... 21 2.5.Transparência e Segurança no Programa de Leniência Brasileiro ........................................................... 23

3. CAPÍTULO II .......................................................................................................................................... 24 3.1 Poder de Polícia da Administração Pública ............................................................................................ 24 3.2. A Celebração do Acordo de Leniência e os seus Efeitos ....................................................................... 26 3.3. Princípio da Legalidade Estrita e Interpretação Gramatical .................................................................. 27 3.4. Definição jurídica de Administração Pública ........................................................................................ 29 3.5. Interpretação Analógica: o termo “Administração Pública” no artigo 87 da Lei 8.666. ........................ 30 3.6. Interpretação analógica: os efeitos do acordo de leniência na Lei Anticorrupção .................................. 33 3.7. Teoria dos Ordenamentos Setoriais ........................................................................................................ 37 3.8. Interpretação do Sistema Punitivo da Administração Pública ............................................................... 40 3.8.1 Incidência da Teoria das Autolimitações Administrativas e do dever de coerência ...................... 41 3.8.2.Princípio da Proibição de Comportamento Contraditório na Administração Pública.................... 46 3.9. Comparação: Âmbito penal e Âmbito administrativo .......................................................................... 51

4. CAPÍTULO III – Estudo de Casos ........................................................................................................ 54 4.1. O Primeiro Acordo de Leniência Brasileiro ........................................................................................... 54 4.2. O Acordo de Leniência da Siemens ....................................................................................................... 60

5. CONCLUSÃO ......................................................................................................................................... 64

6. BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................................... 65 JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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1.

INTRODUÇÃO

O cartel nada mais é do que um acordo entre concorrentes que pode ser firmado nos mais variados setores da economia. Esse acordo limita à livre iniciativa, gerando o aumento do poder de mercado das empresas cartelizadoras que, por sua vez, podem elevar os preços dos produtos acima do que seria encontrado na ausência de coordenação das decisões. Os consumidores, as demais empresas e o próprio governo, são compelidos a pagarem preços mais altos ou então a não consumirem esses produtos.

Neste contexto, os cartéis são sempre nocivos à eficiência de uma economia de mercado e são considerados por muitos como a mais grave das infrações anticompetitivas colusivas. O combate a essa prática, tornou-se, tanto no Brasil como no exterior, uma prioridade das autoridades concorrenciais, que veem o acordo de leniência como um efetivo instrumento de investigação à disposição.

Atualmente, a Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, representa o diploma legal sobre a matéria em comento e é valido ressaltar que tal legislação trouxe mudanças ao instituto do acordo de leniência com o objetivo de aumentar a sua utilização e eficácia. Sem ter a pretensão de esgotar as diversas controvérsias que o ramo do direito concorrencial introduziu no meio jurídico, o presente trabalho abordará se a celebração do acordo de leniência deve extinguir a ação punitiva da Administração Pública, ou seja, nenhum outro ente da Administração Pública direta e indireta pode aplicar qualquer sanção administrativa à empresa leniente ou se a imunidade prevista na Lei nº 12.529 deve ser restrita ao âmbito do CADE. Essa análise será feita levando em consideração o entendimento assente na doutrina sobre a interpretação do sistema punitivo da Administração Pública, com especial destaque ao princípio da proibição do comportamento contraditório.

O trabalho se subdividirá em três capítulos, os quais abordarão os seguintes temas, abaixo descritos.

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No Capítulo I será feita uma análise geral do instituto do acordo de leniência, incluindo considerações sobre (i) a origem deste instituto; (ii) as características do programa de leniência brasileiro; (iii) as alterações introduzidas com a edição da Lei 12.529/2011; (iv) a proposta do acordo de leniência; (v) os requisitos para a sua celebração; (vi) a sua importância (finalidade) no combate aos cartéis e, por fim, (vii) a efetividade do citado instituto. No Capítulo II será examinado o disposto no caput do artigo 86 da Lei 12.529/2011 1, em especial à seguinte expressão: “poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública”. Para a análise dos efeitos da celebração do acordo de leniência perante a Administração será feito (i) um breve estudo sobre a definição jurídica do termo “Administração Pública”. Após, será desenvolvido nesse capítulo (ii) o exame da interpretação dada pela doutrina ao artigo 87 da Lei 8.666 com o objetivo de utilizá-la analogicamente. Serão analisadas também (iii) as principais características do acordo de leniência previsto na nova Lei anticorrupção, fazendo-se uma comparação entre essas características com aquelas do acordo de leniência estabelecido na Lei 12.529. Para corroborar a posição defendida, o presente trabalho desenvolverá (iv) a teoria das autolimitações administrativas e será estudado (v) o princípio que proíbe a adoção de comportamentos contraditórios na Administração Pública. Para a conclusão desse capítulo, haverá uma (vi) comparação sobre os efeitos da celebração do acordo de leniência no âmbito administrativo e no âmbito criminal.

Por fim, o Capítulo III irá concluir a presente monografia, dando ênfase no estudo de casos que foram/serão analisados pelo órgão antitruste brasileiro. Essa análise será feita, tendo por norte a necessidade de racionalidade e integração entre os vários órgãos dos microssistemas administrativos, estudados no capítulo anterior.

1

Art. 86 da Lei 12.529: “O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte:” JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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2.

CAPÍTULO I

2.1

A Importância do Programa de Leniência no Combate aos Cartéis

Os cartéis representam uma infração à ordem econômica, na medida em que são acordos entre empresas concorrentes com o objetivo de fixar preços, quantidades produzidas, condições de venda, dividir mercados e/ou base de clientes. Celso de Albuquerque Barreto e Nélson de Andrade Branco 2 definem de forma clara o que são cartéis analisando em especial seus objetivos. In verbis: “[...] o cartel representa um acordo, um ajuste, uma convenção, de empresas independentes, que conservam, apesar desse acordo, sua independência administrativa e financeira. [...] o cartel tem como precípuo objetivo eliminar ou diminuir a concorrência e conseguir o monopólio em determinado setor de atividade econômica. Os empresários agrupados em cartel têm por finalidade obter condições mais vantajosas para os partícipes, seja na aquisição da matéria-prima, seja na conquista dos mercados consumidores, operando-se, dessa forma, a eliminação do processo normal de concorrência.”

A doutrina majoritária entende que há duas espécies distintas de cartéis. Existem os cartéis clássicos (hard core cartels) e os cartéis difusos (soft core cartels).

Os cartéis clássicos são acordos secretos entre competidores, com uma institucionalidade intrínseca e tem por objetivo a fixação de preços e condições de venda, a divisão de consumidores, a definição do nível de produção ou a tentativa de impedir a entrada de novas empresas no mercado. Por sua vez, os cartéis difusos são atos de coordenação entre empresas com objetivo similar ao do cartel clássico, mas de caráter eventual e não institucionalizado. É o caso de um grupo de empresas que decide reunir-se para coordenar um aumento de preço, em função de um evento externo que as afetou simultaneamente.

Passados os conceitos basilares sobre os cartéis, cabe ressaltar que essa infração à ordem econômica é vista pela comunidade antitruste como a mais nociva das infrações 2

BARRETO, Celso de Albuquerque; BRANCO, Nélson de Andrade apud FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 1ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 326-327. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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concorrenciais 3, pois geram apenas efeitos negativos, uma vez que há o aumento do poder de mercado de determinadas empresas, sem qualquer efeito positivo em termos de eficiência. Portanto, além de produzir aumento de preços, os cartéis reduzem consideravelmente os estímulos pela busca de inovação e eficiência no ramo prejudicado, acarretando prejuízos à sua competitividade e ao bem-estar dos seus consumidores.

Para demonstrar os graves prejuízos conferidos com a formação dos cartéis, segue trecho do Professor Fernando de Oliveira Marques, o qual também foi conselheiro do CADE 4. In verbis: “Em linhas gerais, os acordos entre concorrentes inviabilizam a própria economia de mercado, uma vez que as reações percebidas no mercado não são resultado da livre atuação das forças de mercado, mas resultam de um acordo que ofende profundamente as condições de atuação eficiente de mercado e sobretudo os consumidores, implicando em apropriação indevida de excedentes e foco de ineficiências econômicas.”

Corroborando o exposto até o momento, é válido citar um estudo feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”) que estima que os preços em um mercado em que haja cartel são aproximadamente 10% (dez por cento) superiores àqueles praticados em um mercado competitivo e que os prejuízos para a sociedade decorrentes de práticas dessa natureza giram em torno de 20% do que as empresas infratoras faturam no mercado relevante 5.

Diante dos efeitos nocivos das práticas cartelizadoras, o combate aos cartéis tornou-se prioridade na maioria dos países que possuem legislação concorrencial. O Brasil, onde a

3

No sentido de que o cartel representa a infração concorrencial mais nociva ao mercado, assim se manifestou a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”): “Hard core cartels (when firms agree not to compete with one another) are the most serious violations of competition law. They injure customers by raising prices and restricting supply, thus making goods and services completely unavailable to some purchasers and unnecessarily expensive for others.” OCDE. Recommendation of the Council concerning Effective Action Against Hard Core Cartels, 1998. Disponível em: www.oecd.org/dataoecd/39/4/2350130.pdf. Acesso em 23 de outubro de 2013. 4

MARQUES, Fernando de Oliveira. apud COSTA, Marcos; MENEZES, Paulo Lucena; MARTINS, Rogério Grandra da Silva (org.). Direito concorrencial – Aspectos jurídicos e econômicos. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2003, p. 210.

5

OCDE. Hard core cartels. OECD Publications Service, www.oecd.org/dataoecd/39/63/2752129.pfd. Acesso em 23 de outubro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

2002.

Disponível

em:

12

prática pode ser punida nas esferas administrativa e criminal, também acompanha essa tendência.

Desde o início da década passada, a Secretaria de Defesa Econômica (“SDE/MJ”) – com a edição da Lei 12.529, as funções da SDE relativas ao direito da concorrência foram transferidas para a Superintendência-Geral do CADE – já tinha como principal foco de atuação o combate à formação e à atuação dos cartéis. Nesse contexto, ao longo dos anos, deparou-se com dificuldades para a detecção desses conluios e a obtenção de provas diretas 6 ou conjunto de indícios robustos sobre a sua existência 7, tendo em vista que os membros dos cartéis adotam estratégias cada vez mais complexas e sofisticadas, além de evitarem deixar muitos indícios escritos, como lembra os autores Amadeu Ribeiro e Maria Eugênia Novis. 8

A organização de um cartel bem-sucedido não deve ser tarefa banal, pois além de requerer recursos para a implementação dos preços combinados e monitoramento do cumprimento dos acordos pelos partícipes, sempre está presente a preocupação em preservar o sigilo da conduta e mantê-la longe da desconfiança dos clientes e, principalmente, das autoridades concorrenciais 9. Pode-se afirmar, portanto, que a complexidade que envolve a organização de um cartel bem-sucedido é proporcional a dificuldade para desmantelá-lo.

6

Provas diretas são evidências que demonstrem a existência de acordo formal entre concorrentes, como por exemplo: escutas telefônicas, atas de reunião, declaração de participante a respeito do acordo, dentre outros.

7

Atualmente, o CADE entende que não são imprescindíveis provas diretas da existência do acordo para que o cartel seja considerado provado, sendo suficiente a presença de indícios da prática do ilícito. Nesse sentido, segue trecho do voto do Conselheiro Relator Ruy Santa Cruz no processo administrativo nº 0800.015337/199748 (Representados: Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, Companhia Siderúrgica Paulista – COPISA e Usinas Siderúrgicas de Minas S.A. – Usiminas): “A maior parte da prova colhida nos processos do Cade pautase em indícios que, analisados à luz da teoria econômica, fazem concluir pela existência de uma conduta restritiva da concorrência.” 8

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 157-158. Janeiro-Junho de 2010. 9

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 157 Janeiro-Junho de 2010. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Nesse sentido, Amadeu Ribeiro e Maria Eugênia Novis 10 afirmam que as autoridades concorrenciais apenas dispõem de três possíveis fontes para a obtenção de informações sobre cartéis.

“A primeira é o monitoramento constante dos mercados, especialmente daqueles cujas condições estruturais, como elevada concentração, produtos e custos homogêneos e elevadas barreiras à entrada, facilitam a colusão. A segunda, terceiros que venham a ter conhecimento da conduta, como clientes e concorrentes que sofram seus efeitos, ou ainda, empregados ou familiares de executivos das empresas do cartel. A terceira e sem dúvida melhor das fontes é a própria empresa envolvida na conduta.”

Como o CADE necessita de instrumentos que facilitem a detecção de práticas anticompetitivas e a obtenção de provas para puní-las e pelo fato da própria empresa envolvida na conduta ilícita ser a melhor das fontes para obtenção de informações sobre a organização do cartel, o legislador previu a possibilidade de ser celebrado o acordo de leniência.

Portanto, o acordo de leniência se tornou o melhor dos instrumentos concedidos às autoridades para facilitar a persecução de condutas anticompetitivas, até porque em nosso ordenamento jurídico, os indivíduos têm o direito de não serem compelidos a produzir provas contra si mesmo, consubstanciado no princípio da não auto-incriminação, restando então às autoridades apenas dois métodos para obter informações dos integrantes dos cartéis, quais sejam, a investigação direta 11 feita pelo órgão antitruste e o já citado acordo de leniência.

O acordo de leniência no âmbito concorrencial representa um instituto análogo à delação premiada do direito penal brasileiro e tem por escopo brecar a prática da infração à ordem econômica, mediante o auxílio do co-autor. De um lado, os lenientes fornecem documentos capazes de comprovar o ilícito e se obrigam a colaborar efetivamente com as autoridades ao longo da investigação e de outro, as autoridades se comprometem a conceder 10

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 157 Janeiro-Junho de 2010. 11

A investigação direta (busca e apreensão e escuta telefônica, por exemplo) representa método custoso e por isso é utilizado na maioria dos casos quando as autoridades já dispõem de indícios sobre o cartel. A investigação direta exige esforços consideráveis das autoridades para selecionar e analisar todo o material coletado, o que acaba limitando o emprego de recursos para a investigação de outros casos. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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imunidade aos membros do cartel (lenientes) contra as penas administrativas e criminais que lhes seriam aplicáveis. 12

Inquestionável é que a leniência viabiliza a investigação de cartéis que manter-se-iam desconhecidos. Também permite que a detecção dessa prática torne-se menos onerosa e mais veloz, na medida em que as autoridades terão acesso a informações difíceis em um curto espaço de tempo, além de obter o auxílio de pessoas que possuem o conhecimento de cada detalhe do funcionamento do cartel.

Ademais, a possibilidade de ser celebrado um acordo leniência a qualquer tempo, introduz um elemento subjetivo, isso é, um elemento desestabilizador entre os seus integrantes, pois o risco de delação gera desconfiança entre os próprios membros do cartel, em outras palavras, a percepção do risco desestabiliza essa prática. Por fim, segundo a doutrina, o acordo ainda incentiva que os membros do cartel preservem materiais incriminadores que de outra forma seriam rapidamente destruídos facilitando a condenação dos envolvidos no ilícito13.

Diante do exposto, o instituto do acordo de leniência se desenvolveu e difundiu ao longo desses últimos anos em diversos países, inclusive representando nos dias atuais o principal instrumento da política de combate aos cartéis da União Europeia, conforme adiante explicado.

2.2.

O Instituto do Acordo de Leniência no Cenário Norte-Americano

O acordo de leniência é um instituto fruto da experiência norte-americana, onde foi criado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América em 1978.

12

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 158 Janeiro-Junho de 2010. 13

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 158 Janeiro-Junho de 2010. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Esse primeiro programa de leniência norte-americano possibilitava que a empresa envolvida em cartel, antes do início de qualquer investigação, relatasse e confessasse a prática, podendo receber imunidade apenas no âmbito criminal. Havia um grave problema nesse programa, pois a concessão da referida imunidade contra a persecução criminal não era automática e envolvia um alto grau de arbítrio por parte do Departamento de Justiça norteamericano em aceitar ou não o pedido de leniência. Com isso, o programa originário do acordo de leniência não obteve muita adesão, já que havia grande margem de discricionariedade.

Nesse sentido, segue trecho que evidencia a ausência de adesão ao primeiro programa de leniência do Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América 14: “As autoridades norte-americanas receberam, em média, apenas uma proposta de leniência por ano e não investigaram um único caso de cartel internacional até 1993, quando o programa original passou por uma grande revisão.”

Como já indicado no trecho supracitado, em agosto de 1993, o programa de leniência corporativa, ou corporate leniency program, foi reformulado com o objetivo de aumentar o número de empresas que delatassem condutas criminosas e cooperassem com o Departamento de Justiça. Os principais pontos dessa reforma foram: (i) caso não houvesse conhecimento daquele cartel pelas autoridades, a concessão de imunidade ao leniente seria automática; (ii) existia possibilidade de concessão de imunidade mesmo se a cooperação se promovesse após iniciado o processo investigatório; e (iii) todos os executivos, diretores e funcionários que cooperassem ficariam protegidos do processo criminal 15.

No ano seguinte, em 1994, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América desenvolveu um programa de leniência ainda mais amplo, abrangendo dessa vez pessoas físicas que procurassem as autoridades em nome próprio. O programa lhes assegurava imunidade automática desde que (i) as autoridades não tivessem conhecimento prévio da conduta delatada; (ii) essas pessoas físicas não tivessem coagido outras a participar da 14

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 158 Janeiro-Junho de 2010. 15

Corporate leniency program. Disponível em: www.usdoj.gov/atr/public/guidelines/0091.htm. Acesso em 16 de outubro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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infração ou exercido papel de liderança; e (iii) admitissem a prática da infração, cooperando com as investigações. 16

Por fim, cumpre informar que a experiência norte-americana serviu de inspiração também para o primeiro programa de leniência da Europa, que foi incorporado formalmente no ordenamento europeu no ano de 1996, “apesar de antes do citado ano, já ter sido concedida imunidade a empresas investigadas diante da robusta cooperação prestada por elas” 17. Cabe ressaltar que como a competência da Comissão Européia sempre foi restrita à punição de pessoas jurídicas, o citado programa europeu não possui normas relacionadas à imunidade para as pessoas físicas 18.

2.3.

O Programa de Leniência Brasileiro

O instituto do acordo de leniência foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro em 2000, ano em que a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994 (“Lei 8.884” – Antiga Lei de Defesa da Concorrência) foi alterada pela Lei nº 10.149, de 21 de dezembro de 2000, acrescentando àquela os artigos 35-B e 35-C.

Portanto, até o ano de 2000, sequer existia um programa de leniência no Brasil, o que faz com que esse instrumento seja considerado relativamente recente e, por isso, é certo afirmar que ainda não existe uma vasta experiência sobre todas as suas peculiaridades e um extenso posicionamento do competente órgão brasileiro sobre esse instituto.

A Lei 8.884 foi revogada pela Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011, o que faz com que essa seja o diploma legal mais recente sobre o assunto que inclusive trouxe diversas 16

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 158 Janeiro-Junho de 2010. 17

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 159 Janeiro-Junho de 2010. 18

Destaque-se que, em direito comunitário, infrações contra a livre concorrência, como, por exemplo, o cartel, não são criminalizadas. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

17

mudanças sobre o acordo de leniência brasileiro, tudo com o objetivo de conferir-lhe maior eficácia.

Segundo o caput do artigo 86 da Lei 12.529, o acordo de leniência pode ser celebrado entre o CADE, através da Superintendência-Geral, e pessoas físicas e jurídicas, desde que o órgão não disponha de provas suficientes quando da sua propositura, para assim assegurar a condenação das pessoas envolvidas na infração. Destaque-se que sob a égide da Lei 8.884, o leniente deveria identificar os demais co-autores da infração 19, o que continua sendo requisito obrigatório previsto na atual disposição legal sobre o assunto, na qual é determinado que o leniente colabore efetivamente com as investigações e que dessa colaboração resulte na identificação de todos os envolvidos no ilícito20.

Uma alteração relevante e que deve ser destacada nesse trabalho conferida com a edição da Lei 12.529 diz respeito à possibilidade do acordo de leniência ser celebrado com empresas ou pessoas físicas que estejam à frente da infração. Portanto, a não-vedação para que o líder do cartel celebre o acordo de leniência gera um aumento no número de possíveis delatores, o que, por sua vez, pode garantir uma maior insegurança/instabilidade entre os integrantes da infração.

Outro aspecto relevante instituído com a edição da Lei 12.529 está relacionado a possibilidade de se estender os benefícios conferidos com a celebração do acordo de leniência às empresas do mesmo grupo econômico. Tal disposição, inegavelmente, gera um maior incentivo aos agentes que estejam em um mesmo cartel ao lado de suas afiliadas, pois sem essa garantia a decisão de delação e celebração do acordo seria muito mais pensada e dificilmente tomada.

19

Art. 35-B da Lei 8.884: “A União, por intermédio da SDE, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais co-autores da infração.” 20

Art. 86 da Lei 12.529: “O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais envolvidos na infração.” JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

18

Por último, mas não menos importante, cabe destacar que o artigo 87 da Lei 12.529 ampliou o benefício da imunidade penal garantida ao leniente, incluindo expressamente nas hipóteses de extinção da punibilidade, além dos crimes tipificados na Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990 21 (os quais já eram previstos no artigo 35-C da Lei n. 8.884), os crimes tipificados na Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993 22 (“Lei 8.666”) e no artigo 288 do Código Penal Brasileiro (crime de formação de quadrilha ou associação criminosa). A assinatura do acordo determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia contra o leniente pelos crimes tipificados nos dispositivos acima elencados. Portanto, cumprido o acordo, extingue-se automaticamente a punibilidade desses crimes. Segundo os advogados Gustavo Flausino e Ricardo Mafra 23, a isenção da persecução penal em relação aos crimes tipificados na Lei 8.666 foi formulada com o objetivo de desmantelar mais cartéis em licitações, que são os acordos entre concorrentes por meio dos quais definem antecipadamente o ganhador da licitação e implementam mecanismos de distribuição dos lucros entre os conspiradores. In verbis: “O principal aspecto a ser destacado nessa alteração é a inclusão, nas hipóteses de extinção de punibilidade, dos crimes tipificados na Lei n. 8.666. A repressão a condutas anticompetitivas adotadas no âmbito de licitações é uma preocupação crescente da SDE e continuará sendo objeto de atenção da Superintendência-Geral do CADE. Portanto, essa modificação poderá auxiliar as autoridades a detectar mais condutas anticompetitivas em licitações.”

Ante o exposto, conclui-se que a ratio dessa última mudança analisada consiste em conferir maior segurança jurídica atrelada ao instituto do acordo de leniência, na medida em que há a imunidade criminal do leniente não só para os crimes tipificados na Lei 8.137, mas também para os crimes tipificados na Lei 8.666, não ficando o leniente a mercê de ser processado e ao mesmo serem imputadas as sanções penais tipificadas na Lei 8.666 com base em sua confissão. 21

Dentre outras disposições, a Lei n. 8.137 define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo. 22

Em síntese, a Lei n. 8.666 regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, instituindo normas para licitações e contratos da Administração pública e em especial, prevendo sanções para os atos voltados a frustrar o caráter competitivo do procedimento licitatório.

23

MAFRA, Ricardo; COELHO, Gustavo Flausino. O Acordo de Leniência na Nova Lei de Defesa da Concorrência. Suplemento Eletrônico da Revista do IBRAC, ano 3, número 1, p. 8. Disponível em http://www.ibrac.org.br/Uploads/PDF/Suplementos2012/Suplemento_da_Revista_do_IBRAC_Ano_3_n_1.pdf. Acesso em 10 de outubro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

19

2.3.1. A Proposta do Acordo de Leniência

A proposta de acordo de leniência poderá ser formulada por pessoas físicas ou jurídicas, endereçada a Superintendência-Geral do CADE, em envelope lacrado, marcado com a expressão “programa de leniência”. A proposta será recebida e registrada no serviço de protocolo desse órgão em caráter confidencial, tendo em vista que, desde a edição da Lei 12.529, a Superintendência-Geral do CADE é a autoridade competente para negociar e assinar o acordo de leniência.

A proposta de celebração do acordo de leniência é sigilosa e também pode ser feita oralmente, tanto pela empresa quanto, de modo independente, por empregado. Caso o acordo seja proposto apenas pela pessoa jurídica, seus feitos podem ser estendidos aos funcionários da pessoa jurídica habilitada envolvidos na infração, desde que os mesmos assinem o acordo de leniência em conjunto com a pessoa jurídica, inclusive podendo ser assinado em momento posterior.

A fase de negociação da proposta do acordo de leniência é de 6 (seis) meses, prorrogáveis por mais 6 (seis) meses, a critério da Superintendência-Geral, caso estejam presentes

circunstâncias

extraordinárias.

Apenas

o

Superintendente-Geral

e

os

Superintendentes-Adjuntos participam da fase de negociação. Se nenhum acordo for alcançado, todos os documentos referentes à negociação devem ser devolvidos ao proponente.

A proposta de acordo de leniência rejeitada pela Superintendência-Geral do CADE não importará confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento de ilicitude da conduta analisada e sobre todas as informações prestadas pelo proponente não pode ser feita qualquer divulgação. Caso exista uma proposta subseqüente, esta só será aberta e apreciada pela autoridade se o proponente imediatamente anterior for inabilitado.

JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

20

2.3.2. Requisitos para a Celebração do Acordo de Leniência

O acordo de leniência só poderá ser celebrado se preenchido pelo proponente, cumulativamente, os seguintes requisitos 24:

(i)

seja o primeiro a se qualificar com respeito à infração noticiada ou sob investigação;

(ii)

cessar completamente seu envolvimento na conduta anticoncorrencial a partir da data de propositura do acordo;

(iii)

confesse sua participação no ilícito;

(iv)

coopere plena e permanentemente com a investigação e o processo administrativo até a decisão final sobre a infração; e

(v)

da cooperação resulte a identificação dos envolvidos na infração e a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada;

Importante notar que os efeitos (as imunidades) que podem ser conferidos com a celebração do acordo de leniência não se sujeitam à aprovação da Superintendência-Geral do CADE. Compete ao Tribunal, quando do julgamento do processo administrativo apenas: (i) decretar a extinção da ação punitiva da Administração pública, ou seja, a isenção total, quando o infrator comparece espontaneamente à Superintendência-Geral, sem que esse órgão tenha conhecimento prévio da infração; ou (ii) reduzir de um a dois terços as penas aplicáveis, ou seja, conceder a isenção parcial, devendo considerar na gradação da pena a efetividade da colaboração prestada e a boa-fé do infrator no cumprimento do acordo 25.

Ainda é preciso lembrar que o acordo de leniência não garante a imunidade quanto a 24

Requisitos estabelecidos na Portaria n. 456, de 15 de março de 2010 do Ministério da Justiça.

25

Art. 86, § 4o da Lei 12.529: “Compete ao Tribunal, por ocasião do julgamento do processo administrativo, verificado o cumprimento do acordo: I - decretar a extinção da ação punitiva da administração pública em favor do infrator, nas hipóteses em que a proposta de acordo tiver sido apresentada à Superintendência-Geral sem que essa tivesse conhecimento prévio da infração noticiada; ou II - nas demais hipóteses, reduzir de 1 (um) a 2/3 (dois terços) as penas aplicáveis, observado o disposto no art. 45 desta Lei, devendo ainda considerar na gradação da pena a efetividade da colaboração prestada e a boa-fé do infrator no cumprimento do acordo de leniência.” JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

21

possíveis ações cíveis propostas por consumidores ou terceiros lesados, ou mesmo pelo Ministério Público na defesa coletiva de interesses metaindividuais (informação verbal). 26

2.4.

A Efetividade do Programa de Leniência Brasileiro

2.4.1. Requisitos necessários para a efetividade dos programas de leniência

A efetividade do programa de leniência em detectar condutas anticompetitivas depende, basicamente, de quatro fatores:

(i)

da credibilidade e da seriedade vinculada ao programa,

(ii)

da efetiva atuação e investigação dos órgãos antitrustes em busca da identificação de condutas anticompetitivas colusivas,

(iii)

da necessidade de preservação do sigilo das informações prestadas pelo proponente da leniência durante todo o processo, e

(iv)

dos incentivos que são gerados para que uma pessoa jurídica ou física abandone o cartel e com isso, todos os ganhos econômicos a ele associados, e delate os co-autores da infração, permitindo que as autoridades antitrustes tomem conhecimento e tenham acesso a elementos que facilitarão as investigações. 27

Não muito diferente dos requisitos gerais acima elencados, a comunidade antitruste internacional enumera três requisitos básicos para que um programa de leniência seja considerado eficaz 28: (1) a aplicação de sanções severas para os condenados por cartel, (2) o 26

Informação fornecida na palestra proferida pelo Dr. Duciran Van Maesrn Farena: “Papel do Ministério Público no combate aos cartéis”. Disponível em www.pedrojorge.org.br/seminario_papel2.html. Acesso em 24 de outubro de 2013.

27

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 160 Janeiro-Junho de 2010. 28

HAMMOND, Scott. Cornerstones of an effective leniency program and internacional competition (ICN). Drafting and implementing an efficient leniency program. Cartel working group, 2006. Disponível em: www.internationalcompetitionnetwork.org/media/library/conference_5th_capetown_2006/FI-modres.pdf. Acesso em 19 de outubro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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receio de detecção pelas autoridades e (3) a transparência e previsibilidade na aplicação do programa.

A esses requisitos, Amadeu Ribeiro e Maria Eugência Novis acrescentam a necessidade de preservação do sigilo das informações prestadas pelos proponentes da leniência durante todo o processo, desde a negociação com as autoridades até o julgamento do caso 29. Nesse sentido, o ex-secretário de direito econômico, Daniel Goldberg, em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, no dia 26.10.2003, ao ser indagado sobre os motivos do primeiro acordo de leniência ter sido celebrado apenas em 2003 declarou que “o primeiro segredo para implementação do acordo foi o sigilo absoluto.” Esse caráter de confidencialidade é muito importante, na medida em que as empresas ou pessoas físicas que estão delatando os co-autores podem sofrer sérios riscos de retaliação comercial e até mesmo pessoal. Inclusive, a ausência de confidencialidade pode dificultar ou mesmo impedir a coleta de provas necessárias para a condenação dos demais envolvidos, frustrando a finalidade do acordo de leniência.

O temor da descoberta da conduta ilícita é outro requisito fundamental para que os membros de um cartel sintam-se estimulados a procurar as autoridades competentes. Se, por um lado, um maior número de denúncias significa um maior êxito do programa de leniência, por outro, isto só ocorre caso haja um número maior de investigações que se reflete em mais processos em andamento no órgão concorrencial e, portanto, uma maior probabilidade de que haja a condenação (percepção do risco) 30. No entanto, nada adiantaria existir a alta possibilidade de descoberta e punição dos cartéis, se apenas houvesse a previsão de pequenas penas para os infratores, na medida em que não representaria incentivo forte o suficiente para que se cogitasse a possibilidade de delação. Necessário, portanto, o conjunto consubstanciado no(a): receio de detecção da infração e previsão de sanções severas aos agentes envolvidos.

Contudo, apenas esses requisitos também não são suficientes para que alguém se sinta

29

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 160 Janeiro-Junho de 2010. 30

VASCONCELOS, Silvinha Pinto; RAMOS, Francisco de Sousa. Análise da efetividade do programa de leniência brasileiro no combate aos cartéis. Mestrado em Economia Aplicada. FEA-UFJR 008/2007, p. 20. Disponível em: www.researchgate.net/publication/...EFETIVIDADE_DO_PROGRAMA... BRASILEIRO_NO_COMBATE.../79e41510280c431942.pdf. Acesso em 18 de outubro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

23

compelido a se apresentar às autoridades concorrenciais. O proponente do acordo de leniência precisa conhecer previamente os benefícios que podem ser concedidos e a extensão de tais imunidades. Em outras palavras, há a necessidade de normas claras quanto à punibilidade da conduta, o alcance do programa de leniência, seus efetivos benefícios, a extensão das imunidades e, sobretudo, a transparência quanto à aplicação das regras pelas autoridades.

Por fim, como a leniência não confere imunidade contra ações civis de indenização por danos causados pelo cartel, a eficácia do programa de leniência depende do grau de proteção às informações apresentadas pelo delator. Segundo Amadeu Ribeiro e Maria Eugênia Novis 31, quanto maior for a proteção, maior será o incentivo para compartilhar tais informações com as autoridades. Quanto menor for a proteção, maior será o risco de que terceiros obtenham provas aptas a subsidiar ações na esfera cível contra os membros do cartel, inclusive contra o requerente da leniência. Daí porque a propensão à delação está diretamente ligada à proteção que o delator terá às informações e aos documentos que apresente às autoridades.

2.5.

Transparência e Segurança no Programa de Leniência Brasileiro

Como se sabe, um dos elementos mais importantes para a efetividade de qualquer programa de leniência é a segurança jurídica, bem como a atuação imparcial da autoridade antitruste responsável pela sua celebração. Por isso, clareza e objetividade durante todo o processo de investigação são imprescindíveis e inclusive incentivam as delações, na medida em que conferem ao infrator maior segurança para confessar o ilícito.

Não obstante a importância da transparência no programa de leniência, é certo afirmar que de todos os requisitos essenciais expostos no item anterior, o maior obstáculo a ser superado para que o Programa de Leniência Brasileiro tenha um modelo satisfatório de

31

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 161 Janeiro-Junho de 2010. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

24

efetividade é a necessidade de conferir-lhe maior previsibilidade e transparência 32. Os principais problemas enfrentados atualmente dizem respeito (i) à falta de clareza quanto aos critérios de fixação da responsabilidade de pessoas físicas por cartel, (ii) a discricionariedade do órgão concorrencial para a celebração do acordo de leniência 33 e, por fim, (iii) se a imunidade prevista no art. 86 da Lei 12.529 é restrita ao âmbito do CADE ou engloba toda a Administração pública. Em outras palavras, corresponde à extensão dos benefícios conferidos com a celebração do acordo de leniência e é sobre esse ponto que o presente trabalho 34 irá se concentrar a partir deste momento, tendo por enfoque as consequências em termos de cartéis em licitações.

3.

CAPÍTULO II

3.1

Poder de Polícia da Administração Pública

Antes de adentrarmos no escopo do presente Capítulo, devemos tecer alguns comentários sobre o poder de polícia da Administração Pública.

A Administração Pública brasileira possui diversas competências, todas conferidas com o objetivo de melhor “gerir os bens, interesses e serviços próprios ou alheios”. 35 Partindo do referido objetivo, Odete Medauar afirma que para que a Administração Pública possa desenvolver o vasto conjunto de atividades que lhe é inerente, o ordenamento jurídico conferiu-lhe uma série de poderes. 36 Dentre todas as suas funções, observa-se que possui atividade punitiva, também denominada de sancionadora. 32

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 161 Janeiro-Junho de 2010. 33

RIBEIRO, Amadeu. NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 162-163 Janeiro-Junho de 2010. 34

Trata-se de trabalho elaborado com o objetivo de analisar os benefícios oriundos da celebração do Acordo de Leniência com o CADE, principalmente no que se refere à imunidade quanto às sanções administrativas. 35

36

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 16ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 107.

MEDAUAR, Odete. Tribunais, 2006, p. 106.

Direito Administrativo Moderno. 10ª edição. São Paulo: Editora Revista dos JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

25

Portanto, dentre os poderes conferidos à Administração Pública está o poder de polícia, e nele vem fundamentada a legitimidade para a atuação administrativa-sancionadora, notadamente para que a Administração possa, quando necessário, limitar o exercício de direitos individuais. 37

O doutrinador Marcelo Harger pondera que os processos restritivos de direitos, entendidos como forma de imposição de gravames ou de supressão de direitos dos particulares, muitas vezes têm como fundamento o uso, pela Administração Pública, do poder de polícia, através do qual se impõem obrigações de fazer e não fazer aos administrados. 38

José dos Santos Carvalho Filho também comenta o tema e lembra que os processos administrativos com objetivo punitivo “externos” têm fundamento no poder de polícia geral do qual é investida a Administração. 39 E para que a manifestação do poder de polícia não seja ineficiente, deve existir a possibilidade de aplicação de sanções para as hipóteses de desobediência à ordem da autoridade competente 40.

Nesse sentido, uma das manifestações possíveis do poder de polícia reside na verificação pelo CADE de situações que possam resultar em condutas anticompetitivas, podendo esse órgão aplicar sanções nos casos em que os agentes econômicos atuem em desconformidade com os ditames e preceitos concorrenciais.

A Lei de Defesa da Concorrência prevê multas pesadas aos infratores, que podem variar no caso de empresa, de 0,1% a 20% do valor do faturamento bruto da mesma, no último exercício anterior à instauração do processo administrativo. 41 Estabelece também que

37

GILBERTO, André Marques. O Processo Antitruste Sancionador. São Paulo, 2008. 302p. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito - Universidade de São Paulo. 38

HARGER, Marcelo. Princípios Constitucionais do Processo Administrativo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 70.

39

FILHO, José dos Santos Carvalho. Processo Administrativo Federal – Comentários à Lei n. 9.784 de 29.1.1999. 2ª edição, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 30.

40

ARAÚJO, Edmir Netto. Direito Administrativo. 3ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 1005.

41

No caso das pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como quaisquer associações de entidades ou pessoas constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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podem ser impostas as seguintes penas, a título exemplificativo: a obrigação de publicação de extrato da decisão condenatória, em jornal de grande circulação às expensas dos infratores; a recomendação aos órgãos públicos competentes para que não concedam aos infratores o parcelamento de débitos ou quaisquer outros benefícios. Ademais, uma das penalidades mais importantes que o CADE pode aplicar, quando se trata de cartéis em licitações, é a proibição do infrator de participar de licitações por prazo não inferior a 5 (cinco) anos. Medida essa que possui efeitos semelhantes à declaração de inidoneidade prevista no art. 87, inciso IV, da Lei de Licitações.

3.2.

A Celebração do Acordo de Leniência e os seus Efeitos

O instituto do acordo de leniência está previsto no artigo 86 da Lei 12.529 e conforme já exposto, trata-se de acordo celebrado entre o CADE, através da Superintendência-Geral, e pessoas físicas e jurídicas que forem autoras da infração. Em síntese, é uma espécie de delação premiada, de modo que o proponente denuncia a existência de um cartel do qual ele faz parte e obtém, como prêmio, conforme o caso, a extinção da ação punitiva ou a redução da pena. In verbis: “Art. 86. O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte:”

Pela simples leitura do dispositivo acima transcrito, percebe-se que a celebração de acordo de leniência pode extinguir a ação punitiva da administração pública, a depender da ausência de conhecimento prévio da conduta ilegal em questão. Se o órgão concorrencial não tinha conhecimento prévio sobre a existência do cartel, o beneficiário tem direito à imunidade total. Mas se o órgão estava previamente ciente sobre o cartel, a penalidade aplicável pode ser

jurídica, que não exerçam atividade empresarial, não sendo possível utilizar-se o critério do valor do faturamento bruto, a multa será entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais). Para o administrador, direta ou indiretamente responsável pela infração cometida, quando comprovada a sua culpa ou dolo, será imposta multa de 1% (um por cento) a 20% (vinte por cento) daquela aplicada à empresa. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

27

reduzida de um a dois terços, dependendo da efetividade da cooperação e da boa fé no cumprimento do acordo de leniência.

Com o objetivo de corroborar o exposto no parágrafo anterior, segue trecho do voto do Conselheiro

Relator

Abraham

Benzaquen

Sicsú

no

Processo

Administrativo



08012.001826/2013-10 42, o qual foi instaurado com vista a apurar a ocorrência de conluio entre empresas prestadoras de serviços de vigilância no Estado do Rio Grande do Sul. “No caso em questão, a SDE tomou conhecimento formal da infração a partir da Nota Técnica n. 29/2003 da SEAE, protocolada em 19 de março de 2003. O acordo de leniência foi celebrado em 08 de outubro de 2003. Pelo art. 35-B, parágrafo 4, I da Lei, para extinção total da ação punitiva, a proposta de acordo deveria ter sido apresentada antes que a SDE tivesse conhecimento da infração.”

O Legislador, no entanto, não estabeleceu um conceito específico do termo administração publica, exigindo que os intérpretes recorram a outros diplomas legais para obter essa definição. Ao deixar de conceituar a referida expressão, o Legislador gerou a seguinte dúvida: a imunidade é restrita ao âmbito do CADE ou engloba toda a Administração Pública e, assim, nenhum outro ente pode aplicar sanções administrativas à empresa leniente?

Neste capítulo tentar-se-á responder a essa pergunta de acordo com o melhor Direito. Para tanto, serão apresentadas diversas construções doutrinárias que levam a concluir que o termo Administração Pública deve ser interpretado lato sensu, isso é, no sentido de que deve haver a extinção da punibilidade para toda a Administração Pública, englobando o conjunto de órgãos que integram os Entes Federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), como também o conjunto de pessoas administrativas (autarquias, fundações públicas de direito público, fundações públicas de direito privado, sociedades de economia mista e empresas públicas) 43.

3.3.

Princípio da Legalidade Estrita e Interpretação Gramatical

42

A Lei que regulamentava o instituto do acordo de leniência e os seus benefícios à época deste julgamento era a Lei 8.884/1994. 43

Nesse sentido, segue passagem do Parecer 114/2007/PG/CADE, pág. 7.776: “Enfim, a competência do CADE restringe-se a fixar a pena cabível (extinção total da punibilidade ou redução da pena de um a dois terços).” JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

28

Inicialmente, para sustentar que a celebração do acordo de leniência deve gerar a extinção da punibilidade para toda a Administração Pública, pode-se trazer à baila, o princípio da legalidade estrita, o qual é definido por Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo nos seguintes termos: “A administração pública, além de não poder atuar contra a lei ou além da lei, somente pode agir segundo a lei. (A atividade administrativa não pode ser contra legem nem praeter legem, mas apenas secundum legem) 44”.

O princípio da legalidade estrita diz respeito à obediência dos órgãos administrativos (o CADE é um órgão administrativo) às leis e à submissão às suas diretrizes. Portanto, a Administração Pública, em toda a sua atividade, está presa aos mandamentos das leis, deles não podendo se afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor. Como muito bem defende o doutrinador Diógenes Gasparini, a Administração Pública “só pode fazer o que a lei autoriza e, ainda assim, quando e como autoriza.” 45

Está expresso na redação do art. 86 da Lei 12.529 que a celebração do acordo de leniência gera a extinção da ação punitiva da Administração Pública, quando o órgão concorrencial não tem conhecimento da conduta colusiva perpetrada. Se essa extinção ocorresse apenas no âmbito do CADE, deveria estar disposto na lei que a leniência geraria a extinção da ação punitiva para o CADE ou apenas no âmbito dos órgãos de defesa da concorrência, e não para toda a Administração Pública. Como o funcionário público não pode atuar diferente do que a lei prevê em virtude do princípio da legalidade estrita, deve ser decretada a extinção da ação punitiva da Administração Pública.

Nesse sentido, também pode-se utilizar como instrumento para solucionar esse problema de hermenêutica jurídica, a interpretação literal ou o método gramatical, pois essa interpretação se atém às palavras da lei, ou seja, o sentido da norma é determinado a partir da significação exata das palavras usadas em seu texto. Logo, a melhor interpretação a ser feita é aquela em que a celebração do acordo de leniência gera a extinção da ação punitiva perante 44

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 15ª edição. Rio de Janeiro: Editora Método, 2008, p. 50. 45

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 16ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 61. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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toda a Administração Pública, e não apenas no âmbito do CADE, conforme determinam as próprias palavras escolhidas novamente pelo legislador na edição da Lei 12.529 46.

Resta claro, portanto, que a expressão deve ser interpretada de forma lato sensu, não podendo qualquer outro órgão aplicar sanções à empresa leniente.

3.4.

Definição jurídica de Administração Pública

De fato, a Lei 12.529 não definiu a expressão Administração Pública e, consequentemente, a extensão dos benefícios conferidos com a celebração do acordo de leniência. No entanto, trata-se de terminologia que tem clara definição em diferentes diplomas legais. Nesse sentido, confira-se a definição dada pelo Decreto-Lei n. 200 47, de 25 de fevereiro de 1967: “Art. 4° A Administração Federal compreende: I - A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios. II - A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: a) Autarquias; b) Empresas Públicas; c) Sociedades de Economia Mista; d) fundações públicas.”

Além disso, para a interpretação do artigo 86 da Lei 12.529 pode se valer da definição dada pelo Legislador na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 (“Lei 8.666”), a qual trata das licitações e dos contratos administrativos, dentre outros assuntos. In verbis:

“Das Definições Art. 6º: XI - Administração pública - a administração direta e indireta 46

Ressalte-se que sob a égide da Lei 8.884/1994 também era utilizado o termo Administração Pública. In verbis: “Art. 35-B. A União, por intermédio da SDE, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte:” 47

A íntegra do Decreto-Lei n. 200 está disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del0200.htm. Acesso em 14 de novembro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas; XII - Administração - órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente; ”

Também nesse sentido, Marçal Justen Filho 48, em sua brilhante obra “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos” afirma que a expressão Administração Pública engloba “além da chamada “Administração Direta” (União, Estados e Distrito Federal e Municípios), também abrange a “Administração Indireta” (autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista). Além disso, as “fundações” instituídas ou mantidas com recursos públicos e outras pessoas de direito privado sob controle estatal estão abarcadas no conceito.”

Utilizando-se, portanto, das definições acima reproduzidas, pode ser verificado que a Lei 12.529 ao prever que compete ao Tribunal 49 “decretar a extinção da ação punitiva da administração pública” estendeu o benefício decorrente da celebração de acordo de leniência para todos os órgãos da administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Dessa forma, depois de celebrado um acordo de leniência com a Superintendência do CADE, os outros órgãos da Administração Pública não têm competência para impor sanções administrativas ao leniente.

3.5.

Interpretação Analógica: o termo “Administração Pública” no artigo 87 da Lei

8.666.

Ainda sobre a ausência de definição e delimitação da expressão utilizada pelo Legislador no caput do artigo 86 da Lei 12.529, merece destaque a discussão que foi travada, tanto em âmbito doutrinário como em âmbito jurisprudencial, em torno da interpretação dos 48

FILHO. Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12ª Edição. São Paulo: Editora Dialética, p. 129.

49

Art. 86, § 4o da Lei 12.529: “Compete ao Tribunal, por ocasião do julgamento do processo administrativo, verificado o cumprimento do acordo: I - decretar a extinção da ação punitiva da administração pública em favor do infrator, nas hipóteses em que a proposta de acordo tiver sido apresentada à Superintendência-Geral sem que essa tivesse conhecimento prévio da infração noticiada;” JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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termos “Administração” e “Administração Pública”, utilizados pelo Legislador nos incisos III e IV do artigo 87 da Lei 8.666, respectivamente. In verbis: Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos; IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.

Os incisos supracitados do artigo 87 foram motivo de grandes discussões no que tange à extensão dos seus efeitos, e essa discussão pode ser utilizada analogicamente ao presente trabalho.

Ao descrever a sanção de suspensão temporária (inciso III acima transcrito), foi utilizado o termo Administração, ou seja, o particular estará impedido de participar de licitações e contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos. Por outro lado, ao mencionar a sanção da declaração de inidoneidade (inciso IV), o legislador referiu-se à Administração Pública, o que significa que, declarada a inidoneidade do contratado, ele estará impedido de participar de licitações e contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a sua reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade. Marçal Justen Filho 50 analisa o emprego desses termos, no qual pode ser feita uma analogia com o atual estudo:

"Seria possível estabelecer uma distinção de amplitude entre as duas figuras. Aquela do inc. III produziria efeitos no âmbito da entidade administrativa que a aplicasse; aquela do inc. IV abarcaria todos os órgãos da Administração Pública. Essa interpretação deriva da 50

FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 10ª edição. São Paulo: Editora Dialética, 2004, p. 605. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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redação legislativa, pois o inc. III utiliza apenas o vocábulo ‘Administração’, enquanto o inc. IV contém ‘Administração Pública’. No entanto, essa interpretação não apresenta maior consistência, ao menos enquanto não houver regramento mais detalhado. Aliás, não haveria sentido em circunscrever os efeitos da ‘suspensão de participação de licitação’ a apenas um órgão específico. Se um determinado sujeito apresenta desvios de conduta que o inabilitam para contratar com a Administração Pública, os efeitos dessa ilicitude se estendem a qualquer órgão. Nenhum órgão da Administração Pública pode contratar com aquele que teve seu direito de licitar ‘suspenso’. A menos que lei posterior atribua contornos distintos à figura do inc. III, essa é a conclusão que se extrai da atual disciplina legislativa."

José dos Santos Carvalho Filho 51, também em sede da referida discussão, comenta: "Parece-nos que o efeito deva ser sempre extensivo. Em primeiro lugar, não conseguimos ver diferença de conceituação naqueles incisos do art. 6, já que o que podemos constatar é apenas uma péssima e atécnica definição de Administração Pública; com efeito, nenhuma diferença existe entre Administração e Administração Pública. (...) Quer dizer: a empresa é punida, por exemplo, com a suspensão do direito de licitar perante uma entidade federativa, mas poderia licitar normalmente perante outra e, como é óbvio, sujeitá-la aos riscos de novo inadimplemento. Para nós não há lógica em tal solução, porque a Administração Pública é uma só, é una, é um todo, mesmo que, em razão de sua autonomia, cada pessoa federativa tenha sua própria estrutura.”

Em síntese, esses entendimentos fundamentam-se na alegação de que não existem diferenças entre os termos “Administração” e “Administração Pública”, utilizados pelo Legislador, e, conseqüentemente, tanto a sanção de suspensão quanto a declaração de inidoneidade têm seus efeitos incidindo sobre todos os órgãos/entidades e entes federativos, não se limitando ao âmbito daquele que aplicou a punição.

Nessa lógica, não há margem para entendimentos distintos do termo utilizado no artigo 86 da Lei 12.529, qual seja, Administração Pública, porque se para estender o âmbito de aplicação da sanção foi determinado que não existe nenhuma diferença entre Administração e Administração Pública, visto que ela é una, o mesmo conceito deve ser estabelecido para estender os benefícios da celebração do acordo de leniência, ainda mais pelo 51

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 23ª edição . Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 241. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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motivo de que na Lei 12.529 está prevista a expressão "Administração Pública".

Assim sendo, ficou consagrado pela melhor doutrina que a utilização pela Lei de Licitações do termo "Administração", deve ser entendida em sentido amplo, vinculando toda a Administração Pública. Portanto, como foi estabelecido que, quando se lê "Administração", deve o termo ser interpretado como abrangendo toda a Administração Pública, quando expressamente escrita pelo Legislador a expressão “Administração Pública”, como é o caso do artigo 86 da Lei 12.529, não é passível de qualquer dúvida, devendo-se entendê-lo no sentido amplo e, dessa forma, vinculativo para todos os órgãos integrantes da mesma.

Logo, como a doutrina entende que na Lei de Licitações deve ser entendida como um todo, visto que a Administração Pública é una, uma só, no momento da aplicação dos benefícios do acordo de leniência, a proibição de ação punitiva deve ser estendida a todos os órgãos integrantes da Administração Pública, abrangendo todo o seu âmbito.

A Lei de Licitações não pode usar um conceito amplo e extensivo, e no âmbito da Lei que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, o Legislador utilizar expressamente o termo "Administração Pública" e alguns doutrinadores e os próprios órgãos administrativos entenderem que nesse caso se refere à extinção da ação punitiva apenas no âmbito do CADE. Caso haja descompasso na interpretação do termo entre autoridades licitantes e o CADE, estar-se-á diante de uma grande insegurança jurídica, onde é aplicado o conceito desejado no ordenamento, em um juízo arbitrário de conveniência e oportunidade. Como a Administração Pública é uma só, é una, é um todo, o benefício instituído no âmbito da lei do CADE deve ser respeitado por todos os outros órgãos também integrantes da Administração.

3.6.

Interpretação analógica: os efeitos do acordo de leniência na Lei Anticorrupção

Recentemente foi editada a Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, que dispõe sobre a responsabilização objetiva no âmbito administrativo e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos à Administração Pública, nacional ou estrangeira.

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Com objetivo de definir o âmbito de incidência/aplicação da Lei Anticorrupção, o Legislador definiu no art. 5o quais são os atos lesivos à Administração Pública e que atrairiam, portanto, a aplicação desse diploma legal. In verbis: “Art. 5o Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1o, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos: I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei; III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; IV - no tocante a licitações e contratos: a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente; e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo; f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública; V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.”

Como o intuito do presente trabalho é auferir a extensão de aplicação da imunidade administrativa concedida ao leniente em casos de cartéis em licitações, esse tópico se restringirá à análise dos dispositivos pertinentes sobre o tema.

Por meio da simples leitura do dispositivo supracitado, pode-se concluir que a referida Lei tem, dentre outras finalidades, o objetivo de responsabilizar aqueles que tentam fraudar o caráter competitivo essencial aos procedimentos licitatórios. E como o cartel é uma forma de

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fraudar a licitação, pode-se afirmar que a responsabilização dos envolvidos está prevista nesse diploma legal.

Ultrapassada a apresentação da Lei Anticorrupção, é fundamental destacar e analisar os dispositivos da Lei 12.846 que preveem o acordo de leniência. Nos artigos 16 e 17, o Legislador previu a possibilidade de celebração do citado acordo, devendo o mesmo ser firmado entre a autoridade máxima de cada órgão e as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos. Confira-se:

“Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e II - a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.”

Para que seja possível a celebração do acordo de leniência que trata o art. 16 da Lei Anticorrupção, deverão ser preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: a pessoa jurídica (i) seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito; (ii) deve, a partir da data de propositura do acordo, cessar completamente o seu envolvimento na infração investigada; (iii) deve confessar a sua participação no ilícito e cooperar de forma plena e permanente com as investigações e o processo administrativo; (iv) tem que identificar os demais envolvidos na infração e (v) fornecer informações e documentos que comprovem o ilícito.

Preenchidos esses requisitos, poderá ser celebrado o acordo de leniência com a autoridade máxima de cada órgão ou entidade da administração pública. Portanto, comparando-se esses requisitos com aqueles previstos na Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, pode-se concluir que são exigidas as mesmas condições.

Após a celebração do acordo, o leniente, estará isento das sanções de (i) publicação extraordinária da decisão condenatória (penalidade prevista no artigo 6, inc. II da Lei Anticorrupção), (ii) proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de um 1 (ano) e máximo de 5 anos (prevista no art. 19, inc. IV da Lei ora em análise) e (iii) será reduzido em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável.

O Legislador ainda previu, no art. 17 da Lei 12.846, que a Administração Pública poderá, em caso de prática de ilícitos previstos na Lei 8.666, dentre os quais se vislumbra o cartel em licitação, celebrar o acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável, isentando ou atenuando as sanções administrativas previstas nos artigos 86, 87 e 88 da Lei 8.666. Destaque-se que dentre essas sanções está a declaração de idoneidade. Diante disso, no caso da celebração do acordo de leniência, o leniente poderá ficar isento da declaração de idoneidade por parte da Administração, prevista no artigo 87, inciso IV. In verbis:

“Art. 17. A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.”

Ante o exposto, pode-se afirmar que, apesar dos legisladores não terem definido o termo Administração Pública nessa lei, os mesmos utilizaram essa expressão com o objetivo de se referir à Administração Pública como um todo, isso é, a Administração Pública Direta e Indireta e, portanto, com o mesmo significado previsto na Lei 8.666. Fica evidente, que ao ser utilizada a expressão “Administração Pública” na Lei 12.529, quiseram também garantir a imunidade a toda a Administração Pública e não somente a uma parte da Administração.

Ademais, ficou demonstrada a transigibilidade quando as sanções previstas na Lei 8.666, inclusive àquela relacionada a declaração de inidoneidade, na medida em que o acordo de leniência da Lei 12.846 pode isentar quanto as sanções da Administração Pública como um todo, não sendo lógico e tolerável que a pessoa jurídica tenha imunidade quanto a uma sanção, em virtude da celebração do acordo de leniência e outro órgão da mesma Administração Pública a puna com a mesma sanção, se utilizando da confissão que é requisito obrigatório para a celebração do citado acordo.

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3.7.

Teoria dos Ordenamentos Setoriais

Com o intuito de enriquecer esse trabalho, pode ser citada a Teoria dos Ordenamentos Setoriais desenvolvida pelo Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Alexandre Santos de Aragão, na medida em que a mesma demonstra imparcialidade, pois, a princípio, serve de substrato para posição contrária da defendida.

Essa teoria, inicialmente engendrada por Santi Romano, defende a ideia de que todos os corpos sociais, desde que sejam permanentes e os seus elementos constitutivos sejam distintos, são instituições. Toda instituição, por sua vez, é um ordenamento. Portanto, há para os adeptos dessa teoria, uma pluralidade de ordenamentos jurídicos autônomos 52.

À luz dessa teoria, toda instituição que desempenha alguma atividade estatal é um ordenamento autônomo. Portanto, o CADE é um órgão autônomo integrante da Administração Pública que foi criado, em virtude da impotência dos instrumentos tradicionais de atuação do Estado. Esse órgão, assim como os demais, possui “independência frente ao aparelho central do Estado, com especialização técnica, capaz de direcionar as novas atividades sociais na senda do interesse público juridicamente definido.” 53 Com efeito, é como se tivéssemos diversos microssistemas na Administração Pública 54, e em todos eles há o traço da autonomia face ao poder central do Estado. 55 A este respeito, Giampaolo Rossi afirma que grande parte da atividade reguladora vem sendo confiada a 52

ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – Uma contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 786, Primeira Seção, Ano 90, Abril de 2001, p. 23. 53

ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – Uma contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 786, Primeira Seção, Ano 90, Abril de 2001, p. 14. 54

Também nesse sentido, existem doutrinadores que descrevem metaforicamente a Administração Pública como uma “galáxia administrativa, por possuir diversas formas organizatórias e diferentes entes autônomos, à semelhança de um sistema composto por planetas e satélites.” MODESTO, Paulo. Autovinculação da Administração Pública. Salvador: Revista Eletrônica de Direito do Estado n. 24, outubro/novembro/dezembro de 2010, p. 12. Disponível em http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-24-OUTUBRO-2010-PAULOMODESTO.pdf. Acesso em 17 de novembro de 2013. 55

ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – Uma contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 786, Primeira Seção, Ano 90, Abril de 2001, p. 12. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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autoridades administrativas independentes e especializadas, que “surgem como cogumelos depois do sereno do outono” (sorgono come funghi dopo la pioggia in autunno).” 56

Alexandre Santos de Aragão também complementa o seu raciocínio dizendo “que a independência dos ordenamentos setoriais deve ser tratada sem preconceitos ou mitificações jurídicas que, no mundo atual, são insuficientes ou mesmo ingênuas. Com efeito, limitar as formas de atuação e organização estatal àquelas do século XVIII, ao invés de, como afirmado pelos autores mais tradicionais, proteger a sociedade, retira-lhe a possibilidade de regulamentação e atuação efetiva dos seus interesses.” 57

Nessa linha, esses órgãos foram criados com a marcante característica de independência e autonomia. São bolhas especializadas que possuem poder de análise e decisão das matérias de sua competência. Aplicando-se o exposto até o momento sobre a teoria dos ordenamentos setoriais, pode-se afirmar que houve a delegação ao CADE (órgão independente) do poder decisório sobre as matérias de direito concorrencial. No entanto, outros órgãos da Administração Pública, também autônomos, podem utilizar o poder decisório que lhe é inerente sobre as condutas cartelizadoras, desde que essas atinjam, o principal objeto por esses órgãos tutelados. Assim, o cartel em licitação não só seria uma conduta cartelizadora que deve ser tutelada pelo órgão antitruste, mas também viola vários princípios da Administração Pública, como a moralidade, a eficiência, dentre outros, tutelados e resguardados não só pelo CADE.

Dentro do exercício de sua autonomia e independência, esses outros órgãos integrantes da Administração Pública podem, a principio, aplicar sanções administrativas ao leniente, na medida em que esse acordo apenas seria celebrado perante um órgão, qual seja, o CADE, não afetando a autonomia dos demais.

Após a exposição de um ponto da teoria dos ordenamentos setoriais, contrário ao defendido no presente trabalho, é necessário fazer uso de uma análise ampla e uma 56

ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – Uma contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 786, Primeira Seção, Ano 90, Abril de 2001, p. 12-13.

57

ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – Uma contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 786, Primeira Seção, Ano 90, Abril de 2001, p. 18. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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interpretação sistemática da referida teoria, na medida em que o próprio Professor Alexandre Santos de Aragão afirma que há um aparente antagonismo. In verbis:

“Não há qualquer contradição entre a potestade estatal e estas autonomias, que constituem situações aparentemente antagônicas, posto que, na realidade, complementam-se, no interior do nosso sistema de direito positivo, em harmoniosa interação e inarredável integração.” 58

Paolo Biscaretti Di Ruffia também comenta nesse sentido: “O Estado não é a única ordenação existente no amplo mundo do direito: junto, acima e sob ele, na realidade, as exigências da vida em sociedade têm determinado a aparição de outras numerosas ordenações mais ou menos vastas ou complexas. (...) Há variadíssimas ordenações jurídicas menores concretizadas em instituições compreendidas no Estado e, portanto, sob sua dependência (sejam entes públicos ou privados).” 59

Ademais, Alexandre Santos de Aragão em um outro trecho de sua obra afirma que as “instituições não são entes fechados. Toda instituição correlaciona-se com outras instituições, às vezes integrando-as como partes constitutivas.” 60 Portanto, essa teoria não nega a necessária inter-relação entre os órgãos autônomos, o que faz com que não sejam bolhas isoladas, mas que se comuniquem internamente e devam ser minimamente uniformes. Conclui-se que disparidades entre órgãos autônomos integrantes da Administração Pública são repelidas pela teoria dos ordenamentos setoriais, apesar de reconhecida a independência de um frente ao outro. Assim, a própria teoria ora analisada pode servir para embasar a extensão dos efeitos da celebração do acordo de leniência para todos os órgãos autônomos da Administração Pública.

58

ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – Uma contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 786, Primeira Seção, Ano 90, Abril de 2001, p. 21.

59

RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Direito Constitucional. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 1984, tradução Maria Helena Diniz, p. 53-54. 60

ARAGÃO, Alexandre Santos de. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – Uma contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 786, Primeira Seção, Ano 90, Abril de 2001, p. 23. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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3.8.

Interpretação do Sistema Punitivo da Administração Pública

Intimamente ligado ao argumento desenvolvido acima, a punição dos diferentes órgãos integrantes da Administração Pública não pode ser contraditória, devendo ser vista e interpretada de maneira uniforme. Dessa forma, a extinção da ação punitiva como benefício da celebração do acordo de leniência deve abranger toda a Administração Pública, não podendo outro órgão declarar a inidoneidade da empresa leniente, por exemplo, em caso de cartéis em licitações, visto que criaria uma desarmonia nas normas punitivas da Administração Pública e também geraria uma insegurança e ausência de credibilidade em relação aos seus programas e suas diretrizes.

Inclusive, diminuiria os benefícios da celebração do citado acordo, visto que, a existência da possibilidade de outros órgãos da Administração aplicarem essa sanção (declaração de inidoneidade) reduzem os incentivos para a celebração do mesmo, inclusive pelo fato de importar em confissão 61. Logo, em caso de cartel em licitação, não seria tão atrativa a possibilidade de celebração do acordo de leniência com o CADE, tendo em vista que a empresa poderia ser declarada inidônea por outro órgão da Administração Pública, sendo, portanto, proibida de licitar ou contratar com a Administração.

E essa visão se torna mais forte e relevante, na medida em que é constatada a existência de previsão na própria Lei do CADE, no sentido de que os órgãos de defesa da concorrência podem impor às empresas participantes do cartel “a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos” 62. Portanto, o CADE tem 61

Art. 86 da Lei 12.529: “O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: IV - a empresa confesse sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.”

62

Art. 38 da Lei 12.529: “Sem prejuízo das penas cominadas no art. 37 desta Lei, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

41

competência e pode declarar a “inidoneidade” das empresas cartelizadoras, ressaltando-se que a penalidade do órgão de defesa da concorrência pode ser mais gravosa, tendo em vista que há a proibição de contratar com a Administração Pública por no mínimo 5 (cinco) anos, e não no mínimo de 2 (anos) anos como estabelece a Lei 8.666.

3.8.1 Incidência da Teoria das Autolimitações Administrativas e do dever de coerência da Administração Pública

Para complementar e corroborar o exposto no tópico anterior sobre a interpretação do sistema punitivo da Administração Pública, pode-se trazer à lume outra teoria estudada pelo Procurador Alexandre Santos de Aragão, qual seja, aquela desenvolvida em seu artigo intitulado “Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre Órgãos Administrativos” que analisa, exatamente, as situações em que mais de um órgão da Administração possui competência sobre atos e condutas do particular, dando a possibilidade de emergirem entendimentos potencialmente conflitantes 63.

Segundo o renomado autor, a essas hipóteses em que mais de um ente da Administração Pública possua e deseje exercer a sua competência é aplicável a teoria das autolimitações administrativas. Essa teoria 64 proíbe que a Administração Pública adote entendimentos contraditórios, conflitantes ou desconformes, e, portanto, ao exercer as suas funções, e por mais razão as funções sancionadoras que podem gerar restrições a direitos de terceiros, os órgãos não podem exercê-la arbitrária ou incoerentemente.

cumulativamente: II - a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos;” 63

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, n. 14, maio/junho/julho, ano 2008, p. 1. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013. 64

Ressalte-se que para a aplicação da teoria em comento, Alexandre Santos de Aragão afirma que existem três requisitos de preenchimento obrigatório para a sua incidência, são eles: (i) identidade subjetiva; (ii) identidade objetiva; e (iii) contradição entre ato anterior e posterior . JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Nesse sentido, a teoria das autolimitações administrativas visa assegurar “a razoabilidade, a coerência e a isonomia no tratamento conferido pela Administração Pública aos cidadãos, em uma expressão do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal substancial, que vedam as iniquidades estatais.” 65 Em outras palavras, essa teoria objetiva garantir a confiança legítima, a segurança jurídica e a liberdade dos indivíduos.

Para tanto, os julgadores deverão se preocupar em manter coerência nas suas decisões, devendo investigar, pesquisar e estudar as decisões anteriormente proferidas por outros órgãos também competentes. Segundo Alexandre Santos de Aragão, essa postura de investigação e estudo representa um imperativo lógico, pois a disparidade corrói a confiabilidade do sistema, e principiológico, na medida em que a segurança jurídica não convive com a leviandade nas decisões. 66

Em resumo, as decisões proferidas pela Administração Pública devem guardar um mínimo de coerência, não se admitindo, por isso, tratamento diferenciado para os mesmos fatos geradores, em respeito à boa-fé do cidadão. Maria Sylvia Di Pietro afirma que “a segurança jurídica tem muita relação com a idéia de respeito à boa-fé.”

67

Havendo a Administração atuado, diante de uma situação em determinado sentido, não lhe será lícito fazê-lo de outra forma, diante da mesma situação 68. Portanto, in casu, o CADE, órgão integrante da Administração Pública, não pode declarar a imunidade no âmbito

65

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, n. 14, maio/junho/julho, ano 2008, p. 2. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013. 66

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, n. 14, maio/junho/julho, ano 2008, p. 2. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013. 67

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2001, pág. 85. 68

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, n. 14, maio/junho/julho, ano 2008, p. 3. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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administrativo da empresa leniente, ou seja, atuar em um determinado sentido, e outro órgão da mesma Administração Pública, em total desrespeito a essa decisão, aplicar sanções administrativas à leniente, em virtude do mesmo fato.

Isso, porque, a boa-fé do leniente em delatar a conduta infracional implica em um dever de coerência pela Administração Pública, que consiste na necessidade de observar nas decisões, o que os atos anteriores faziam prever. A adoção de duas posturas diametralmente opostas por órgãos membros da Administração Pública brasileira, certamente, gerará a quebra de confiança do agente que procurou o órgão concorrencial, preencheu todos os requisitos para ter direito aos benefícios da celebração do acordo, colaborou com as investigações, dentre outras medidas adotadas.

Mesmo que os órgãos prolatores das decisões conflitantes tenham competências distintas, sendo precisamente o mesmo fato que gerou o desencadeamento do poder sancionatório de tais órgãos, “o dever de lealdade da Administração Pública exige que, ainda que cada centro de governo tenha seus próprios e legítimos interesses, nenhum deles, como parte integrante do conjunto, pode se sentir alheio à realização das funções dos outros. (...) Trata-se de um autêntico dever jurídico, inerente à própria existência do sistema, sem o qual não é possível seu funcionamento harmônico.”

69

Confira-se decisão do Tribunal Supremo de 7 de julho de 1952 70 que nesse sentido também declarou:

‘a Administração, ainda que dividida em diferentes ramos ou Ministérios, é sempre una e não pode voltar atrás em seus próprios atos nem desconhecer direitos que ela mesma havia reconhecido.”

Ante o exposto, pode-se afirmar que a teoria das autolimitações administrativas foi criada com o objetivo de controlar a atuação dos diferentes órgãos membros da Administração 69

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, n. 14, ano 2008, p. 6, maio/junho/julho,. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013. 70

Decisão retirada do artigo Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, p. 6. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Pública, pois o exercício de suas competências não pode ser contraditório. Caso seja verificada a incompatibilidade de decisões sobre a mesma base fática, pois prolatadas em sentidos opostos, será necessária a revogação da decisão posterior que não observou a postura tomada anteriormente por outro órgão administrativo.

O Tribunal Constitucional Espanhol já se manifestou no sentido de que “a coordenação persegue a integração da diversidade das partes ou subsistemas no conjunto do sistema, evitando contradições e reduzindo disfunções que, se existentes, respectivamente impediriam ou dificultariam a realidade do sistema. Confira-se: “A coordenação é uma atividade jurídica que se desenvolve para harmonizar, em função de fins comuns, o comportamento de determinados sujeitos autônomos, que ao mesmo tempo têm assegurada a sua autonomia.” (A. Mazella. II parlamento, 1992, p. 344)”

O cerne desse princípio espanhol da coordenação administrativa é, basicamente, a soma das principais ideias da teoria dos ordenamentos setoriais combinada com a teoria das autolimitações administrativas. Segundo Alexandre Santos de Aragão, “esse princípio impõe que a Administração Pública, ao apreciar a existência ou inexistência de fatos relevantes para o exercício de suas diversas competências setoriais, não emita juízos contraditórios, sob pena de comprometimento da própria realidade do seu sistema.” 71

Por essa teoria, embora seja reconhecida a autonomia dos órgãos e as múltiplas competências administrativas setoriais divididas, inafastável fica a obrigação de coerência dos atos/decisões, em respeito à boa-fé dos administrados.

Tanto é verdade que a admissão de um fato como já decidido por uma esfera de atuação do Estado compromete a competência própria do outro ente, que o Poder Judiciário tem decidido que não pode validamente processar uma ação penal proposta em razão de fato

71

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, n. 14, ano 2008, p. 6, maio/junho/julho,. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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que veio, posteriormente, a ter a sua existência negada na esfera administrativa 72. Veja-se os seguintes acórdãos do STF e STJ, respectivamente: EMENTA:HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. REPRESENTAÇÃO. DENÚNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. ARQUIVAMENTO. AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. Denúncia por crime contra o Sistema Financeiro Nacional oferecida com base exclusiva na representação do BANCO CENTRAL. Posterior decisão do BANCO determinando o arquivamento do processo administrativo, que motivou a representação. A instituição bancária constatou que a dívida, caracterizadora do ilícito, foi objeto de repactuação nos autos de execução judicial . O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional referendou essa decisão. O Ministério Público, antes do oferecimento da denúncia, deveria ter promovido a adequada investigação criminal. Precisava, no mínimo, apurar a existência do nexo causal e do elemento subjetivo do tipo. E não basear-se apenas na representação do BANCO CENTRAL. Com a decisão do BANCO, ocorreu a falta de justa causa para prosseguir com a ação penal, por evidente atipicidade do fato. Não é, portanto, a independência das instâncias administrativa e penal que está em questão. Habeas Corpus deferido.” 73

“RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. GESTÃO DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA SEM A DEVIDA AUTORIZAÇÃO LEGAL. GESTÃO FRAUDULENTA. ATIPICIDADE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. O trancamento da ação penal por ausência de justa causa, medida de exceção que é, somente cabe quando a atipicidade e a inexistência dos indícios de autoria se mostram na luz da evidência, primus ictus oculi. 2. Em resultando manifesta a atipicidade da conduta atribuída ao agente, como nas hipóteses em que, descomprometido com o auferimento de lucro, quanto mais ilícito, tomou medidas urgentes e necessárias ao bom funcionamento do órgão que geria, o trancamento da ação penal é medida que se impõe. 3. Carece de justa causa a ação penal fundada em representação de Autarquia Federal, quando ela própria vem a considerar como lícita a conduta do agente (Precedente do STF). 4. Recurso provido.” 74 72

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, n. 14, ano 2008, p. 12, maio/junho/julho,. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013. 73

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 81.324/SP, Relator Min. Nelson Jobim, Publicada decisão em 23.08.2002.

74

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 12.192/RJ, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, Acórdão publicado em 10.03.2003. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Conforme preceitua Alexandre Santos de Aragão, “se até mesmo nas relações travadas entre Poder Judiciário e Poder Executivo, que são independentes entre si, o primeiro não entra em contradição lógica com as decisões do segundo, por maior razão ainda devem os órgãos da Administração Pública decidirem no mesmo sentido.” 75

Conclui-se, que os órgãos integrantes da Administração Pública devem privilegiar a harmonia e a coesão em suas decisões, ao passo que conferem eficácia aos princípios que norteiam a atividade sancionadora administrativa.

3.8.2. Princípio da Proibição de Comportamento Contraditório no âmbito da Administração Pública

Em estrita correlação a teoria das autolimitações administrativas, há o princípio que veda o comportamento contraditório, com o objetivo de tutelar a confiança. Portanto, o princípio da proibição do venire contra factum proprium foi criado para impedir que comportamentos incoerentes e conflitantes firam a legítima expectativa de outrem, pois a ninguém é dado o direito de contrariar os próprios atos, quebrando a confiança de terceiros. Confira-se trecho do renomado doutrinador Pontes de Miranda 76 nesse sentido:

“(...) a ninguém é lícito venire contra factum proprium, isto é, exercer direito, pretensão ou ação, ou exceção, em contradição com o que foi a sua atitude anterior, interpretada objetivamente, de acordo com a lei.”

Por meio desse princípio, que é corolário do conceito de boa-fé objetiva, procura-se estabelecer um standard de conduta leal e confiável, de modo a impedir que a contradição dos atos viole expectativas despertadas em outrem. Confira-se:

75

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, n. 14, ano 2008, p. 12, maio/junho/julho,. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013. 76

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Ed. Bookseller, 2000, p. 64. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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“A proibição de comportamento contraditório não tem por fim a manutenção da coerência por si só, mas afigura-se razoável apenas quando e na medida em que a incoerência, a contradição aos próprios atos, possa violar expectativas despertadas em outrem e assim causarlhes prejuízos.” 77

Inclusive é assente na jurisprudência e na doutrina a aplicabilidade do princípio da proibição do comportamento contraditório à Administração Pública com o objetivo de garantir a confiança nas relações jurídico-administrativas. Portanto, a jurisprudência pátria tem admitido o princípio do nemo potest venire contra factum proprium sobre relações que envolvem a Administração Pública. Confira-se: “Não obstante, mesmo aqueles que restringem a aplicabilidade da boa-fé objetiva às relações privadas, devem admitir a incidência do princípio de proibição do comportamento contraditório em relações de direito público. O Superior Tribunal de Justiça, em mais de uma oportunidade, já fez incidir o nemo potest venire contra factum proprium sobre relações entre particulares e a Administração Pública. Na maior parte desses casos, invocou a boa-fé objetiva, chegando a declarar expressamente sua aplicabilidade às relações de direito público.” 78

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO MILITAR. CURSO DE FORMAÇÃO. MATRÍCULA POR FORÇA DE LIMINAR. MÉRITO JULGADO IMPROCEDENTE. MANUTENÇÃO NA ACADEMIA, INGRESSO E PROMOÇÃO NA CARREIRA POR ATOS DA ADMINISTRAÇÃO POSTERIORES À CASSAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL. TRANSCURSO DE MAIS DE CINCO ANOS. ANULAÇÃO. SEGURANÇA JURÍDICA E BOA-FÉ OBJETIVA VULNERADOS. VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. CONSTATAÇÃO DE QUE O CANDIDATO PREENCHIA O REQUISITO CUJA SUPOSTA AUSÊNCIA IMPEDIRA SUA ADMISSÃO NO CURSO DE FORMAÇÃO. ATENDIMENTO AOS PRESSUPOSTOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS PARA INGRESSO E EXERCÍCIO DO CARGO DE OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR.

77

SHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 96 78

SHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 212

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1. Os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem como a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium), impedem que a Administração, após praticar atos em determinado sentido, que criaram uma aparência de estabilidade das relações jurídicas, venha adotar atos na direção contrária, com a vulneração de direito que, em razão da anterior conduta administrativa e do longo período de tempo transcorrido, já se acreditava incorporado ao patrimônio dos administrados. 2. À luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, verifica-se que o Recorrente, em sentido material, preenchia os requisitos editalícios para admissão no Curso de Formação, inclusive aquele cuja ausência formal constituíra obstáculo inicial à sua matrícula e que ensejou o ajuizamento da ação judicial em cujo bojo obteve a liminar. (...)” 79

“Tributário. Imposto de renda. Documentação fiscal. Parcialmente destruída. Enchente. Arbitramento. 1. As decisões administrativas devem guardam um mínimo de coerência, não se admitindo, por isso, tratamento diferenciado para hipóteses rigorosamente idênticas. (...) 2. Incidência da Súmula 76, do TRF. 3. Apelação parcialmente provida para reduzir o percentual da verba de patrocínio. 4. Remessa improvida.” 80

Aliás, foi o que ocorreu no julgamento do REsp 141.879/SP. O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o recurso, ressaltou o caráter contraditório dos atos praticados pelo Município de Limeira, e com base na boa fé objetiva e na tutela de confiança, negou provimento ao pedido, proibindo o comportamento incoerente. In verbis: “Loteamento. Município. Pretensão de anulação do contrato. boa-fé. Atos próprios. - Tendo o Município celebrado contrato de promessa de compra e venda de lote localizado em imóvel de sua propriedade, descabe o pedido de anulação dos atos, se possível a regularização do loteamento que ele mesmo está promovendo. Art. 40 da lei 6.766/79. - A teoria dos atos próprios impede que a Administração Pública retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento. Recurso não conhecido.” 81 79

BRASIL. Recurso em Mandado de Segurança n. 20.572/DF, Relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, Decisão publicada em 15.12.2009. 80

BRASIL. Tribunal Regional Federal. 1 Região, Apelação Cível n. 9101166930, Relator Juiz Fernando Gonçalves. Terceira Turma, Decisão publicada em 19.11.1992. 81

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 141879/SP, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, Decisão publicada em 22.06.1998. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Na decisão a seguir, o STJ também aplicou o princípio do nemo potest venire contra factum proprium fora do âmbito das relações privadas, vedando a incoerência da Administração Pública em prejuízo da legítima confiança do particular. “ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. TITULO DE PROPRIEDADE OUTORGADO PELO PODER PUBLICO, ATRAVES DE FUNCIONARIO DE ALTO ESCALÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE PELA PROPRIA ADMINISTRAÇÃO, OBJETIVANDO PREJUDICAR O ADQUIRENTE: INADMISSIBILIDADE. ALTERAÇÃO NO POLO ATIVO DA RELAÇÃO PROCESSUAL NA FASE RECURSAL: IMPOSSIBILIDADE, TENDO EM VISTA O PRINCIPIO DA ESTABILIZAÇÃO SUBJETIVA DO PROCESSO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INSTITUIÇÃO DE PARQUE ESTADUAL. PRESERVAÇÃO DA MATA INSERTA EM LOTE DE PARTICULAR. DIREITO A INDENIZAÇÃO PELA INDISPONIBILIDADE DO IMOVEL, E NÃO SO DA MATA. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS. I- Se o suposto equivoco no titulo de propriedade foi causado pela própria Administração, através de funcionário de alto escalão, não ha que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação dos princípios de que "memo potest venire contra factum proprium" e de que "memo creditur turpitudinem suam allegans". (...) III- O proprietário que teve o seu imóvel abrangido por parque criado pela Administração faz jus a integral indenização da área atingida, e não apenas em relação a mata a ser preservada. Precedente do STJ: REsp n. 39.842/SP. IV- Recursos especiais conhecidos e parcialmente providos. (...) Ora, pelo que se apreende do acórdão recorrido, o Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou – a meu ver, acertadamente – o princípio de que nemo potest venire contra factum proprium (ninguém pode se opor a fato que ele próprio deu causa) (...) Realmente, não pode a Fazenda Pública, décadas após a venda do imóvel realizada por funcionário de alto escalão em nome da Administração, vir a juízo pleitear a nulidade dos títulos. Ora, se há mácula no título, essa foi causada pelo próprio poder público, o qual não pode invocar o suposto equívoco do seu secretário de Estado, para prejudicar aquele que legitimamente adquiriu a propriedade, pagando para tanto. Em suma, se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria Administração, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. (...)”

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(trecho do voto do Ministro Adhemar Maciel) 82

Portanto, não restam dúvidas de que da aplicação dos princípios da boa-fé, da legítima expectativa e da segurança jurídica aplicados à Administração Pública, decorre a incidência, nos atos da Administração, do princípio da não contradição ou da proibição do venire contra factum proprium. Nesses termos, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, se houver contradição dentre dois comportamentos da Administração Pública não é admissível dar eficácia à última conduta. Confira-se: “(...) o direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente (CORDEIRO[3], 742). Havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior.”83

O Relator desse caso, Min. Ruy Rosado, a propósito, fez importantes pontuações em seu voto. In verbis: “(...) deve ser interpretado e aplicado de tal forma que através dele possa ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento da eficácia e validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser a parte surpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os princípios éticos, inspiradores do sistema (ROSADO, 1996, p. 4).

Logo, percebe-se que a proibição do venire contra factum proprium é consectário natural da repressão ao abuso de direito. Não é tolerável que um órgão da Administração Pública adote uma postura contrária a posição anteriormente adotada pela Administração, na medida em que se estará violando a boa-fé do particular. Nisso, pode-se concluir com todas as propriedades que um órgão administrativo como é o CADE não pode reconhecer e declarar a imunidade no âmbito administrativo, gerando confiança legítima no particular e após, outro órgão da mesma Administração resolva aplicar sanções 82

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 47.015/SP, Relator Ministro Adhemar Maciel, Segunda Turma, Decisão publicada em 09.12.1997.

83

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 95539/SP, Relator. Ministro Ruy Rosado. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

51

3.9.

Comparação: Âmbito penal e Âmbito administrativo

Também cabe uma comparação entre o âmbito penal e o âmbito administrativo, pois, como se sabe, o artigo 87 da Lei 12.529 84 estabelece que a celebração do acordo de leniência suspenderá o curso do prazo prescricional e impedirá o oferecimento da denúncia em relação ao agente que dele se beneficia. Tal benefício, na vigência da Lei 8.884, se aplicava somente aos Crimes contra a Ordem Econômica tipificados na Lei 8.137. In verbis:

"O Programa de Leniência brasileiro consiste em um acordo firmado entre a União Federal -intermediada pela SDE- e uma pessoa física ou jurídica co-autora de uma infração à ordem econômica. Por meio deste acordo, a União oferece a extinção da ação punitiva da Administração ou a redução da pena a ser aplicada pelo CADE, bem como a extinção da punibilidade quando a infração também constituir crime contra a ordem econômica, em troca da confissão da interessada e de sua colaboração no fornecimento de provas capazes de condenar os demais co-autores. 85"

No entanto, a Lei 12.529 trouxe mudanças em relação ao acordo de leniência, com o intuito de aumentar a sua eficácia. Dentre as mudanças introduzidas pela nova lei, destaca-se: a isenção da persecução criminal em relação aos crimes tipificados na Lei 8.666 e também no Código Penal. Assim, a Lei 12.529 ampliou o benefício da isenção penal dada ao agente que celebrar o acordo de leniência, incluindo expressamente nas hipóteses de extinção da punibilidade, além dos crimes tipificados na Lei 8.137 (que já eram previstos no artigo 35-C da Lei 8.884), os crimes tipificados na Lei 8.666 e no artigo 288 do Código Penal (crime de formação de quadrilha).

84

Art. 87 da Lei 12.529: “Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. Parágrafo único. Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo.” 85

MUZZUCATO, Paulo Zupo. Acordo de Leniência - A política econômica de combate a cartéis. Belo Horizonte, 2004. Dissertação de Mestrado em Direito Econômico - Faculdade de Direito - Universidade Federal de Minas Gerais. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

52

Ante o exposto, não restam dúvidas de que se o acordo de leniência for integralmente cumprido, a punibilidade dos crimes previstos na Lei de Crimes contra a Ordem Econômica (Lei 8.137), na Lei de Licitações (Lei 8.666) e no Código Penal (Decreto-Lei 2.848) será automaticamente extinta. Portanto, é passível de conclusão que o cumprimento do acordo é causa de reconhecimento automático da extinção da punibilidade criminal. Confira-se:

“(....) uma vez verificado o cumprimento do acordo, “decretar a extinção da ação punitiva da administração pública em favor do infrator” ou “reduzir de um a dois terços as penas [administrativas] aplicáveis”. Acertadamente, o legislador prescreveu à autarquia que se manifestasse apenas quanto à ação punitiva da Administração Pública, e não sobre a extinção da punibilidade para os crimes contra a Ordem Econômica tipificados na Lei 8.137/1990. Não há que se falar, na hipótese, em qualquer sobreposição da instância administrativa sobre a criminal. Há outras causas de extinção da punibilidade relacionadas a atos do Poder Executivo, tais como a graça e o indulto, ou deste em conjunto com o Poder Legislativo, a exemplo da anistia.”86

Voltando-se, nesse momento, para uma análise específica dos cartéis em licitações, que são aqueles em que normalmente as empresas combinam um preço alto e, na tomada de preços, o governo sem opções, acaba tendo que escolher uma empresa que cobrou um preço alto, prejudicando, dessa forma, o governo e também os consumidores, o principal aspecto que será destacado é a inclusão, nas hipóteses de extinção da punibilidade dos crimes tipificados na Lei 8.666.

Dessa forma, a Lei 12.529 garantiu à empresa leniente a imunidade no âmbito criminal da Lei 8.666, e como a sanção administrativa é menos gravosa que a sanção penal, não faz sentido sobreviver aquela, se houve extensão de imunidade no âmbito criminal, não podendo mais a empresa leniente ser condenada pelo crime do art. 90 da Lei de Licitações 87.

Não pode a sanção administrativa (declaração de inidoneidade) sobreviver, ao passo que a nova Lei do CADE confere imunidade no âmbito penal da Lei de Licitações. Aqui, cabe a invocação à interpretação harmônica das normas do novo diploma regulamentador do 86

MAZZUCATO, Paolo Zupo. Acordo de Leniência: Questões controversas sobre o art. 35-C da lei antitruste. Revista do IBRAC, São Paulo, vol. 17. Editora Revista dos Tribunais, p. 173.

87

Art. 90 da Lei 8.666: “ Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.” JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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sistema de defesa da concorrência. Para tanto, segue um trecho do parecer do CADE que compara a sanção administrativa em relação à penal no âmbito da prova emprestada, afirmando que a primeira é um minus em relação à segunda. Confira-se:

"(...) sendo a sanção administrativa um minus em relação à sanção penal, impossível admitir-se que o Estado tendo legitimidade para utilizar a prova no processo penal e não a tenha para utilizá-la no processo administrativo 88".

Se no âmbito penal, a Lei 12.529 pode imunizar, ou seja, extinguir a punibilidade dos crimes da Lei de Licitações cometidos pela empresa leniente, há uma clara interferência do CADE nas sanções tipificadas na Lei de Licitações, não consistindo problema algum o fato do CADE conceder imunidade das sanções administrativas estabelecidas na Lei 8.666, visto que já confere no âmbito penal, e assim se o órgão interfere no âmbito penal, também pode interferir no âmbito administrativo.

Privilegiando uma interpretação sistemática, a mudança introduzida com a nova Lei do CADE, no qual a empresa que celebre o acordo de leniência terá a extinção da punibilidade dos crimes tipificados na Lei 8.666, gera uma situação na qual se permite concluir que a Lei 12.529 adentra a Lei de Licitações para que o beneficiado pelo acordo de leniência não seja responsabilizado penalmente. Logo, o mesmo deve ocorrer com as sanções administrativas, isso é, a Lei 12.529 deve ser interpretada no sentido de não permitir que a empresa leniente seja declarada inidônea. Caso possa ser declarada inidônea, o acordo de leniência tem sua utilidade reduzida para as empresas que tem como única fonte de faturamento a participação em licitação, uma vez que, irão preferir não delatar o cartel a ser declarada inidônea. Portanto, se o artigo 87 é claro ao estender a imunidade para o crime do artigo 90 da Lei de Licitações, por que o art. 86 deveria ser interpretado como restrito ao CADE? Se há imunidade para o crime da Lei de Licitações, que constitui hipótese mais grave do que a mera infração administrativa, como seria justificada a ausência de imunidade para a aplicação das sanções administrativas previstas na Lei 8.666? Essas são perguntas que demonstram a fragilidade da legalidade em não se estender a imunidade administrativa conferida com a celebração do acordo de leniência para toda a Administração Pública.

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Trecho do Voto do Conselheiro Afonso Arinos de Mello Franco Neto no Processo Administrativo n. 08012.004036/2001-18. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Embora, seja possível defender com bons argumentos o posicionamento acima demonstrado, deve ser citado o precedente do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) de 20.9.2011, ou seja, julgamento feito ainda sob a égide da Lei 8.884, no sentido de que o acordo de leniência dessa antiga Lei só abrangeria os crimes tipificados na Lei 8.137 e, assim, não obstaria a persecução criminal por conduta tipificada no Código de Defesa do Consumidor (“CDC”). Portanto, em sentido oposto ao defendido no presente trabalho, surge a possibilidade do mesmo ilícito gerar punições diferentes por esferas diferentes. In verbis: PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO. QUADRILHA OU BANDO. 1. MATERIAL PROBATÓRIO DA AÇÃO PENAL PRODUZIDO EM INQUÉRITO CIVIL. POSSIBILIDADE. 2. TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA QUE NÃO IMPEDE A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS DOS JUÍZOS CÍVEL E CRIMINAL. 3. ACORDO DE LENIÊNCIA. ART. 35-C DA LEI 8.884⁄94. DISPOSITIVO QUE NÃO ALCANÇA OS CRIMES CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO. 4. QUADRILHA OU BANDO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. 5. ORDEM DENEGADA. (...) 3. Destinando-se o acordo de leniência aos crimes contra a ordem econômica, é de se mencionar que somente as condutas delituosas previstas no Capitulo II da Lei n.º 8.137⁄90, quais sejam os artigos 4º, 5º e 6º, é que podem ensejar a celebração do ajuste. Não é o caso dos autos, em que o recorrente foi denunciado pela suposta prática da conduta descrita no art. 7º, inciso VII, da Lei n.º 8.137 ⁄97.

4. CAPÍTULO III – Estudo de Casos

4.1.

O Primeiro Acordo de Leniência Brasileiro

O primeiro acordo de leniência da história do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência foi firmado em 8.10.2003 e constava de um lado, o CADE e de outro lado, os Srs. Rubem Isnar Baz Oreli, Alexandre Luzardo da Silva e a empresa Vigilância Antares Ltda. Este acordo de leniência serviu para frear a prática dos membros do cartel em licitação organizado por “empresas prestadoras de serviços de vigilância do Rio Grande do Sul, para

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atuar em licitações públicas e privadas” 89.

Segundo informações obtidas junto ao relatório do caso, elaborado pelo Conselheiro Relator Abraham Benzaquen Siscú, o “Processo Administrativo contava com 55 (cinquenta e cinco) representados e foi instaurado com base na Nota Técnica juntada pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda – SEAE/MF e nas informações obtidas junto aos Srs. Rubem Isnar Baz Oreli e Alexandre Luzardo da Silva, respectivamente, proprietário e funcionário da empresa de Vigilância Antares”. Posteriormente, a empresa Secure Sistemas de Segurança Ltda. também foi incluída no polo passivo do presente feito.

Ainda de acordo com o citado relatório, este cartel iniciou-se pelo menos em 1990 e suas atividades foram formalizadas por meio da criação da Associação das Empresas de Vigilância do Rio Grande do Sul, também conhecida como ASSEVIRGS, em 1994. A essa época, inclusive funcionava em paralelo, um sindicato patronal, o Sindicato das Empresas de Segurança e Vigilância do Estado do Rio Grande do Sul – SEVERGS, com composição similar a da ASSEVIRGS.

Os beneficiários do acordo de leniência relataram que havia reuniões semanais entre os membros desse cartel em licitação, ocasião em que todas as empresas levavam os editais das licitações a ocorrer durante a semana, quando seria decidido quem venceria e qual preço seria dado na licitação. A troca de propostas também se realizaria por e-mails e envelopes trocados entre as empresas nas semanas que antecediam as licitações.” 90 Com efeito, a assinatura do acordo de leniência permitiu que as autoridades concorrenciais pudessem ter acesso a provas diretas que materializaram as fraudes às licitações.

Após a conclusão da instrução do Processo Administrativo ora analisado, os autos foram remetidos para julgamento em 4.10.2006, sendo julgado, de fato, em 19.9.2007, ou seja, houve o julgamento 4 (quatro) anos após a propositura do acordo de leniência.

Passado o breve relato do caso, o presente tópico irá se restringir ao objeto desse 89

Relatório elaborado pelo CADE sobre o Processo Administrativo n. 08012001826/2013-10, p. 8269 dos autos.

90

FERREIRA, Bráulio Cavalcanti. Monografia sobre a Política de Combate a Cartel no Brasil- Análise Jurídica do Acordo de Leniência e do Termo de Compromisso de Cessação de Prática. São Paulo, 2011, Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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trabalho, consubstanciando, portanto, na análise restrita das consequências impostas aos lenientes, principalmente no que toca a proibição da empresa de participar de licitações.

Embora as propostas e a própria íntegra do acordo de leniência sejam protegidas por sigilo, a fim de evitar a exposição dos delatores (o que não aconteceu no caso Siemens, no qual houve o vazamento das tratativas e, no momento, diversos órgãos da Administração Pública tentam puni-la), sabe-se por meio das peças disponíveis na página virtual do sistema brasileiro de defesa da concorrência que o CADE reconheceu o cumprimento integral dos requisitos pelos lenientes, inclusive porque, à época, o CADE deveria seguir o juízo da União quanto ao cumprimento do acordo e a SDE entendeu que todos os requisitos necessários à celebração do acordo estavam presentes. Confira-se: “Ressalte-se a valorosa contribuição às investigações d[a] SDE e do fiel cumprimento de todas as obrigações acessórias estipuladas na Lei 8.884 e no acordo por parte dos beneficiários (fls. 7748) que resultou na identificação dos demais co-autores da infração e na obtenção de informações e documentos que comprovam a infração 91”

Também nessa linha, segue trecho retirado da página virtual do Ministério da Justiça, no sentido de que a SDE entendeu que deveria ser extinta a ação punitiva da Administração Pública para os lenientes desse caso: “Além disso, a SDE sugeriu ao CADE a extinção da ação punitiva da administração pública em relação aos signatários do acordo de leniência, por considerar que estes efetivamente auxiliaram na obtenção das provas para a condenação do cartel. O CADE condenou todas as empresas consideradas infratoras pela SDE e também as empresas Secure, Sênior, MD Serviço de Segurança, Delta e os seus dirigentes. A punibilidade para os signatários do acordo de leniência foi extinta pelo CADE, que considerou que o acordo foi efetivamente cumprido. 92”

A Procuradoria do CADE, por sua vez, emitiu o Parecer 114/2007, por meio do qual opinou pela aplicação integral dos benefícios do acordo de leniência e, consequentemente, a

91

Voto do Conselheiro Relator Abraham Benzaquen Sicsú no Processo Administrativo n. 08012.001826/201310, p. 7.

92

Trecho retirado do link: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7B87802C87-B7BE-4EAF-91DBF5843CEB74F2%7D&BrowserType=NN&LangID=ptbr¶ms=itemID%3D%7B91FEDE4C%2D6648%2D4 2AD%2D9C54%2D6110B43DFD0A%7D%3B&UIPartUID=%7B2868BA3C%2D1C72%2D4347%2DBE11% 2DA26F70F4CB26%7D. Acesso em 13 de novembro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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proibição de participar de licitações não deveria incidir sobre a empresa Vigilância Antares Ltda.. In verbis: “81. Ademais, data a gravidade da prática infrativa, entende essa Procuradoria que deve ser observado o art. 24, II, da Lei 8.884/94, referente à proibição dos representados de participar de licitações por prazo não inferior a cinco anos; 82. Ainda em razão do cumprimento integral do Acordo de Leniência pelos beneficiários, nos termos indicados pela SDE, opina-se pela aplicação integral dos benefícios do acordo previstos no artigo 35-B, Parágrafo 4, I e artigo 35-C, Parágrafo único, da Lei n. 8.884/94.” 93

O Conselheiro Relator do caso votou pela aplicação integral dos benefícios à empresa Vigilância Antares Ltda. e ao Sr. Rubem Oreli. Declarou ainda serem inaplicáveis aos mesmos, as penalidades que foram impostas aos demais. Note-se que quanto ao Sr. Alexandre Luzardo, o Relator do caso votou pela sua não-condenação, por ser inimputável, em relação aos normas antitruste.

“33. Assim, vota-se pela aplicação integral dos benefícios à empresa Vigilância Antares e Rubem Oreli, extinguindo quanto a estes a ação punitiva da administração pública e declarando inaplicáveis as penalidades a serem impostas aos demais representados. 34. Quando a Alexandre Luzardo, como se explicará mais adiante, considera-se que não é imputável sob o ponto de vista das normas antitruste por tratar-se de gerente-empregado e por isso, vota-se pela sua não-condenação.”

Por fim, especificamente sobre a pena de proibição de contratar e licitar em virtude da gravidade dos fatos, foi decidido o seguinte no voto do Conselheiro Abraham Benzaquen Sicsú: 335. Considerando a gravidade dos fatos constatados e norteando-se pelo interesse público geral de que empresas idôneas contratem com instituições financeiras oficiais e participem de processos licitatórios, com base no art. 24, II da Lei 8.884/94, impõe-se para as empresas condenadas e respectivas pessoas físicas: CLÁUDIO LAÚDE e RUDDER SEGURANÇA LTDA.; ANTÔNIO CARLOS SONTAG e EMPRESA BRASILEIRA DE VIGILÂNCIA – EBV; SILVIO RENATO MEDEIROS PIRES E EMPRESA PORTOALEGRENSE DE VIGILÂNCIA LTDA. – EPAVI; ANTÔNIO CARLOS COELHO E MOBRA SERVIÇO DE SEGURANÇA LTDA.; JORGE LUIS VIEIRA ROLIM, SÉRGIO GONZALEZ E SEGURANÇA E 93

Parecer n. 114/2007/PG/CADE emitido pela Procuradoria-Geral do CADE em 13 de fevereiro de 2007, fls. 7772-7882 , Processo Administrativo n. 08012.001826/2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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TRANSPORTE DE VALORES PANAMBI LTDA.; MARIO HAAS E PROTEVALE VIGILÂNCIA E SEGURANÇA LTDA.; TÂNIA E. AULER e REAÇÃO SEGURANÇA E VIGILÂNCIA LTDA.; EDEGAR VIEIRA ROLIM e ROTA SUL EMPRESA DE VIGILÂNCIA LTDA.; PAULO RENATO PACHECO e SELTEC VIGILÂNCIA ESPECIALIZADA LTDA.; IVAN LUIZ PEDROSO e VIGILÂNCIA PEDROZO LTDA.; AIRTON ROLIM ARAÚJO e PROTEGE SERVIÇOS DE VIGILÂNCIA LTDA.; PAULO ELDER BORDIM e ONDREPSB SERVIÇOS DE GUARDA E VIGILÂNCIA LTDA.; OSMAR MACIEL GUEDES e SÊNIOR SEGURANÇA LTDA.; ARI LUIZ FÁVERO DAL BEM e MD SERVIÇO DE SEGURANÇA LTDA.; CARLOS ALBERTO CORTINA SOUZA e DELTA ALTARES LTDA.; RUBEM ISNAR BAZ ORELI e VIGILÂNCIA ANTARES LTDA. E SECURE SISTEMAS DE SEGURANÇA LTDA. a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, junto à Administração Pública Federal, Estadual, Municipal e do Distrito Federal, bem como entidades da administração indireta pelo prazo de cinco anos. (...) 339. Com o intuito de facilitar o acompanhamento do cumprimento da decisão por este Conselho, determina-se, como obrigação acessória, a entrega a este CADE por parte das empresas condenadas de todos os contratos atualmente vigentes com a Administração Direta Federal, Estadual e Municipal bem como a Administração Indireta no prazo de 30 (trinta) dias após a publicação do acórdão. 340. Por fim, considerando os efeitos já analisados do acordo de leniência por parte de Vigilância Antares e Rubem Oreli, extingue-se a ação punitiva da administração, determinando-se quanto a eles a não aplicação da proibição do art. 24, II e a dispensa de cumprimento da obrigação acessória.” 94

O Plenário, unanimemente, acompanhou o trecho do Voto do Conselheiro Relator acima transcrito, julgando extinta a punibilidade dos lenientes. “Por unanimidade, ainda, o Plenário considerou os Representados Vigilância Antares Ltda. e Rubem Isnar Baz Oreli, como incursos no art. 20, inciso I, c/c o artigo 21, incisos I e VIII, da Lei n. 8.884/94, porém o Plenário deixou de aplicar a pena, julgando extinta a punibilidade, em razão de ter considerado cumprido o Acordo de Leniência, nos termos do voto do Relator. 95” (Acórdão, p. 8401)

Uma observação importante que já foi destacada e deve ser reiterada está no fato da 94

Trecho retirado do Voto do Conselheiro Relator Abraham Benzaquen Sicsú no Processo Administrativo n. 08012.001826/2013-10, fls. 8385 e 8386 dos autos. 95

Trecho retirado do Acórdão do Processo Administrativo n. 08012.001826/2013-10, fl. 8401 dos autos. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Lei 12.529 trazer a extinção da punibilidade também quanto aos crimes tipificados na Lei 8.666, conforme se constata da simples leitura do seu artigo 87. No entanto, quando foi celebrado esse primeiro acordo de leniência, ainda sob a vigência da Lei 8.884, a imunidade criminal estabelecida como contrapartida ao acordo de leniência, nesse momento, era diferente. Essa diferença existia, na medida em que a antiga Lei não garantia a extinção da punibilidade para a prática de cartel no âmbito dos processos licitatórios, tipificada como crime pelo artigo 90 da Lei 8.666. Esse fato, provavelmente, dificultava a propositura desse instrumento por agentes envolvidos em cartéis em licitações, antes da edição da Lei 12.529.

Apesar disso, o primeiro acordo celebrado foi em um cartel em licitação. Dado o caráter sigiloso do acordo, não foi possível averiguar o tratamento fornecido a questão da imunidade criminal do leniente, ou seja, se abrangeu o crime previsto no artigo 90 da Lei 8.666 ou não, o que imagina-se não ter sido abrangido, pois esse benefício criminal não estava previsto pela Lei 8.884.

Ademais, é de suma importância informar que diversas pesquisas foram feitas no Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, em busca de informações sobre uma possível declaração de inidoneidade por parte desse órgão à empresa Vigilância Antares Ltda. Nenhum resultado foi encontrado nas diversas tentativas, o que pode ser considerado um bom resultado no âmbito desse trabalho, na medida em que, se não houve a aplicação de sanções administrativas por parte de outro órgão integrante da Administração Pública, é porque se entendeu que a imunidade garantida com a celebração do acordo de leniência é total, e não há a possibilidade de outro órgão aplicar sanções (proibição de licitar) que o CADE expressamente a isentou.

Nessa linha, também há uma cartilha da SDE intitulada como “Combate a Cartéis em Licitações”, onde se lê o seguinte resumo do caso do Cartel dos Vigilantes 96:

“O CADE emitiu sua decisão em 2007 e impôs multa que variaram de 15 a 20% de faturamento bruto em 2002 a 16 empresas. Executivos das empresas condenadas e 3 associações de classe também foram multadas pelo CADE. A quantia total de multas impostas foi superior a R$ 40 milhões. Além disso, as empresas foram proibidas de 96

Cartilha intitulada “Combate a Cartéis em Licitações”, Coleção SDE/DPDE 02/2008. Cartilha elaborada pela Secretaria de Direito Econômico em 2008 para servir como um guia prático para pregoeiros e membros de comissões de licitação. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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participar em licitações por 5 anos. Na mesma ocasião, o CADE reconheceu que o denunciante cumpriu todas as condições impostas no Acordo de Leniência com a SDE, e, portanto, nenhuma sanção lhe foi imposta na esfera administrativa, tendo havido ainda a extinção automática da punibilidade no âmbito criminal.”

Essa cartilha afirma que devido ao cumprimento das condições impostas no acordo de leniência, nenhuma sanção foi imposta a empresa Vigilância Antares na esfera administrativa, ou seja, a celebração do acordo de leniência gerou, sim, a extinção da ação punitiva de toda a Administração Pública.

4.2.

O Acordo de Leniência da Siemens

Pelo fato do presente trabalho ter como escopo a análise específica de um instituto que não foi utilizado com muita recorrência no Brasil desde a sua criação em 2000, principalmente em virtude de questões culturais, pois o brasileiro tem dificuldade em delatar os outros infratores, não foi localizado material doutrinário denso que aprofundasse a discussão ora travada e desse, nesse sentido, motivos razoáveis e inteligíveis sobre o âmbito da extinção da ação punitiva da Administração Pública, após o efetivo cumprimento das condições necessárias pelo leniente.

Como será demonstrado a seguir, muitos doutrinadores utilizam palavras vagas, sem qualquer explicação plausível para os seus entendimentos. Nessa linha, serão expostos trechos de obras que induzem ao entendimento de que a imunidade do leniente quanto à sanção administrativa é restrita ao âmbito do CADE. Confira-se:

I- "Assim, sempre que um cartel estiver sujeito à sanção em âmbito criminal, a leniência normalmente concederá imunidade ao processo criminal; e, no âmbito do processo administrativo em trâmite, o referido acordo ou programa possui a capacidade de reduzir multas, perante o órgão de defesa da concorrência.97" II- "Esse modelo brasileiro de leniência contemplou como benefício tanto a imunidade administrativa (relacionada às sanções previstas na Lei 8.884/94) como a criminal (relacionada às sanções previstas na 97

Revista de Direito da Concorrência, n 18, abr. a jun./2008, pág. 69. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Lei 8.137/90). (...) Enquanto que, sob a ótica do agente econômico que está sendo investigado/processado, a leniência visa: (...) afastar, portanto, os encargos financeiros da punição pelo CADE e penais da punição pelo Judiciário – o denominado jus puniendi – por meio da delação premiada. Esse trade off, repito, não afasta a ilicitude da sua conduta, que será reprimida nos demais membros do cartel. 98"

Também nesse sentido é valido fazer uma breve consideração sobre o caso recentemente divulgado pela imprensa de suposto cartel em licitações relacionadas ao fornecimento de carros de trens, manutenção, construção de linhas e prestação de serviços de modernização dos trens no Estado de São Paulo e no Distrito Federal. Conforme foi noticiado, a empresa alemã Siemens e seus executivos 99 ofereceram proposta de acordo de leniência à Superintendência-Geral do CADE e, no momento, os licitantes estão sendo investigados, em caráter de confidencialidade 100, pela participação nesse alegado cartel que teria durado de 1998 até 2008 101.

Note que constantemente, a imprensa vem veiculando reportagens informando que o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (“TCE-SP”) quer declarar inidônea a empresa Siemens, leniente, e todas as empresas que estão envolvidas nesse cartel. O objetivo do TCESP é vetar futuras contratações dessas empresas pela Administração Pública. Confira-se trechos dessa reportagem: “19 de agosto de 2013 | 23h 19 Presidente do TCE já solicitou ao Ministério Público de Contas abertura do processo para declarar inidôneas a multinacional Siemens e outras 19 empresas que atuaram no setor metroferroviário.

98

PEREIRA, Guilherme Teixeira. Dissertação sobre a Política de Combate a Cartel no Brasil- Análise Jurídica do Acordo de Leniência e do Termo de Compromisso de Cessação de Prática. São Paulo, 2011, Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.

99

Executivos da Siemens que assinaram o acordo de leniência: Daniel Mischa Leibold (alemão); Jan-Malte Hans Jochen Orthmann (alemão); Everton Rheinheimer (brasileiro); Nelson Branco Marchetti (brasileiro); Newton José Leme Duarte (brasileiro) e Peter Andreas Gölitz (brasileiro). 100

A empresa Siemens tem afirmado reiteradamente que está cooperando integralmente com as autoridades, manifestando-se oportunamente quando requerida e se permitido pelos órgãos competentes. Sustenta ainda que não pode se manifestar em detalhes quanto ao teor de cada uma das matérias que têm sido publicadas. 101

BRASIL, Tribunal de Contas do Estado de São Paulo - Processos no TC-024702/026/09; TC-024699/026/09; TC-017876/026/09 e TC 017893/026/09; Relator dos Processos: Conselheiro Dimas Eduardo Ramalho. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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O Tribunal de Contas do Estado (TCE) quer declarar inidôneas a Siemens e todas as empresas que atuaram no cartel de trens em São Paulo. O objetivo do procedimento é vetar futuras contratações dessas empresas pelo governo estadual. O presidente do TCE, Antônio Roque Citadini, requereu ao Ministério Público de Contas abertura de procedimento para eventual declaração de inidoneidade das companhias que atuariam no cartel. O processo deverá ser instaurado assim que a Procuradoria de Contas tiver acesso ao acordo de leniência em que a multinacional alemã denunciou ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a existência de um cartel em licitações no setor. Por meio do ofício 407/2013 ao procurador-geral de Contas, Celso Augusto Matuck Feres Junior, o presidente do TCE aponta a "maciça veiculação por todos os meios de imprensa de suposta formação de cartel no setor metroferroviário". Citadini pede ao procurador que avalie "a conveniência e oportunidade de provocar junto a este TCE a instauração de processo sobre eventual inidoneidade de licitantes" 102.

Uma outra reportagem veiculada em 18.09.2013 também demonstra o interesse e a vontade do Governo Paulista em declarar a inidoneidade da empresa Siemens. In verbis: “A Corregedoria-Geral da Administração (CGA) de São Paulo vai abrir nesta quarta-feira um processo para declarar a inidoneidade da empresa alemã Siemens, que delatou a existência de cartel nos sistemas metroferroviários paulista e do Distrito Federal . O processo, que deve demorar de quinze a vinte dias, será iniciado a partir de um pedido feito pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e pela Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô). As estatais se dizem prejudicadas pela atuação da multinacional, considerada "ré confessa" no caso pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB). (...) Caso a inidoneidade seja declarada, a Siemens ficará impedida de fazer futuras contratações com o governo paulista. A declaração não afeta, porém, os contratos atuais. Uma ação com o mesmo objetivo foi aberta pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) em meados de agosto, quando o órgão requereu ao Ministério Público de Contas que informasse se havia elementos para declarar inidôneas a Siemens e outras empresas por ela denunciadas. A empresa alemã fez um acordo de leniência no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) do governo federal em maio. Na ocasião, revelou a formação de cartel em seis contratos feitos com os governos de São Paulo e do Distrito Federal. Ao todo, vinte empresas foram envolvidas pela Siemens na denúncia. No acordo de leniência, a Siemens sustenta que o cartel durou de 1998 a 2008, em um período que se estendeu por três gestões do PSDB, incluindo uma do governador Geraldo Alckmin. Investigações em curso pela Polícia Federal e Ministério Público Federal também 102

Reportagem disponível no link: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,tribunal-de-contas-paulistaquer-barrar-contratos-do-cartel-do-trem-com-estado,1065747,0.htm. Acesso em 10 de novembro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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apuram denúncias de que agentes do governo paulista teriam recebido propina dessas empresas. A Siemens tem reiteradamente afirmado que colabora com as investigações e que não pode se manifestar sobre o caso porque ele tramita sob sigilo. 103”

Portanto, as duas reportagens supracitadas defendem sentido diametralmente oposto ao objetivo do presente trabalho, na medida em que indiretamente afirmam existir a possibilidade de outro órgão integrante da Administração Pública Brasileira aplicar sanções à empresa leniente, in casu, a declaração de inidoneidade para a Siemens. Caso seja, de fato, declarada inidônea, os incentivos para a celebração do acordo de leniência em casos de cartéis em licitações serão colocados em cheque.

Não obstante o exposto, a Procuradoria Geral do Estado já se manifestou sobre o caso e indicou que pode haver a garantia de imunidade total tanto no âmbito administrativo como no âmbito penal à empresa Siemens. No entanto, não há qualquer imunidade quanto a obrigação de indenizar pelos prejuízos decorrentes da prática do cartel 104. In verbis: “Para a PGE, o acordo de leniência garante imunidade penal e administrativa à Siemens, mas "não há imunidade quanto ao dever de indenizar o prejudicado pela prática do cartel, tanto mais no caso em tela, em que houve lesão ao erário do Estado de São Paulo.105"

Inegável é que o acordo de leniência não confere imunidade quanto as ações cíveis por parte dos consumidores ou de terceiros lesados, ou mesmo, por parte do Ministério Público, na defesa coletiva de interesses metaindividuais. Isso ocorre, pois é obrigatório o reconhecimento da culpa/confissão pelo leniente em relação à conduta colusiva perpetrada. Essa confissão o deixa vulnerável à futura reparação de danos, já que bastará que comprovem a relação de causalidade entre a prática do ato ilícito confessado e o dano sofrido, para ser

103

Reportagem disponível no link: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/governo-de-sp-abre-processo-paradeclarar-inidoneidade-da-siemens. Acesso em 10 de novembro de 2013. 104

Nesse sentido, inclusive, o Presidente da empresa Siemens no Brasil, Paulo Ricardo Stark, afirmou que a “Siemens está disposta a discutir acordo para ressarcimento de eventuais danos causados aos cofres públicos no momento em que os indícios apresentados fiquem comprovados pelas autoridades competentes.” Informação disponível no link http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2013/10/11/interna_politica,458684/siemensafirma-que-pode-ressarcir-os-cofres-publicos.shtml. Acesso em 09 de novembro de 2013. 105

Trecho retirado da reportagem disponível no link: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/08/governode-sp-entra-na-justica-contra-siemens-por-suporto-cartel.html. Acesso em 10 de novembro de 2013. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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obrigado a indenizar 106.

5.

CONCLUSÃO

Ante o exposto no presente trabalho, pode-se tecer alguns comentários a respeito da extensão dos benefícios da celebração do acordo de leniência para toda a Administração Pública, naquelas hipóteses em que o órgão concorrencial não tinha conhecimento prévio sobre a existência do cartel.

Primeiramente, o tema demonstrou-se inovador, na medida em que os doutrinadores e as próprias decisões disponíveis na página virtual do órgão concorrencial brasileiro nada dispõem sobre a questão. Apenas utilizam termos genéricos, sem adentrar na discussão sobre a possibilidade ou não, de outros órgãos da Administração Pública brasileira aplicarem sanções administrativas aos lenientes. Essa ausência de consolidação sobre o tema era esperada, tendo em vista que poucos acordos de leniência foram celebrados em casos de cartéis em licitações, hipóteses mais prováveis para a constatação de conflitos entre atos/decisões emanadas de órgãos administrativos distintos.

Não obstante a ausência de discussão e, consequente, posicionamento da doutrina sobre o tema, o presente trabalho tentou demonstrar que a postura mais acertada é aquela que contempla nessas hipóteses a extinção da ação punitiva da Administração Pública como um todo. Não podendo outros órgãos administrativos quererem sobrepor suas competências e decisões àquela proferida pelo órgão antitruste que declara a imunidade administrativa total do leniente.

Para embasar tal posicionamento, diversos argumentos foram desenvolvidos nesse sentido, tais como, a título exemplificativo, o emprego da definição jurídica corrente da expressão “Administração Pública”, a qual foi utilizada pelo Legislador no artigo 86 da Lei 12.529. Também foi desenvolvido um exame da interpretação dada pela doutrina às expressões “Administração” e “Administração Pública” dispostas em incisos do artigo 87 da 106

Também nesse sentido, prevê o artigo 16, parágrafo 3 da Lei 12.846, conhecida como Lei Anticorrupção. JUR_RJ - 2928089v2 - 2004.331711

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Lei 8.666, com o objetivo de utilizar as citadas interpretações analogicamente. Ressalte-se que toda essa análise foi elaborada à luz da teoria das autolimitações administrativas, intimamente relacionada ao princípio que proíbe a adoção de comportamentos contraditórios na Administração Pública.

Portanto, espera-se, diante desse breve quadro sobre o tema, que nos próximos anos a presente discussão ganhe vida e a doutrina e a jurisprudência se posicionem, no sentido de que, em razão da necessidade do sistema punitivo da Administração Pública ser analisado e interpretado de maneira uniforme e interligada, a imunidade do leniente engloba todos os órgãos administrativos.

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