A Sopa De Gaivotas

  • May 2020
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A percepção da informação e a Semiótica “FUNDAMENTOS COGNITIVOS DA COMUNICAÇÃO” Disciplina ministrada pelo professor Nilson Lage UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina EPS – Engenharia de Produção - Programa de Pós-Graduação – Doutorado Autoria: Wladmir Perez Palavras chaves: Cognição, Percepção e Semiótica. Resumo Este artigo se propõe a abordar algumas questões que permeiam o universo comunicacional tais como: informação, percepção, atenção e sensação. A partir de uma abordagem semiótica — notadamente as questões relativas à “abdução e indução” desenvolvidas por Charles Sanders Peirce e descritas por Umberto Eco, em seu livro “O Signo de Três” — pretende-se desenvolver algumas idéias que venham a auxiliar o entendimento do processo cognitivo; a tomada de decisões a partir da formulação de hipóteses, os estímulos, os inputs e o processamento de informações. Essas idéias se desenrolam a partir de uma concepção sígnica da cognição. O ambiente em que este artigo se desenrola foi determinado principalmente pelo formato apresentado pelo texto de Umberto Eco, ou seja, uma história de mistério que serve de pretexto para desenvolvermos tais questões. Esse formato foi escolhido devido ao fato dele fornecer os elementos fundamentais ao estudo do processamento cognitivo; informações, signos, representações etc. A necessidade de entendermos o conjunto de informações nos obriga a percebermos os fatos em toda sua extensão, visível e invisível, e a lidarmos com o imponderável na tomada de decisões.

Abstract This paper intends to approach some issues that are all-pervading in communication universe as information, perception, attention and sensation. From a semiotic approach — especially issues regarding “abduction and induction” developed by Charles Sanders Peirce, and described by Umberto Eco in his book The Sign of Three — it intends to present some ideas that assist understand the cognitive process; the decision making from formulation of hypothesis, the stimuli, the inputs and the information processing. Those ideas are developed on signic conception of cognition. The environment in which this article unfolds itself was determined mainly by the format presented by Umberto Eco's text, that is, a mystery story that serves as excuse for us to develop such issues. This format was chosen for it provides fundamental elements to the cognitive process; clues,

signs, representations and so on. The need of understand the information set force us to perceive the fact in all its extension, visible and invisible, and to deal with the imponderable on decision making.

A todo o momento somos bombardeados por inúmeras informações. Elas nos chegam por todos os lados de todos os tipos, transformadas, mediadas, em estado bruto, sofisticadas, enfim, chegam até nós e são captadas por nossos sentidos. Nosso corpo funciona como um poderoso radar, com capacidades infinitas de absorção dessas informações. Captamos, percebemos, sentimos, registramos, guardamos e, muito mais do que isso, recebemos uma quantidade enorme de dados a todo instante. transformadas em Informações, em mensagens, como pistas para que possamos interpretar o mundo a nossa volta. A energia que emana das coisas transmite impulsos, promove percepções, estímulos, produz convicções, possibilita ações e novos impulsos. Cada tipo de informação funciona sobre diferentes conjuntos de princípios. Segundo Vestergaard & Schroder (1994) o valor de cada informação é afetado não apenas pela quantidade ou qualidade dos impulsos contidos nela, mas também pela maneira com que ela é estruturada. Uma das funções básicas na recepção da informação é o perceber, captar a informação que é emitida. Parte dessa informação que entra em nossa mente vem do exterior, por exemplo, quando vemos os quadros de uma exposição de arte, quando recebemos uma ordem para a criação de um produto, as músicas que ouvimos em um rádio ou aparelho de som. Mas também há informações que se originam no interior da mente, estas informações podem ser devido à natureza de um feedback, como ler no velocímetro a ação sobre acelerador ou o contato sobre uma alavanca de câmbio, ou pode ser a informação que é armazenada, a ação da memória e o repertório de cada indivíduo. As respostas físicas de pessoas a estímulos exteriores têm uma relação direta e clara com algum impulso, como por exemplo, quando nós marcamos um número de telefone, ou ao escrevermos no computador a partir de um original. Porém, em trabalhos mais complexos pode existir um processo de comunicação mais complexo, como fazer julgamentos e tomar decisões, entre a fase de impulso de informações e a resposta real. Quando dirigimos um automóvel com tráfego denso, quando decidimos que roupa comprar, ou mesmo quando nos defendemos ao recebermos sinais de ataque, por exemplo, o processo interno de comunicação envolve um número maior de

condicionantes. O gráfico hipotético abaixo mostra as funções de recepção dos órgãos sensoriais, percepção, memória a curto prazo, passagem da percepção para a ação, base da resposta, controle da resposta, ação dos agentes e das funções relacionadas com a memória a longo prazo e os circuitos fechados de resposta. Não é necessário dizer que estas funções distintas não podem ser diferenciadas, mas pode servir como representação do conjunto de funções combinadas. O b je to e x te rn o

P e rc e p ç ã o

Ó r g ã o s s e n s o ria is

R e to rn o (fe d b a c k )

M e m ó r ia a c u rto p razo

C o n v e rsã o d a p e rc e p ç ã o e m a ç ã o : in te n ç ã o E s c o lh a d a s re s p o s ta s

C o n t r o le das re s p o s ta s

AÇÃO A g e n te s m o to re s o u e fe to re s

M E M Ò R IA A L O N G O P R A Z O

O percurso do estímulo Fonte: o autor

O gráfico acima é um registro abstrato das diferentes fases do processo de informação quando só existe uma fonte de informação. A este respeito, Broadbent apud McCormick (1976), expõe que os sistemas nervosos de certo modo atuam como um canal de comunicação simples, tendo assim uma capacidade limitada. Ele coloca também que o indivíduo faz uma seleção de todos os impulsos sensoriais que recebe, esta seleção é feita baseada na combinação da natureza dos estímulos; por exemplo sua intensidade; com o estado do indivíduo; ou seu instinto. Embora esta teoria implica que nós só prestamos atenção a um aspecto de nosso ambiente, isto não exclui uma mudança expressa de atenção para dois ou mais aspectos, ou para a alternância de atenção entre ambos como explica McCormick no mesmo texto. A experiência perceptiva determina uma construção mental de um mundo factível e possível de ser transitado, mesmo que as custas de equívocos. Segundo a Gestalt1, o resultado do impulso percebido no cérebro é uma imagem; esta é o estímulo retido do real percebido. A percepção é determinante em nossas escolhas e ações. A comunicação existe em função do percepto constituído pela percepção, portanto dela 1 A gestalt é uma vivência significativa que resulta da interiorização de sensações através da percepção. A criação (representação mental) é a relacionar as imagens entre si, estabelecendo combinações. A criação resulta de uma tensão provocada pela percepção de um equilíbrio,o indivíduo cria, isto é, reestrutura ou reorganiza suas “gestalten”.

desequilíbrio;

para

capacidade que

retorne

de o

dependemos para dar cada passo em nosso dia-a-dia. Esse conjunto de impulsos e informações formam o algoritmo necessário para interpretarmos os caminhos mais seguros ou os que nos trazem uma experiência singular, tal qual uma linguagem antes secreta que nos é revelada a cada momento em razão de nossas experiências e emoções. Ele liga os sinais, escolhe significações, fixa relações invisíveis percebidas apenas pela nossa intuição, para depois representarmos em símbolos que, em muitos casos, por si só não dizem nada, e talvez nunca venham a dizer, exceto se os convencionarmos para tanto. “Mas se os homens desenterram uma linguagem pré-histórica falada nas coisas, se nisso há, além de nossos balbucios, uma idade de ouro da linguagem em que as palavras diziam respeito às próprias coisas, então a comunicação não tem mistério”. (MERLAU-PONTY, 1974 p. 2) As informações são recebidas de forma muitas vezes caótica, no entanto tomamos decisões precisas, ou com a convicção de termos plena certeza de tal. Tais decisões não se fundamentam em argumentos lógicos na maioria das vezes, mas nós só o sabemos após tomarmos tal decisão. A respeito dessa fieira de fatos incertos que nos baseamos, dessa ubiqüidade Peirce apud Eco e Sebeok descreve o seguinte: “Olhando através de minha janela, esta linda manhã de primavera, vejo uma azálea em plena floração. Não, não vejo isso, embora seja essa a única maneira que eu tenho para descrever o que vejo. Isso é uma proposição, uma sentença, um fato; entretanto, o que percebo não é proposição, sentença, fato, mas apenas uma imagem, a qual torno parcialmente inteligível por meio de uma enunciação do fato. Essa enunciação é abstrata; o que vejo, porém, é concreto. Realizo uma abdução quando procuro expressar em uma sentença algo que vejo. A verdade é que todo edifício do nosso conhecimento é uma estrutura emaranhada de puras hipóteses, confirmadas e refinada pela indução. O conhecimento não pode avançar nem um pouco além do estágio do olhar que observa despreocupado se não se fizer, a cada passo, uma abdução.”(ECO, SEBEOK, 1991, p. 20) A abdução e a indução formam o eixo no qual o pensamento investigativo se articula, assim Eco e Sebeok (p. 32) destacam que a abdução inicia-se a partir de alguns indícios, de forma puramente empírica, motivada pelo sentimento de que os fatos surpreendentes só são explicáveis a luz da teoria. Já a indução parte de uma hipótese, sem necessitar, nesse instante, de qualquer fato para sua existência, ela se justifica por si só e só mais adiante ela se apega a fatos para sustentar sua teoria. Ainda em Eco e Sebeok, Peirce afirma: “a indução persegue os fatos, já a abdução a teoria. Na abdução, a consideração dos fatos sugere a hipótese. Na indução, o estudo

da hipótese sugere a experimentação que traz à luz os próprios fatos, para os quais a hipótese havia apontado”. Portanto constantemente estamos transitando entre uma abdução e uma indução, esse é um processo que proporciona a movimentação necessária de nosso pensamento para construirmos nossa realidade. A história a seguir é utilizada como pretexto para discutirmos essa situação pela qual passamos constantemente. Trata-se de uma ficção, e como tal, a partir dela podemos construir fatos, combinar situações, colocar pistas nos lugares certos, enfim, podemos recriar a realidade, que só não existe por determinação, por definição. Podemos também induzir o leitor a algumas conclusões. Assim como na retórica, não temos o compromisso com a verdade, tampouco com o falseamento, procuramos aqui nos ater apenas na descrição de um percurso, em muitos casos insensato, que percorremos na elaboração de hipóteses, escolhas e ações, diante dos impulsos enviados pelos signos da realidade. Tal qual um júri que absolve ou condena um réu, independente da verdade, baseado em evidências, fatos, retórica do advogado, os signos vão aparecendo e determinando comportamentos, criando realidades a cada olhada, a cada conjunto de fatos, de signos, julgamos, construímos uma história possível, que é real até o momento em que a colocamos em questão, seja por deliberação, seja por verificação empírica ou científica. A luz da semiótica, foco principal deste artigo, procuraremos discutir algumas questões a respeito deste processo tão importante, para não dizer significativo, que é a percepção e manipulação da informação. A abordagem semiótica do processo de comunicação já adotada por diversos autores notadamente Peirce (1999) enfoca alguns aspectos importantes dentro do processo cognitivo, a dedução, a indução e a abdução. Um destes textos “O signo de três” brilhantemente escrito por Umberto Eco e Thomas A. Sebeok inspira e fundamenta este artigo. Nele, Eco e Sebeok, desenvolvem uma comparação entre o mais famoso detetive da história, Sherlock Holmes de Conan Doyle, o não menos famoso Dupin de Edgar Allan Poe, seus métodos de investigação e a compreensão deste intricado universo de pistas invisíveis de nosso mundo. Não se pretende com este artigo desenvolver uma análise sobre esse texto, tampouco esgotar este assunto, mas acrescentar outras questões significativas no processo de compreensão dos signos. Segundo Damásio a tomada de decisões, entre elas as que exigem conhecimentos relevantes e a lógica são facilitadas por uma influência inconsciente, acontecendo antes mesmo que o conhecimento e a lógica sejam evidentes.

“A tarefa consiste em um jogo de cartas, no qual, sem que o jogador saiba, alguns baralhos são bons e outros ruins. O conhecimento sobre qual deles é bom e qual deles é ruim é adquirido gradualmente, à medida que o jogador vai removendo as cartas de baralhos diversos.” (DAMÁSIO, 2000 p. 380)

Esse intricado processo de percepção das informações, compreensão dos fatos e tomada de decisões, é decidido de forma aparentemente simples a despeito de todo o processo envolver o complexo sistema que é o pensamento humano. A mente humana, como que parte de um processo natural, está sempre predisposta às suposições, Peirce apud Eco e Sebeok (p. 22), explica parcialmente isso segundo um princípio conjectural, o fenômeno da suposição, “nós freqüentemente retiramos da observação fortes sugestões de verdade, sem sermos capazes e especificar quais foram as circunstâncias por nós observadas que conduziram a essas sugestões”. Para ilustrarmos esse processo comunicacional apresentaremos uma história que se passa num restaurante de uma cidade litorânea. Os fatos ocorridos determinaram um caminho claro de raciocínio desenvolvido pelos observadores. A combinação de um processo lógico, mas principalmente um conjunto de suposições e sensações, levaram esta história a um desfecho extraordinário. Devemos observar que o processo de entendimento das informações, dessa constelação de sinais e signos sob os quais estamos sujeitos é que construímos toda nossa compreensão das coisas que nos envolvem. Então, vamos a nossa história.

Os amigos Terça feira, 30 de março de 1973, era uma tarde cinzenta, o outono já se fazia presente. Dois amigos encontravam-se todas as semanas, no final da tarde, em um restaurante a beira mar, era comum freqüentarem o local a essa hora. O proprietário, um homem aparentando uns trinta e três anos, mas perto dos cinqüenta vividos, a pouco se instalara no local. Pela sua simpatia e atenção aos clientes, sempre alegre e conversador, conquistara uma boa freguesia. Era um homem perspicaz, com um gosto particular aos mistérios e principalmente a solução deles. Era um filósofo. Não daqueles formado nos bancos da academia, mas sim dos bancos de bares, de longas leituras dos clássicos, de uma prática de observação constante, arguta, daí talvez, sua facilidade em lidar com o intricado mundo da mente humana. Suas observações e conclusões sempre enveredavam para o universo detetivesco. Tinha um apego especial aos detalhes, e freqüentemente eles o haviam tirado de enrascadas. Os dois amigos por essas e por outras acabaram ficando também amigos do proprietário. Em muitas ocasiões sentavam-se à mesa os três bebendo, saboreando deliciosos aperitivos, conversando até altas horas, sobre o mar, pescarias, mistérios e descobertas.

O mundo detetivesco tem sido motivo de fascinação para muitos. Edgar Alan Poe é considerado pela maioria dos historiadores de policiais como o pai das histórias deste gênero, afirma Eco e Sebeok (p.199). “Os Crimes da Rua Morgue” é tido como um clássico. No entanto o mais famoso detetive da história foi Sherlock Holmes, brilhante criação de Sir Conan Doyle (1859-1930). O resumo de uma obra sobre a aplicação do método científico sobre o comportamento humano fez de Sherlock Holmes um símbolo do talento investigativo que conquistou multidões pelo mundo afora. Esse fascínio pelos métodos do detetive não atinge apenas os amantes da literatura e da ficção, mas causou também uma enorme influência sobre os criminologistas. Aston-Wolfe apud Eco e Sebeok (p. 63) afirma que um representante dos Laboratórios Científicos de Marseilles, pertencentes à polícia francesa, descreve que alguns métodos descritos por Conan Doyle hoje são empregados em seus laboratórios científicos.

O homem cego Essa era uma tarde como tantas outras, quando às dezoito horas, entra um homem alto, bem vestido, como se tivesse saído da premiação de uma regata, meia idade, tez morena, pele curtida pelo sol, caminhava com uma bengala na mão direita. Ele era cego. Movimentava-se com pouca desenvoltura a despeito de sua condição. Senta-se numa mesa no canto do salão, coloca suas mãos sobre a mesa, depois sobre o cardápio e aguarda ser atendido. Os dois amigos mais o dono do restaurante observam intrigados, o homem, nunca o tinham visto por estes lados. O garçom para diante dele e orienta-o sobre o cardápio, descrevendo todos os pratos contidos nele. O homem escuta atentamente inclinando, de vez em quando, levemente a cabeça em direção contrária ao garçom, de forma a ouvi-lo melhor. Espera pacientemente a descrição e após o final faz seu pedido. Logo em seguida entra um casal acompanhado de seu filho, um menino de aproximadamente treze anos. Entram alegres, falando alto, o menino é o que mais fala. O homem cego vira-se em direção a eles e ensaia um breve sorriso.

A sopa de gaivotas Após alguns minutos o garçom volta com seu pedido, um prato fumegante de sopa de gaivotas. Por inexperiência, talvez, nervosismo quem sabe, o garçom aproxima trêmulo o prato perto demais do rosto do homem, este se assusta com a sensação de calor e instintivamente vira o rosto levantando a mão esquerda próxima ao rosto para se proteger. Rapidamente o garçom afasta o prato e desculpando-se, coloca-o sobre a mesa. O homem toma a colher em suas mãos vagarosamente, fica pensativo por alguns instantes e sorve a primeira colherada, logo em seguida, com um ar incrédulo e de dúvida sorve a segunda.

Os dois amigos acompanham atentamente cada gesto do homem, percebem que ele está totalmente envolvido com a sopa, seu semblante diante do prato perde-se em devaneios como se quisesse desvendar os mistérios nele contidos. Intrigava-os a maneira como o ele se portava após cada colherada, parava pensativo, com um semblante triste, e ficava assim a cada nova colherada. Pensaram por um instante que o prato não lhe caia bem, podia não estar bem preparado, o semblante do homem se contraía a cada vez mais. O menino Ouve-se então um barulho que coloca o homem de sobressalto. Ao seu lado, em uma mesa próxima, o menino que entrara a pouco, ao se movimentar na cadeira, perde o equilíbrio e cai. A mãe assustada grita o nome do filho e corre para acudi-lo. Uma lágrima ou duas corre pela face do homem cego, ele coloca a colher sobre a mesa, chama então o garçom e pede a conta. Alguns segundos mais tarde ele paga a conta, recebe o troco, deixa uma larga gorjeta levanta-se e sai do restaurante. O tempo decorrido desde sua chegada até então não ultrapassou uns trinta e três minutos. Nesse período os dois amigos não conseguiram prosseguir sua conversa particular sem observar cada gesto, cada movimento do homem misterioso.

Segundo Luria (1991), em todo tipo de atividade consciente deve ocorrer um processo de seleção dos processos básicos dominantes, que constituem o objeto da atenção, bem como a existência de um “fundo” formado por processos cujo acesso está retido na consciência. Em qualquer momento, caso surja uma tarefa a eles relacionadas, tais processos podem passar ao centro da atenção e tornam-se dominantes. As lembranças nestes momentos surgem motivadas a partir de eventos que por semelhança ou igualdade motivam a atenção e provocam a memória. Luria (1991 p.9) descreve três características básicas para a atenção são elas: volume, estabilidade e oscilações onde, •

O volume da atenção entende-se como o número de sinais recebidos ou associações ocorrentes em função destes, que podem conservar-se no centro de uma atenção nítida, assumindo caráter dominante.



A estabilidade da atenção costuma-se entender a duração com a qual esses processos discriminados pela atenção podem manter seu caráter dominante.



As oscilações da atenção entende-se o caráter cíclico do processo, no qual determinados conteúdos da atividade consciente ora adquirem caráter dominante, ora o perdem.

O caminho para a morte

O homem retira-se do restaurante, e, movido por um instinto desconhecido, caminha trôpego até o penhasco que se situava há uns trinta metros do restaurante, e se atira para morte. Tudo foi muito rápido, algumas pessoas que estavam fora do restaurante, antevendo o que veria ocorrer, ainda tentaram ir ao seu encontro, para detê-lo, porém já não havia mais tempo. O homem caiu por uns segundos e espatifou-se entre as rochas do penhasco. Os que estavam no restaurante não ouviram e não viram nada. Nesse mesmo momento um homem entra no restaurante estupefato, gritando... – “Corram venham ver, um homem acaba de se jogar do penhasco!”. Todos que estavam dentro do restaurante correram para fora para se inteiraram do ocorrido. O proprietário do restaurante, antes mesmo de sair, disse: – “Foi o homem cego!” E repetiu mais uma vez: “só pode ter sido o homem cego!”. Os dois amigos olharam espantados para o proprietário, olharam pasmados entre si e saíram para ver o ocorrido.

Eco e Seabok (1991) supõem que o conhecimento relaciona-se com a elaboração de uma hipótese, porém, segundo ele, não existem motivos para que se afirme isso. A partir de uma situação real apenas se infere um “pode ser” (pode ser ou pode não ser). No entanto parece que temos freqüentemente uma predileção para a afirmação sem dados precisos. Essa tendência para a afirmação sem, no entanto terse fatos concretos e seguros nos parece ser um uma ação necessária e intuitiva que adotamos como parte do processo de construção do conhecimento concreto que temos sobre um evento.

A intuição Constataram então que realmente tinha sido o homem cego, viraram-se para o dono do restaurante, ansiosos por uma resposta. – Como você concluiu que tinha sido o homem cego? – Não pareceu lógico para vocês? – Como assim lógico? Perguntaram em uníssono. – Pareceu-me lógico. Embora eu tenha tido poucos indícios, foi muito mais uma intuição, talvez gerado por um conjunto de pequenas referências, apenas isso. Tive uma sensação. – Mas como você pode concluir algo com tanta certeza apenas com sensações e impressões? – Sim, apenas uma impressão, uma intuição, nada mais poderia me levar a essa conclusão que não uma sensação, algo me impeliu a fazer tal afirmação sem muita fundamentação.

A intuição caracteriza o processo de antecipação, fruição, vislumbre das opções e possibilidades. Com a manifestação da intuição temos as primeiras noções daquilo que pretendemos, temos um sinal, uma suposição, um vislumbre das possíveis soluções

dos problemas. É a percepção, a consciência da solução próxima. É nesse momento que nos antecipamos à solução final e temos a consciência de outras ou novas possibilidades para um determinado problema. A intuição é também conhecida como aquecimento, ou antecipação, poderia ser descrito como o limiar da criação é quando temos consciência das primeiras opções relacionadas ao problema. Peirce descreve a intuição como sendo as primeiras sensações que temos de algo, mesmo antes de imaginarmos o que poderá ser, mesmo sem sabermos do que se trata, já temos os primeiros sentimentos de algo. Tudo pode ser, tudo poderá vir a ser. Ao atuar em um nível consciente, os estados somáticos devem marcar os resultados das respostas como positivos ou negativos, relacionados ou não com as determinantes ou objetivos colocados a priori, levando assim a que se evite ou que se prossiga uma determinada opção de resposta. Mas podem também funcionar de uma forma oculta, ou seja, fora da consciência. Poderia ser gerado o imaginário explícito relacionado com um resultado negativo, mas em vez de produzir uma alteração perceptível no estado do corpo, inibiria os circuitos neurais reguladores localizados no âmago do cérebro, que induzem os comportamentos apetitivos ou de aproximação. Poderíamos então agir, ou não, sem termos a consciência das determinantes desta atitude. Com a inibição da tendência para agir, ou o aumento efetivo da tendência de afastamento, seriam reduzidas as probabilidades de uma decisão potencialmente negativa. No mínimo, registrar-se-ia um ganho de tempo durante o qual a deliberação consciente poderia fazer aumentar a probabilidade de se tomar uma decisão adequada (senão a mais adequada). Além disso, seria possível evitar completamente uma opção negativa ou tornar mais provável uma opção positiva pelo favorecimento do impulso de agir. Esse mecanismo oculto, afirma Damásio (1996), seria a fonte do que chamamos intuição, o mecanismo por meio do qual chegamos à solução de um problema.

O processo Sim, o homem cego havia se suicidado, mas os motivos que o levaram a tomar tal atitude é que não estavam claros. Em raros casos, os suicidas se colocam em situações críticas evidentes para que sejam salvos, embora o número de indícios que recolhemos após esta ação nos levem nessa direção. No entanto tais indícios podem muito bem definir um conjunto de informações, que se lidas com atenção, soam quase como um pedido de socorro. – Mas porque razão o homem teria se suicidado? Perguntam. – Eis aí uma boa questão. Acredito que a cegueira deve ter sido recente, notaram seu andar vacilante ao entrar e sair do restaurante? Como se não tivesse a necessária habilidade para

transitar pela escuridão. Quando sentou, notaram que levou a mão sobre a mesa, como que procurando o cardápio? – Sim, mas isso poderia significar outras tantas coisas, porque afirmar tal coisa? Terá sido então a cegueira que o motivou ao suicídio? Perguntou um dos amigos. – A questão não reside na certeza em um ou outro fato, mas na percepção e sensação do conjunto. Não acredito também que tenha sido a cegueira. Muitas coisas aconteceram desde sua entrada no restaurante. Ele provavelmente deve ter sofrido uma grande desilusão, quem sabe a perda de um ente querido, provavelmente um filho. É necessário um motivo muito forte para o suicídio. – Um filho? Espera um instante, com que base você afirma tal coisa? – Não tinha tanta certeza até então. Perceberam a reação do homem cego quando da queda da cadeira ao seu lado, quando a mãe chamou a atenção de seu filho? A reação do homem foi incomum após ouvir a voz do menino. Por um pequeno instante ele se perdeu em seus pensamentos. A pequena lágrima que rolou sobre sua face, provavelmente deve ter sido provocada pela lembrança de seu filho ou algum fato relacionado a ele. – Certo, é possível, então que a morte do filho deve ter sido o motivo de seu suicídio? – Não se apressem, é pouco provável. Acredito que o motivo deve estar na sopa. – Na sopa? Incrédulo um dos amigos pergunta. – Mas o que uma simples sopa pode ter de tão poderoso? Já tomei essa sopa inúmeras vezes e sinceramente o máximo que ela me provocou foi um desarranjo intestinal certa vez. O suficientemente apenas para algumas imprecações. – Pois então, este maravilhoso prato, especialidade da casa, com certeza não teria o poder de provocar um suicídio, mas causou. Vejam, tenho fortes indícios para supor que a sopa tenha provocado alguma lembrança no homem e que em conjunto com outras informações como por exemplo, a presença do menino ao seu lado, tenham sido os motivos suficientes para tal ato. Mas notem, a questão não está na sopa em si, mas no que ela representa naquele instante. Portanto devemos nos ater também no significado que o objeto tem, na sua força enquanto signo. Vejamos mais algumas informações: notaram que homem tinha uma mancha ao redor de seu olho esquerdo, e que se estendia até próximo da orelha? Bem, acredito que a causa de sua cegueira tenha sido um acidente, provavelmente provocado por uma explosão seguida de incêndio, talvez de um motor, um tanque, e que ao se se desviar desta, por ser destro, vira a cabeça protegendo-a com a mão esquerda, expondo assim o lado esquerdo da face. Notaram que sua mão esquerda também apresentava marcas de queimadura? Provavelmente motivados pelo acidente. – Realmente, agora me lembro que ao posicionar o guardanapo sobre o colo, percebi sua mão esquerda meio que fechada, querendo esconder algo. Mas isso pode provar que o acidente foi recente, mas daí concluirmos que ele tenha sido provocado por uma explosão, é uma distância razoável não acha? – É comum pessoas com defeitos adquiridos recentemente por acidentes, sentem-se traumatizados e tenham receio de expor suas seqüelas. Mas vejam, existem outros indícios. Quando o garçom chegou com o prato de sopa quente, alguns centímetros de seu rosto isso o preocupou , houve um certo desconforto de sua parte. Além disso, ao cair a cadeira ao seu lado, com o menino, ele teve um breve sobressalto com o barulho abrupto, ao mesmo tempo em que abaixou levemente a cabeça, fazendo um pequeno gesto com a mão esquerda, como que querendo se proteger? É possível que o calor e o barulho tenham avivado em sua mente o momento de uma explosão! Outro fato interessante é sua atitude quando ouve o garçom, ele inclina levemente a cabeça,

voltando o lado direito em direção a ele, talvez estivesse com algum problema de audição no ouvido esquerdo, motivado quem sabe por um barulho ensurdecedor ou uma explosão. Os indícios ou os fatos? Os dois amigos ouvem atentamente os argumentos do dono do restaurante, incrédulos com a quantidade de detalhes que se desprendem daqueles poucos momentos do homem no restaurante, um sinal atrás do outro, e todos com uma ligação lógica, absurdamente lógica. – Mas ainda continuamos com a questão principal, porque uma sopa provocaria um suicídio? – E não provocou. Acredito que não tenha sido a sopa em si que provocou o suicídio, volto a afirmar. Sendo o acidente e a cegueira recentes, poderíamos ter aqui ótimos motivos para um suicídio, não acham? – É possível. Li recentemente em um livro2 que alguns acidentes com seqüelas que inutilizem alguma capacidade vital, do cérebro, por exemplo, desestabiliza um homem, criando verdadeiros fantasmas em sua mente. – Temos então motivos suficientes. Porém não lhes parece muito óbvio?

Eco e Seabok (1991) afirmam que não há nada mais decepcionante numa investigação do que um conjunto de pistas óbvias. Damos muito mais destaque aos sinais evidentes, extraordinários, ignorando os insignificantes, desconsiderando inclusive todos aqueles que não contribuem para sua posição. Ainda segundo os autores a melhor hipótese sempre é a mais simples, aquela que menos trabalho proporciona para se chegar à compreensão dos fatos. Porém devemos entender que uma hipótese deve ser considerada como uma pergunta que necessita de uma averiguação, isso não significa que não podemos desenvolver conjecturas a partir de dados insuficientes, muito pelo contrário, podemos desmembrar uma hipótese, experimentando uma após outra concordando os resultados para a comprovação da questão principal. Moles (1978) afirma que o valor da informação está relacionado ao fator inesperado e novo, ao caráter original dela. Nesse sentido a imprevisibilidade determina a quantidade da informação, onde o valor está ligado ao improvável. O dono do restaurante desconfia de um indício tão óbvio como é o caso da cegueira como motivo para um suicídio, porém procura outras pistas originais a partir dessa hipótese. Ainda sobre a originalidade, a improbabilidade nos parece determinar nosso raciocínio para a sua atenção. A certeza de uma informação informa o receptor da mensagem porém não muda o seu comportamento tanto quanto a informação improvável.

2 Sacks, Oliver. Um Antropólogo em Marte. São Paulo, Cia. Das Letras. 1995. Na obra o autor relata diversos casos neurológicos

– Este seria um motivo perfeitamente compreensível se não tivéssemos alguns outros indícios, Um evento relevante, não é necessariamente por si só, um motivo para eliminarmos a vida, principalmente se considerarmos a existência de um filho, que é uma boa razão para se viver, ou seja, temos um razoável motivo para a morte e um excelente motivo para a vida, lembrem-se que ele fez um gesto terno ao ouvir o menino entrando. Então o que prevaleceria? – A vida! Exclamou um dos amigos. – Exceto se o filho tivesse morrido no acidente. Concluiu. – Correto. Porém ele poderia ter outros filhos? Abandonar seus filhos vivos por causa de um morto, seria um pouco drástico, porém plausível, a não ser que tivesse um outro motivo igualmente forte que contribuísse para o fato. Um acidente em si apesar de ser forte o suficiente, não justifica uma atitude extrema, mas depende do que ele tira ou acrescenta a um homem. Um sentimento de dor profunda, uma angústia, revolta, são possibilidades. – Pronto acho que temos aqui indícios suficientes para concluirmos esse caso. Acho que sua sopa, meu caro amigo, apenas entra como coadjuvante na história. – Não afirmaria isso conta tanta convicção. Ninguém viria a este restaurante apenas para pedir um prato, mesmo que incomum, sem que tivesse algum motivo a ele relacionado. Embora seja uma especialidade do restaurante, a sopa não é encontrada apenas aqui. Também devemos considerar sua atitude. Está claro que ele veio aqui para tomar a sopa, ou para conhecê-la. Ele experimenta uma colherada, faz um ar de estranhamento, experimenta a segunda como que querendo confirmar sua impressão, aqui sua expressão já não é mais de estranhamento, mas de angústia. Esse é um momento crucial, ao tomar a terceira colherada, meio vacilante, inseguro, ouve a voz do menino, retira-se do restaurante após pagar a conta e caminha para a morte. Foi uma seqüência de fatos, podemos dizer uma seqüência de sinais. Tomar a sopa teria sido um último desejo? Improvável, essa sopa não é tão saborosa assim, nem tão famosa. A questão reside na relação de seu filho com a sopa. Senão vejamos: O homem era um marinheiro talvez, não um marujo comum, mas um proprietário de barco, talvez um barco de porte, pelas suas vestes denota-se isso. A seguir o dono restaurante descreve as características do homem, detalhadamente, a partir de suas observações; roupas, acessórios, expressões, movimentos assim por diante, uma infinidade de detalhes, são elementos que justapostos determinam uma configuração, uma imagem. Os dois amigos ouvem atentamente questionando aqui e ali uma ou outra afirmação, mas aceitam a descrição tanto por ela vir acompanhada por uma riqueza de detalhes como não ter argumentos por onde a recusarem.

A imagem que o dono do restaurante faz do homem cego é determinada por um conceito elaborado em sua mente. O problema, ou objetivo pretendido, provocados pelo conceito formado em sua mente, seria desvendar a personalidade e os motivos que levaria alguém a cometer suicídio. Segundo Vigostsky (1998), a criação de conceitos não é um processo mecânico, passivo ou sem controle. Ele surge a partir de um processo complexo, destinado a solucionar algum problema. Para a definição de conceitos é necessária uma conjunção de indícios determinantes, no entanto é o sentimento ou emoção provocado em nossa mente por esses indícios que nos possibilita a formação dos conceitos. Embora fosse possível supor a partir da percepção um comportamento, na medida que os sinais, mesmo que ‘invisíveis’ vão

surgindo, a imagem vai se compelindo para fora, buscando uma mediação, se delatando, como algo acima da vontade, controlada apenas pelos instintos e sentimentos. Segundo Damásio (1996), a representação, na consciência, dos impulsos são realizados através dos sentimentos, esses sentimentos podem ser advindos não apenas interna como externamente, esse estágio pode ser relacionado com a “terceiridade” proposta por Peirce (1999), onde a mediação assume a responsabilidade de transformar uma realidade ainda possível em uma realidade concreta. A formação de conceitos, portanto é um processo consciente, que se vale da indução e dedução.

O visível pelo invisível O restante da história desenrola-se rapidamente, o dono do restaurante descreve uma seqüência de fatos que conseqüentemente se enquadram nos motivos que levaram o homem cego ao suicídio. Os dois amigos ficam a par dos motivos que levaram o homem a tal ato e se chocam quando comprovam as hipóteses do dono do restaurante, mas se surpreendem principalmente pelos motivos que o levaram a fazê-lo. De tantas possibilidades ninguém poderia imaginar uma situação tão trágica. Tudo tinha acontecido em uma viagem pelo mar. Pai e filho estavam passando o que seria um tranqüilo fim de semana, haviam embarcado no dia anterior. Iam de barco visitar os avós do menino, ele estava exultante, afinal essa era a sua primeira viagem longa que fariam juntos, muito embora não demorariam mais de dois dias no mar. Para o menino, essa era uma aventura, e de barco, o que trazia um componente excitante à situação. Era um belo barco, não era novo, já havia passado por algumas reformas. Um barco de porte razoável precisava de uma boa tripulação, dois homens no mínimo. Já estavam no segundo dia navegando, o menino já tinha superado os problemas com enjôo, e lamentava não terem trazido equipamento apropriado para pesca, principalmente iscas. Afinal, dizia ele; — vir para o mar e não pescar era como jogar futebol sem bola” — Num determinado momento o barco para, um problema no motor da embarcação fez com que o motor apagasse. Um dos marujos tenta consertar o motor. Pai e filho acompanham as tentativas de conserto de perto quando uma explosão repentina, seguida de um incêndio atinge o motor. A explosão desloca partes do motor que se espalham pela casa das máquinas. Tudo foi muito rápido, o marujo que estava no timão, ao ouvir a explosão desceu até o porão preocupado em apagar o incêndio nem reparou na tragédia. O incêndio se alastrou até o depósito. Após muito custo, quando conseguiu debelar as chamas é que se deu conta da situação. O marujo que consertava o motor estava meio inconsciente desacordado. Com a explosão do motor e o deslocamento de ar abrupto jogou-o contra a parede. Ele levantou-se cambaleando, atordoado ainda, pai e filho estavam do outro lado, ainda desacordados, os dois marujos foram acudi-los. O pai que estava ao lado do motor, onde ocorrera o incêndio, fora atingido diretamente no rosto pelas chamas. Tinha queimaduras em sua face, principalmente na região dos olhos. O filho estava caído ao seu lado, parecia apenas desacordado. Os marujos levam os dois para o convés. Ao colocarem o homem no chão, com o ar mais fresco, ele logo recuperou os sentidos. Levou as mãos ao rosto e soltou um urro de dor. Em seguida desesperado, tateando pelo chão gritava: – Não enxergo nada, o que aconteceu? Onde está meu filho?

Em seguida desmaiou com a dor. Seu filho tinha sido atingido mortalmente na cabeça. O corte não era profundo, muito pouco sangue saía, porém, atingiu uma região vital do cérebro, tinha sido fatal! Foram momentos de tensão, um marujo resolveu verificar os estragos, enquanto o outro cuidava dos ferimentos do homem. Quanto ao filho, nada restava fazer exceto manter o corpo conservado. O barco estava à deriva, tinham se distanciado demais da costa, isso era perigoso. Com a explosão, o gerador tinha se destruído isso comprometia todo sistema de comunicação. Restava ainda alguma energia para se comunicarem pelo rádio. Várias tentativas foram feitas, e nada. Deviam ter-se distanciado demais, estavam fora de alcance. Com o depósito parcialmente destruído, parte das provisões e alguns equipamentos tinham se perdido. Estavam à mercê da sorte! Vagaram quase dois dias pelo mar afora, enfrentando uma calmaria enervante. A energia se fora, não havia como se comunicar mais através de instrumentos. Restavam ainda alguns sinalizadores. Apenas o GPS estava funcionando, o suficiente para informá-los que estavam muito longe, perdidos. O homem delirava, sua recuperação não estava nada fácil. O barco não possuía medicamentos para esse tipo de lesão. Após dias a deriva, a comida se acabara, a água também. A situação era trágica, desesperadora. Tinham outro terrível problema nas mãos, o que fazer com o corpo do menino? Jogá-lo ao mar? Até então tinham-no mantido a custa de gelo e álcool. Mas ele já mostrava indícios de que não duraria mais que algumas horas. A fome apertava, os poucos equipamentos de pesca, haviam se perdido com o incêndio, não restava outra saída. A sobrevivência indicava um caminho, sinalizava para a única alternativa possível, muito embora suas consciências o recriminassem por apenas pensar nisso. Inacreditável pensar nessa possibilidade, mas eles o fizeram. No terceiro dia a deriva, o homem acordou, estava melhor. Não enxergava, no entanto. Fraco, balbuciando mais que falando, a primeira coisa que perguntou foi sobre seu filho. Foi difícil para os marujos contarem o ocorrido, relataram tudo. Quase tudo. Por fim disseram que não conseguindo mais ficar com o corpo do menino pela eminência da decomposição, lançaram-no ao mar. O homem ameaçou um novo desmaio, ficou calado por alguns segundos, um misto de choro, dor, desespero, angústia se apoderou dele. O destino tinha sido cruel. A cegueira proporcionava a ele, no entanto, a imagem muito forte do filho, e era essa lembrança que o alimentava, que mantinha sua sanidade. Suas lembranças mantinham ainda sua visão psicologicamente intacta. Após alguns momentos, controlando sua tristeza, o homem com extrema serenidade e bondade, que pareciam brotar de sua dor, agradece aos marujos os cuidados por eles despendidos. Ainda fraco, pede algo para se alimentar, os dois marujos se olham e um deles responde: – Nossas provisões se foram, parte com o incêndio, parte nós já as consumimos, restam-nos apenas uma sopa que preparamos. – Sopa de gaivota. Disse o outro. O homem surpreso pergunta: – Sopa de gaivota3? – Isso mesmo. É um prato de marinheiro, é assim que temos nos mantido nestes últimos dias. – Bom, vá lá. Disse o homem. Ao tomar a sopa ele não gostou muito do sabor, era estranho, nunca havia ouvido falar nessa sopa, imaginou como poderiam ter capturado uma gaivota, muitas coisas passaram pela sua mente, hesitante, tudo parecia fora de lugar, mas não tinha forças para nada, tomou o suficiente para não se sentir mal, afinal a fome e a fraqueza exigiam alimento. Um dia mais se passou até que foram resgatados. Os 3 O nome da sopa não se refere ao fato dela ter sido feita de gaivotas, mas é uma designação dada a uma sopa feita de pedaços de peixes. Gaivota é a designação comum às aves caradriiformes larídeas. As gaivotas alimentam-se de pequenos peixes e toda sorte de detritos do mar, daí advém o nome da sopa.

dois marujos nunca mais se encontraram. O homem, bem, o homem ficou cego, as seqüelas do acidente foram mais profundas do que se podia imaginar como vimos. De tudo que aconteceu, após o acidente, o homem teve apenas sensações que muito pouco tiveram a ver com sua visão, no entanto ele conseguiu reconstruir tudo a partir de algumas reminiscências. E essa reconstrução que precipitou sua autodestruição.

Conclusão As idéias apresentadas neste artigo nos levam através de um caminho intrincado, a um universo fantástico que é o da cognição. Entender o complexo processamento da informação na mente já é uma tarefa penosa na medida em que o conhecimento das faculdades e estados mentais, só a partir desse século é que parece que está tomando um rumo definitivo. Nesse panorama, milhares de teorias e estudos aparecem a todo instante. As Conferências de Macy4, que para muitos são consideradas como o início das ciências cognitivas, ou o início da cibernética, reuniram um grupo de estudiosos, onde foram levantadas questões fundamentais relativas ao cérebro e mente e o processo de aprendizado. A maior parte dos cientistas e estudiosos que se debruçam sobre esse assunto está focada ainda nos aspectos psicológicos, biológicos e neurológicos da mente. O que nos leva a deduzir que esse é o caminho. A abordagem semiótica para esse problema não é nova, Peirce (1999) propõe uma série de teorias a respeito do funcionamento da mente a partir das informações obtidas, referenciando seus estudos sob o manto semiótico. Porém não são muitos os estudiosos que seguem seus passos. Eco parece ser um de seus mais ativos e criativos seguidores. Se partirmos das premissas de Peirce segunda as quais temos uma tendência, e podemos até dizer uma necessidade, de fazermos afirmações baseadas em indícios frágeis, apenas referendadas por nossas sensações, nossa intuição de certeza, devemos olhar com mais atenção para suas teorias. Podemos até estar caindo numa armadilha brilhantemente armada por Peirce. Nunca haveremos de ter certeza até que nossas hipóteses sejam comprovadas. Na apresentação de seu livro “O Sítio da Mente” de 1997 Enrique Schützer Del Nero coloca uma brilhante citação de Ervin Schrödinger, um dos grandes físicos do nosso século, que em seu livro “O que é a Vida” de 1944 diz:

“Herdamos de nossos antepassados o desejo agudo pela unificação do conhecimento. Mas o crescimento, tanto em abrangência quanto em profundidade, das diferentes áreas do conhecimento nos últimos cem anos nos levou a um estranho dilema. Sentimos claramente que estamos apenas agora começando a adquirir material confiável para soldar todas as partes num todo único; mas, por outro lado, tornou-se quase impossível para uma única mente comandar mais que uma pequena parte especializada deste conhecimento. Não vejo outra saída para esse dilema, para que não se perca para sempre nosso verdadeiro objetivo, senão que alguns de nós devem arriscar-se, iniciando uma síntese de fatos e teorias, a despeito de conhecerem muitas delas imperfeitamente e com domínio de segunda mão e, além do mais, correndo o risco de serem tomados por tolos.”

4 DUPUY, Jean-Pierre. Nas Origens das Ciências Cognitivas. São Paulo, UNESP. 1995. p. 21.

Bibliografia DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes; emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. DAMÁSIO, António. O mistério da consciência, São Paulo. 2000 Cia. das Letras DEL NERO, Henrique Schützer. O sítio da mente; pensamento, emoção e vontade no cérebro humano. São Paulo, Collegium Cognitio, 1997. DUPUY, Jean-Pierre. Nas origens das ciências cognitivas. São Paulo, UNESP, 1994. ECO, Humberto. Sebeock, Thomas A (organizador). O signo de três. São Paulo, Ed. Perspectiva. 1999. LURIA, R. A. Curso de psicologia geral; vols. II, III, IV. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991. MERLAU-PONTY, Maurice. O Homem e a Comunicação. R. de Janeiro, Ed. Bloch. 1974 McCORMICK, Ernest J. Ergonomia; Fatores Humanos en Diseño. Barcelona, Gustavo Gilli, 1976. MOLES, Abraham. Teoria da Informação e Percepção Estética. Rio de Janeiro, Ed. Universidade de Brasília, 1978. PEIRCE, Charles Sanders; Semiótica (The collected papers of Charles S. Perspectiva, 1999. SACKS, Oliver. Um Antropólogo em Marte, Companhia das Letras, 1997.

Peirce). São Paulo,

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