A Pessoa Da Escola

  • Uploaded by: Alice Marques
  • 0
  • 0
  • June 2020
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View A Pessoa Da Escola as PDF for free.

More details

  • Words: 2,183
  • Pages: 7
1

A pessoa da escola: uma reflexão sobre a relação professor-aluno Alice Marques



Introdução Este trabalho é baseado em reflexões geradas pela pesquisa de mestrado Processos de Aprendizagens Musicais Paralelos à Aula de Instrumento: Três Estudos de Caso (2006), de minha autoria. A pesquisa abordou contextos, percursos e recursos utilizados por três alunos de instrumento que buscavam por si mesmos por conhecimentos além dos propostos em suas classes de instrumento. O presente trabalho se propõe a destacar um dos aspectos observados na pesquisa citada, que é o da relação professor-aluno. Considerando esse aspecto nos três estudos de caso da referida pesquisa, três respectivas variantes puderam ser conferidas: a) o pesquisado descreveu sua relação com o professor como aberta, dialógica e favorável, o que parecia gerar um sentimento mútuo de confiança e segurança; b) no segundo caso, a vida musical extra-escolar do pesquisado era ignorada pelo professor, não havendo, portanto nenhuma interação extraclasse. O pesquisado não sinalizou explicitamente nenhuma frustração decorrente da pouca interação apontada; c) e no último caso, a relação descrita incluía baixa confiabilidade no professor por parte do aluno e notada frustração pela baixa ou nenhuma participação do professor em sua vida extraclasse. Este evitava o diálogo em sala ignorando um possível interesse do professor em suas aprendizagens. Os três casos me fizeram refletir sobre a importância da relação professor-aluno, principalmente tendo em vista a pesquisa ter concluído que a imagem da escola se constitui enormemente pela figura do professor concorrendo com o espaço propriamente dito. Baseada uma perspectiva histórico-cultural, na qual o enfoque se dispõe nas relações sociais, Tacca (2006) raciocina que se os objetivos de ensino, os conteúdos e as estratégias pedagógicas estão harmoniosamente integrados e mesmo assim nem sempre funcionam, então é natural que um novo ângulo deva ser apontado, qual seja justamente o das relações sociais. A autora reforça que estas “repousam sobre concepções, crenças, histórias de vida e outros aspectos emergentes no processo relacional” (p. 46), o que significa que a imagem que um professor tem sobre seus alunos e respectivas possibilidades seguramente se entrelaça nas relações educacionais. A autora

2 complementa que o processo de ensino e aprendizagem deve ser contemplado considerando “as significações e entrelaçamentos que o professor faz entre o seu conhecimento sobre o aluno, sobre si mesmo e sobre o próprio conhecimento a ser explorado, incluindo também o contexto vivido por ele” (p. 47). Destaco esses entrelaçamentos como qualidades recíprocas, pertinentes à mutualidade própria de uma relação intersubjetiva, como é a de um professor e seu aluno. Esse aspecto relacional é legítimo e se apresenta como reconhecimento do outro e de suas possibilidades (sempre considerando a reciprocidade da situação). Tanto um professor que reconheça em seu aluno outros contextos vivenciados extraclasse quanto o aluno que reconheça no professor os alcances e as limitações da sala de aula podem ponderar uma produção mais otimizada do conhecimento por ambos aspirado. É plausível considerar a relação professor-aluno dentro de uma dimensão complexa na qual a subjetividade vem servir como base de compreensão. González Rey (2005b) explica a subjetividade como um sistema complexo no qual sentidos subjetivos são expressos nas várias ações do sujeito em sua vida. Esses sentidos são captados e organizados por meio das emoções e passam a caracterizar nossas ações. Nesse caso, palavras, gestos, atitudes emitidas por protagonistas de uma determinada ação ou contexto imprimem um no outro, sentidos que hão de confluir em suas expressões e sentimentos.

Querido professor Célio foi um dos estudos de caso anteriormente mencionados que falou de forma clara sobre sua boa relação com seu professor de instrumento. Ele nasceu em Brasília e à época da pesquisa possuía 26 anos. Estudante de música desde os 10 anos de idade foi matriculado numa academia por seu pai, músico autodidata, que o orientava com relação a instrumentos e estilos a serem estudados. Célio experimentou violão, guitarra, gaita de boca, percussão e então bateria, seu instrumento atual. A prática com amigos - em formações de bandas - o levou cada vez mais a querer se profissionalizar. Expectativas surgiram de sua inserção no mundo profissional, como por exemplo, a de estudar música formalmente. Já matriculado em uma escola de música, seu interesse em aprender mais se ampliou. Os desafios do mercado de trabalho se transformavam em tópicos de estudo.

3 ”Ah, ‘vamo’ tocar música tal”, que era um samba; então eu tocava aquele samba mais quadrado da face da terra e chegava em casa e ficava: “meu Deus! Eu tenho que aprender a tocar isso. E ia correr atrás pra tentar suprir essa necessidade de tocar essas coisas que eu num me sentia à vontade tocando, né? Às vezes, até terminava de tocar e ficava assim: “Nossa! Tem que melhorar isso. Tem que melhorar”. Aí, isso ficava na minha cabeça. (Célio).

Foram muitas as oportunidades aproveitadas por Célio como desafios. O orgulho de fazer bem feito o motivava, assim como o de corresponder aos anseios do grupo e obter satisfação pessoal e profissional. Igualmente, o desempenho dos colegas era valorizado como um referencial para buscas. Toda essa relação com a música foi compartilhada com seu professor de bateria. Bem, dentro da aula, o que me facilitou muito, por exemplo, era chegar no professor e falar “Pôxa, eu tô tendo dificuldade pra tocar samba rápido” e aí, ele sentar comigo e falar: “Vamo’ fazer alguma coisa pra você... pra a gente estudar samba rápido”. Meu professor sempre me deu liberdade de trazer de fora (as dúvidas). (Célio).

Na fala acima, Célio descreveu uma cena comum de sua relação com seu professor de instrumento, em um contexto de sala de aula. Célio apontou a liberdade e a facilidade permitidas nessa relação, e ainda foi além ao afirmar que o professor deve sair da sala de aula para compreender o aluno dentro das dimensões extra-escolares. Ele argumenta que na escola, a prática é predominantemente solitária; nela, o professor só consegue ver aspectos limitados do aluno, não o enxergando por inteiro. Segundo ele, na escola não há prática real, nesta, o aluno é aluno; lá fora, o aluno é artista, é profissional. Quando o professor se desloca para assistir o aluno em contextos extraclasse, por exemplo, ir a uma apresentação, possibilita a si mesmo visualizar outros aspectos pouco nítidos em sala de aula e ainda refletir sobre os resultados de sua própria estratégia de ensino. Célio complementou que as estratégias de ensino devem se voltar para a formação do aluno artista, que não aprende um instrumento para tocar sozinho, mas sim com outros. Eu acho que é diferente tocar ali com ele um exercício em sala e eu aplicar esse mesmo exercício em um conjunto ou em uma banda, em algum local ou numa gravação. (Célio).

Célio estabeleceu diferenças entre a escola – enquanto disciplinas e atividades – e o professor. Principalmente com o professor torna-se possível desenvolver um trabalho contínuo, baseado em interesse, em colaboração e respeito mútuo.

4 Muito do que eu aprendi foi meu professor que me deu a liberdade de: trazer de fora. É um intercâmbio, uma oportunidade de pegar as coisas que eu faço na aula e aplicar fora, e de pegar as coisas de fora e trazer pra aula, pra a gente abordar. (Célio).

Senhor Professor Ana Clara foi um dos estudos de caso que experimentou dificuldades com seus professores. Nascida em Brasília, começou a estudar música aos 9 anos de idade, já em uma escola de ensino formal. À época da pesquisa contava com 17 anos e estudava flauta doce e oboé já no nível universitário. Ana Clara observou que alguns professores eram inflexíveis em seus pontos de vista o que dificultava a interação e o estar à vontade para o compartilhamento de idéias. Ela acredita que seria muito bom se os professores aceitassem as buscas e as diferenças de seus alunos. Eu não tenho visto oboístas tão flexíveis quanto a Escolas1. Por exemplo, o da Escola Americana tem resistência com o da Alemã e vice-versa. Então às vezes isso impossibilita; às vezes cê fica meio receoso, assim, de compartilhar certas coisas, porque cê tem a impressão de que ele não acha a mesma coisa e não recebe bem. A partir do momento que ele aceita isso, de você buscar outras coisas, acho que é uma relação muito mais satisfatória, né? acho que é muito mais estimulante também. (Ana Clara)

Para Ana, a tarefa da escola, na figura do professor, é contribuir e jamais obstaculizar o exercício de liberdade e o interesse por outras coisas que a escola não pode dar. Ela ressalta na fala seguinte a baixa ocorrência de diálogo com relação a essas outras coisas que o aluno busca. O silêncio em seu discurso fala bem alto sobre essa falta de diálogo. Eu num faço muitos comentários não. Às vezes o professor pergunta, “ah, como é que tá a ponta?”. Aí, eu falo, né? Mas (silêncio) geralmente não tem muito diálogo. (Ana Clara).

À guisa de conclusão Compreender a relação entre o professor e seu aluno como um dos aspectos mais importantes do contexto educacional implica em aceitar que os sentidos e as significações produzidas constantemente pelos gestos e atos dos personagens da relação 1

Na música, conjunto de normas que delimitam concepções técnicas e estéticas determinantes à expressão musical (nota da autora). Para diferenciar essa concepção daquela que diz respeito ao ambiente escolar, grafarei aquela relacionada à concepção com a inicial maiúscula.

5 resultam em ações que se dimensionam tanto no contexto escolar quanto no pessoal e profissional, o que ao mesmo tempo vem corresponder a uma grande responsabilidade pedagógica. Nossas ações estão devidamente carregadas de sentido, aponta González Rey (2006) e essas não são deliberações simplesmente automáticas, mas sim resultados de longos processos cognitivos e afetivos. Na medida em que vamos organizando nossas emoções e os sentidos que damos aos fatos da vida, à presença do outro, às significações produzidas pelas relações, vamos nos configurando subjetivamente, vamos nos apropriando cada vez mais de expressões e ações só nossas, mas que, no entanto, interagem a todo instante com o outro. Evidentemente que não é possível abarcar a complexidade das relações intersubjetivas considerando-as como um fenômeno de causa e efeito. Tanto Célio quanto Ana Clara desenvolveram seus ambientes internos e externos de estudo ao próprio modo. Célio teve seu desempenho e sua autoconfiança reforçados por sua relação com o professor, dentre outras fontes, naturalmente; e Ana Clara conseguiu manter-se preservada em seus interesses, desenvolvendo forte espírito crítico, o que ao mesmo tempo veio fortalecer suas escolhas e conseqüentemente seu desempenho. Nos dois casos relatados, ambos contaram com resultados positivos do trabalho educativo, o que poderia gerar a questão de por que então haveríamos de nos preocupar tão seriamente com a relação professor-aluno, já que no final dá tudo certo. González Rey (2006) coloca que “os sentidos subjetivos constituem verdadeiros sistemas motivacionais” (p. 34). Esses dinâmicos sistemas alocam as emoções que emergem durante o processo de aprendizagem as quais se relacionam não unicamente à concretude do aprender, mas derivam de outras circunstâncias da vida bem como alicerçam circunstâncias de vida futuras. Mais uma vez, torna-se razoável apontar a responsabilidade do professor para com o aluno. Independente da personalidade do aluno, a relação professor-aluno se impregna nas razões, nas expressões, nas memórias, enfim nos sentidos subjetivos de todos enquanto alunos. A partir do momento que ele (o professor) aceita isso, de você buscar outras coisas, acho que é uma relação muito mais satisfatória, né? acho que é muito mais estimulante também. (Ana Clara)

BIBLIOGRAFIA GONZÁLEZ REY, Fernando. O sujeito que aprende: desafios do desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In:

6 TACCA, M. C. V. R. (org.). Aprendizagem e Trabalho Pedagógico. Campinas, SP: Editora Alínea, 2006. GONZÁLEZ REY, Fernando. Sujeito e subjetividade: uma aproximação históricocultural. Trad.: Raquel Souza Lobo Guezo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005 a. GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. Trad.: Marcel Aristides Ferrada Silva. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005b. MARQUES, Alice Farias de Araújo. Processos de Aprendizagens Musicais Paralelos à Aula de Instrumento: Três Estudos de Caso. Brasília, 2006. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília. Instituto de Artes. PPG-Música. TACCA, Maria Carmen Villa Rosa. Ensinar e aprender: análise de processos de significação na relação professor x aluno em contextos estruturados. Brasília, 2000. Tese (dout.) Universidade de Brasília. TACCA Maria Carmen Villa Rosa. Além de professor e de aluno: a alteridade nos processos de aprendizagem e desenvolvimento. In: MITJÁN MARTÍNEZ, Albertina e SIMÃO, Lívia Mathias (orgs.) O outro no desenvolvimento humano: diálogos para a pesquisa e a prática profissional em psicologia. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. TACCA, Maria Carmen Villa Rosa. Estratégias pedagógicas: conceituação e desdobramentos com o foco nas relações professor-aluno. In: TACCA, M. C. V. R. (org.). Aprendizagem e Trabalho Pedagógico. Campinas, SP: Editora Alínea, 2006. TASSONI, Elvira Cristina Martins. Afetividade e aprendizagem: a relação professoraluno. Campinas, SP, 2000. Universidade Estadual de Campinas. http://scholar.google.com.br/scholar?num=100&hl=ptBR&lr=&q=ECM+TASSONI+-+REUNI%C3%83O+ANUAL+DA+ANPEd %2C+2000+-+anped.org.br&btnG=Pesquisar&lr=



Oboísta, Professora do CEP Escola de Música de Brasília, Mestre em Música pela Universidade de Brasília e Doutoranda do curso de Educação, na linha Subjetividade e Complexidade na Educação - Universidade de Brasília.

Related Documents

A Pessoa Da Escola
June 2020 12
A Grande Escola Da Vida
November 2019 21
Da Pessoa Juridica
July 2020 8
Pessoa
November 2019 18
Planta Da Escola
June 2020 5
Talentos Da Escola 2
June 2020 16

More Documents from ""