GABRIEL PERUZZO
A PATOLOGIA DO ORGANISMO SOCIAL
O OLHAR LIBERTÁRIO DE GIOVANNI ROSSI SOBRE A FAMÍLIA NUCLEAR NO FINAL DO SÉCULO XIX
FLORIANÓPOLIS – SC 2008
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO CCHE DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
GABRIEL PERUZZO
A PATOLOGIA DO ORGANISMO SOCIAL
O OLHAR LIBERTÁRIO DE GIOVANNI ROSSI SOBRE A FAMÍLIA NUCLEAR NO FINAL DO SÉCULO XIX
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no Centro de Ciências Humanas e da Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, para obtenção do grau de Bacharel e Licenciado em História. Orientadora Profa. Dra. Silvia Maria Fávero Arend
FLORIANÓPOLIS – SC 2008
GABRIEL PERUZZO
A PATOLOGIA DO ORGANISMO SOCIAL
O OLHAR LIBERTÁRIO DE GIOVANNI ROSSI SOBRE A FAMÍLIA NUCLEAR NO FINAL DO SÉCULO XIX
Trabalho de conclusão de curso apresentado no Centro de Ciências Humanas e da Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, para a obtenção do grau de Bacharel e Licenciado em História.
Banca Examinadora
Orientador:
_________________________________ Profa. Dra. Silvia Maria Fávero Arend DH/UDESC
Membro:
__________________________________ Profa. Dra. Janice Gonçalves DH/UDESC
Membro:
__________________________________ DH/UFSC Profa. Pós-Dra. Cristina Scheibe Wolff
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos Arquivos Públicos de Rio do Sul e do Paraná, onde foram dados os primeiros e importantes passos deste trabalho, aos pesquisadores da Biblioteca Nacional que, com muito profissionalismo, eficiência e sobretudo, gentileza, permitem que valiosos documentos possam ser adquiridos e consultados por historiadores e estudantes que não residem nos grandes centros de pesquisa. De instituições como a Biblioteca Nacional e do trabalho de seus pesquisadores dependem o acesso e a democratização das fontes pois, apenas desta forma, é possível submetê-las a um número sempre maior e diverso de olhares, confrontando interpretações para reconstruir experiências passadas sobre bases sólidas. Agradeço a profa. Silvia Maria Fávero Arend, pelo incentivo e por ter aceito a tarefa de orientar este trabalho, assim como a profa. Dra. Janice Gonçalves e profa. Dra. Cristina, por aceitarem o convite de compor a banca examinadora. Enfim, agradeço aos meus amigos, cujos nomes aqui omitidos nunca serão esquecidos. Vocês sabem quem são. E especialmente, a minha família, pelo apoio durante todos esses anos.
LER PELO NÃO Ler pelo não, quem dera! Em cada ausência, sentir o cheiro forte do corpo que se foi, A coisa que se espera. Ler pelo não, além da letra, ver, em cada rima vera, a prima pedra, onde a forma perdida procura seus etcéteras. Desler, tresler, contraler, Enlear-se nos ritmos da matéria, No fora, ver o dentro e, no dentro, o fora, nevegar em direção às Índias e descobrir a América. Paulo Leminsky
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar as representações sociais construídas pelo discurso libertário acerca da família nuclear burguesa no apagar do século XIX, incidindo o olhar sobre os escritos do anarquista italiano Giovanni Rossi. Publicados originalmente entre 1891 e 1895, seus escritos são perpassados por criticas austeras a família nuclear, constituindo-se em uma rica documentação para o estudo da relação entre família e pensamento libertário no último decênio do século XIX. O trabalho teve como pano de fundo, a história da Colônia fundada por Giovanni Rossi no interior do estado do Paraná em 1890, no interior da qual foram redigidos três dos quatro escritos aqui analisados.
Palavras-chave: Giovanni Rossi. Colônia Cecília. Anarquismo. Família.
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 7 1.IDÉIAS E PROPOSTAS LIBERTÁRIAS PARA UM SÉCULO REVOLUCIONÁRIO ............................................................................................................................................ 12 1.1 O SÉCULO XIX: DESINTEGRAÇÃO E MUDANÇA.................................................. 12 1.2 PIOTR KROPOTKIN: O EQUILÍBRIO E A HARMONIA DO CORPO SOCIAL ........ 18 2. COLÔNIA CECÍLIA: UM LABORATÓRIO SOCIAL NOS SERTÕES DO BRASIL MERIDIONAL .................................................................................................................. 28 2.1 O IMPERADOR E O ANARQUISTA: O MITO FUNDADOR DA COLÔNIA CECÍLIA ............................................................................................................................................ 28 2.2 ANARQUISMO E CIÊNCIA NAS SOLIDÕES AMERICANAS .................................. 36 3. EGOÍSMO DA VIDA DOMÉSTICA OU SOLIDARIEDADE DA VIDA COLETIVA: A FAMÍLIA NUCLEAR BURGUESA SOB AS LENTES DE GIOVANNI ROSSI....... 48 3.1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA COLÔNIA CECÍLIA ............................................. 48 3.2 O BEIJO AMORFISTA: PARA ALÉM DO AMOR LIVRE.......................................... 52 3.3 DO SENTIMENTO DA FAMÍLIA AO ESPÍRITO DE FACÇÃO: A PATOLOGIA DO ORGANISMO SOCIAL ...................................................................................................... 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 72 REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS .............................................................................. 75 FONTES ............................................................................................................................. 78
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INTRODUÇÃO
Em 1890, no contexto das políticas imigratórias, era fundada no interior do estado do Paraná uma colônia de imigrantes italianos anarquistas. Nas terras de Santa Bárbara, distrito de Palmeira, esta colônia denominada Cecília, ganharia as páginas dos livros de história como um dos episódios mais instigantes da história social brasileira, do qual teriam participado, supostamente, o imperador D. Pedro II e o maestro Carlos Gomes. Como muitas colônias de imigrantes fundadas no século XIX, a Cecília nasceu e morreu pobre. Entretanto, durante sua efêmera existência, somou experiências de incalculável valor histórico, o que lhe valeu o reconhecimento através das páginas de romances, de dramaturgias, do cinema e ainda de uma série de televisão dedicada a sua memória. A bordo de um navio mercante adaptado para o transporte de passageiros, seus idealizadores traziam na bagagem algo mais do que o sonho de “fazer a América”. Traziam o projeto de fundar nas “solidões americanas”, uma colônia onde fosse possível testar empiricamente as teorias libertárias de reestruturação social. Tendo a frente o agrônomo e médico veterinário Giovanni Rossi, seu principal articulador, a Colônia Cecília seria mais que um refúgio de imigrantes que vinham buscar dias afortunados nas terras do Novo Mundo, seria um laboratório social. A consistência e a solubilidade das teorias libertárias deveriam ser postas a prova, submetidas aos cânones da ciência positiva, pois desta forma, ganhariam legitimidade. Entretanto, para além das teorias políticas e econômicas, Giovanni Rossi almejava a experimentação prática do amor livre, ou como preferia, do “beijo amorfista”. Esta forma fluida de relacionamentos conjugais, encontrava na pluralidade de amores simultâneos o meio de alcançar fins ainda mais audaciosos: a completa dissolução da família nuclear. Temas recorrentes em seus opúsculos, a igualdade nas relações de gênero e, sobretudo, as críticas austeras a família nuclear, ocupam uma posição de destaque no pensamento deste libertário italiano. Lugar-comum na bibliografia sobre a Colônia Cecília, as criticas de Rossi à família são constantemente colocadas em relevo, todavia, as razões dos discursos cáusticos professados contra a família nuclear do século XIX permaneciam sem explicações. Os interesses pela história da família e especialmente, da relação entre família e anarquismo, surgiram durante as aulas de História Social da Família, através da leitura de um
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dos textos de Microfísica do Poder1, de Michel Foucault. Em A Governamentalidade, Foucault discorre sobre o processo que no século XVII fez surgir o problema da população e de como a família foi convertida pelo Estado em um instrumento para conduzir a população aos fins desejados. O controle da população pelo Estado, levado a cabo através da família, não poderia deixar de seduzir um libertário aprendiz de historiador. Os primeiros passos da pesquisa seriam dados com a redação de um artigo produzido também para a disciplina de História da Família, cujo tema se desenvolvia em torno dos relacionamentos conjugais observados através das lentes de Giovanni Rossi. Todavia, o desejo de levar a discussão a diante em um trabalho de conclusão de curso esbarrava na ausência de fontes. Após buscas infrutíferas, as primeiras referências começavam a mostrar-se timidamente com nomes, telefones e endereços obtidos no Arquivo Histórico de Rio do Sul. Os primeiros e exíguos materiais, seriam localizados no Arquivo Público do Paraná, onde foram encontradas matérias sobre Giovanni Rossi no periódico italiano Bresciaoggi, de 1988. Os periódicos libertários obtidos nos arquivos da Biblioteca Nacional não traziam informações sobre o tema, quando muito, algumas poucas linhas sobre o amor livre e em jornais operários que não poderiam ser definidos com precisão quanto à posição política. Não suficiente, muitos periódicos libertários como A Terra Livre e A Lanterna, não estavam disponíveis, pois passavam por processos de restauração. O melhor a fazer seria esquecer a experiência de Giovanni Rossi e adotar outro objeto de pesquisa. Entretanto, o interesse pelas idéias de Giovanni Rossi não findaria assim tão facilmente. O levantamento de materiais relativos a Colônia Cecília, vida e obra de Giovanni Rossi caminharia paralelamente a redação de um projeto alternativo de conclusão de curso. Foi quando tomamos conhecimento da coletânea editada pela Imprensa Oficial do Paraná no ano 2000, intitulada Colônia Cecília e outras utopias. A coletânea, dedicada inteiramente aos escritos de Giovanni Rossi, reunia quatro opúsculos de sua autoria publicados entre os anos de 1891 e 1895. Porém, era preciso localizá-la, dado que se tratava de uma edição esgotada. E assim foi. Os opúsculos O nascimento da Colônia Cecília, Comunidade anarquista experimental, Um caso de amor na Colônia Cecília e O Paraná no século XX, reunidos em Colônia Cecília e outras utopias, seriam encontrados em um sebo do Rio de Janeiro. Seus relatos remetem à construção da Colônia Cecília e às experiências vividas por seus habitantes, exceto O Paraná no século XX, onde Giovanni Rossi discute suas idéias através de uma narrativa ficcional. Rossi costumava utilizar narrativas ficcionais como
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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veiculo real de propaganda política. Através de personagens fictícios, as idéias libertárias eram discutidas e divulgadas: “a utopia é uma forma, um artifício literário para apresentar as coisas de maneira mais digerível; e num romance ou num conto pode haver tantas verdades quantas são as mentiras contidas num respeitável tratado de economia política,”2 afirmava Rossi. As fontes literárias, através da análise dos discursos historicamente construídos, apontam para as representações sociais do autor e de seus leitores, “descrevendo a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.”3 Nesse sentido, os escritos de Giovanni Rossi consistiam em uma importante fonte para compreender suas representações sociais acerca da família nuclear burguesa, objeto deste trabalho. Assim, com as fontes em mãos, o trabalho poderia ser prosseguido. O flerte da história com a antropologia e a influência exercida pelo conceito semiótico de cultura desenvolvido por Clifford Geertz reaproximaram a história da dimensão simbólica do real, substituindo com isso o conceito impreciso de mentalidade adotado até então pelos historiadores dedicados ao estudo dos fatores subjetivos na história, mais precisamente, pela categoria “representação”. Apontada como categoria central da História Cultural por Sandra J. Pesavento, as representações seriam o meio pelo qual os historiadores culturais ganham acesso a realidade cifrada do passado, “tentando chegar àquelas formas, discursivas imagéticas, pelas quais os homens expressam a si próprios e o mundo [...] através de normas, instituições, discursos, imagens e ritos”.4 As representações ou construções imagéticas podem ser definidas “como as matrizes de práticas que constroem o próprio mundo social”5, da onde decorre sua importância para a compreensão de uma realidade social complexa e fragmentada. “As representações apresentam múltiplas configurações, e pode-se dizer que o mundo é construído de forma contraditória e variada, pelos diferentes grupos do social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças. Implica que esse grupo vai impor a sua maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que
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ROSSI, Giovanni. Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 131. CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel / Bertrand Brasil, 1988. p. 19. 4 PESAVENTO, Sandra Jatahi. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 39-42. 5 CHARTIER, Roger. O Mundo Como Representação. In: À Beira da Falésia. A História Entre Certezas e Inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002. p. 72. 3
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orientam o gosto e a percepção, que definem limites e autorizam os comportamentos e os papéis sociais.”6 Admite-se portanto, a realidade não como um monolito intransponível mas como uma rocha porosa, permeada por fissuras através das quais escorrem discursos e práticas que fogem às normas, convertendo-se em um palco onde os personagens afirmam posições através do embate de representações acerca do mundo, estas, plurais em número e singulares entre si. A categoria representação proposta pela História Cultural como meio de alcançar o passado mostra-se adequada para compreender realidades multifacetadas, trazendo à tona indivíduos e grupos que constroem nos interstícios do sistema normativo, suas próprias representações de mundo, como fizeram os anarquistas da Colônia Cecília. Com isso, através da análise dos discursos de Giovanni Rossi, pretende-se chegar às suas representações sociais relativas a família nuclear construídas no final do século XIX. Por esta via, o trabalho foi dividido em três capítulos: no primeiro, buscou-se expor em linhas gerais algumas das principais características do século XIX a partir das análises de René Rémond e Eric Hobsbawm, pensando o século em questão como um momento de grande complexidade histórica e marcado por vertiginosas transformações. É nesse contexto, que se engendram as idéias e propostas de Piotr Kropotkin, figura expressiva do pensamento libertário no último quartel do século XIX e uma das principais influências de Giovanni Rossi. No segundo capítulo, as atenções incidiram sobre a desconstrução do “mito fundador” da Colônia Cecília e nas razões que levaram Giovanni Rossi a cruzar o Atlântico para fundar no interior do Paraná, um núcleo de colonizadores anarquistas, trazendo a lume a relação entre o positivismo de Auguste Comte, o anarquismo experimental e a interpretação orgânica da sociedade identificados no pensamento de Rossi. Por fim, o terceiro e último capítulo teve como núcleo temático o discurso de Rossi sobre o amor livre e, especialmente, sobre a família nuclear burguesa, bem como processo de formação desta e seu isolamento em relação à sociedade observado sobretudo a partir do século XVIII. Discussão necessária, os debates acerca das relações de gênero foram omitidos, não por negligência, mas por questões pragmáticas que fizeram com que as atenções se voltassem para o debate em torno da família. Outras discussões pertinentes, como a configuração da família italiana e o discurso católico sobre esta, também não se fizeram presentes pelas mesmas razões, sendo reservadas para trabalhos futuros. 6
PESAVENTO, Sandra Jatahi. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 42.
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1.IDÉIAS E PROPOSTAS LIBERTÁRIAS PARA UM SÉCULO REVOLUCIONÁRIO 1.1 O SÉCULO XIX: DESINTEGRAÇÃO E MUDANÇA Delimitar um período histórico consiste em fixar marcos cronológicos sobre acontecimentos que assinalam mudanças e que representam o corpo e o espírito de um tempo. Tarefa difícil, balizar o tempo que se desdobra em um todo contínuo, é quase sempre assumir o risco de cair em ciladas armadas pelo anacronismo e cometer arbitrariedades, sobretudo, quando o período estudado caracteriza-se por uma convulsão de acontecimentos significativos, seja na política, na economia, na sociedade ou mesmo nas mentalidades, tal como foi o século XIX. Enquanto para historiadores como René Rémond7 o século XIX situa-se entre 1815, com o fim das guerras napoleônicas e o início da Primeira Guerra Mundial em 1914, para Eric Hobsbawm, a extensão do século XIX pode ser dividida, grosso modo, em três Eras: A Era das Revoluções8, 1789-1848, A Era do Capital9, 1848-1875, A Era dos Impérios10, 18751914. Nesse sentido, se o primeiro adota como referencial cronológico eventos políticos que redefiniram a cartografia e as relações internacionais européias, o segundo, a partir de um viés marxista, volta os “olhos”, sobremaneira, para a consolidação e expansão do Capitalismo a partir da Europa de 1850. Entretanto, o diferencial entre os recortes de um mesmo tempo relaciona-se a abordagens metodológicas díspares e não necessariamente a visões divergentes sobre o conjunto de acontecimentos que compuseram o século XIX. Ambos concebem a Europa do oitocentos como um ambiente tenso e marcado por conflitos, definindo o XIX como “um dos séculos mais complexos, mais cheios que existem”,11 “um período que realmente não tem paralelo na História e cuja excepcionalidade o faz estranho e remoto”.12 É a partir desse ponto, sobre o qual incidem os olhares de René Remond e Eric Hobsbawm – complexidade e excepcionalidade – que o século XIX pode ser pensado como um dos momentos mais fecundos e ambivalentes da modernidade. Caracterizá-lo em seus pormenores constituiu uma tarefa por demais ambiciosa e impossível de ser sintetizada em um reduzido número de páginas. No entanto, distinguir algumas das cores que tingiram este momento da história imprimindo-lhe formas que ainda podem ser vislumbradas é, não apenas necessário para compreendê-lo como uma das maiores 7
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. São Paulo, 1974. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 19. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. 9 HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 10 HOBSBAWM, E. J.. A era dos impérios: 1875-1914 . 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 11 RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 13. 12 HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 15. 8
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expressões da modernidade, como útil para chegar ao ideal libertário imaginado por Piotr Kropotkin, a quem o personagem desta trama, Giovanni Rossi, está ligado por linhas tênues mas fortemente tensionadas. Por esta via, a Europa que havia testemunhado o levante popular e a derrocada da monarquia em 1789 na França, selando o fim do século XVIII com um regime político constitucional, vê surgir entre os mesmos franceses revolucionários que ameaçavam enforcar o último rei nas tripas do último padre, o primeiro grande império da modernidade. Figura emblemática, Napoleão Bonaparte, o jovem general francês nascido italiano, tornou-se imperador e conduziu a França a um movimento expansionista que subjugou grandes nações européias no transcorrer de uma década. Seriam necessários 10 anos para que, desde a batalha de Austerlitz até a surpreendente Waterloo, se constituísse e dissolvesse um império. Após a queda do império napoleônico, os Estados europeus reunidos no Congresso de Viena em 1815, redesenharam as fronteiras políticas do continente e restauraram regimes monárquicos depostos pela Revolução ou por Bonaparte, como em Nápoles, Espanha, Portugal e nos Paises Baixos13. Assim, a Europa, berço da revolução republicana, presenciou durante as primeiras décadas do século XIX, as disputas entre as coroas dos reis e o cetro do imperador. Apesar da vitória dos reis, a restauração da ordem pré-revolucionária não seria completa. Muitas das mudanças levadas a cabo pelas monarquias contribuiriam para o desmonte de uma sociedade aristocrática e para a ascensão da burguesia. Esta saberia fazer valer suas idéias, seu modo de vida e, principalmente, seu modelo econômico. Segundo René Rémond,
A evidência de que a restauração está longe de ser integral impõem-se com mais força ainda no que diz respeito as transformações sociais [...]. A servidão é abolida, os privilégios suprimidos, a mão-morta eclesiástica desapareceu. A igualdade civil de todos diante da lei, diante da justiça, diante dos impostos, para os acessos aos cargos públicos e administrativos, é agora a regra para uma boa metade da Europa. Tradicionais em certos Estados, as interdições de adquirir terras, feitas à burguesia, não estão mais em vigor. Todas essas reformas favorecem principalmente a burguesia e, de fato, passou-se de uma sociedade aristocrática para uma sociedade burguesa.14
Contudo, se muitas das medidas tomadas pela Restauração abririam caminho para a alçada da burguesia, sua posição na ordem social seria demarcada definitivamente após
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RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 17. Ibidem, p. 22-23.
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expansão do capitalismo na segunda metade do século XIX e legitimada pelas idéias liberais calcadas sobre os direitos individuais, a propriedade privada e o livre comércio. O desenvolvimento cientifico e tecnológico que alcançaria proporções surpreendentes a partir de 1870, forneceu as condições necessárias para o alargamento da produção industrial, bem como para o escoamento das mercadorias para os cinco continentes do globo. Navios a vapor, locomotivas e estradas-de-ferro, criavam novos nichos de mercado entre as nações industrializadas e as produtoras de matéria-prima. Mercados que, agora, poderiam ser controlados internacionalmente através do telégrafo. O espaço geográfico da economia capitalista poderia multiplicar-se repentinamente na medida em que a intensidade das transações comerciais aumentasse. O mundo inteiro tornou-se parte dessa economia . Essa criação de um mundo expandido é talvez a mais importante manifestação do nosso período.15
Não obstante os avanços dos meios de comunicação que permitiram estabelecer conexões intercontinentais, as diretrizes teóricas do liberalismo econômico contribuíram em larga medida para o surgimento de uma economia globalizada. Admitido pela maior parte das economias, o liberalismo econômico rompia com medidas protecionistas em beneficio do livre-comércio e da iniciativa privada. O laissez-faire representava um atrativo mesmo em regimes avessos ao liberalismo político, pois, “se alguns interesses específicos pudessem ser afetados de forma adversa, havia outros que a liberalização compensava”, 16 além de “nessa etapa da industrialização, a vantagem de poder utilizar o equipamento, as fontes e o know-how da Inglaterra era bastante útil”17. A expansão do capitalismo impulsionou e disseminou a industrialização entre as economias do mundo, “apesar de ser muito desigual”.18 Deste momento em diante, a indústria se concentraria na produção de ferro, carvão “e seu símbolo mais espetacular, a estrada de ferro, que os combinava”. 19 A exorbitante produção industrial só foi possível graças ao desenvolvimento tecnológico e cientifico, permitindo “a produção em massa de maquinaria, que tinha sido construída virtualmente à mão, como as locomotivas e os navios continuavam a sê-lo”.20
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HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 59. Ibidem, p. 66. 17 Ibidem, p. 66. 18 Ibidem, p. 68. 19 Ibidem, p. 69. 20 Ibidem, p. 73. 16
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Na política, ante a risco de perder seus privilégios econômicos, a burguesia se aliaria aos conservadores do Antigo Regime. Em 1848, durante os movimentos revolucionários que ficariam conhecidos como “a primavera dos povos”,21 disseminando entre muitos dos países da Europa ocidental repúblicas democráticas sociais, a burguesia atuaria como uma força contra-revolucionária, responsável por levar os movimentos insurgentes a capitulação. O fracasso desta onda revolucionária deve-se muito à imaturidade política dos trabalhadores que, motivados mais por questões sociais, não souberam apontar caminhos para as repúblicas que emergiam. Não obstante, as camadas sociais que defendiam ideários políticos claros e delineados, não se imiscuíram, ou por que não representavam forças suficientemente capazes de fazer frente aos regimes depostos, ou por que a proclamação de regimes democráticos sociais representavam o início de um “clarão socialista” e o fim da propriedade privada. Em nome da ordem social e, principalmente econômica, prefeririam a estabilidade política e tomariam o partido dos conservadores. Desta forma, a burguesia deixaria de ser uma força revolucionária para integrar as forças da conservação, contudo, não seria complacente com o absolutismo. As monarquias seriam admitidas, desde que circunscritas por constituições e parlamentos. Apesar da derrota, a “primavera dos povos” significou o despertar de uma consciência de classe, dado que o maior número dos que integravam suas fileiras eram trabalhadores pobres sublevados contra a carestia da vida, assim como o fim do direito divino que justificava o poder monárquico. Após 1848, seria necessário legitimar o exercício do poder político 22. Esses dois fatores aliados, abririam as portas para o movimento operário que caminharia de braços dados com os ideais socialistas e para a instauração dos regimes democráticos. De acordo com René Rémond, liberalismo, democracia e socialismo, constituem movimentos políticos sucessivos, sendo a democracia, um prolongamento do primeiro23. Se para os liberais os direitos políticos devem ser confiados a uma minoria e não a totalidade popular, restringindo o exercício das liberdades aos que possuem capacidades intelectuais e econômicas para tanto, para os democratas, a igualdade deve ser irrestrita, bem como o pleno exercício das liberdades e a garantia dos meios para exercê-las. A democracia se opôs ao liberalismo na medida em que este reclamava o governo de uma oligarquia e o exercício das
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Ibidem, p. 33. Ibidem, p. 48. 23 RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 14. 22
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liberdades a uma elite, lutando pelas garantias individuais e pelos direitos políticos estendidos a todos através do sufrágio universal. No último quartel do século, o socialismo, que não era nenhuma novidade, fundiu-se com o movimento operário, confiante em suas propostas revolucionárias de justiça econômica e social. Os trabalhadores fabris haviam sido submetidos a um rigoroso processo de disciplinarização. As longas e extenuantes jornadas de trabalho de até dezesseis horas diárias não obedeciam ao ritmo natural com o qual estavam habituados. Iniciava-se e terminava-se o expediente com o soar do relógio e não mais quando o corpo reclamasse por descanso. Segundo Rémond, trabalha-se enquanto a claridade ou a luz do dia permitir, ou seja, até quinze ou dezesseis horas por dia. Nunca se descansa, nem mesmo aos domingos [...] As crianças são obrigadas a trabalhar desde os mais tenros anos e os mais velhos não gozam de aposentadoria.24
Assim, o enorme contingente de trabalhadores assalariados que não dispunha de outra fonte de subsistência que não sua força de trabalho, encontrou no socialismo e na sua principal bandeira de luta, o fim da propriedade privada, uma promessa de libertação contra a exploração do trabalho. Segundo Rémond, as lideranças operárias alinhariam-se a doutrinas revolucionárias que não acreditam na democracia política. É para o anarquismo, para o anarco-sindicalismo que se inclinarão a princípio a simpatia e a confiança dos militantes operários, na França, o sindicalismo ficará impregnado da ideologia anarco-sindicalista, pelo menos até a Primeira Guerra Mundial.25
Toda complexidade do século XIX ganha relevo em suas constantes transformações e forças antagônicas, percebidas no declínio de uma sociedade aristocrática sobre a qual se instalaria uma ordem social burguesa, com uma política parlamentar liberal e sua economia capitalista globalizada. Capitalismo, que para além dos incentivos fornecidos pelo livre-comércio, foi substancialmente alimentado por uma indústria que não mais via limites para escoar suas mercadorias. Mercadorias produzidas em larga escala e comercializadas em um mercado mundial devido aos desmesurados avanços da ciência e da tecnologia, que por sua vez,
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Ibidem, p. 106. Ibidem, p. 55.
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alimentavam com máquinas, meios de transportes e comunicação, aquela mesma indústria que fez surgir em torno de si, grandes cidades e aglomerados populacionais. Esta paisagem urbana, por onde desfilavam cartolas e pomposos chapéus em meio a fábricas e edifícios, se contrapunha com um mundo rural que no apagar do século em questão, ainda abrigava a maior parte da população mundial26. Muitos trabalhadores residiam nas pequenas cidades e vilas situadas nas regiões adjacentes às cidades industriais, alternando o trabalho no campo com a rígida disciplina do trabalho fabril, dualidade que fez com que esses proletários “permanecessem meio-agricultores”.27 “Em certo sentido, o choque da industrialização residia precisamente no grande contraste entre as habitações escuras, monótonas, repletas de gente, e as fazendas coloridas circunvizinhas”. 28 Sobre o contraste e a sensação de viver em dois mundos, Berman chama a atenção para a experiência de homens e mulheres que viveram o século XIX: Esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma era que desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política. Ao mesmo tempo, o público moderno do XIX ainda lembra do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro.29
Na esteira do que vem sendo dito, complexo e ambivalente por que nenhum outro século do período moderno parecia estar no epicentro de um “turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”,30 como os anos 1800. Monarquias absolutistas, regimes liberais, democracias, socialismo, anarquismo e mais uma miríade de ideais engrossavam o caldo das disputas políticas. Na economia, a expansão do capitalismo fortalecia a propriedade privada e o livre comércio, enquanto as aviltantes condições de trabalho alavancavam um movimento operário alinhado às idéias socialistas que abraçavam a propriedade coletiva dos meios de produção. As indústrias, instaladas nas órbitas dos centros urbanos, erguiam cidades que dentro em breve conheceriam seus primeiros arranha-céus, contrastando com a paisagem bucólica do mundo rural. Nem mesmo Deus, afrontado por Darwin, permaneceria unânime: as teorias criacionistas, sustentadas pelo discurso religioso, perdiam adeptos face ao Evolucionismo que deitava raízes sobre o conhecimento científico, este, quiçá, a nova “religião” dos homens modernos. 26
Ibidem, p. 124. HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 294. 28 Ibidem, p. 294. 29 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. p. 17. 30 Ibidem, p. 15. 27
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Fecundo e excepcional, “pelas titânicas realizações materiais”, 31 tomando de empréstimo a expressão de Eric Hobsbawm, que representaram um período de vertiginoso crescimento
econômico, de
efervescência
nas descobertas científicas,
de grande
desenvolvimento tecnológico e de novas fontes de energia, responsáveis por estreitar fronteiras e aproximar culturas distintas e distantes. Culturas que se acotovelavam nas ruas das grandes cidades do Novo Mundo, estas, em larga medida, dilatadas pelas expressivas levas migratórias de homens e mulheres que traziam na bagagem o sonho de “fazer a América”. Vicissitudes e inovações tingiram o céu do “século das revoluções”.32 Suas ameaças e possibilidades pareciam inesgotáveis para aqueles que viveram a modernidade do século XIX. Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e se esforçam para fazê-lo ruir ou explorá-lo a partir de seu interior; apesar disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos ainda sem seu momentos de mais grave seriedade e profundidade.33
Entre os modernistas do século XIX evidenciados por Marshall Berman, tais como Marx, Nietzsche, Dostoievski e Baudelaire, um geógrafo russo, aristocrata renegado, compartilhava os mesmos dramas e angústias, bem como a confiança em si mesmo e nos homens do seu tempo, convicto de estar marchando na direção de épocas melhores. Equilíbrio e harmonia perpassam o pensamento social de um nobre libertário que via na ciência e no anarco-comunismo, respostas para a sensação inebriante provocada por tempos convulsivos e para as contradições de um século complexo e excepcional, fecundo e ambivalente.
1.2 PIOTR KROPOTKIN: O EQUILÍBRIO E A HARMONIA DO CORPO SOCIAL Na segunda metade do século XIX, os Estados iniciavam o aumento progressivo de suas funções e dos aparelhos burocráticos responsáveis pela administração estatal, processo intensificado no início do século XX. “Naturalmente impopular”34, de acordo com René Rémond, o Estado durante o século XIX, apresentava
uma impopularidade ainda mais
pujante, sobretudo entre os segmentos alinhados às idéias socialistas. As hostilidades em
31
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 15 RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. 1974. p. 13. 33 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005 p. 19. 34 RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 98. 32
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relação ao Estado partiam especialmente dos meios marxistas e anarquistas, identificadas visivelmente na noção de autogestão 35. Para muitos historiadores do anarquismo, a origem das idéias libertárias remonta a períodos distantes do século XIX, estendendo-se até mesmo à Antiguidade. No entanto, como ressalta G. Woodcock, esta genealogia atenta às origens distantes do pensamento anarquista pode ser entendida como uma forma de “emprestar autoridade a um movimento e suas idéias”36 através de uma extensa tradição construída. Entretanto, é apenas a partir da década de 1840 que o termo anarquia é adotado para designar um conjunto de idéias e teorias políticas próprias de um determinado grupo. As palavras anarquia e anarquista, utilizadas até então pejorativamente para atacar aqueles que se opunham aos regimes políticos instituídos, a exemplo dos republicanos do período da Revolução Francesa, foram adotadas por Pierre Joseph-Proudhon para definir seu ideário político.37 De origem grega, a palavra anarchos significa literalmente “sem governante”38 e nesse sentido, foi apropriada por Proudhon para definir suas teorias políticas baseadas na negação da propriedade privada e de um poder político centralizado. Muito embora Proudhon seja considerado o primeiro a adotar a alcunha de anarquista e de fornecer as bases das teorias libertárias, inúmeros outros pensadores que o sucederam desenvolveram variantes singulares destas mesmas idéias. Apesar de possuir um núcleo comum, fundamentado sobre a oposição a todas as formas de autoridade, assim como na defesa de federações autônomas e da socialização dos meios de produção, as idéias libertárias se ramificaram em diferentes vertentes teóricas na segunda metade do século XIX39, como o coletivismo de Mikhail Bakunin, o anarcossindicalismo francês e o anarco-comunismo de Piotr Kropotkin, este último, muito prestigiado nos meios anarquistas no último quarto do século XIX. Nascido em 1842 no interior de uma nobre família pertencente à casa dos Ruriks, dinastia anterior à Romanov, Piotr Kropotkin desde muito cedo foi integrado ao cotidiano nobiliárquico russo, chegando a ser pajem do tzar Nicolau II. Anos mais tarde, seus interesses pelas ciências, em especial pelas ciências naturais, o levariam inicialmente a uma viajem de estudos aos confins siberianos, região que voltaria como prisioneiro político da prisão de Pedro-e-Paulo, em 1874. 35
Ibidem, p. 99. WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 41. 37 Ibidem, p. 8-9. 38 Ibidem, p. 8. 39 Ibidem, p. 19-20. 36
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Após a morte de Bakunin, em 1876, Kropotkin tornou-se a principal referência no pensamento libertário, contribuindo com a disseminação dos ideais anarquistas. De acordo com George Woodcock, foi “à epoca de Kropotkin, quando o anarquismo se espalhou por quase todos os países do Velho e do Novo Mundo, tornando-se o mais influente movimento da classe operária no mundo de língua latina. Kropotkin desempenhou um papel importantíssimo nessa expansão”.40 O período em que Kropotkin ganha proeminência entre os teóricos libertários, estende-se da década de 1870 até meados do século XX, que corresponde a fase mais prolífica do pensamento e do movimento libertário, ainda veria ganhar ímpeto o anarco-sindicalismo. Entre 1870 e 1900, “o ideal anarquista exerce viva atração sobre os intelectuais e sobre muitos militantes operários”,41 salienta René Rémond. Entretanto, antes de se destacar como “principal expoente do anarquismo”,42 Piotr Kropotkin adquiriu vulto como um dos mais renomados intelectuais e geógrafos daquele fim de século, ao lado de seu amigo pessoal Elisée Reclus, com quem colaborou na publicação de Geografia Universal. Segundo George Woodcock,
além de explorar amplas áreas das regiões montanhosas da Sibéria até então não percorridas por viajantes civilizados, Kropotkin elaborou – com base nessas observações – uma teoria sobre a estrutura das cadeias de montanhas e platôs da Ásia Oriental que revolucionou os conceitos existentes sobre a orografia eurasiana.43
Kropotkin, que chegou a ocupar o cargo de secretário da Sociedade Geográfica Russa, recusou o convite para assumir uma cátedra em Cambridge44, cargo inconciliável com suas atividades políticas. Entretanto, durante toda sua vida soube conjugar ação política com a produção de artigos científicos publicados em periódicos conceituados, como Nature e Times45, ou ainda, colaborando com a Enciclopédia Britânica. Esses artigos científicos lhe valeram não apenas a fama, mas também os meios para garantir sua subsistência durante as décadas de exílio que viveu na Inglaterra.
40
Ibidem, p. 214-215. RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. 1974. p. 114. 42 WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 212. 43 Publicado na década de 1930, George Woodcock utiliza a expressão civilizado para se referir aos indivíduos de sociedades industriais e não de forma depreciativa. Idem, p. 220. 44 COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra, 2007. p. 23. 45 Ibidem, p. 16. 41
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Homem de comportamento taciturno, Kropotkin, segundo Woodcock, contribuiu para o anarquismo mais como “personalidade e escritor”,46 do que como um militante de barricadas, como foi Mikhail Bakunin. Seu prestígio como intelectual ligado às ciências naturais emprestaram ao anarquismo legitimidade, colocando em relevo as idéias libertárias nas últimas décadas do século XIX, como ressaltou anteriormente René Rémond. Entusiasmado e convencido da necessidade de prover o anarquismo de uma sustentação cientifica e filosófica, para além dos aportes político e econômico, Kropotkin esforçou-se para encontrar entre as ciências naturais as bases de análise distintas da metafísica ou da dialética utilizadas, então, para as ciências humanas. Diferentemente de Herbert Spencer, pretendia usar os exemplos das ciências naturais não como simples analogia, mas como base de indução aplicada às instituições humanas.47
Kropotkin acreditava que as teorias anarquistas deveriam ser submetidas aos rigores do conhecimento científico, pois assim ganhariam credibilidade e aceitação. Em O Princípio Anarquista, Kropotkin afirma que o anarquista Deve fazer sobressair a parte grande, filosófica, do principio da anarquia. Deve aplicá-la à ciência, pois, por isso, ele ajudará a remodelar as idéias: ele combaterá as mentiras da história, da economia social, da filosofia, e ajudará aqueles que o fazem, amiúde inconscientemente, por amor à verdade cientifica, a impor a marca anarquista ao pensamento do século.48
Para Kropotkin, que entendia a sociedade como um organismo, a compreensão dos fenômenos sociais teria origem nas inferências feitas a partir de exemplos “colhidos nas ciências naturais”,49 de quem deveriam ser adotados os métodos de estudo. Segundo Piotr Kropotkin, o pensamento anarquista era uma manifestação da evolução da ciência, que passava por transformações metodológicas, não apenas nas ciências naturais, mas também nas “ciências que tratam das relações humanas”: Como vereis, está em via de operar-se no conjunto das ciências uma mudança ainda mais profunda e de maior alcance; e a anarquia é apenas uma das múltiplas manifestações desta evolução. É apenas um dos ramos da nova filosofia que se anuncia.50
46
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 215. 47 COÊLHO, op. cit., p.19. 48 Ibidem, p. 37. 49 KROPOTKIN, Piotr. A anarquia. Sua filosofia, seu ideal. São Paulo: Imaginário, 2001. p. 20. 50 Ibidem, p. 22.
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Se fosse só a astronomia a sofrer esta mudança! Mas não, a mesma modificação se produz na filosofia de todas as ciências sem exceção; as que tratam da natureza, bem como as que tratam das relações humanas.51
Segundo Kropotkin, a “anarquia” representava uma nova forma de interpretar as sociedades pretéritas e contemporâneas, assim como de conceber o futuro, sempre fundamentada nas ciências naturais. Sob o nome de anarquia surgiu, ao mesmo tempo que uma interpretação nova da vida passada e presente das sociedades, uma previsão de futuro, concebidas uma e outra no mesmo espírito que a concepção da natureza que acabo de falar.52
As transformações metodológicas pelas quais passavam as ciências, assinaladas por Kropotkin, dizem respeito a uma mudança de perspectiva na análise dos objetos de estudo. De acordo com Kropotkin, naquele momento as ciências deixavam de volver seus “olhos” para os grandes eventos para se concentrar no estudo dos pequemos ou das partes elementares. Nesse sentido, a perspectiva holística era substituída pelo estudo dos casos, observações feitas por Kropotkin a partir dos procedimentos metodológicos da astronomia e da biologia. Para o geógrafo russo,
Depois de prestar toda sua atenção ao Sol a aos grandes planetas, o astrônomo entrega-se ao estudo dos infinitamente pequenos que povoam o universo [...] a estes infinitamente pequenos que sulcam o espaço em todos os sentidos com velocidades vertiginosas, que se entrechocam, se aglomeram e desintegram, por toda parte e sempre, é a eles que o astrônomo hoje pede a explicação da origem do nosso sistema, sol, planetas e satélites, e dos movimentos que animam suas diferentes partes, e da harmonia do seu conjunto.53
Por esta via, as explicações acerca da origem do sistema astronômico e da harmonia do conjunto são extraídas das análises da dinâmica dessas partículas que, para Kropotkin constitui o fator determinante do equilíbrio universal. A resultante dessas forças é que mantém o equilíbrio e não uma força centralizada.“Desse modo, transportando uma vez da Terra para o Sol, o centro, a origem da força, acha-se agora disperso, disseminado: está em toda parte e em parte nenhuma”.54 As mesmas constatações são feitas por Kropotkin no que tange os métodos das ciências biológicas:
51
Ibidem, p. 25. Ibidem, p. 32-33. 53 Ibidem, p. 23. 54 Ibidem, p. 24. 52
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Nas ciências que tratam da vida orgânica, a noção da espécie e de suas variações desfaz-se, e a noção de indivíduo substitui-se àquela [...] as variações da espécie não são para o biólogo mais do que resultantes – soma de variações que se produzem em cada indivíduo separadamente. A espécie será o que forem os indivíduos, sofrendo cada um as mesmas inumeráveis influências dos meios em que vivem, e aos quais cada um corresponde de sua maneira.55
Da mesma forma que a astronomia e a biologia, as ciências sociais deveriam deslocar sua atenção para a interação entre os indivíduos, pois o equilíbrio e a harmonia independem de uma força centralizada, mas da soma das ações individuais. Assim como a espécie, a sociedade será o que forem os indivíduos. Kropotkin acreditava que a sociedade era regulada espontaneamente pelas relações interpessoais de dependência travadas entre indivíduos autônomos e não subordinados a um órgão central, “em que cada um vive da sua própria vida, procura por si mesmo o bem-estar, e atinge-o pelo agrupamento, pela associação de outros como ele”.56 Novamente utilizando a perspectiva sistêmica como base indutiva, Kropotkin defende a idéia de que a o bem-estar coletivo depende do bem-estar individual. Para o autor, apenas a satisfação das necessidades e desejos individuais são capazes de manter a harmonia social, impedindo conflitos ocasionados pela contenção dos meios de alcançá-los. Em uma palavra, cada individuo é um cosmo de órgãos, cada órgão é um cosmo de células, cada célula é um cosmo de infinitamente pequenos; e, neste mundo complexo, o bem-estar do conjunto depende inteiramente da soma de bem-estar de que goza cada uma das menores parcelas microscópicas da matéria organizada. Assim se produz toda uma revolução na filosofia da vida.57
A “anarquia” era pensada como um suporte teórico capaz de levar as instáveis sociedades do século XIX ao equilíbrio. As idéias libertárias de Kropotkin, inspiradas nas ciências naturais, pregavam o fim de um poder centralizado em proveito de um conjunto de federações autônomas e autogeridas, estabelecidas no interior de um sistema econômico comunista, onde seria possível aliar liberdade individual e responsabilidade coletiva. A perenidade do equilíbrio social seria proporcional ao tempo necessário para estabelecê-lo e, sobretudo, ao seu caráter natural e espontâneo. Para Kropotkin, o equilíbrio social só poderia resultar da interação espontânea e não imposta entre indivíduos livres e sob a condição de ser modificado de acordo com a conjuntura. “Nada há de preconcebido no que
55
Ibidem, p. 25-26. Ibidem, p. 26. 57 Ibidem, p. 26-27. 56
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nós chamamos de harmonia da natureza. Bastou, para estabelecê-la, o acaso dos choques e dos encontros”.58 A harmonia aparece assim como equilíbrio temporário, estabelecido entre todas as forças, como uma adaptação provisória; e este equilíbrio só durará com uma condição: a de se modificar continuamente, representando em cada instante a resultante de todas as ações contrárias. Que uma só destas forças seja contrariada por algum tempo na sua ação, e a harmonia desaparecerá. A força acumulará seu efeito, deve abrir caminho, deve exercer sua ação, e se outras forças impedem que se manifeste, não se aniquilará por isso, mas acabará por romper o equilíbrio, e trabalhar em uma nova adaptação. Tal como a erupção de um vulcão, cuja força aprisionada acabou por despedaçar as lavas petrificadas, que impediam de projetar gases, lavas e cinzas incandescentes. Tais são as revoluções.59
Para os anarquistas, a harmonia e o bem-estar social só podem ser atingidos mediante um estado de completa liberdade, onde os indivíduos gozem assim de meios para satisfazer suas necessidades e desejos, pois, como mencionado acima , o bem-estar geral depende do bem-estar individual. Apenas o individuo que fosse capaz de fazer uso de suas liberdades poderia atingir o mais alto grau de desenvolvimento físico, intelectual e moral. Desta forma, a liberdade individual plena e absoluta, apresenta-se como uma condição sem a qual não há nenhuma possibilidade de alcançar uma sociedade aprazível para todos, de onde deriva a repulsa por todas as formas de autoridades e instituições coercitivas. Autoritarismo, coerção e todas os meios artificiais de impor regras e normas atuam como entraves “à livre iniciativa, à livre ação e a livre associação”.60 Consoante ao que vem sendo dito, para G. Woodcock “o culto anarquista a tudo que fosse natural, espontâneo e individual coloca-o em oposição à estrutura altamente organizacional da moderna sociedade industrial e estadista”.61 Muito embora o anarquismo fosse apontado como um sistema teórico “negativista”, sua plataforma de sustentação fixava-se sobre idéias construtivistas, cujo escopo – o bemestar comum – resultaria do equilíbrio e da harmonia social baseada na cooperação e na participação direta dos indivíduos na gestão pública e não na competição característica das sociedades capitalistas. De acordo com Kropotkin, “a afirmação – a concepção de uma
58
Ibidem, p. 29. Ibidem, p. 30. 60 Ibidem, p. 34. 61 WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 28. 59
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sociedade livre, sem autoridade, avançando para a conquista do bem-estar material, intelectual e moral – seguia de perto sua negação; ela era a sua contrapartida”.62 “Bem-estar para todos como fim, a expropriação como meio”.63 Esta máxima sintetiza o pensamento de Piotr Kropotkin. Para o autor, a humanidade havia conquistado riquezas incomensuráveis, fruto do trabalho acumulado ao longo de gerações e ampliadas pelos trabalhadores do presente. Para Piotr Kropotkin, “não há nada, desde o pensamento até à invenção que não resulte de factos colectivos oriundos do passado e do presente”.64 Assim sendo, não haveria explicação sustentável capaz de justificar a propriedade privada dos meios de produção, dado que toda riqueza atual é de alguma forma tributária do trabalho intelectual e braçal desenvolvido pelas sociedades pretéritas, continuado e ampliado pelos homens e mulheres do presente. Ciência e indústria, saber e aplicação, descoberta e realização prática originando novas descobertas, trabalho cerebral e trabalho manual – força da inteligência e força dos músculos – tudo se relaciona. Cada descoberta, cada progresso e cada acréscimo da riqueza da humanidade tem sua origem no conjunto do trabalho manual e cerebral do passado e do presente. Nestas condições, com que direito poderá alguém apropriar-se da mais insignificante parcela deste todo imenso e dizer: Isto é meu, não vos pertence?65
Na perspectiva de Piotr Kropotkin, o comunismo apresentava-se como uma alternativa ao capitalismo e à propriedade privada. De cada um segundo suas forças, a cada um segundo suas necessidades: Kropotkin acreditava que a remuneração deveria ser condizente com as necessidades do individuo e não proporcional a sua quantidade de trabalho, como defendiam socialistas e coletivistas. Em O Salariato Colectivista, artigo publicado em A Conquista do Pão, Kropotkin afirma que “Não pode estabelecer-se nenhuma distinção entre o trabalho de cada um. Medi-lo pelo resultado conduz ao absurdo. Fraccioná-los e medi-los pelas horas de trabalho leva-nos igualmente ao absurdo. Só resta uma coisa: colocar as necessidades acima do trabalho e reconhecer o direito à vida em primeiro lugar, e em seguida ao bemestar para todos os que participarem da produção.”66
62
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. Hedra: São Paulo, 2007. p. 33. 63 KROPOTKINE, Pedro. A conquista do pão. Lisboa: Guimarães ed., 1975. p. 37. 64 Ibidem, p. 24. 65 Ibidem, p. 26. 66 Ibidem, p. 212.
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O bem-estar, definido por Kropotkin como o conjunto de comodidades, confortos e tempo para se dedicar às artes e ciências, ou ainda, como “a satisfação das necessidades físicas, artísticas e morais”67, é apontado como “a possibilidade de viver como ser humano e de educar seus filhos para fazer deles membros iguais duma sociedade superior à nossa”68. As criticas tecidas ao Estado, ao capitalismo, à moral burguesa e todas as formas de autoridades vão ao encontro do bem-estar coletivo necessário para a construção de uma “sociedade superior”, distante
das sociedades modernas do século XIX, com suas contradições e
incertezas ameaçadoras. Em O principio anarquista, Kropotkin define anarquia como uma filosofia baseada na negação de todas as formas de autoridade, cujo objetivo consiste em transformar as relações sociais, “desde aquelas que se estabelecem entre homens encerrados na mesma habitação, até aquelas que pensam estabelecer-se em grupamentos internacionais”. 69 Com isso, a negação da moral cristã, do Estado e do capital, segue de perto a afirmação da liberdade, dos agrupamentos livres e da solidariedade, princípios que norteiam o anarquismo de Kropotkin. Nesse ínterim, as idéias do príncipe russo, pretendiam oferecer respostas para as questões do seu tempo. O equilíbrio e a harmonia do “corpo” social dependiam do bem-estar das partes integradas ao todo, para enfim, chegar a um estado de bem-estar geral. Concebendo a sociedade como um organismo, as idéias de Kropotkin partiam do mundo das ciências naturais e eram revestidas do cientificismo que caracterizava as derradeiras décadas do século XIX. A anarquia, vista pelo autor como uma “filosofia”, uma “visão de conjunto”70, era também uma manifestação das transformações cientificas e deveria ser posta sob a luz da ciência. Sua maneira de interpretar a sociedade como um organismo, cujo bem-estar do corpo social depende do equilíbrio das relações entre órgãos autônomos e dependentes entre si, o que vale a dizer liberdade individual e responsabilidade coletiva em âmbito social71, assim como a necessidade de expor as teorias libertárias ao julgamento cientifico e as idéias anarcocomunistas no plano político e econômico, exerceram marcante influência sobre as idéias de
67
Ibidem, p. 181. Ibidem, p. 44. 69 COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra, 2007. p. 35. 70 Ibidem, p. 34. 71 Woodcock aponta como o “problema libertário central”, a “conciliação da solidariedade humana com a liberdade pessoal”. WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 8. 68
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um libertário italiano que encontraria no Brasil meridional o lócus para cultivar seus sonhos e ideais. Acadêmico oriundo das ciências naturais, o agrônomo e médico veterinário Giovanni Rossi, muito influenciado pela idéias de Kropotkin, fundaria uma colônia experimental no sul do Brasil em 1890, proposta como um laboratório social onde pudessem ser testados empiricamente os pressupostos teóricos do anarquismo, a igualdade nas relações de gênero expressa pelo amor livre e, especialmente, a dissolução dos valores da família nuclear burguesa.
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2. COLÔNIA CECÍLIA: UM LABORATÓRIO SOCIAL NOS SERTÕES DO BRASIL MERIDIONAL 2.1 O IMPERADOR E O ANARQUISTA: O MITO FUNDADOR DA COLÔNIA CECÍLIA Século XIX, década de 1870. Europa e Estados Unidos são palco de um dos mais marcantes fenômenos da era moderna, responsável por transformar drasticamente a vida daqueles que testemunharam as últimas décadas do século XIX e o alvorecer do XX. Batizado pela historiografia de Segunda Revolução Industrial, este momento de efervescência nas descobertas científicas e de acelerado desenvolvimento tecnológico, se estenderia aproximadamente até a eclosão da Primeira Grande Guerra, fazendo-se sentir até os dias de hoje. Inovações tecnológicas como a eletricidade e os combustíveis fósseis impulsionariam a produção industrial nos mais diversos campos, da metalurgia à farmacologia e no curso de seus desdobramentos surgirão, apenas para se ter uma idéia, os veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação elétrica e a ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão [...], a anestesia, a penicilina, o estetoscópio, o medidor de pressão arterial, os processos de pasteurização e esterilização [...].72
As vicissitudes provocadas pelo galopante desenvolvimento técnico-científico poderiam ser percebidas não apenas no transcorrer acelerado do tempo – efeito decorrente dos novos meios de transporte e comunicação – mas também na paisagem que circundava e envolvia os homens e mulheres da belle époque73. Cidades repletas de prédios e fábricas, trespassadas por avenidas e ferrovias através das quais circulavam multidões de transeuntes iluminadas por lâmpadas elétricas que afirmavam a civilização e exclamavam o progresso, anunciavam “um mundo em que as noções de tempo e espaço começavam a ser abaladas”.74 Todas essas transformações se converteriam em novos referenciais a partir dos quais seriam estimuladas novas sensibilidades e a construção de novas representações do homem e do mundo moderno, civilizado e industrializado respectivamente. “Sonhou-se muito na passagem do século XIX para o XX.”75 Os progressos da ciência e da tecnologia encerravam um período de incertezas para expandir desmesuradamente os 72
NOVAIS, Fernando A., SEVCENCO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. Vl. 3. República: da belle époque à era do rádio. Cia. das Letras: São Paulo, 1999. p. 9. 73 COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. No tempo das certezas 1870 – 1914. Cia. das Letras, 2000. p. 15. 74 Ibidem, p. 17. 75 Ibidem, p. 11.
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horizontes, inaugurando uma fase de grande esperança e otimismo no futuro da humanidade, cujo progresso teria como carro-chefe o desenvolvimento científico, agora imbuído de um verdadeiro potencial libertador, traço marcante deste fim de século conhecido como a “era da sciencia”76. Distante do epicentro destes acontecimentos, ao sul do equador, uma nação não mediria esforços para entrar de uma vez por todas nessa ciranda de braços dados com o progresso, inserindo-se no seleto hall dos paises modernos. Ainda sob o estigma de ser o último país do mundo a por fim ao trabalho escravo, aos trancos e barrancos a nascente república brasileira empreenderia uma série de reformas nos campos político, econômico e social a fim de iniciar sua escalada rumo a modernidade, deixando para trás a decrépita monarquia imperial e tudo o que representasse o atraso face às industriosas nações capitalistas. Proclamada com pretensões modernizadoras que rechaçavam um passado escravista, agrícola e monárquico, a república brasileira, nascida sob as insígnias do progresso, tomaria todas as medidas necessárias para adentrar a ordem capitalista internacional. Nesse ínterim, de acordo com Nicolau Sevcenko, entre as principais medidas implementadas pela nascente república estavam a abertura da economia ao capital estrangeiro, sobretudo americano e inglês, e a “criação de um moderno mercado de ações centrado na bolsa de valores do Rio de Janeiro”,77 que por seu turno, resultaria num fluxo corrente de investimentos e empréstimos internacionais. Com a abolição da escravidão e acompanhando o crescimento da produção industrial, constituiu-se neste momento um mercado de trabalho livre composto de ex-escravos e principalmente por imigrantes europeus que vinham emprestar seus genes ao projeto de branqueamento da população arquitetado pelo Estado brasileiro. Estes imigrantes engrossavam as fileiras de venda de mão-de-obra nas lavouras cafeeiras e nas incipientes indústrias nacionais, provocando um vertiginoso crescimento demográfico nas principais cidades do país. Enquanto contingentes de trabalhadores estrangeiros aglomeravam-se em cidades que alargavam suas fronteiras espontaneamente, acumulando vielas escuras e cortiços sem as menores condições de higiene, denunciados por médicos sanitaristas como focos epidêmicos e a origem dos temidos miasmas, outros buscavam nas colônias de imigrantes do interior do
76 77
Ibidem, p. 15. NOVAIS, Fernando A., SEVCENCO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. Vl. 3. República: da belle époque à era do rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 15.
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país, o paraíso bucólico de fauna e flora exuberantes e de incontáveis riquezas imaginadas nas longínquas terras do Velho Mundo. Assim também o foi com os anárquicos imigrantes italianos que, nos sertões do Brasil meridional, semearam o solo, cultivaram sonhos e colheram experiências na curiosa Colônia Cecília. Pensada para ser um laboratório social aonde pudessem ser testados empiricamente os pressupostos teóricos do anarquismo, essencialmente o amor livre e a dissolução da família, a Colônia Cecília foi fundada em 1890 no interior do Estado do Paraná. Nas cercanias do município de Palmeira, mais precisamente nas terras de Santa Bárbara, Giovanni Rossi, seu idealizador, concretizava as idéias que nutrira desde a juventude: fundar colônias anarquistas experimentais. Sobrinho de Lauro Rossi, mestre de Carlos Gomes no conservatório de Milão, o também músico Giovanni Rossi tornou-se amigo íntimo do prestigiado maestro brasileiro, por quem foi alertado sobre a passagem do imperador D. Pedro II pela Itália em 1888. Tomando conhecimento de que o imperador do Brasil, que viajava pela Europa por recomendações médicas, estava de passagem por Milão, Giovanni Rossi não vacilou em procurar o monarca de idéias arrojadas, amante das ciências e das artes. Ainda que monarquista, Pedro II era homem de idéias progressistas e haveria de se interessar pelos projetos que almejava desenvolver nos confins do Brasil. Imediatamente, pôs-se a bater pernas até o hotel onde estava hospedado o imperador dos trópicos. A ansiedade do encontro transformaria-se em desalento quando, já no “Hotel Milan”78, presenciaria D. Pedro II ser transportado de maca “para Aix-les-Bains, onde se submeteria a rigoroso tratamento”.79 Gentilmente, Rossi entrega ao conde de Mota Maia, médico que integrava o séquito do imperador, uma carta de condolências ao monarca brasileiro. Tempos mais tarde, D. Pedro II deparou-se com um opúsculo de autoria de Giovanni Rossi intitulado Il Commune in Riva al Mare80. Após tomar parte das idéias de Rossi, o imperador decide escrever ao libertário italiano oferecendo as terras devolutas do Brasil Meridional para a instalação da colônia de imigrantes libertários. Trezentos alqueires dos campos gerais do Paraná seriam reservados para a fundação da colônia experimental idealizada por Giovanni Rossi. Com o aval de Pedro II, sem mais demoras, Rossi deu inicio à arregimentação de pessoas dispostas a levar adiante as idéias libertárias em terras desconhecidas e enfrentar as 78
SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Ibidem, p. 20. 80 Título pelo qual a peça literária de Giovanni Rossi originalmente intitulada Il Comune Socialiste ficaria conhecida no Brasil. 79
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precárias instalações dos transatlânticos que faziam o transporte de imigrantes para a América. No dia 20 de fevereiro de 1890, o primeiro grupo de libertários embarca no Città di Roma, navio mercante adaptado para o transporte de imigrantes, rumo às distantes terras do planalto sul brasileiro. Ali, entre as palmeiras e o laranjal, hasteada no alto de uma imponente palmeira, tremularia ao vento a bandeira rubro-negra do anarco-comunismo. Espécie de mito fundador, esta versão romanceada do nascimento da Colônia Cecília teve origem na obra literária de Afonso Schmidt, Colônia Cecília: romance de uma experiência anarquista81. Romance histórico desenvolvido em torno do caso de amor livre vivido por três integrantes da colônia, a prosa ficcional de Afonso Schmidt foi responsável por cristalizar no imaginário que envolve a Colônia, uma versão idílica da sua fundação. Segundo o próprio Schmidt, através de notas publicadas em anexo ao romance, a substância da obra estava nas informações publicadas em São Paulo pelo jornalista Alexandre Cerchiai nos Quaderni de la Libertá em 1932, que traziam ainda excertos dos polêmicos relatos de Rossi: Un episodio d’amore libero nella Colonia Cecilia82. Alexandre Cerchiai, destacado jornalista da imprensa libertária e colaborador do jornal O Estado de São Paulo, teria viajado para Santa Bárbara e Palmeira em 1932, aonde teria colhido informações sobre a suposta participação de D. Pedro II na fundação do núcleo anarquista no interior do estado do Paraná. Nas décadas que seguiram a publicação do romance de Afonso Schmidt, editado pela primeira vez em 1942, literatura e historiografia se imbricariam reproduzindo a versão proposta por Schmidt, como pode ser percebido em O anarquismo da Colônia Cecília83, de Newton Stadler de Sousa, de 1970, e em Colônia Cecília84, paradidático da coleção Cinco Séculos de Resistência publicada pela editora FTD em 1993 e de autoria de Agnaldo Kupper. A mesma versão é sustentada por Edgar Rodrigues em Os anarquistas: trabalhadores italianos no Brasil85, inspirado em Stadler de Sousa e publicado em 1984, assim como pela historiadora livre docente pela UFPR Beatriz Pellizzetti Lolla, autora de Reflexões sobre uma utopia do século XIX86, lançado no ano de 1999.
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SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecília. Romance de uma experiência anarquista. São Paulo: Brasiliense, 1980. ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. Também publicado recentemente pela editora Achiamé do Rio de Janeiro. 83 SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1970. 84 KUPPER, Agnaldo. Colônia Cecília. São Paulo: FTD, 1993. 85 RODRIGUES, Edgar. Os anarquistas: trabalhadores italianos no Brasil. São Paulo: Global, 1984. 86 LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 1999. 82
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Entre a bibliografia que aborda a história da Colônia Cecília, atribuindo a participação de D. Pedro II e Carlos Gomes em sua fundação, a mais instigante, pelas próprias características da obra, é Anarquistas, graças a Deus87, da escritora Zélia Gattai. Muito prestigiada na literatura contemporânea brasileira, Zélia Gattai conquistou reconhecimento pela prosa agradável e memorialista, como em Anarquistas, graças a Deus, de 1979, “escrito sem a pretensão de fazer literatura”,88 segundo as palavras de Jorge Amado na apresentação do livro de Zélia. No referido livro, Zélia Gattai narra acontecimentos cotidianos de sua infância e adolescência, desenrolados na cidade de São Paulo durante as primeiras décadas do século XX. Entre curiosidades e momentos revividos, a autora relata a passagem de seus avós pela Colônia Cecília, acontecimento narrado à pequena Zélia por seu Ernesto Gattai, pai da futura escritora. Assim, em meio a fortunas e desventuras, “num carroção de quatro rodas, com suas trouxas de roupas e alguns pertences, passou a família Gattai por Santa Bárbara: marido, mulher e quatro filhos”.89 O impressionante nessa história é que entre as memórias de Zélia, a duvidosa versão acerca do nascimento da Colônia Cecília é, através das palavras da autora, confirmada por Ernesto Gattai. Dirigindo-se aos filhos, Ernesto teria dito: – Vocês estão vendo? Sabiam que eram tão importantes? Pois, para que vocês estivessem aqui hoje, foi preciso a intervenção do filósofo Giovanni Rossi, do Maestro Carlos Gomes e de D. Pedro II, Imperador do Brasil. Que tal? – riu do nosso espanto.90
História, literatura, memória ou um pouco de cada? Poderíamos supor que a memória da jovem Zélia após tantos anos teria sofrido interferências das narrativas que versaram sobre a Colônia Cecília. É pouco provável, entretanto, que estes elementos tenham sido introduzidos involuntariamente, dado as minúcias dos relatos que remetem às publicações anteriores, o que faria do livro de Zélia uma obra com características ficcionais e não memorialista. Contudo, em todas estas publicações a participação de D. Pedro II na fundação da colônia experimental anarquista através da concessão de terras, figura como a pedra fundamental do projeto de Rossi. Se nas memórias de Zélia Gattai como nos livros de Agnaldo Kupper e de Edgar Rodrigues a versão aparece como inconteste, nas linhas de O
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GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 2000. Ibidem, p. 8. 89 Ibidem, p. 260. 90 Ibidem, p. 262. 88
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anarquismo da Colônia Cecília e de Reflexões sobre uma utopia do século XIX ela merece um sobreaviso. Embora defenda que “não foi uma simples imaginação de Afonso Schmidt”,91 pois teria fundamentado-se nos relatos de Alexandre Cerchiai, Beatriz Pellizzetti Lolla afirma que a origem do relato “permanece uma incógnita”92. De forma sucinta, Newton Stadler de Sousa chama a atenção para a ausência de documentos que possam referenciar a sugerida relação entre o imperador e o anarquista. De acordo com o autor As hipóteses para justificar a decisão de D. Pedro II em trazer imigrantes anarquistas para o Brasil são precárias, à falta de documento de afirmação histórica. Quaisquer delas seriam válidas até o momento em que contestadas, historicamente.93
Buscando explicações para a intervenção direta do imperador brasileiro na fundação da colônia libertária, Newton Stadler de Sousa argumenta que D. Pedro II estaria insatisfeito com a política imigratória nacional, dado o fracasso das experiências de colonizadores russos e alemães nos campos do Paraná. Assentados em terras improdutivas, estes colonos exigiram repatriação. Atestando a as péssimas condições do solo, o Estado brasileiro responsabilizou-se pela alimentação das famílias dos colonizadores e posteriormente, com o transporte destes para o estado de Nevada nos Estados Unidos, fatores que representaram volumosos custos para o Estado brasileiro além de comprometer a credibilidade da política imperial de imigração. Para restaurar a imagem da política imigratória nacional, o governo brasileiro objetivava demonstrar a eficácia dos serviços de imigração trazendo para o Brasil imigrantes italianos anarquistas. A vinda destes imigrantes teria um efeito positivo junto a diplomacia dos dois países e, se porventura o empreendimento submergisse novamente, as responsabilidades poderiam ser imputadas “ao inconformismo instintivo dos anarquistas por governos organizados”.94 Ora, no período em que a monarquia brasileira começava a ruir e com uma economia predominantemente rural e latifundiária, promover o desenvolvimento de núcleos colonizadores anarquistas alicerçados sobre a propriedade coletiva dos meios de produção, com discursos hostis ao Estado e à família, beirava a insanidade ou ao desespero suicida de 91
LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 1999. p. 43. 92 Ibidem, p. 44. 93 SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 10. 94 Ibidem, p. 11.
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um regime que agonizava após o desprendimento da principal engrenagem de sua economia, o trabalho escravo. As hipóteses levantadas por Newton Stadler de Sousa são contestadas nas páginas de O anarquismo experimental de Giovanni Rossi.95 Publicada pela Universidade Estadual de Ponta Grossa no ano de 1998, dez anos após o médico e historiador diletante Candido de Mello Neto ter iniciado as pesquisas que o levariam a Itália, França, Inglaterra, Holanda, Estados Unidos e aos principais arquivos históricos brasileiros no encalço de documentos que contribuíssem para a reconstrução da história da Colônia Cecília e da biografia de Rossi, a obra de Mello Neto é o resultado da mais extensa pesquisa sobre a vida e obra deste libertário, assim como da colônia por ele fundada em terras brasileiras no apagar do século XIX. Candido de Mello Neto apresenta outra versão que contrapõe a origem da colônia, lembrando que Rossi, incorrigível detalhista, não faz qualquer alusão a isso em livros, em cartas a familiares e amigos ou em relatórios ao seu biógrafo de Zurique. Também A. Capellaro, o “cronista” da Colônia Cecília, responsável por numerosas referências em jornais e revistas da Europa e da América do Norte, sequer se refere ao nome de D. Pedro II. E os poucos autores paranaenses, contemporâneos da experiência libertária, quando escreveram sobre a Colônia, tampouco registraram qualquer interferência do Imperador.96
Nomes como o de Carlos Gomes e Lauro Rossi também vão progressivamente sendo apagados das páginas da história da Colônia Cecília. A partir das pesquisas da italiana Rosellina Gosi, “apoiada em depoimento de Ebe Rossi, filha de Giovanni” 97, Candido de Mello Neto da continuidade ao desmonte dos elementos ficcionais que revestiram este episódio da história da Colônia Cecília. Segundo Ebe Rossi, o parentesco de seu pai com Lauro Rossi, o professor do conservatório de Milão, não existiu. Tratava-se apenas de um homônimo. Nem mesmo a paixão do pai pela música, tão presente no livros de Schmidt, Stadler, Kupper e mesmo de Zélia Gattai é confirmada por Ebe Rossi. Gradativamente, história e literatura assumem cores diferentes. Médico e historiador, Candido de Mello Neto atenta para os sintomas e indícios que desconstroem a versão saborosa, mas ficcional desta história. Passo a passo, com a precisão de um cirurgião, o médico profissional e o historiador autodidata expõem seus argumentos:
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NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. 96 Ibidem, p. 103. 97 Ibidem, p. 104.
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em 1888, Rossi encontrava-se ocupado com a experiência de Cittadella e portanto, não poderia estar com Pedro II em Milão; o projeto de fomentar colônias agrícolas no norte da Itália encabeçado por Giovanni Rossi, tinha como objetivo “evitar a saída do país de ‘milhares de robustos emigrantes”98; Rossi pensava em ir para as colônias Kaweah e Sinaloa, situadas respectivamente na Califórnia e no México; as terras para a fundação da colônia não foram doadas mas compradas com a ajuda da Cooperativa Cittadella. 99 Candido de Mello Neto alega ainda que o local que abrigou a Colônia Cecília não foi predeterminado. Em Curitiba, a Inspetoria de Terras e Colonização, procurada pelos pioneiros, deu-lhes a conhecer os vários locais destinados à colonização. Como manifestaram o desejo de proximidade a um rio navegável, lhes foi sugerido o território São Mateus, onde corre o rio Iguaçu.100
As palavras de Mello Neto encontram ressonância nos próprios relatos de Giovanni Rossi. Em O nascimento da Colônia Cecília101, datado de 1891, Rossi afirma que o destino final do grupo era o Uruguai e não o Brasil. Em função das constantes perturbações provocadas pelo “mal de mar”, o pequeno grupo de imigrantes decidiu desembarcar no porto de Paranaguá e tentar a sorte em solo paranaense.
Nós devíamos ir a Porto Alegre, mas dois dos nossos companheiros sofriam de tal maneira do mal de mar que decidimos poupar-lhes os outros cinco ou seis dias de navegação e descer aqui, para fundar a nossa colônia socialista em alguma parte do Paraná, que sabíamos com clima ameno e saudável.102
Desta forma, uma vez desatados os nós que entrelaçavam história e literatura, a decisão sobre local aonde seria estabelecida a colônia parece ter pertencido mais ao acaso do que a benevolência do último monarca brasileiro. “As circunstâncias, mais do que suas próprias vontades, conduziram-nos ao município de Palmeira, no Estado do Paraná ( Brasil )”103, relatava Giovanni Rossi. Contudo, não obstante enxertos ficcionais, as explicações para a fundação da Colônia Cecília devem ser recuadas para as décadas que precederam a partida do Città di Roma do porto de Genova em fevereiro de 1890. É no imaginário de seu idealizador, o engenheiro 98
Ibidem, p. 105. Ibidem, p. 106. 100 Ibidem, p. 106. 101 ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. 102 Ibidem, p. 28-29. 103 ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 64. 99
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agrônomo e médico veterinário Giovanni Rossi, que encontra-se a razão de ser deste “experimento” libertário ocorrido no sul do Brasil oitocentista.
2.2 ANARQUISMO E CIÊNCIA NAS SOLIDÕES AMERICANAS Nascido em Pisa no ano de 1856, aos 17 anos Giovanni Rossi passaria a integrar a Associação Internacional dos Trabalhadores, desde já insistindo “na proposta detalhada para a fundação de uma colônia socialista na Polinésia”.104 Muito ligado às ciências naturais, aos 20 anos Rossi termina a graduação em medicina veterinária, chegando a pós-graduar-se em Perugia. Seus trabalhos científicos nas áreas de agronomia e veterinária seriam reconhecidos, especialmente no Brasil, sobretudo quando esteve à frente da Escola Superior de Agronomia de Taquari, no Rio Grande do Sul, e em Santa Catarina, dirigindo a Estação Agronômica de Rio dos Cedros.105 Além dos inumeráveis artigos científicos, Giovanni Rossi empenhou sua caligrafia redigindo opúsculos e artigos dedicados à propaganda e defesa do anarquismo experimental. Os esforços de Cárdias, pseudônimo com o qual assinava muitos de seus escritos, para fazer valer as idéias do anarquismo experimental, assim como para persuadir correligionários para a fundação de colônias-laboratório, permeiam suas publicações, desde a primeira edição de Un Comune Socialiste106 em 1878 – utopia passada em uma cidade imaginária do litoral tirreno, denominada Poggio al Mare – até a publicação de Lo Sperimentale107, periódico que circulou entre 1886 e 1887 exclusivamente com o intuito de divulgar a necessidade de experimentar e analisar empiricamente as teorias anarquistas. Ávido por observar na prática o funcionamento das teorias libertárias, “ainda no ano de 1883, o nome de Rossi aparece ligado a uma sociedade agrícola, organizada nos moldes de uma cooperativa”,108 no município de Gavardo, província de Bréscia, Itália. A presença de Rossi em Gavardo teria impulsionado o movimento socialista, não apenas na cidade mas com ampla repercussão em todo território bresciano [...] Sua atividade política, desenvolvida junto aos colonos, e a propaganda presente em seus escritos, muitos dos quais publicados na imprensa, continuam preocupando as autoridades, que o mantém em rígida vigilância. Em carta dirigida a Costa, queixava-se: ‘Sou investigado e espionado, me qualificam como sujeito perigosíssimo, indagam aonde fui e aonde vou, o que escrevi e o que escrevo. Não 104
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 23-24. 105 Ibidem, p. 245. 106 Ibidem, p. 23. 107 Ibidem, p. 74. 108 Ibidem, p. 71.
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me surpreenderia se, de um momento para outro, me prendessem pelo habitual crime de conspiração.109
Entretanto, apesar da vigilância das autoridades, Rossi daria continuidade aos seus projetos. Contanto com o apoio de Giuseppe Mori, homem de esquerda que compunha o Parlamento Nacional da Itália, “em 11 de novembro de 1887 nasce a Associação Agrícola Cooperativa de Cittadella, no Stagno Lombardo, Província de Cremona. Após aprovação de estatutos, uma eleição coloca Giovanni Rossi como secretário”.110 A recusa dos colonos em relação ao estatuto sedimentado sobre princípios libertários, desestimularam Rossi, vindo a fundar no interior da própria Cittadella no ano de 1888, a Unione Lavoratrice per la colonizzazione sociale in Itália.111 Esta associação com sede provisória em Cittadella, almejava fundar em Parma uma colônia experimental, “organizando-se socialmente a propriedade, o trabalho e a convivência”.112 Obstinado, as tentativas frustradas de medrar colônias experimentais libertárias em Bréscia e Cremona não desacreditaram Cárdias, que insistiria ainda mais uma vez em praticar o anarquismo na Itália antes de partir para o Brasil. Foi junto aos camponeses do povoado de Torricella, Província de Parma, que Rossi faria sua última tentativa. O projeto da Colônia Agrícola foi apresentado em março de 1889 e, embora recebendo o apoio de apreciável número de acionistas, não conseguiu totalizar a importância necessária. A Unione Lavoratrice recebeu, no entanto, quando da sua constituição, o apoio de grande número de camponeses de Torricella, cuja maioria, pouco tempo mais tarde, iria participar da experiência brasileira da Colônia Cecília.113
Segundo Candido de Mello Neto, Giovanni Rossi Defendeu, a partir da adolescência, e desde que abraçou o socialismo, a tese de que não bastava apresentar as idéias libertárias como teoricamente as melhores para a construção de uma sociedade justa; era necessário exibir a comprovação, mostrar sua viabilidade. A comprovação poderia ser demonstrada pelos resultados obtidos nas colônias experimentais.114
Envolvido pela atmosfera intelectual do século XIX, “que elegeu a ciência – uma ciência positiva e determinista – como seu mito de origem, seu porto seguro”,115 Giovanni 109
Ibidem, p. 71. Ibidem, p. 78. 111 Ibidem, p. 84. 112 Ibidem, p. 85. 113 Ibidem, p. 86. 114 Ibidem, p. 67. 115 COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. No tempo das certezas 1870 – 1914. Rio de 110
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Rossi acreditava que as idéias anarquistas deveriam não apenas ser iluminadas pelo saber cientifico, como experimentadas empiricamente com base nos métodos das ciências naturais. Como um cientista que reproduz em laboratório fenômenos naturais para serem observados e analisados para por fim, a partir dos dados coletados, determinar as regras gerais que regem o fenômeno, Rossi pensava poder “conhecer as leis que regem os fenômenos da vida social”.116 Identificando seus aspectos positivos e negativos, as teorias anarquistas poderiam ser revistas, ganhando assim consistência e legitimidade científica para persuadir os segmentos do proletariado que acreditavam na “incapacidade do homem ao trabalho quando este não é estimulado por um interesse exclusivamente pessoal”.117 De acordo com Rossi, Advém disso a necessidade, ou pelo menos a conveniência, para nós, de estudar experimentalmente nesse sentido as capacidades humanas, para poder aplicar em seguida o conhecimento exato delas na determinação das prováveis transformações sociais no campo da atividade econômica.118
Em O Paraná no século XX119, mais uma obra utópica em que Rossi expõem suas idéias através dos recursos da narrativa ficcional, a exemplo de Un Comune Socialiste, é possível identificar suas influências teóricas e a forma como ciências naturais e sociais se aproximam no pensamento social de Giovanni Rossi. Nesta narrativa literária em que Rossi esboça como seria a sociedade por ele idealizada, seu amigo pessoal, Dr. Grillo, incorpora o personagem que retorna do mundo dos mortos para lhe revelar o futuro e detalhes do processo revolucionário que subverteu a ordem estabelecida no Estado do Paraná durante o século XX. Ao longo do diálogo entre os dois personagens, Grillo revela a Rossi que durante o movimento revolucionário Paralelamente à propaganda popular, a propaganda científica ficou mais intensa. Foram divulgadas as obras de Darwin, Wallace, Spencer e Letourneare sobre a evolução natural e social. Foi explicada a doutrina de Marx sobre a gênese do capital. As teorias anarquistas, de Diderot a Fourier e a Proudhon, Bakunin, Réclus, Kropotkin e Grave acabaram por fim estudadas. Foram atentamente acompanhadas as descobertas da antropologia e da psicologia. De todas as ciências sociais nasceu a
Janeiro: Cia. das Letras, 2000. p. 48. ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 81. 117 Ibidem, p. 80. 118 Ibidem, p. 80. 119 ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. 116
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convicção da necessidade e da iminência de uma grande transformação das estruturas econômicas e burguesas.120
No futuro idealizado por Rossi, as idéias de naturalistas e pensadores sociais integram os conteúdos dos programas revolucionários, destacando-se ao lado da propaganda popular a veiculação de obras científicas de autoria dos principais expoentes do Evolucionismo do século XIX. Entre as obras que “foram divulgadas”, observa-se que o nome de Errico Malatesta121 não integra o conjunto de pensadores que podemos admitir como influências decisivas para compreender o pensamento de Cárdias, dado que figuram como elementos substanciais na propaganda revolucionária da sociedade utópica retratada por Rossi em O Paraná no século XX. Para Beatriz Pellizzetti Lola, autora de Reflexões sobre uma utopia do século XIX, obra que analisa a composição literária de Rossi, o anarco-comunista Errico Malatesta, contemporâneo e conterrâneo de Giovanni Rossi, é a sua principal influência, negando os ecos do pensamento social de Piotr Kropotkin nas idéias do arquiteto da colônia experimental paranaense. Segundo Beatriz Pellizzetti Lola, Malatesta não concebe, como Kropotkine, anarquismo dentro de uma filosofia científica fundamentada na interpretação mecânica dos fenômenos da natureza e nem ligado a uma filosofia específica [...]. Rossi se alinhava ao pensamento de Malatesta.122
Destacado militante libertário na virada do século XIX para o XX, o italiano Errico Malatesta muito provavelmente exerceu forte influência sobre Giovanni Rossi. Entretanto, podemos presumir que as idéias de Kropotkin lhe parecessem ainda mais atraentes. A omissão do nome de Errico Malatesta do conjunto dos pensadores que integram a utopia de Cárdias não pode ser atribuída ao vacilo de uma pena desatenta. Idealizar uma sociedade sem mencionar entre tantos nomes reverenciados, justamente aquele que teria sido sua maior influência, equivale a um berbere imaginar um oásis sem seu principal manancial.
120
Ibidem, p. 145. Errico Malatesta ( 1853 – 1932 ). Anarquista italiano defensor do anarco-comunismo. Exerceu grande influência no movimento anarquista, contribuindo também para a formação dos primeiros movimentos sociais organizados na Argentina onde esteve exilado em 1885. 122 LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 1999. p. 13. 121
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No capítulo anterior vimos como Kropotkin visava promover o bem-estar geral estabelecendo o equilíbrio e a harmonia social através dos princípios libertários baseados em uma concepção orgânica da sociedade. Entendida como um organismo que depende do equilíbrio entre as partes e o todo, a sociedade encontraria a harmonia quando fossem estabelecidas relações simétricas entre indivíduos autônomos e sociedade, ou seja, conciliando liberdade individual e responsabilidade coletiva. Kropotkin, principal referência do anarquismo no final do século XIX e início do XX, insistia para que os princípios anarquistas fossem aplicados à ciência, “para impor a marca anarquista ao pensamento do século”.123 Assim como Piotr Kropotkin, Giovanni Rossi utilizava os fenômenos naturais como base de indução para compreender a sociedade do seu tempo, vista como “um organismo por excelência”,124 assim como defendia a fundação de colônias experimentais onde os princípios anarquistas pudessem ser testados cientificamente, diferentemente do que propõem Beatriz Pellizzetti Lola. Contemporâneos, Giovanni Rossi e Piotr Kropotkin estavam estreitamente relacionados, não apenas por pertencerem a corrente anarco-comunista, à qual Malatesta também estava associado, mas por compartilharem de uma mesma visão social inspirada na metáfora do organismo, fruto quiçá, da lente de dois profissionais ligados intimamente às ciências naturais, um veterinário e agrônomo, o outro geógrafo, mas também por acreditarem que as teorias libertárias deveriam ser expostas ao arbítrio da ciência, perspectiva levada ao extremo por Rossi nas suas tentativas de transformar núcleos coloniais em laboratórios sociais, tal como foi a Colônia Cecília. Estes foram os princípios que nortearam a sua idealização e fundação em terras brasileiras. Em Comunidade anarquista experimental125, datado de 1893, Cárdias dedica-se extensamente a desfazer os mal-entendidos que obscureciam as razões de ser da Colônia Cecília e que muitas vezes motivavam elementos alheios à colônia, muitos dos quais pertencentes ao movimento anarquista, como Malatesta, a fazer críticas contundentes aos libertários do núcleo experimental, reputados de “desertores”.126 Rossi era acusado de
123
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra, 2007. p. 37. 124 ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 152. 125 ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. 126 Ibidem, p. 63.
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abandonar as lutas revolucionárias pata tentar edificar uma micro-sociedade utópica, onde apenas alguns poucos desfrutariam de uma vida livre e igualitária. Rossi não almejava fundar comunidades oníricas onde todos pudessem desfrutar os deleites de uma sociedade que reunisse todos os predicados das utopias de Morus e Campanella, nem mesmo fornecer a fórmula para as sociedades vindouras como pensava Fourier. Segundo Giovanni Rossi, alguns julgavam que tivéssemos vindo aqui fabricar o modelo, o espécime da sociedade futura, para depois apresentá-lo, com ou sem patente, à humanidade, de maneira que, logo após a revolução social, esta não tivesse outro incômodo a não ser de encomendar sua fabricação por atacado.127
Giovanni Rossi desmentia aqueles que os acusavam de tentar reproduzir em escala reduzida a sociedade libertária idealizada, alegando que a sociedade é fruto da soma de fatores espontâneos e não do produto da vontade consciente de alguns poucos. A saber: que uma organização social não é o produto arbitrário de vontades individuais ou coletivas, que não é a realização de um ideal filosófico nem a ampliação de um ensaio parcial, mas a transformações espontâneas de toda a humanidade, que encontra em si as necessidades, os meios e as maneiras de se transformar.128
As vozes dissonantes, Rossi rebatia dizendo que a Colônia Cecília teria sido fundada “com o intuito de provar, para si mesmos e para os outros, se e como um grupo viveria sem leis e sem donos”. 129 Não obstante os fins publicitários, destinados a fazer conhecer as propostas anarquistas, seus objetivos científicos para acrescentar “um dado positivo ao patrimônio da sociologia”130 eram ainda mais significativos. Vê-se, portanto, que o nosso propósito não foi a experimentação utopista de um ideal, mas o estudo experimental – e na medida do possível rigorosamente científico – das atitudes humanas em relação aos problemas mencionados. Quem tiver pouca prática nos métodos das pesquisas científicas, deverá achar que em uns poucos indivíduos não podem ser estudadas as qualidades de todo gênero humano ou, numa linguagem simples, que o que é possível entre poucos nem sempre o é entre muitos. Esta dúvida nasce da confusão comum que se faz entre o fenômeno e as leis que regem o fenômeno. O método experimental procura descobrir estas leis para depois aplicá-las à explicação do fenômeno. Para estudar o arco-íris, o físico não sobe de aeróstato às nuvens, mas capta em seu laboratório um raio da luz do sol e o refrange sobre o lado de um prisma. Estuda o 127
Ibidem, p. 79. Ibidem, p. 79. 129 Ibidem, p. 64. 130 Ibidem, p. 79. 128
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raio a partir das faíscas de uma máquina elétrica. Determina os caracteres de uma espécie animal ou vegetal a partir dos caracteres de um único indivíduo. Estuda os mecanismos da vida tais como ocorrem em milhares de sujeitos através da vivissecção de um único organismo. E mostrando a nu o coração palpitante nos espasmos da agonia, não diz: “eis a vida”, e sim: “eis as leis que regem os fenômenos da vida”. Quisemos fazer o mesmo para procurar conhecer as leis que regem os fenômenos da vida social. Para o nosso intento, a rigor teria sido suficiente fazer uma experiência com um único homem que tivesse sido subtraído ao estímulo do interesse pessoal, à influência da autoridade a ao império da lei. Nós, ao contrário, tivemos a possibilidade de efetuar a experiência com mais de trezentas pessoas que, por períodos mais ou menos longos, viveram na Cecília. No meio dessas pessoas encontravam-se não apenas os representantes das duas classes sociais mais numerosas, a dos camponeses e dos operários, mas também pessoas das classes médias, que exerciam profissões liberais ou eram funcionários. Quanto ao grau de instrução, tivemos gente de todos os níveis, desde analfabetos a pessoas com instrução secundária. Quanto as qualidades morais, têm-se encontrado lado a lado na vida cotidiana pessoas egoístas e pessoas altruístas; com crença religiosa, indiferentes e cépticas; indulgentes e intolerantes; sem preconceitos e supersticiosas; pacatas e violentas; otimistas e más...Em relação às aptidões técnicas, tivemos pessoas com capacidade de trabalho e habilidades diferentes. No que diz respeito aos hábitos de vida anteriores, tivemos operários livres e operários assalariados, uns que moravam no campo, outros na cidade, casados e solteiros. Enfim, a população da Cecília sempre foi bastante variada, de forma que representava fielmente a média da população italiana.131
Certamente, a ciência representava para Rossi um fator inquietante e de primeira ordem para a viabilidade do anarquismo. Os estudos sociológicos e a identificação das leis que regem a sociedade determinariam o pragmatismo das teorias libertárias. Homem do seu tempo, Rossi acreditava piamente nas verdades da ciência e em seu potencial libertador. A convicção de que a sociedade poderia ser estudada cientificamente, bem como a certeza de poder determinar as leis que a regem, parecem características muito próprias de quem se diz um “otimista da escola positivista”, como ele próprio descrevia-se. No positivismo de Auguste Comte, encontramos alguns dos elementos que povoam as representações sociais de Giovanni Rossi, como a interpretação orgânica da sociedade e as prerrogativas metodológicas do anarquismo experimental. Simultaneamente uma filosofia da história, um método e uma religião, o Positivismo exerceu forte influência sobre os intelectuais e a produção científica no século XIX. Auguste Comte, o fundador da filosofia positiva, acreditava que a humanidade e “cada ramo de nossos conhecimentos”,132 haviam passado por três sucessivas fases de desenvolvimento, o que denominou de “leis dos três estados.”133
131
Ibidem, p. 81-82. COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978. p. 4. 133 Ibidem, p. 3. 132
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O primeiro desses estágios, denominado por Comte de “estado teológico ou fictício”,134 corresponderia à infância epistemológica da humanidade. No estado teológico, os homens recorriam a seres sobrenaturais e divindades para explicar através da imaginação fenômenos naturais. No segundo estado, “metafísico ou abstrato”,135 concebido como um desdobramento do primeiro, a imaginação foi substituída pela argumentação. Neste estado, comparado a juventude da humanidade, noções e conceitos abstratos eram desenvolvidos para fornecer explicações aos fenômenos observados, como por exemplo, “forças da natureza”.136 Em comum, nos estados teológico e metafísico, os homens acreditavam poder chegar a essência dos fenômenos e construir um conhecimento absoluto, determinando assim suas causas e seus fins, o que não ocorreria no terceiro e último estado, “cientifico ou positivo”,137 também chamado de virilidade da humanidade. Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, sua leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.138
Nesse sentido, no estado científico ou positivo, é por meio do método empírico, isto é, a partir da observação sensível de fenômenos concretos que ocorre a produção de conhecimento, este, circunscrito a apreensão das leis que regem estes mesmos fenômenos, definidas como fatores constantes e imutáveis que os condicionam. De acordo com Comte, por meio da observação direta dos fenômenos positivos – “fundados em fatos bem constatados”139 – os homens do estado científico se ocupariam tão-somente da determinação das leis que anunciam o fenômeno. Para o autor do Curso de Filosofia Positiva140, a “natureza íntima”141 dos fenômenos era incognoscível, pois não poderia ser observada pelos sentidos.
134
Ibidem, p. 4. Ibidem, p. 4. 136 Ibidem, p. 4. 137 Ibidem, p. 4. 138 Ibidem, p. 4. 139 Ibidem, p. 36. 140 Ibidem. 141 Ibidem, p. 6. 135
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Uma vez determinadas as leis, os homens poderiam “confirmar ou infirmar teorias”142 com o objetivo de interferir no desencadeamento dos fenômenos. O conhecimento das leis dos fenômenos, cujo resultado constante é fazer com que sejam previstos por nós, evidentemente pode nos conduzir, de modo exclusivo, na vida ativa, a modificar um fenômeno por outro, tudo isso em nosso proveito [...] Em resumo, ciência, daí previdência; previdência, daí ação.143
Segundo Comte, cada estado alcança a perfeição quando passa a explicar os fenômenos a partir “dum único fato geral” 144 ou de uma única unidade explicativa, como um ser único, a exemplo da superação do animismo e do politeísmo pelo monoteísmo e das forças abstratas por uma entidade geral, a natureza, respectivamente nos estados teológico e metafísico. Da mesma forma, a ciência almeja alcançar uma unidade que reduziria o número de leis explicativas a algumas poucas ou mesmo uma única capaz de desvendar as leis gerais dos cinco diferentes tipos de fenômenos: astronômico, físico, químico, fisiológico e social.145 Entretanto, Comte considerava esta pretensa unidade inatingível. “A única unidade indispensável é a unidade do método, que pode e deve evidentemente existir e já se encontra, na maior parte, estabelecida.”146 Assim, Comte defendia a adoção de um método comum para todas as ciências, baseado na experiência ou na observação sensível dos fatos positivos, inclusive para a “física social”147 ou Sociologia, ciência criada por ele para apreender os fenômenos sociais e promover a reforma da sociedade148. O método empírico, fundamentado em observações diretas e inferências a posteriori, advindo das ciências naturais, também poderia ser utilizado com proveito pela física social, ciência extraída da fisiologia em decorrência da interpretação orgânica da sociedade sustentada por Comte. De acordo com a classificação de Auguste Comte, os fenômenos naturais dividiam-se em duas classes, “a primeira compreendendo todos os fenômenos dos corpos brutos, a segunda todos aqueles dos corpos organizados”,149 pertencendo respectivamente às ciências relativas à física inorgânica e à física orgânica. Desta forma, a Sociologia pertencia à ciência dos corpos organizados ou mais especificamente à física orgânica. Para Comte
142
Ibidem, p. 6. Ibidem, p. 23. 144 Ibidem, p. 4. 145 Ibidem, p. 10. 146 Ibidem, p. 20. 147 Ibidem, p. 9. 148 Ibidem, p. IX. 149 Ibidem, p. 31. 143
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Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente distintos, os relativos ao individuo e os concernentes à espécie, sobretudo quando esta é sociável. É principalmente em relação ao homem que esta distinção é fundamental. A última ordem de fenômenos é evidentemente mais complicada e mais particular do que a primeira, depende dela sem a influenciar. Daí duas grandes seções da física orgânica: a fisiologia propriamente dita e a física social, fundada na primeira.150
Para Comte, a Sociologia era apenas um dos ramos da biologia e tinha como principal atributo a compreensão das leis que correspondem a estática e a dinâmica da sociedade, esta entendida “como um organismo cujas partes constitutivas são heterogêneas, mas solidárias, pois se orientam para a conservação do conjunto”.151 Deste modo, a sociologia ou a “física social deve fundar-se num corpo de observações diretas que lhe seja próprio, atentando, como convém, para sua íntima relação necessária com a fisiologia propriamente dita.”152 A interpretação social baseada na metáfora do organismo levou Giovanni Rossi a reproduzir uma micro-sociedade que poderia ser dissecada a partir dos métodos empiristas das ciências naturais com intuito de precisar as leis que conduzem a sociedade. Deste modo, Rossi buscou fomentar um núcleo populacional que representasse a complexidade de um macrosistema social, agrupando para tanto, elementos múltiplos e diversos em torno da colônialaboratório, não para dizer eis a sociedade, mas eis as leis que regem os fenômenos da sociedade, assim como propunha o positivismo de Auguste Comte. Corroborando com as idéias de Comte, que acreditava que a Sociologia, responsável pela observação e previsão dos fenômenos sociais, devia incumbir-se da reforma social, Rossi também acreditava que as mudanças partiriam das ciências sociais: “De todas as ciências sociais nasceu a convicção da necessidade e da iminência de uma grande transformação das estruturas econômicas e burguesas”,153 diria em O Paraná no século XX. Contudo, seus experimentos não visavam demonstrar apenas a viabilidade de uma política descentralizada, de uma economia comunista e de uma sociedade autogerida. Seus objetivos eram muito mais ambiciosos e audaciosos, traduzidos na prática e no discurso apologético do amor livre, seu principal instrumento para a dissolução da família.
150
Ibidem, p. 32. RIBEIRO, João. O que é positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 22. 152 COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978. p. 33. 153 ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 145. 151
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A História é pródiga em narrativas que contam experiências de colônias socialistas, como o Falanstério do Saí154, fundado na metade do século XIX na atual cidade de São Francisco do Sul – SC, inspirado nas idéias de Charles Fourier. No entanto, para além da aplicação dos princípios políticos e econômicos do comunismo libertário, a Colônia Cecília assistiu à experimentação da moral anarquista aplicada aos relacionamentos conjugais, no caso protagonizado por Adéle, Aníbal e pelo próprio Giovanni Rossi, em que a poliandria consentida foi vivida pelos personagens desta trama de amor livre. Reside aqui a peculiaridade desta experiência vivida no sul do Brasil no interior da Colônia Cecília. Este ensaio de subversão moral foi descrito por Rossi em Um episódio de amor livre na Colônia Cecília155, publicado pela primeira vez em 1893, ano em que viveu a experiência. O relato publicado por Rossi contém ainda uma entrevista realizada com Adéle156 e Aníbal, com o propósito de coletar dados para uma análise psicológica do amor livre, seguida de uma auto avaliação. No decorrer de sua vida política, se os esforços de Rossi incidiram sobre a fundação de colônias experimentais, a sua maior bandeira de luta encontrava-se na defesa da igualdade entre os sexos e nas palavras avessas a instituição familiar, manifestadas no discurso e na prática do amor livre. O relacionamento homem-mulher, dentro de uma instituição familiar, assume no socialismo de Rossi importância capital, com teses singulares. Além da defesa da plena liberdade dos sexos, sua visão mais acentuadamente voltada para os direitos da mulher. Os exemplos que procura da união dos sexos – o casamento poliândrico – mostram o relacionamento de dois ou mais homens com uma mulher, dando mais destaque, mais valor, aos elos nascidos na esfera espiritual, consubstanciados em admirações afetivas, intelectuais, etc.157
Concebido como o meio através do qual os pilares de sustentação da família nuclear burguesa seriam abalados, derrubando por terra esta instituição vista por Giovanni Rossi como “o maior foco de imoralidade, de maldade, de ignorância”, 158 o amor livre ocupava posição de destaque no pensamento do libertário italiano que durante muitos anos viveu no
154
GÜTTLER, Antonio Carlos. A colonização do Saí ( 1842 – 1844 ): uma original colônia francesa em Santa Catarina. In: BRANCHER, Ana Alice; AREND, Silvia Maria Fávero. História de Santa Catarina no século XIX. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001. 155 ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. 156 Anagrama de Eleda. 157 NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 26. 158 ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 121.
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Brasil.“A discussão sobre a família, o amor, a mulher, em toda obra de Rossi alcança níveis da maior importância. É contra o comportamento burguês em ralação à família que ele dirige sua maior agressividade reformista.”159 Com os olhos postos no futuro, Rossi que tanto gostava de construir sociedades imaginárias em narrativas literárias, diria que “da mesma forma que as relações econômicas foram as questões centrais do século XIX, as relações afetivas talvez sejam a questão latente do século XX”160, palavras que anunciavam o movimento feminista e a revolução sexual da década de 1960. O amor livre como meio, a destruição da família como fim, eis a proposição que o motivou a cruzar o Atlântico para fundar nas “solidões americanas”, 161 seu laboratório social, que em homenagem a mulher socialista, personagem de sua utopia, denominaria Colônia Cecília.162
159
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 25. 160 ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 126. 161 ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 36. 162 Cecília, personagem da narrativa literária de Giovanni Rossi denominada Um Comune Socialiste.
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3. EGOÍSMO DA VIDA DOMÉSTICA OU SOLIDARIEDADE DA VIDA COLETIVA: A FAMÍLIA NUCLEAR BURGUESA SOB AS LENTES DE GIOVANNI ROSSI 3.1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA COLÔNIA CECÍLIA Giovanni Rossi seguira o conselho de Aschille Dondelli e em fevereiro de 1890, a bordo do Città di Roma, com mais cinco companheiros partira para a América do Sul. Nas terras do Novo Mundo, o anarquismo experimental por certo vingaria e com ele, o amor livre e o fim da família. Os idealistas italianos haviam decidido que apenas um pequeno grupo incumbiria-se da responsabilidade de localizar as terras onde fundariam a colônia. Além de Giovanni Rossi, Cattina e Aschille Dondelli, Evangelista Benedetti, Lorenzo Arriguini e Giacomo Zanetti compunham o pequeno grupo163 que em 18 de março desembarcou na baía do Rio de Janeiro. Após alguns dias hospedados na Ilha das Flores, os seis libertários embarcados no vapor Desterro, fariam ainda uma escala em Santos antes de aportarem em Paranaguá, litoral do estado do Paraná, em 28 de março de 1890. Em Paranaguá tomariam o trem para Curitiba onde seriam orientados pela Inspetoria de Terras e Colonização a fundarem a colônia no “território de São Mateus, onde corre o bonito rio Iguaçu”,164 conforme as palavras de Rossi. Instalados provisoriamente em Curitiba, lá permaneceram até Rossi e Benedetti, que haviam partido para o interior do estado, retornarem com a localização exata das terras que abrigariam o núcleo colonial. Em dois de abril de 1890, Giovanni Rossi e Evangelista Benedetti chegavam a Palmeira. Observador perspicaz, o veterinário e agrônomo Giovanni Rossi tomou nota de todos os traços que davam forma à região. Geografia, fauna e flora seriam meticulosamente analisadas, tudo para que a colônia encontrasse êxito neste pedaço de chão brasileiro. “Nestas terras, perto de alguns pés de laranja, na frente de quatro altas palmeiras, os recém-chegados tiveram a sorte de encontrar uma casinha de madeira abandonada que, de imediato, foi ocupada. Eram os primeiros dias de abril de 1890.”165 Quando Rossi, em outubro do mesmo ano, regressou a Itália para convencer outros colonos a emigrarem para o Brasil e integrar a experiência libertária, a colônia que havia sido fundada por um grupo diminuto de colonizadores, veria sua população atingir
163
ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 22-23. 164 Ibidem, p. 37. 165 ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 64.
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aproximadamente 300 pessoas entre outubro de 1890 e junho de 1891. Porém, o número de habitantes da Colônia Cecília manteve-se instável durante sua curta existência. Contudo, apesar das altas e baixas demográficas, a organização da colônia orientou-se sempre pelos princípios políticos do anarquismo e pelas máximas da economia comunista. Segundo Giovanni Rossi, “a organização desse grupo continuava sendo comunista, mas era também verdadeira e singelamente anarquista”.166 Muito embora o anarquismo fosse compreendido por muitos de uma forma “realmente curiosa”,167 como o próprio Rossi destaca, alegando que muitos justificavam seus “caprichos”168 com um “em homenagem à anarquia faço o que quero.”169 Desde a gênese da Colônia Cecília, seus habitantes excluíram qualquer tipo de organização social rígida, bem como líderes ou chefias que respondessem individualmente pelo núcleo colonizador. A Colônia havia sido fundada para ser um laboratório social e deveria manter a coerência com as prerrogativas teóricas do anarquismo, ainda que falhasse. Identificar os vícios e virtudes das teorias libertárias estava entre os objetivos do anarquismo experimental. Nesse sentido, seus idealizadores primaram por formas de organização espontâneas, oriundas dos anseios de seus moradores e estabelecidas através de acordos mútuos e voluntários. De acordo com Rossi, por uma reação natural ao formalismo estéril e funesto do período passado, o grupo não quis ter qualquer tipo de organização. Não foi estipulado nenhum pacto, nem verbal nem escrito. Nenhum regulamento, nenhum horário, nenhum encargo social, nenhuma delegação de poderes, nenhuma norma fixa de vida ou trabalho.170
No entanto, as questões que envolviam a construção da pequena Cecília certamente não poderiam ser deliberadas de maneira informal. Assuntos relativos a infra-estrutura, atividades econômicas e mesmo divergências e conflitos internos, demandavam alguma forma de organização política capaz de reunir seus habitantes e fazê-los opinar sobre assuntos de interesse público.
166
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 69. 167 Ibidem, p. 67. 168 Ibidem, p. 68. 169 Ibidem, p. 68. 170 Ibidem, p. 69.
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Por esta via, vigorava um sistema de referendo através do qual os indivíduos posicionavam-se diante das questões de interesse geral. Este sistema de participação política de forma alguma agradava Giovanni Rossi que em seus relatos assim o descreve: um sistema grotesco de referendum, obrigando as pessoas a perderem muito tempo em assembléias ociosas, das quais resultavam tão-somente promessas não cumpridas, ambições mal dissimuladas e mexericos ridículos. Elegiam-se comissões, votavam-se regulamentos, discutia-se até o embrutecimento. A colônia, naquele tempo, por não ter a consciência anarquista que podia salvá-la, estava destinada a morrer.171
A produção material da colônia baseava-se na agricultura, na criação de animais e também na produção artesanal de calçados e barris de madeira, “vendidos na vizinha Palmeira”.172 Da mesma forma que a política, a organização da produção não obedecia padrões austeros de funcionamento, norteando-se pelo princípio “de cada um segundo suas forças, a cada um segundo suas necessidades.” Em seus relatos, Rossi afirmava que o trabalho na Cecília não tem regulamentos nem qualquer organização. Os voluntários do trabalho agrícola conhecem-se entre si e entendem-se rapidamente, sem necessidade de chefes técnicos e reuniões de grupo. Todos temos noção do trabalho em andamento e, na maioria das vezes, é desnecessário fazer consultas no começo da manhã.173
Para o autor, a consciência das necessidades e o “medo da crítica”174 eram os fatores responsáveis pelo bom desenvolvimento da produção. Entretanto, a economia da colônia foi descrita como insuficiente para satisfazer as necessidades materiais mais elementares. Segundo Giovanni Rossi, a nossa vida, quanto às condições materiais, é agora bastante miserável, muito mais miserável do que a que levam neste país os operários sob o regime capitalista. E entende-se que deva ser assim, uma vez que nós temos que criar tudo com o nosso trabalho, ao passo que na vida burguesa se usufrui abundantemente do trabalho acumulado pelas gerações passadas, sob a forma de capital, de confortos privados, de serviços públicos e assim por diante.175
171
Ibidem, p. 67. Ibidem, p. 71. 173 Ibidem, p. 73. 174 Ibidem, p. 75. 175 Ibidem, p. 74. 172
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O mesmo discurso é reproduzido por Rossi em relação à vida cultural, descrita por ele como “pobre”.176 Rossi queixava-se que “instrução, música, teatro, bailes, diversões de vários gêneros, gostaríamos muito de tê-las, mas até agora não foi possível.”177 Os relatos de Rossi trazem a tona as dificuldades e privações enfrentadas pelas colônias de imigrantes fundadas no interior do Brasil no final do século XIX. Suas palavras desfazem o cenário romântico retratado pela literatura e que muito contribuíram para cristalizar uma representação utópica em torno da Colônia Cecília, onde seus habitantes desfrutavam fartamente de uma vida igualitária, sem lei e nem pecados, como o caricato Gioia, personagem do romance de Afonso Schmidt.178 Gioia, um burocrata italiano desiludido, decide acompanhar os anarquistas na fundação da colônia e, ao pisar nas terras de Santa Bárbara, despe-se e passa a viver nas matas como uma espécie de eremita. Através da narrativa de Rossi é possível perceber que a organização política e a produção
econômica estavam longe da vida idealizada nas páginas dos romances. Não
obstante sua singularidade, a Colônia Cecília era mais uma entre tantas colônias de imigrantes italianos pobres que buscavam assegurar a subsistência em solo brasileiro. Contudo, entre as dificuldades encontradas, uma em especial, a moral burguesa, configurava-se como um dos principais obstáculos, pois impedia a prática do amor livre e por extensão, a extinção da família. Ainda que o sistema de referendum não correspondesse à organização política que Rossi imaginava, de uma forma ou de outra, a participação direta nas decisões coletivas ocorria, assim como o sistema comunista nunca foi um entrave para o desenvolvimento econômico da colônia. As paupérrimas condições materiais deviam-se mais a escassez de insumos que permitissem ampliar a produção, do que a forma como as relações de produção eram organizadas. Assim, se no interior da colônia era possível criar um sistema políticoeconômico alternativo que substituísse a democracia representativa e o capitalismo, o mesmo não ocorreria com a moral burguesa em relação aos valores da família nuclear. Em relação ao amor livre, Giovanni Rossi afirmava: teoricamente, tais conceitos eram admitidos, embora na prática fossem adiados para o dia de São Nunca, em função das dores que os maridos temiam, dos preconceitos das mulheres, das rotinas domésticas – desde há muito estabelecidas e, por isso, aparentemente perenes –, do temor de, em se dissolvendo a colônia, as mulheres e as crianças ficarem abandonadas a si próprias e, talvez, um pouco também em função
176
Ibidem, p.76. Ibidem, p. 76. 178 SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecília. Romance de uma experiência anarquista. São Paulo: Brasiliense, 1980. 177
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da acanhada ousadia dos solteiros. Mas o principal fator parece ser a força do hábito, que dificulta e dificultará sempre o progresso humano.179
Em Comunidade Anarquista Experimental, Giovanni Rossi referindo-se a Colônia Cecília, observa que a “vida moral não é um mar de rosas”, 180 pois
saímos ontem da vida burguesa, na qual para ficar de pé era necessário usar as atitudes mais anti-sociais: o egocentrismo, a violência, a simulação, a avareza, a prodigalidade, todos os setenta pecados capitais que proporcionam o paraíso neste mundo e, segundo alguns, o inferno no outro. Essas qualidades, transmitidas por nossos antepassados ao nos dar a luz e ao nos educar, e desenvolvidas ativamente na luta pela existência, não podiam ser abandonadas nas fronteiras da Cecília como se fosse um trapo sujo. Para nos liberarmos dos parasitas, um pente e a água fervente são o bastante, mas contra os preconceitos e as deformações morais não há outro remédio senão a ação lenta e continua de um ambiente social moralmente sadio – coisa que, indiscutivelmente, o nosso é.181
Todavia, admitido no âmbito do discurso, o amor livre encontrava na norma familiar burguesa a inibição da prática, esta experimentada apenas em duas ocasiões. Um caso anônimo, ligeiramente mencionado por Giovanni Rossi e o outro, vivido por ele próprio, quando compartilhou o amor de Eleda com Aníbal e também com um jovem chamado Geleoc182, episódio relatado em Um caso de amor na Colônia Cecília.
3.2 O BEIJO AMORFISTA: PARA ALÉM DO AMOR LIVRE No início do século XX, o amor livre era definido pelos libertários como a livre união dos cônjuges sem intermédio de qualquer tipo de contrato oficializado pela Igreja ou pelo Estado, ou ainda, por qualquer outra instituição que não o livre arbítrio dos indivíduos. “Na redefinição dos papéis familiares e afetivos, eram partidários de uma relação onde cada um
179
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 96-97. 180 ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 76. 181 Ibidem, p. 77. 182 Nos relatos contidos em Um caso de amor livre na Colônia Cecília, Giovanni Rossi descreve a experiência de amor livre como um triângulo amoroso vivido apenas entre os três. Entretanto, em carta endereçada a Senftleben, e publica em 1896, Rossi menciona um jovem chamado Geleoc, a quem atribui a paternidade de Hebe. Segundo Rossi, a omissão devia-se ao ciúme de Aníbal. Através de uma análise comparativa entre fragmentos da carta reproduzidos por Candido de Mello Neto e passagens dos relatos do próprio Giovanni, é possível identificar insinuações sobre o caso. Vide: ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Imprensa Oficial do Paraná: Curitiba, 2000. p. 118 e NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia Cecília. Ed. UEPG: Ponta Grassa, 1998. p. 203.
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pudesse escolher seu parceiro, sem a interferência de outros”,183 de acordo com Eduardo Valladares. Para Boris Fausto, durante a Primeira República, “em regra geral o dirigente libertário era um homem sóbrio, na vida material e na vida afetiva, obediente aos preceitos da vida monogâmica não obstante o discurso em favor do amor livre.” 184 Entretanto, se de modo geral o discurso libertário a favor do amor livre manteve-se circunscrito à decisão dos indivíduos na escolha dos cônjuges e o direito a dissolubilidade dos relacionamentos, na Colônia Cecília o discurso libertário seria mais ousado, propondo a possibilidade de relacionamentos afetivos concomitantes. Desta forma, para melhor compreendermos o conceito de amor livre elaborado por Rossi, é necessário desmembrá-lo para compreender sua definição de amor, assim como o que entendia por liberdade de amar. Para Giovanni Rossi, o amor, quando não é uma estratégia forjada para “conquistar um corpo”185 e satisfazer os desejos sexuais, “conquistar um dote”186 ou “uma posição social”187, é a expressão doentia do afeto sentido entre dois indivíduos, oscilando entre sentimentos efêmeros e a perda da razão, em síntese, “uma forma patológica ou quixotesca de afeição”.188 Assim, segundo Rossi, Querer bem é a forma fisiológica, normal e comum de uma afeição. Querer bem está entre os 20 e 80 graus centígrados do amor. Mais abaixo está o capricho, a simpatia de um dia, de uma hora, que – gentil e ligeira – chega, beija e passa. Acima dos 80 graus está a loucura sublime ou a ridícula estupidez. Querer bem é uma mistura apetitosa de volúpia, sentimento e inteligência, em proporções que variam entre os indivíduos que se querem bem. Em suma, querer bem é o que deveria bastar à felicidade emocional desta pobre espécie humana.189
Na concepção de Rossi, o amor é substituído por uma outra forma de afeição, um amálgama de inteligência, sentimentos e desejos, definido apenas como “querer bem”190. Este sentimento peculiar estabelecido entre o casal, baseava-se na satisfação pessoal dos desejos e emoções, assim como na preocupação com a satisfação do cônjuge. O “querer bem”
183
VALLADARES, Eduardo. Anarquismo e anticlericalismo. São Paulo: Imaginário, 2000. p. 75. FAUSTO, 1983 apud, Valladares, 2000, p. 61. 185 ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 108. 186 Ibidem, p. 108. 187 Ibidem, p. 108. 188 Ibidem, p. 108. 189 Ibidem, p. 108. 190 Ibidem, p. 108. 184
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defendido por Rossi se opunha às formas de amor narcisistas que buscavam no outro apenas a auto-satisfação. Segundo Rossi, referindo-se à Eleda, quero-a bem de modo subjetivo e objetivo, ou seja, quero-a bem por ela e por mim. Se a quisesse apenas por mim, pelos prazeres que me dá, pelo ardor que trouxe aos meus sentimentos, pelas luzes suaves e claras que espargiu por meus pensamentos, deveria eu dizer, com mais exatidão, que me quero bem [...] São todos amores subjetivos: não queremos bem, mas nos queremos bem, isto é, queremos bem a nós mesmos.191
No entanto, se o amor romântico burguês representava uma forma egocêntrica e doentia, para Giovanni Rossi, o amor era também um recurso natural para atrair homens e mulheres para a reprodução, pois, “fisiologicamente, o amor é a procura da volúpia, cuja conseqüência involuntária é a perpetuação da espécie.” 192Sentimento, inteligência, volúpia e reprodução eram alguns dos elementos presentes na concepção de amor, ou melhor, de “querer bem” de Giovanni Rossi. Mas afinal, o que entendia por liberdade de amar? Para o veterinário e agrônomo anarquista, a monogamia não representava as formas de relacionamentos conjugais que observava no mundo natural junto as diferentes espécies de plantas e animais. Entre a diversidade da fauna e da flora, a pluralidade de parceiros era sem dúvida a forma espontânea através da qual a natureza expunha sua vontade. Como pode ser observado, Cárdias alega que “segundo os princípios fisiológicos [...] entre as plantas fanerogâmicas – nas quais os sexos são melhor caracterizados – a promiscuidade é a lei e a monogamia a exceção.”193 Na perspectiva de Rossi, a monogamia aparece como uma anomalia fisiológica que rompe com as leis da natureza e é admitida apenas em espécies cujos filhotes demandam cuidados especiais após o nascimento, quando a atenção dos pais torna-se indispensável para a sobrevivência da prole. Nesse sentido. as flores negaram a fábula da monogamia e da fidelidade conjugal. Mesmo entre os animais, a monogamia é uma exceção, quase toda encerrada na espécie dos pássaros, onde o trabalho de incubação e os cuidados com os filhotes tornam-na necessária. 194
A partir do comportamento de plantas a animais, Rossi apresentava libelos de defesa da possibilidade de relacionamentos múltiplos e simultâneos. Assim como entre as espécies
191
Ibidem, p. 108. Ibidem, p. 112. 193 Ibidem, p. 112. 194 Ibidem, p. 112. 192
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do mundo natural, as “afeições” deveriam ser “múltiplas e contemporâneas”,195 pois esta era a forma orgânica posta pelas leis da natureza. Para o autor, mesmo o cuidado com a prole, era um argumento pouco convincente para conservar os relacionamentos monogâmicos entre homens e mulheres, visto que o instinto maternal estava fadado a desaparecer com a emancipação feminina dos ditames que lhe atribuíam unicamente a função de zelar pela saúde e crescimento dos filhos, encerrando-a no espaço doméstico. O instinto maternal, não sendo algo perene, está destinado a desaparecer. Se ele se desenvolveu junto com a necessidade de criar os filhos, não existiu naquelas ordens de animais em que se abandona a prole logo depois do nascimento e é atenuado nas classes sociais que entregam seus filhos para que se criem fora de casa. E se um dia, extinta a necessidade individual de criar os filhos, a sociedade puder oferecer à mãe algo que valha realmente mais do que o aleitamento e as suas primeiras lições, também o instinto materno desaparecerá gradativamente, e os sortudos desses futuros tempos poderão dar um suspiro de alivio e pronunciar o finis familiae.196
Assim sendo, a pluralidade de relacionamentos simultâneos, sem imposições restritivas aos sentimentos e desejos era uma “necessidade” e um “direito natural”, atrelados às “liberdades corporais, que são as mais essenciais, as mais urgentes e as mais dificilmente suprimíveis [...] será impossível negar o direito e a faculdade de dispor livremente de si próprio, tanto no que se refere ao corpo quanto ao sentimento.”197 Não obstante o apelo ao direito natural para sancionar a “liberdade de amar” como uma necessidade orgânica, Rossi acreditava que o amor livre era também o único meio através do qual as necessidades culturalmente construídas poderiam ser supridas em sua plenitude, dado a impossibilidade de um único individuo reunir todos os adjetivos desejados pelo parceiro. O amor livre seria, desta forma, a soma de nossos anelos, encontrados na pluralidade de amores simultâneos, pois, a sensação primordial tornou-se policromática com o surgimento de tantas matizes de beleza ( a plástica, a moral, a intelectual ) do rico poliedro humano [...] O amor deixou de ser uma necessidade simples e primitiva de um mero acasalamento e entre uma só mulher e um só homem se tornou impossível experimentar todos os elementos do amor.198
Para Giovanni Rossi,
195
Ibidem, p. 96. Ibidem, p. 121-122. 197 Ibidem, p. 116. 198 Ibidem, p.114. 196
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o amor pode ser único e exclusivo em apenas dois casos: quando, na pessoa amada, não se busca outra coisa a não ser o sexo, e é necessário contentar-se em viver nos mais baixos degraus da escala humana para que isso possa acontecer; ou quando, na pessoa amada, está concentrada toda a beleza, toda a bondade, toda a inteligência – em uma única palavra, quando nela estão todos os atrativos do outro sexo, e é preciso ser bem néscio para crer que isso possa acontecer. Mas como destes atrativos só pode haver uma pequena parcela em cada um, os sentimentos se atiram involuntariamente atrás de outras pessoas.199
A monogamia, para Rossi, configurava-se como uma violação dos “direitos naturais” e como um obstáculo intransponível para alcançar o bem-estar individual, sendo que uma única pessoa não poderia agregar todas as “matizes de beleza”. Todavia, se por ventura fosse possível encontrar um desses seres especiais, semi-deuses envoltos por um halo de virtudes, o amor exclusivo ainda assim seria apenas mais uma das dissimulações da “moral de fachada deste século tartufo”200, pois é apenas conhecendo as condições e os sentimentos de um dia que se hipoteca toda a vida, vida que está cheia de circunstâncias bem diferentes daquelas previstas. Uma promessa de fidelidade é deplorável por ser muito ligeira e pouco sincera. Mas uma bobagem dessas não pode revogar um direito natural, imprescindível e inalienável.201
Contudo, o discurso apologético a poligamia e a poliandria estavam distantes das relações clandestinas do adultério. O amor livre, seria verdadeiramente livre quando este fosse admitido espontaneamente por todos os envolvidos neste “beijo amorfista”, 202 conforme expressão cunhada por Rossi para diferenciar esta modalidade de relacionamento conjugal baseado na pluralidade de parceiros, do que se costumava denominar de amor livre no final do século XIX e inicio do XX, caracterizado pela união livre e divorciável, mas no entanto, monogâmica. Neste ínterim, Rossi diria que se procuro retirar o amor livre – que para mim significa quase sempre amor múltiplo e paralelo – dos domínios do adultério, da vergonha e do ridículo, onde o confinaram [...], não desejo, com isso, somente o triunfo das sagradas leis da natureza e a afirmação contundente do direito, move-se também um outro fim, mais elevado e amplo: a destruição da família.203
199
Ibidem, p. 114. Ibidem, p. 115. 201 Ibidem, p. 116. 202 Ibidem, p. 127. 203 Ibidem, p. 118-119. 200
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Rossi é bastante enfático quanto aos objetivos do amor livre: “a destruição da família”. A eliminação da figura paterna através de relacionamentos poliândricos impossibilitaria o reconhecimento do genitor, o que levaria conseqüentemente ao fim da família nuclear. Nesse sentido, Rossi afirmava que quando “limparem da face da Terra a mentira da paternidade, a família será feita em pedaços e deverão surgir, espontaneamente, as relações sociais capazes de substituí-la.”204 Apesar de entender que a família era “incompatível com a vida socialista”,205 pois era “a principal razão de ser e o principal sustentáculo do regime capitalista”,206 a dissolução da família o inquietava mais do que a abolição da propriedade privada: Se me fosse permitido escolher destruir um dos flagelos humanos – a religião ou os gafanhotos, a propriedade privada ou a cólera, a guerra ou os mosquitos, o governo ou as chuvas de pedra, os parlamentos ou as fistulas, a pátria ou a malária – , eu escolheria, sem hesitar, destruir a família. 207
Para Giovanni Rossi, a família era o maior dos flagelos da humanidade e seu banimento deveria ser imediato. O combate inexorável pelo fim da família é gritante em seus escritos, figurando antes mesmo do fim da propriedade privada, da guerra, do parlamento, da religião e mesmo do governo.
3.3 DO SENTIMENTO DA FAMÍLIA AO ESPÍRITO DE FACÇÃO: A PATOLOGIA DO ORGANISMO SOCIAL Por volta do século X, a configuração da família em algumas regiões da Europa Ocidental apresentava contornos muito próximos da família conjugal contemporânea. Os laços de parentescos estabelecidos entre os membros de uma mesma família eram atados de forma bastante tênue, fator que conferia maior independência aos indivíduos diante da família. Esta característica da família medieval é atribuída por G. Duby ao vigor do Estado Franco, que permitia “ao homem livre viver uma vida independente”,208 em virtude da funcionalidade de seus “órgãos de paz”.209 Entretanto, a partir do século XI, com a dissolução do Estado Franco, os indivíduos, por razões de segurança, foram compelidos a fortalecer os laços consangüíneos e buscar na 204
Ibidem, p. 121. Ibidem, p. 122. 206 Ibidem, p. 122. 207 Ibidem, p. 121. 208 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1973. p. 144. 209 Ibidem, p. 144. 205
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solidariedade parental, a segurança e os meios de sobrevivência, provocando o desenvolvimento de dois modelos de grupos consangüíneos, a linhagem e a mesnie210. A linhagem correspondia às relações de solidariedade mantidas entre todos os membros de uma mesma família com ancestral comum, o que lhe conferia uma rede extensa de relações parentais, diferentemente da mesnie, que fixava relações familiares de menores proporções e, fundamentava-se sobre a indivisão do patrimônio. Com isso, agregava em uma única residência, vários elementos da mesma família e no interior de um tipo de posse conhecida como frereque ou fraternitas, que, segundo Philippe Áries, “não durava além de duas gerações”.211 O fortalecimento das relações de parentesco consangüíneas ocasionados pela crise do Estado Franco ocorreu apenas entre a nobreza, fenômeno social não observado entre os camponeses. Estes, buscaram junto aos senhores feudais, bem como entre a própria comunidade aldeã, a proteção que antes era oferecida pelo Estado. No século XIII, a conjuntura social altera-se novamente, entre outros fatores, pelos progressos da autoridade do Príncipe e da segurança pública, ocorre “um estreitamento das solidariedades de linhagem e o abandono das indivisões patrimoniais.”212 Seguindo os passos de Philippe Ariès, A família conjugal tornou-se novamente independente. Contudo, a classe nobre não voltou à família de laços frouxos do século X. O pai manteve e até mesmo aumentou a autoridade que, nos séculos XI e XII, lhe havia sido conferida pela necessidade de manter a integridade do patrimônio indiviso. Sabemos, por outro lado, que, a partir do fim da Idade Média, a capacidade da mulher entrou em declínio. Foi também no século XIII, na região do Mâconnais, que o direito de primogenitura se difundiu nas famílias nobres. Ele substituiu a indivisão, que se tornou mais rara, como salvaguardar o patrimônio e sua integridade.213
A partir deste período, o pai e o primogênito, assumiriam uma posição preponderante na administração do patrimônio da família, assim como uma autoridade ascendente sobre as pessoas que a integravam, sobretudo, em relação à mulher. Esta, do século XIV em diante sofre um processo continuo de “degradação”214 para no século XVI, ser considerada pelo marido e pela justiça, uma “incapaz”215. Assiste-se neste momento a desestabilização da linhagem e ao fortalecimento do poder paterno sobre a mulher e os filhos, bem como a constituição de uma espécie de “monarquia 210
Ibidem, p. 143. Ibidem, p. 143. 212 Ibidem, p. 144. 213 Ibidem, p. 144. 214 Ibidem, p. 145. 215 Ibidem, p. 145. 211
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doméstica”.216 Assim, “passara-se portanto a atribuir à família o valor que outrora se atribuía a linhagem. Ela torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder monárquico.”217 O que pretende-se com esta breve descrição da família Medieval, é assinalar o desenvolvimento da família conjugal moderna no século XIV e, principalmente, o surgimento de um “sentimento da família”218, ausente durante o medievo. Segundo Philippe Ariès, “o sentimento da família está ligado à casa, ao governo da casa e à vida na casa. Seu encanto não foi conhecido durante a Idade Média porque esse período possuía uma concepção particular de família: a linhagem”219, onde os laços consangüíneos eram mais fortes do que a afeição surgida entre as pessoas que coabitam a mesma residência. Esta vicissitude em relação a configuração da família medieval, caracterizada por um sentimento novo, inexistente nos modelos familiares anteriores, pode ser identificada na produção iconográfica do inicio da modernidade, sobretudo entre os séculos XVI e XVII, período em que apresentou um crescimento espantoso. A partir do século XVI o retrato de família se liberou de sua função religiosa. Estes quadros, que antes destinavam-se a ornar igrejas, passam deste momento em diante, a decorar as paredes dos ambientes privados. Segundo Philippe Ariès, esta autocontemplação da família pode ser interpretada como um “imenso progresso no sentimento de família.”220 A laiscização da iconografia da família foi acompanhada por transformações nos ambientes retratados. Comuns durante o medievo, as representações iconográficas
que
reproduziam por via de regra ambientes ao ar livre, cedem espaço para os retratos de ambientes privados, raros antes do século XV. Ambientes como o quarto, tornam-se recorrentes nas cenas de morte ou de parto. Segundo Ariès, “a representação mais freqüente do quarto e da sala corresponde a uma tendência nova do sentimento, que se volta então para a intimidade da vida privada.”221 Os laços de afetividade entre pais e filhos, mais especificamente, entre a família conjugal, denotam a diferença em relação a família medieval e a família pós-século XV. De acordo com Philippe Ariès, “essa família, ou a própria família, ou ao menos a idéia que se
216
Ibidem, p. 145. Ibidem, p. 146. 218 Ibidem, p. 137. 219 Ibidem, p. 145. 220 Ibidem, p. 140. 221 Ibidem, p. 137. 217
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fazia da família ao representá-la e exaltá-la, parece igual à nossa. O sentimento é o mesmo.”222 Desta forma, nos séculos XVI e XVII a família ocuparia um lugar privilegiado na vida sentimental dos indivíduos. As relações entre os seus membros tornam-se mais estreitas, fortes e emotivas, como sugere os novos padrões de comportamento em ralação a criança. Para Ariès, “a família transformou-se profundamente na medida em que modificou suas relações internas com a criança.”223 Durante a Idade Média , a educação dos infantes baseava-se em “contratos de aprendizagem”,224 através dos quais os pequenos eram confiados aos cuidados de outra família a partir dos sete ou nove anos, aonde desempenhavam os serviços domésticos e lá permaneciam até os quatorze ou dezoito anos. Esse era o método corriqueiro através do qual as crianças eram educadas. Ali, entre os adultos e os serviços domésticos, as crianças recebiam de seu mestre os ensinamentos necessários para ingressar na vida adulta. Longe de ser uma condição aviltante, a aprendizagem era um estágio, um estado temporário em que crianças e jovens aprendiam um oficio, boas maneiras e como agir socialmente. No período em que os estudos em colégios eram exclusividade de uma parcela ínfima da sociedade, representada em sua totalidade por clérigos e alguns poucos nobres preocupados com o universo das letras, “era através do serviço doméstico que o mestre transmitia a uma criança, não ao seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de conhecimentos, a experiência prática e o valor humano que pudesse possuir.”225 Esta pedagogia habitual entre todos os estratos sociais, afastava os filhos do convívio familiar desde a mais tenra idade, o que dificultava o fortalecimento das afeições entre pais e filhos. Contudo, esta realidade não sobreviveria ao século XV, que veria a educação das crianças ser progressivamente absorvida pela escola, esta, assumiria a responsabilidade de iniciação social que antes cabia a aprendizagem. Este processo poder ser atribuído a fatores morais cujos objetivos eram preservar a “juventude do mundo sujo dos adultos para mantê-la na inocência primitiva”,226 mas também, a preocupação dos pais e a necessidade que estes sentiam agora de ficar próximos dos filhos. Pode-se dizer, que “a família concentrou-se em torno da criança.”227
222
Ibidem, p. 153. Ibidem, p. 154. 224 Ibidem, p. 155. 225 Ibidem, p. 156. 226 Ibidem, p. 159. 227 Ibidem, p. 159. 223
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uma prova de um movimento gradual da família-casa em direção à família sentimental moderna. Tendia-se agora a atribuir à afeição dos pais e dos filhos, sem dúvida tão antiga quanto o próprio mundo, um valor novo: passou-se a basear na afeição toda a realidade familiar.228
Nesse ínterim, por meio de um processo iniciado no século XV e que estenderia-se até o século XVII, a família fortaleceu os laços afetivos entre pais e filhos, agregando-se em torno da criança que voltava ao lar. A família, iniciava um movimento de privatização e fechava-se sobre si. Entretanto, neste momento não conseguiria fechar-se completamente e isolar-se da sociedade, pois ainda havia um equilíbrio entre as duas. Os progressos do sentimento de família seguem os progressos da vida privada, da intimidade doméstica. O sentimento da família não se desenvolve quando a casa esta muito aberta para o exterior: ele exige um mínimo de segredo. Por muito tempo, as condições da vida cotidiana não permitiram esse entrincheiramento necessário da família, longe do mundo exterior [...] No século XVII, constituiu-se um equilíbrio entre as forças centrifugas – ou sociais – e centrípetas – ou familiares – que não sobreviveria aos progressos da intimidade, conseqüência talvez dos progressos técnicos. 229
No período em questão, as sociabilidades baseavam-se em relações inter-pessoais de dependência, isto significa que a posição ou, mais precisamente, o status e prestígio de um indivíduo dependia da trama de relações sociais por ele tecida. Era preciso antes de tudo, saber como agir e agir socialmente para alcançar o sucesso. Para Ariès, o essencial era manter as relações sociais com o conjunto do grupo onde se havia nascido, e elevar a própria posição através de um uso hábil dessa rede de relações. Ter êxito na vida não significa fazer fortuna – ou ao menos isso era secundário; significava antes de tudo obter uma posição mais honrosa numa sociedade em que todos os membros se viam, se ouviam e se encontravam todos os dias.230
Todavia, se as relações sociais bem tecidas representam a principal forma de construir uma reputação respeitável e conquistar prestígio social, podemos pressupor que os espaços de sociabilidades desempenhavam no interior dessa sociedade uma função relevante. A rua, certamente, era o espaço onde todos se encontravam. As cidades e vilas abrigavam uma população pouco numerosa. Todos esbarravam-se diariamente. Mas, se a rua era o espaço de encontro, aonde, como indaga Ariès, estes fulanos, cicranos e beltranos se reuniam para confabular, negociar e confraternizar?
228
Ibidem, p. 162. Ibidem, p. 164. 230 Ibidem, p.164. 229
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Havia a taberna, mas não era um local que as pessoas de bem poderiam freqüentar. Este era o espaço de bêbados, soldados e meretrizes. As pessoas de bem que tinham uma reputação a zelar, reuniam-se nas casas particulares, “as grandes casas, rurais e urbanas”.231 Nessas casas grandes, nem palácios, nem sempre hôtels ou mansões, casas rurais ou casas urbanas ocupando apenas um andar do imóvel, encontramos o meio cultural do sentimento de infância e da família. Foi nelas que recolhemos todas as observações que constituem a matéria deste livro. A primeira família moderna foi a família desses homens ricos e importantes. É ela que vemos representada na rica iconografia de meados do século XVII [...].232
A casa grande era o espaço por excelência das sociabilidades. A família que nela residia era invadida por conhecidos que faziam do seu interior um ponto de encontro do individuo e do grupo disposto em torno dele por relações de dependência. “A casa grande desempenhava uma função pública. Nessa sociedade sem cafés, nem public house, ela era o único lugar onde os amigos, clientes, parentes e protegidos se podiam encontrar e conversar.”233 A ausência de privacidade era uma constante no cotidiano da família. Com uma fronteira pouco observável entre público e privado, ela perdia muito de sua intimidade, porém, esta não parecia ser uma preocupação de primeira ordem. Quando a casa não era transformada em espaço de sociabilidades, eram os membros da família que se evadiam. Segundo Edward Shorter, “a família tinha grande dificuldade em estabelecer-se como unidade emocional na Europa do antigo regime porque os seus membros estavam constantemente a afastar-se para estar com os vários grupos dos seus iguais.”234 Até o século XVIII, o ambiente doméstico era um prolongamento da rua. Era um espaço público onde as pessoas se reuniam para fins diversos em ambientes indiferenciados. Não havia espaço para a intimidade familiar pois público e privado eram dimensões que se confundiam até este momento. De acordo com Philippe Ariès, esta sociabilidade durante muito tempo se havia oposto à formação do sentimento familiar, pois não havia intimidade. O desenvolvimento, nos séculos XVI e XVII, de uma relação afetiva nova, ou ao menos consciente, entre os pais e os filhos não a destruiu. Essa consciência da infância e da família – no sentido em que falamos de consciência de classe – postulava zonas de intimidade física e moral que não existia antes. Contudo, nessa época, ela se combinou com uma promiscuidade permanente [...]. As casas desses homens abastados tornaram-se centros de vida social, em torno 231
Ibidem, p.178. Ibidem, p. 179. 233 Ibidem, p. 180. 234 SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa : Terramar, 1975. p. 222. 232
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do qual gravitava todo um pequeno mundo complexo e numeroso. Esse equilíbrio entre a família e a sociedade não iria resistir à evolução dos costumes, e aos novos progressos da intimidade.235
A partir do século XVIII, a família passaria a levantar barreiras contra o mundo exterior. No interior da casa, que sofreria transformações arquitetônicas de modo a preservar a privacidade mesmo entre os seus moradores, a família se abrigaria dos olhares indiscretos dos curiosos e das hostilidades da sociedade. Ali, entre quatro paredes, pais e filhos sentiriam-se felizes e seguros, distanciando-se dos antigos hábitos de sociabilidade que permitiam a intromissão do público no privado. Os espaços seriam esquadrinhados e receberiam funções especificas. A residência familiar de um único cômodo ganharia outros mais, cada um, destinado a tarefas e rotinas diferenciadas: refeições, trabalho e lazer ganhavam seus próprios espaços, com destaque para o quarto de dormir. A preocupação com a delimitação dos espaços “correspondeu a uma necessidade nova de isolamento”,236 reitera Philippe Ariès. Ariès assinala que no século XVIII, em contraposição com sua realidade anterior, “a família começou a manter a sociedade a distância, a confiná-la a um espaço limitado, aquém de uma zona cada vez mais extensa de vida particular. A organização da casa passou a corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo.”237 Assim, começava a tomar forma uma família que excluía de seu recinto todos os elementos estranhos, assumindo uma configuração atomizada, reduzida a sua menor fração, ou seja, aos pais e filhos tão-somente. Para Philippe Ariès, “esse grupo de pais e filhos, felizes com sua solidão, estranhos ao resto da sociedade, não é mais a família do século XVII, aberta para o mundo invasor dos amigos, clientes e servidores: é a família moderna.”238 Ao longo dos três primeiros séculos da modernidade, a família passou por um processo de reconfiguração, iniciado com o despertar de um “sentimento da família”, isto é, os laços de parentesco firmados entre seus membros fortaleceram-se, sobretudo por questões afetivas. A família tornava-se um valor e, assim, precisava ser defendida de intrusos que poderiam ameaçá-la. Nesse sentido, Shorter alega que a domesticidade, ou a consciência que a família tem de si mesma enquanto unidade emocional preciosa que deve ser protegida com privacidade e isolamento da intrusão 235
ARIÈS, op. cit., p. 184. Ibidem, p. 185. 237 Ibidem, p. 184-185. 238 Ibidem, p. 188. 236
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exterior, foi a terceira ponta de lança do grande surto de sentimento nos tempos modernos. O amor romântico desligou o casal do controlo sexual comunitário e virou-o para o afecto. O amor materno criou um ninho sentimental dentro do qual a família moderna se aninhava e afastou muitas mulheres do envolvimento com a vida comunitária. A domesticidade isolou, além disso, a família no seu todo da sua interação tradicional com o mundo circundante.239
O sentimento da família, família agora composta pelos pais e pelos filhos, fez com que essa se refugiasse no interior da casa, longe das ameaças da sociedade. Apesar de conviver até então com um intenso fluxo de pessoas, a partir do século XVIII inicia-se um processo de privatização familiar. Enclausurando-se, fechando-se sobre si mesma, voltando-se para os seus entes queridos, “a família tornou-se uma sociedade fechada onde seus membros gostam de permanecer.”240 Segundo Philippe Ariès, “as pessoas começaram a se defender contra uma sociedade cujo convívio constante até então havia sido a fonte de educação, da reputação e da fortuna”241, mas chegou um momento em que a burguesia não suportou mais a pressão da multidão, nem o contato com o povo. Ela cindiu-se: retirou-se da vasta sociedade polimorfa para se organizar à parte, num meio homogêneo, entre suas famílias fechadas, em habitações previstas para a intimidade, em bairros novos, protegidos contra a contaminação popular. A justaposição das desigualdades, outrora natural, tornou-se-lhe intolerável: a repugnância do rico precedeu a vergonha do pobre. A procura da intimidade e as novas necessidades de conforto que ela necessitava ( pois existe uma relação estreita entre conforto e intimidade ) acentuava ainda mais o contraste entre os tipos de vida material do povo e da burguesia.242
A burguesia, preferiria a segurança e o conforto que a privacidade poderia oferecer, aos riscos de uma família de portas abertas para a sociedade. Seu isolamento social seria ainda mais hermético durante o século XIX. O movimento que do século XV ao XVIII levou a família a se confinar no interior da casa, abrigando-se da “pressão social”, 243 atingiu o apogeu no século XIX. Neste século turbulento, a família nuclear burguesa refugiou-se definitivamente em sua redoma de segurança, equilíbrio e harmonia. O antagonismo entre estes dois mundos – o privado e o público – deixava-se perceber pela arquitetura das residências burguesas. Enquanto os palacetes urbanos conservavam fachadas práticas e funcionais, o ambiente interno tornava-se acentuadamente faustuoso. Os cômodos, as paredes e o 239
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1975. p. 244. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1973. p. 191. 241 Ibidem, p. 191. 242 Ibidem, p. 195. 243 Ibidem, p.185. 240
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mobiliário, eram recobertos por tapetes, cortinas, quadros e objetos requintados que embelezavam o cotidiano da vida privada da família. A preocupação estética e a imprescindível busca por conforto, denotavam a avidez das pessoas para criar um mundo privado harmônico contrastante com seu exterior.244 Este ambiente “repleto e culto”,245 de acordo com Eric Hobsbawm, era mais que um espaço utilitário, era um símbolo de status e sucesso. Para Hobsbawm, o lar era a quintessência do mundo burguês, pois nele, e apenas nele, podiam os problemas e contradições daquela sociedade ser esquecidos ou artificialmente eliminados. Ali e somente ali, os burgueses e mais ainda a família pequeno burguesa podiam manter a ilusão de uma alegria harmoniosa e equilibrada.246
A sociedade do século XIX era percebida pelos membros da família burguesa, especialmente pelo pai provedor, dado que era este personagem quem diariamente lançava-se contra as multidões para garantir o conforto da família e a manutenção da propriedade, como um campo de batalha. A esposa e os filhos por seu turno, eram a base de apoio estratégico, o local onde se recuperava as forças após exaustivos combates pela sobrevivência. “O lar vestese de todas as virtudes, em oposição ao mundo exterior, que encarna as desordens humanas e sociais.”247 Sendo assim, a metáfora da guerra vinha naturalmente aos lábios dos homens quando discutiam ‘suas lutas pela existência’ ou a ‘sobrevivência dos melhores’, da mesma forma como a metáfora da paz quando descreviam seus lares: ‘o acolhedor lugar da felicidade’, o lugar onde ‘a ambição satisfeita do coração encontrava sua paz’, já que nunca podia encontrá-la no mundo exterior, desde que nunca podia ser satisfeita, ou admitir sê-lo.248
Apesar de incrustada em seus seios, a família insistia em situar-se em um ponto diametralmente oposto à sociedade. Família e sociedade tornaram-se dois mundos antagônicos e conflitantes. A “domesticidade”, definição de Edward Shorter para o que
244
De acordo com os autores do quarto volume de História da Família, no início do século XX surge uma cultura de classe média em alguns países europeus traduzida pela expressão “homo sweet home”. Desta forma, “o home é o espaço interior da família, valorizado ao extremo, muito decorado e embelezado. Reino da mulher, esta investe aí uma parte considerável de sua energia e do seu tempo.” In: BURGUIÈRE, André; KLAPISCH-ZUBER, Christiane; SEGALEN, Martine; ZONABEND, Françoise. História da família. O Ocidente: industrialização e urbanização. V. 4. Lisboa: Terramar, 1986. p. 23. 245 HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 322. 246 Ibidem, p. 321-322. 247 BURGUIÈRE, André; et ali. História da família. O Ocidente: industrialização e urbanização. V. 4. Lisboa: Terramar, 1986. p. 23. 248 HOBSBAWM, op. cit., p. 333.
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Philippe Ariès denominou de “sentimento da família”, “acabaria por atear um lume confortável no lar – incendiando a comunidade em volta.”249 Para Edward Shorter, o que verdadeiramente distingue a família nuclear – mãe, pai e filhos – de outros modelos da vida familiar na sociedade ocidental é um sentido especial de solidariedade que separa a unidade doméstica da comunidade circundante. Os seus membros acham que têm muito mais em comum uns com os outros do que com qualquer outra pessoa de fora – que gozam de um clima emocional privilegiado que têm de proteger da intrusão do exterior, através da privacidade e do isolamento.250
Era sobre esta família anti-social, confinada em seu microcosmo pacato e harmônico em detrimento da sociedade, que incidiam as críticas de Giovanni Rossi: Se a família pudesse viver ao ar livre, sob o controle severo da sociedade ou, como alguém já disse, em uma casa de vidro, poder-se-ia então minimizar um pouco sua ferocidade, sua vileza, sua corrupção. Mas o casal unido pelos laços da família tende a isolar-se na caverna, na cabana, no tugúrio, no palácio ou em qualquer outro lugar que encontre. E o sacrário doméstico, o inviolável santuário da família, o secreto gineceu se transforma nos subterrâneos da santa inquisição, nos porões secretos da bastilha. E as piores atrocidades humanas acontecem ali dentro, porque permanecem veladas e impunes. 251
Esse claustro onde habitavam as famílias, na ótica de Giovanni Rossi, correspondia a um ambiente nefasto, marcado por “atos de prepotência”,252 traduzidos pelo uso do poder autoritário do homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos, dos adultos sobre as crianças e do pai sobre todos. Segundo Giovanni Rossi, “na família, a prole repete e perpetua os clichês estúpidos dos pais”.253 Destarte, “é na monarquia absoluta da família que a mão do covarde espanca a face da mulher, que os jovens crescem no triste hábito da obediência e da simulação, alimentando o desejo de um dia, quando chegar a sua vez, mandar nos outros.”254 Não obstante, o ambiente familiar não era para Giovanni Rossi apenas responsável por formar os filhos na escola do autoritarismo, mas também, por ensinar a conivência com as
249
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1975. p. 222. Ibidem, p. 221. 251 ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 119-120. 252 ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 78. 253 ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 120. 254 Ibidem, p. 120. 250
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desigualdades e injustiças, pois “no interior das relações de parentesco, normalmente, toleram-se os defeitos que, ao contrário, são duramente condenados nos outros”.255 A dicotomia entre família e sociedade foi percebida por Rossi logo nos primeiros meses da Colônia Cecília, quando “três parentes, que eram do grupo, muitas vezes se uniam, formando uma facção à parte”.256 Como denominava Giovanni Rossi, o “espírito de facção”,257 impedia que o conjunto da sociedade se desenvolvesse espontaneamente e de forma harmônica, pois os interesses dos membros da família eram colocados invariavelmente à frente dos interesses do restante da sociedade. Para Rossi As faculdades anti-sociais que se desenvolveram na vida burguesa ainda perduram, enquanto as faculdades morais correspondentes à nova vida social não tiveram ainda tempo para se desenvolver e se consolidar. A essa contradição entre as tendências pessoais e o esquema da vida coletiva é preciso acrescentar a ação irritante da pobreza e o efeito nocivo das relações de parentesco.258
O idealizador da Colônia Cecília lembra que apesar de não ter ocorrido desavenças mais graves, tais como casos de violência, a questão da “domesticidade” dificultava o convívio coletivo: “vieram à tona, contudo, os egoísmos familiares – muitas vezes, os parentes comiam enquanto os outros permaneciam em jejum.”259 O “sentimento da família”, na visão do libertário italiano, comprometia os ideais libertários e ameaçava o desenvolvimento do bem-estar da colônia. Segundo Giovanni Rossi, Fica evidente que a produção na Cecília não teve outro estímulo a não ser o desejo de alcançar um bem-estar coletivo, no qual o nosso bem-estar particular está incluído. A atividade produtiva foi desenvolvida, apesar de e contra os egoísmos mesquinhos e, especialmente, contra o egoísmo doméstico, que quer que toda utilidade conflua para dentro da família, afastando dela qualquer justa parcela de sacrifício e de privações.260
Deste modo, a solidariedade afetiva dos membros da família conduzia as pessoas a serem indulgentes entre si e a canalizarem todos os recursos para o cerne das relações de parentesco, independentemente do “organismo social”. Enquanto os familiares, isto é, pais e filhos, permanecessem seguros e satisfeitos, a harmonia do lar estava garantida e isto era suficiente. 255
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 86. 256 Ibidem, p. 65. 257 Ibidem, p. 77. 258 Ibidem, p. 85. 259 Ibidem, p. 67. 260 Ibidem, p. 83.
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Referindo-se às relações de parentesco na Colônia Cecília, Rossi afirmava que “quem possui família tem um medo tão grande da pobreza que acaba causando aborrecimento ao outro, que sempre lhe parece não estar produzindo o suficiente ou estar consumindo muito. Os solteiros, nunca os vi contaminados por tamanho egoísmo”.261 O medo e a preocupação, salientados por Rossi, dos que possuem família pode ser atribuído menos ao egoísmo do que a responsabilidade exclusiva de assegurar a subsistência familiar, responsabilidade que recai apenas sobre os próprios membros da família e especialmente sobre o pai provedor. Nas sociedades burguesas, a garantia da vida dos indivíduos é antes de tudo, atribuição da família, na qual a sociedade não deve se imiscuir. Nesse sentido, para Giovanni Rossi, “a harmonia das relações econômicas entre individuo e a sociedade só poderá ser natural e espontânea quando todas as mulheres forem consideradas possíveis amantes e todas as crianças como possíveis filhos.”262Na perspectiva de Rossi, o binômio família-sociedade era um axioma que precisava ser desfeito, dado que “a solidariedade será apenas uma teoria enquanto o homem colocar de um lado a mulher e os filhos e do outro o resto da humanidade.”263 Da equação deste axioma dependia o êxito do projeto libertário, não pela reconfiguração, mas pela completa dissolução da família nuclear. De acordo com Rossi, a extinção da família era imprescindível para a concretização dos ideais libertários, como afirma em Um caso de amor livre na Colônia Cecília: Mudem-lhe à vontade os ritos e os nomes ou ainda suprimam-lhes os nomes e os ritos e restarão sempre um homem, uma mulher, filhos, uma casa, restará a família, o que é o mesmo que dizer: uma pequena sociedade autoritária, ciosa de suas prerrogativas, economicamente rival da grande sociedade.264
Esta “pequena sociedade autoritária”, governada por uma “monarquia absoluta”, “rival da grande sociedade”, ameaçava diretamente a harmonia social, pois como a vida coletiva resulta da soma de todas as vidas individuais e os hábitos privados influem fortemente sobre os hábitos públicos, será precária a existência de uma sociedade regida contemporaneamente por princípios contraditórios, o egoísmo da vida doméstica e a solidariedade da vida coletiva.265
261
Ibidem, p. 86. ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 124. 263 Ibidem, p. 122. 264 Ibidem, p. 123. 265 Ibidem, p. 123. 262
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Desta forma, a família, sob as lentes de Giovanni Rossi, portava-se como uma espécie de sociedade de auxilio mútuo mantida por laços de afetividade, ou seja, a família formava células independentes no interior do “organismo social” afetando o equilíbrio entre público e privado e a harmonia do conjunto. Para Rossi, assim como para muitos intelectuais e pensadores do século XIX, tais como Piotr Kropotkin e Auguste Comte, a dinâmica social comparava-se a um organismo, cujo bem-estar geral, dependia da harmonia entre os órgãos e o corpo, ou então, entre indivíduos e sociedade. Nesse sentido, a família era percebida como uma disfunção fisiológica, ou mesmo como uma patologia capaz de vitimar o organismo social. Por esta via, Rossi lembra que assim como as velhas formas de família se desmantelaram, a família cristã também está morrendo, e inúmeros sinais estão anunciando sua agonia. O que os senhores estão temendo, nós o desejamos; e neste centro experimental estamos convencidos de que tão-somente quando a molécula familiar estiver decomposta nos átomos que a constituem, a propriedade dos meios de produção voltará ao clã; mas o clã da nova era será o gênero humano [...].266
Embora as críticas de Rossi a família tivessem como alvo a reprodução da propriedade privada, esta não era a única nem a principal razão. A família ameaçava o equilíbrio e colocava em risco o bem-estar do corpo social. Rossi considerava a colônia como um “ambiente social moralmente sadio”,267 enquanto a sociedade burguesa, em contrapartida, era percebida como um ambiente doente, ou seja, uma “sociedade que é o oposto da nossa.”268 Da mesma forma, ao indagar sobre o futuro da Colônia Cecília, Giovanni Rossi chega a comparar a família a uma “doença” responsável pela “morte” da colônia:
O que será da Cecília? Talvez morra. Mas de qual doença? Geralmente, morre-se por falta de respiração; e quase ninguém procura indagar mais do que isso. Mas nós precisamos saber. O egoísmo familiar poderia desenvolver-se a tal ponto que conseguiria destruir o que se tem feito até agora, despedaçando a coletividade ou reduzindo-a à uma vulgar cooperativa.269
266
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 86. 267 Ibidem, p. 77. 268 Ibidem, p. 77. 269 Ibidem, p. 88.
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Nas narrativas de Giovanni Rossi abundam palavras, expressões e figuras de linguagem que remetem ao mundo ou mesmo às ciências naturais. “Organismo social”, “direito natural”, “sagradas leis da natureza”, “forma patológica”, “forma fisiológica”, “necessidade natural” são algumas das expressões que pontuam o discurso de Rossi sobre o amor livre e a família. Essas representações sociais construídas por Giovanni Rossi, são fruto de uma interpretação orgânica da sociedade e de um ideal político baseado no equilíbrio e na harmonia social, frutos respectivamente, da filosofia positivista de Auguste Comte e das idéias libertárias de Piotr Kropotkin. Se admitirmos as formas discursivas como meios de alcançar as representações sociais de indivíduos ou de grupos sociais, concebendo ainda, estas mesmas representações como construções imagéticas que conferem sentido ao mundo e atuam como “matrizes de práticas que constroem o próprio mundo social”,270 o discurso de Giovanni Rossi em relação a família nuclear leva-nos a inferir que ela é representada como uma célula, ou melhor, como uma “molécula” patológica que estabelece com o organismo social uma relação de assimetria, comprometendo o equilíbrio e o bem-estar coletivo.271 Para Rossi, a sociedade era representada como um organismo e deveria desenvolver-se naturalmente, livre de amarras. O equilíbrio e a harmonia do organismo social dependiam da relação simétrica entre suas partes e o todo. Nesse sentido a decomposição da família urgia, dado que esta operava através de uma lógica independente da sociedade, ocupando-se sobretudo com questões privadas e com a harmonia interna do seu microcosmo, aquém do seu exterior, isto, para Giovanni Rossi, significava o caos e por conseguinte, a falência do organismo social. No ano de 1894, a Colônia Cecília chegava ao fim. Muitos de seus moradores migrariam para as cidades vizinhas em busca de melhores condições de vida, outros, partiriam para a Curitiba onde contribuíram para a formação dos primeiros movimentos operários da capital paranaense. Giovanni Rossi, a havia deixado no ano anterior, pois acreditava que não havia razões para estender o experimento “no meio de tantas dificuldades de ordem extrínseca que a rodeiam”.272 Os resultados já haviam sido observados: “o desfazer-se progressivo e 270
CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia. A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002. p. 72. 271 Segundo Sandra J. Pesavento, “uma outra forma de compreender a representação seria dada pela exposição de uma imagem, que substitui algo/outro, ou mesmo pela exibição de objetos ou ainda por uma performance portadora de sentidos que remetem a determinadas idéias.” Nos discursos de Rossi, a família deve ser compreendida a partir de sua própria leitura do real, isto é, a partir da sua própria imagem do social, delineada como um organismo, cujo bem-estar, depende do equilíbrio sistêmico. Para definição de representação, vide: PESAVENTO, Sandra J. História e História cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 41. 272 ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
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espontâneo da família monogâmica prepara o terreno para o triunfo dos nossos ideais”, concluía Rossi antes de partir para Taquari.
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 87.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Colônia Cecília, produto do século XIX, fornecia uma amostra de alguns dos fenômenos sociais mais significativos daquele fim de século. O discurso cientificista, movimentos sociais e imigrações estavam presentes em uma pequena porção de terra do interior do Brasil meridional. No entanto, reconstruir sua história não estava entre os objetivos que tínhamos proposto. Sua história já havia sido escrita, recontada e até mesmo romanceada. Incidindo as análises sobre os discursos de Giovanni Rossi, pretendia-se chegar as representações sociais construídas pelo discurso libertário em relação a família no final do século XIX, mais especificamente, a família nuclear burguesa, composta pela tríade pai-mãefilhos. Entendíamos que as críticas do libertário italiano à família não estavam circunscritas apenas ao desejo comunista de por fim a propriedade privada. Em seus escritos era possível identificar elementos que nos conduziam para além desta razão aparente. Nesse sentido, fomos buscar entre os personagens históricos que transitam por entre as linhas dos textos de Giovanni Rossi, possíveis explicações para as críticas contundentes à família. Entre a gama de autores presentes nos escritos de Giovanni Rossi e que podem ser considerados como importantes influências na constituição do seu pensamento, dois apenas foram escolhidos. Sem dúvida, uma análise mais abrangente dos pensadores que o influenciaram daria maior solidez às interpretações. Por ora, optamos pela análise das idéias do libertário Piotr Kropotkin e de Auguste Comte por considerarmos essenciais para compreender sua representação da família. No discurso desses dois pensadores acreditamos encontrar as raízes do pensamento político de Rossi, assim como as razões e os métodos do anarquismo experimental. O nome do geógrafo russo figura inúmeras vezes nos escritos analisados de Giovanni Rossi, assinalado inclusive, em O Paraná no século XX. Nesta obra ficcional em que Rossi imagina um movimento revolucionário ocorrido no Paraná por volta de 1950, é nome de Piotr Kropotkin que vigora entre os pensadores divulgados pela propaganda insurgente e não o de Malatesta, contrariando Beatriz Pellzzetti Lolla. Nas últimas décadas do século XIX, Piotr Kropotkin tornou-se a principal referência do pensamento libertário, sobretudo, da corrente anarquista-comunista, a qual pertencia Giovanni Rossi. Não obstante, os dois libertários também estavam ligados às ciências naturais: um, geógrafo, o outro, agrônomo e veterinário. Nas obras analisadas de Giovanni Rossi, a proximidade entre mundo natural e social nos
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parecia reveladora. Os textos de Rossi são permeados por termos e expressões tomados de empréstimo das ciências naturais, como por exemplo, “organismo social”. Nesse sentido, fomos encontrar no positivismo de Comte, para quem a sociedade assumia a forma de um organismo, os fundamentos desta expressão. Assim, se a sociedade era análoga a um organismo, poderia ser cientificamente estudada e as leis que a regem, decodificadas. Rossi, cioso para expor as teorias libertárias a luz da ciência, como Kropotkin reivindicava, assim faria em sua colônia experimental. É na intersecção dos pensamentos desses dois autores que encontramos os contornos da representação da família nuclear burguesa construída por Giovanni Rossi. As propostas de harmonia social através do equilíbrio entre os elementos e o conjunto, presentes no anarquismo de Piotr Kropotkin, aliadas a leitura orgânica da sociedade, oriunda do positivismo de Comte, apontam para as razões dos discursos cáusticos proferidos por Giovanni Rossi relativos a família: simbolicamente, a família estava para a sociedade assim como uma molécula patológica está para o organismo. A partir do século XVIII a família havia iniciado um processo de enclausuramento, retirando-se da sociedade para reproduzir na atmosfera privada do lar, o equilíbrio e a harmonia que no mundo exterior pareciam impossíveis. Para Rossi, sociedade e família eram dois mundos antagônicos que ameaçavam a harmonia e o bem-estar geral. Segundo Michele Perrot, “unânimes em criticar a família de sua época, raros, porém, são os socialistas que pensam em sua total eliminação. Igualmente raros são os que pretendem uma subversão dos papéis sexuais, tão profunda é a crença numa desigualdade natural entre homens e mulheres.”273 Giovanni Rossi era um desses casos raros. No entanto, apesar de suas particularidades, Giovanni Rossi também não poderia deixar de estar relacionado a esta unanimidade. Na mesma medida que se distanciava dos demais em certos aspectos, Giovanni Rossi compartilhava com estes, visões de mundo, discursos e práticas comuns aos libertários de seu tempo. Desta forma, sem excluir as singularidades do pensamento de Giovanni Rossi, é licito sublinhar as similitudes que faziam de todos estes insurgentes do século XIX, libertários, especialmente, o equilíbrio entre individuo e sociedade. Esta proposição nos permite, a partir deste caso particular, levantar a hipótese geral de que, para além das criticas a família como reprodutora da propriedade privada, a dualidade entre público e privado era também uma das razões que motivavam os discursos anarquistas contra a família burguesa, pois, desta forma, 273
PERROT, Michelle ( org. ). História da vida privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. V. 4. Cia. das Letras: São Paulo, 1991. p. 100.
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seu principio elementar de liberdade individual e responsabilidade coletiva estava ameaçado e com isso, a própria sociedade que imaginavam.
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