A Mulher Na Literatura E Outras Artes.pdf

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  • Words: 263,875
  • Pages: 440
A MULHER NA LITERATURA E OUTRAS ARTES

Organização: Teresa Mendes Luís Cardoso

Portalegre 2013

4

A Mulher na literatura e outras artes – Comunicações apresentadas no I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor: © 2013, Instituto Politécnico de Portalegre - Escola Superior de Educação Organização: Teresa Mendes e Luís Cardoso Capa: Cristina Sala Composição: Lopo Pizarro Junho de 2013 ISBN: 978-989-96701-6-7

Índice

A Mulher na literatura e outras artes ÍNDICE APRESENTAÇÃO TEXTO de ABERTURA

Arte Poética Maria Teresa Horta

5 7

Clarice Lispector: a mulher e a escritora; o mérito e o mito

27

I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo

Angela Maria Rodrigues Laguardia

Mulheres: vozes femininas que se dão a ler

33

Isabel Maria Barreiros Luclktenberg

A presença feminina na poesia brasileira como Musa inspiradora e como Poeta criadora

37

Vera Abad

Relações étnico-raciais e de gênero na cena literária brasileira do século XIX

51

Isabel Silveira dos Santos e Marta Campos de Quadros

Representações femininas e escrita de si na literatura de Maria Helena Cardoso

57

Cláudia J. Maia

O locus eroticus na poesia de Gilka Machado

65

Darlene J. Sadlier

Literatura, Imprensa e representações da vida social portuguesa

69

Elisabeth Battista

Afinidades eletivas’: uma análise de duas poesias de Yolanda Morazzo

73

Maria da Graça Gomes de Pina

O apoderamento da cidadania por meio da leitura: vinte e cinco projetos brasilienses voltados para essa busca

81

Dinorá Couto Cançado

10. Dois finais de século na Bahia: cenas de mulheres Nancy Vieira e Milena Britto

Itinerários femininos: um olhar sobre a escrita feita por mulheres no meio do século passado Joana Marques de Almeida

89

Índice

Teorização literária no feminino: textos teórico-críticos de Guiomar Torresão (1844-1898) no arquivo digital E-poeticae – Textos de teorização literária on lin

95

Isabel Rio Novo e Célia Vieira

Raparigas sem brinco de pérola: figuras femininas em Dulce Maria Cardoso

103

Teresa Coelho

A inscrição do feminino e dos afetos na emoção e razão da poesia escrita por mulheres

111

Moíza Fernandes Almeida

A escritora Maria Archer e o retrato da mulher do início do séc. XX

119

Dina Botelho

O sujeito feminino (des)encantado na(s) narrativa(s) de Lya Luft Ana Catarina Marques II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

1- Entre Ângela, Bárbara e Beatriz: a visão vergiliana do sensível 1- Daniela Di Pasquale

2- O Universo Feminino em Histórias de Mulheres de José Régio 2- Maria José Marcelino Madeira D’Ascensão

3- Submissão e resistência: o feminino em Germano Almeida 3- Maria do Carmo Pinheiro e Silva Cardoso Mendes

4- Eugénio de Andrade, Solano Trindade e Viriato da Cruz REVISITANDO A FÉ MENINA NO FEMININO António Quino

5- Da mitificação à proscrição: Maria Monforte e o magnífico poder da ausência 5- Ana Luísa Vilela

6- Olhares sobre a singularidade da mulher na literatura dos séculos XIX e XX 1- 6- Ana Cláudia Salgueiro da Silva

7- Meninas em jogos de meninos – um estudo de caso na Literatura Infantil brasileira 7- Letícia Fonseca Richthofen de Freitas e Rosa Maria Hessel

123

Índice

Silveira

8- A Gata Borralheira no espelho: a desconstrução do conto de fadas em Sophia de Mello Breyner Andresen 8- Fabiana Miraz de Freitas Grecco

9- João do Rio, a mulher e os espelhos 9- Juliana Bulgarelli

10- DE RISO, LAÇOS E FITAS OU “À MODA” DE BERNARDO GUIMARÃES 10- Keila Vieira de Sousa

11. Personagem feminina e feminismo em “Esses Lopes” de Guimarães Rosa 11. Hellen Viviane Rodrigues e Maria Célia de Moraes Leonel

12. JORGE AMADO E A HORA DA GUERRA: A MULHER, O NAZIFASCIMO E POSSIBILIDADES DE REPRESENTAÇÕES 12. Benedito Veiga

13. Eva Foedata - abjeção e sublime na representação feminina a partir da poesia de valter hugo mãe 13. Francisco Saraiva Fino

14. Miguel Esteves Cardoso, O Cronista Apaixonado 14. Maria Filomena Barradas

15. Musas de Milton Hatoum e Marçal Aquino na Amazônia 15. Helena Bonito Couto Pereira

16. Representações da mulher em obras de Ana de Castro Osório e Maria Archer: a (des)construção do estereótipo 16. Armanda Bouzy

17. Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Marilene Felinto: ressonâncias e dissonâncias 17. Sandra Maria Job

18. A desconstrução dos estereótipos sobre a mulher em Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo 18. Anike Ruth Omidire III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação

1. A escrita do corpo na Literatura Feminina Afrobrasileira: novos olhares, outras representações 1. Cristian Souza de Sales e Liz Maria Telles de Sá Almeida

Índice

2. “Entre a História e as ficções – o caso da Balada da Praia dos Cães” 2. Rita Correia

3. A construção do feminino nas obras Ponciá Vicêncio e Insubmissas lágrimas de mulheres, da escritora e pesquisadora Conceição Evaristo 3. Rosinéia de Jesus Ferreira

4. Construção da identidade feminina nas obras de Alice Vieira IV Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)configuração do cânone e da identidade

4. Teresa Mendes

1. Por um cinema menor: mulheres no documentário brasileiro contemporâneo 1. Carla Maia

2. Modulações do Feminino na canção de Chico Buarque e na Pintura Brasileira 2. Adelia Bezerra de Meneses

3. Território de mulheres: pontuações do trânsito entre as montanhas de Minas Gerais e a cordilheira dos Andes 3. Dulce Couto

4. O género na crítica musical portuguesa (1950s-1970s): Maria Helena de Freitas e Francine Benoit 4. Helena Lopes Braga

5. A evanescência do absoluto e a sublimação pela Arte: a Mulher em Cântico Final – do romance de Vergílio Ferreira ao filme de Manuel de Guimarães 5. Luís Miguel Cardoso

6. PRINCESAS DA DISNEY: Percepções do discurso imagético 6. Roberto Lima Bordin e Sibila Rocha

7. Identidades em cena em Des-Medéia, de Denise Stoklos 7. Sonia Pascolati

8. CHICK FLICS, MELODRAMA, CINEMA DE MULHER: a semântica dos termos e a presença feminina no recente cinema brasileiro V Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro

8. Sumaya Machado Lima

1. AS MULHERES-ILHAS DE ORLANDA AMARÍLIS NO CONTO “MAIRA DA LUZ” Fabiana Miraz de Freitas Grecco

Índice

Estrangeira e estranho: louvor e ilustração da alteridade Joëlle Ghazarian VI Modalidades de escrita no feminino: diários ficcionais e narrativas epistolares

1. Falsos caminhos de um possível diário: lugares e não lugares na poesia de Ana Cristina Cesar 1. Juliana Silva Dias

2. Escrita diarística e epistolar de Mécia de Sena, o “anjo eficaz” de Jorge de Sena 2. Maria Otília Pereira Lage

3. A TEIA DE PENÉLOPE: artifícios da inscrição ficcional do diário feminino 3. Sílvia Cunha VII Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino

1. NIKETCHE – Subalternidade e Poder: Falar e Agir 1. Anabela Gonzaga Penas

2. Crime e redenção: mulheres que matam 2. Lyslei Nascimento

3. Trovadorismo, Mulheres e Dança da Ratoeira: registros culturais açorianos na Ilha de Santa Catarina VIII Outras representações do feminino

3. Sumaya Machado Lima

1. Notas sobre a Presença Feminina na Revista de Portugal 1. Adriana Mello Guimarães

2. Os olhos do D. Varão são de mulher, de homem não Personagens femininas no romanceiro popular ibéric 2. Anamarija Marinovi

3. A Representação do Feminino nas Crônicas de Luiz Fernando Veríssimo e David Coimbra 3. Camilla Compagoni e Sibila Rocha

4. Profissões no Feminino: a Enfermagem no Estado Novo 4. Helder Manuel Guerra Henriques

5. MULHER NA REVISTA SELEÇÕES DO READER’S DIGEST (1950–1960): REPRESENTAÇÕES (RE)CONFIGURANDO IDENTIDADES 5. Sandra Monteiro Lemos

6. OUTRO LUGAR PARA A MULHER EM “CORREIO FEMININO”, DE CLARICE LISPECTOR 6. Yvonélio Nery Ferreira e Marília Simari Crozara

11

EDITORIAL O presente Ebook revisita o I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea, organizado pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Portalegre, com o apoio da Universidade Federal de Juiz de Fora, e do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e traz à luz as comunicações apresentadas pelos conferencistas portugueses e estrangeiros, vindos do Brasil, Angola, Nigéria, Itália, Estados Unidos da América e França. Subordinado ao tema A Mulher na Literatura, o I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea pretendeu instituir-se como um espaço de discussão e reflexão em torno das questões de género nas literaturas de expressão portuguesa contemporâneas, nomeadamente no que à autoria e às representações literárias do feminino diz respeito. Convocando diferentes olhares e diferentes perspetivas teóricas, metodológicas e culturais, o Congresso permitiu partilhar experiências de leitura e resultados de investigação nas áreas que lhe estão correlacionadas, dando a conhecer textos e autores contemporâneos de língua oficial portuguesa que concedem o protagonismo e dão voz a diversas figurações do feminino. Permitiu, igualmente, identificar semelhanças e dissonâncias nas formas como essas representações da

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figura feminina se concretizam no interior dos textos, e assim retirar ilações de âmbito mais geral. O Congresso, que teve lugar nos dias 11 e 12 de junho de 2012, na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Portalegre, acolheu mais de cem propostas de comunicação nos seguintes subtemas: 1. Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo 2. Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino 3. Modalidades de escrita no feminino: diários ficcionais e narrativas epistolares 4. Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des) construção do estereótipo 5. Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: auto-perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação 6. Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro 7. Representações da mulher no Cinema e outras Artes: a (re)configuração do cânone e da identidade. O Congresso incluiu, para além das comunicações já referidas, múltiplos eventos paralelos, dos quais destacamos uma feira do livro lusófono, a apresentação do filme Florbela, com a presença do realizador Vicente do Ó e da atriz principal Dalila Carmo e, como momento mais marcante, a conferência inaugural, proferida pela escritora Maria Teresa Horta, subordinada ao tema Arte Poética, e que a autora, gentilmente, permitiu que fosse incluída neste Ebook. Este Congresso Internacional, organizado pela Área Científica de Língua e Literatura Portuguesas da ESEP, com coordenação de Teresa Mendes e Luís Miguel Cardoso, integrou na sua Comissão Científica, para além dos coordenadores, os professores Carlos Afonso (IPP/ESEP - Portugal) e Fernando Fiorese (Universidade Federal de Juiz de Fora – Brasil). Neste Ebook são contempladas as comunicações recebidas pela Organização em formato final, tendo sido composto pelo nosso colega Lopo Pizarro, a quem agradecemos o seu trabalho e disponibilidade. Tal como, simbolicamente, o Congresso pretendia marcar um momento de encontro entre investigadores lusófonos, assim, também, de forma simbólica, este Ebook é apresentado, publicamente, no dia 28 de junho, dia do vigésimo oitavo aniversário da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Portalegre, dia de celebração da história de uma Instituição de Ensino Superior que soube construir, ao longo do seu trajeto, muitos outros momentos de encontro, de incontornável relevância científica, pedagógica e cultural. Agradecemos a todos os conferencistas que participaram no I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea e edificaram, connosco, este projeto, e desejamos um reencontro num futuro próximo, de modo a unirmos os plurais olhares sobre a lusofonia em nova celebração do nosso património comum: a Língua Portuguesa.

A Comissão Organizadora

Arte Poética Maria Teresa Horta

Diz-se língua materna aquela que começamos a escutar e a aprender ainda dentro da barriga da nossa mãe. Tessitura do fio que nos irá ligar um dia mais tarde à escuta das nossas raízes, das nossas origens, e em seguida à fala de tudo isso, como nossa própria nacionalidade. Portugalidade, meu genoma literário. Urdidura que me levou à escrita, com um gosto atravessado de lua e travo cravejado de oceano, intacto e incontido, num mítico, simbólico e ensimesmado canto de sereias. Eurídice em vez de Orfeu. Heloísa em vez de Abelardo. Isolda em vez de Tristão. Penélope em vez de Ulisses. Arriscando encantamentos e tentações, fatalidades que tanto têm alimentado a intensa cintilação da história da literatura... Penélope na urdidura, não da fidelidade, mas antes, sim, da criatividade pura; linha e fio de alinhavo, ponto a ponto, de cruz ou pé-de-flor... Ponto dado e logo desmanchado, com ele cerzindo a trama desgastada, puída. Ou deveria dizer antes: palavra a palavra-escrita e de imediato emendada e reescrita? Literatura que em Portugal tem como linhagem a pena dos trovadores e dos poetas. Dos primeiros deles, na Idade Média, a construirem as suas poesias, curiosamente, através de um discurso travestido, feminino, sendo disso exemplo maior as Cantigas de Amigo. «– Dizei-me, filha, mia filha velida: porque tardaste na fontana fria? Os amores ei. – Dizei-me, filha, mia filha louçana: porque tardaste na fria fontana? Os amores ei. – Tardei, mia madre na fontana fria, cervos do monte a água volviam. Os amores ei. – Mentir, mia filha, mentir por amigo! Nunca vi cervo que volvesse o rio Os amores ei. »

15

Desobediência a desobediência constroi-se a poesia, pedra a pedra de luz e de lisura, no labor do poema, no silêncio da escrita, entre o acto da mão e do desejo, do voo voado das odes, pelo forro da ferocidade dos versos. De insubmissão a insubmissão

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Por isso escolhi para falar hoje aqui, sobretudo das poetisas, inquietas e imprevisíveis, enlaçamento maior, vertigem envolvendo-me, ou envolvendo eu as minhas palavras, a minha voz, com as delas: a de Públia Hortênsia poetisa e filósofa do século XVI, que disfarçada de homem estudou Humanidades e Metafísica, a das poetisas anónimas da mesma época frequentadoras da Academia da nossa infanta renascentista D. Maria. A das freiras barrocas, Soror Violante do Céu, Soror Madalena da Glória, Soror Maria do Céu, à da introdutora do romantismo entre nós, em pleno século XVIII, Leonor de Almeida Marquesa de Alorna, e também a de Catarina de Lencastre, a de Joana Isabel Forjaz, tal como, já no século XIX a de Francisca de Paula Possolo. E no começo do século XX, a de Judite Teixeira e a de Florbela Espanca. Outras poetisas houve, porém, que escreveram em escondimento, obrigadas ao anonimato, mantidas fechadas, trancadas, ocultas na sombra dos conventos ou das suas casas solitárias como mosteiros ou prisões. Temendo-lhes os homens, no entanto, a independência de espírito e a ardorosa paixão. A rivalidade, no que dizia respeito ao pensamento, à escrita e sua construção alada, prazer extremo no trabalhar da linguagem literária. Prazer invocado, aliás, por Teresa de Ávila: “Oh o prazer do acto de escrever!”. Exercício de poder, em obediência apenas à própria vontade. Clarice Lispector confessou durante uma entrevista, nos anos 50:“Avançar obedecendo-me, é em verdade o que eu faço quando escrevo”. As mulheres são as vozes do desassossego, do sobressalto. As mulheres são as vozes do indizível na literatura. Escrevem com a ponta de uma faca, golpeando até ao fundo da ferida. – Têm a escrita da ferida. Com elas, aprendi uma nova gramática da liberdade, da coragem e do desejo. Uma sintaxe de fogo. Assombro a assombro constroi-se a poesia, fenda a fenda, brecha e fissura, corte e frincha e falha. Haste. Cisne e rola, no trilho das constelações em torno da literatura. Sirius e Cassiopeia. Na busca da linguagem da mudez, porque nada é impossível ou inviável ao nosso imaginário; de ficcionistas, poetisas da ruptura e da inclemência, em versos e ficções insondáveis, enigmáticas. Por onde corre a pantera ao longo dos textos, dos versos e dos sonhos cruéis. Daquilo que as mulheres escrevem, tentando esquecer, vencer a escuridade, a mordaça e as algemas. De alvoroço em alvoroço.

LUZIMENTOS Pouco depois de chegar à escrita, encontrei a Fiama Hasse Pais Brandão e a Luiza Neto Jorge, com elas vieram o Gastão Cruz e o Casimiro de Brito, e os cinco escrevemos «Poesia 61». Nos anos 60 andávamos as três seguindo o luzimento dos versos, das palavras que íamos colhendo do nosso imaginário, a reinventar a vida, suspensas do indizível e incendiado gosto da criatividade, perplexas e maravilhadas perante os inesperados e deslumbrantes universos que perseguíamos. Desabrigadas em tudo o resto. À nossa beira, abria-se a floração dos poemas, que não raras vezes temíamos confundir com as paixões, a lima amarga das desilusões, a malvasia do resto da infância, e até por vezes connosco mesmas; enquanto seguíamos por caminhos incertos. Cada uma de nós admirada, a escutar as outras... a falarmos, a calarmos. A lermos alto o que íamos escrevendo, a deslindar símbolos, inconscientes obscuros, e imagens. Podia adivinhar-se o sobressalto e a inquietude, a percepção alante que nos havia ficado de crianças. Por isso, aqui e ali ainda parecíamos hesitar, embora também esvoajassemos, marinhássemos pela luz, trepadeiras de hera ou de roseira, numa cumplicidade desobediente e bem cumprida: a Fiama com a sua serenidade um tanto surpresa na contínua descoberta de tudo à sua volta, e a Luíza, a mais determinada em sair ilesa, numa iludida fragilidade impossível de sustentar. De mim, lembro a desmesura voraz fazendo-se destemida. Mas recordo sobretudo, com alguma perplexidade, a ousadia e a ambição desmedida de querermos tomar nas mãos a própria existência: o mundo. Assim como a invenção quotidiana da escrita e a luta pelas tantas liberdades urgentes, num Portugal onde qualquer pensamento livre era considerado crime. Coisa natural era, pois, gostarmos de conversar horas e horas, encostadas em almofadas no chão da minha casa, onde a “Poesia 61” foi planeada, organizada, discutida. Coisa natural, era, pois, dançarmos sem par, rirmos juntas, enumerar o que iríamos recusar e construir, exigir dali para a frente. Enquanto tentávamos entender igualmente as nossas diferenças múltiplas. Resguardando, afinal, o que mantínhamos trancado por dentro, fechadura de segredo na altura do peito, embora pretendêssemos demonstrar o contrário, a equilibrarmo-nos numa corda de trança. É assim que nos lembro: com uma certa reserva de expectativa, na invenção hábil duma alegria de proximidade, que nos fizesse sentir amadas, a iludir a solidão imensa. Temendo desorganizar a naturalidade, com que escrevíamos, colhíamos e habitávamos os dias. Harmoniosas e dissemelhantes. Também de junto de mim na altura, guardei sempre aquelas a que chamava de “deusas maiores”, com as suas varinhas de poemas, cada uma diversa da outra, mas todas elas com uma generosa abertura, prontas a lerem-nos e a escutarem-nos. Estou a falar de Natália Correia, de Sophia de Mello Breyner, de Irene Lisboa, de Salete Tavares, de Fernanda Botelho, de Ana Hatherly. Exemplos de resistência, de talento, de integridade.

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Beleza a beleza constroi-se a poesia, imagem a imagem indócil; eis-nos diante da luminosidade e ambiguidade das literaturas secretas, obscuras e sigilosas; em livros que cruzam, cerzindo por dentro de si, o brilho da fatalidade, num libreto de ópera, num aforismo, num hino, na falta. Beleza libertina, como uma orquídea. Vulto oculto nas mãos dos poetas, que eternamente a perseguem e buscam, com a volúpia ambarina da queda. Onde as mulheres são espias na casa do amor. De deslumbramento em deslumbramento.

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MINHA SENHORA DE MIM Simultaneamente, para mim sempre houve Camões. Também D. Diniz, Sá de Miranda, Cesário Verde, Antero de Quental, Nobre, Camilo Pessanha, Mário de Sá Carneiro ... Embora pelo avesso deles eu buscasse já, mesmo se inconscientemente, o lugar do tumulto e do interdito, onde crescer e tomar assento, sobrepondo ou trocando a mudez feminina pela palavra audível, transgressora: mudando-mudando-me, umas vezes subtilmente, mas a maior parte das vezes com frontalidade, desobedecendo, espécie de bofetada na face da burguesia bem-pensante e hipócrita dos anos sessenta, início dos anos setenta, no Portugal fascista de então. A querer estilhaçar com os meus livros, com as minhas obras, o retrógrado moralismo da altura, pois tudo o que era liberto, criativo e diverso a ditadura castrava, proibia, censurava. E no que dizia respeito ao feminino, a polícia política do regime estava particularmente atenta, pois Salazar, tal como Hitler, exigia que os lugares das mulheres fossem apenas: a sala, o quarto das crianças, a cozinha. Proibiram, pois, o meu livro “Minha Senhora de Mim”, fui espancada em plena rua, e a editora Dom Quixote, ameaçada de encerramento, caso a sua dona Snu Abecassis voltasse a publicar-me. Obra de minha viragem poética, mas que me fez, igualmente, conhecer na pele a violência do sistema ditatorial de mentalidade medíocre e opressiva por ele caucionada. Violência insidiosa e atordoadora, a tentar empurrar-me para os braços do medo. Mas, insubordinar com as palavras de inquietar a escrita, tem sido desde sempre o meu constante princípio: ousar, desobedecer, indisciplinar, regras da poesia e da ficção, através quer do seu imaginário, quer da sua temática, quer do seu discurso fraccionário, fulgente. Indo contra o aceite de regras quer morais quer literárias, de modos e modas, do valor da tradição pela tradição, de uma auto-comiseração aquietada. Como o lamento pelo lamento, destes versos de Sá de Miranda: «Comigo me desavim, Sou posto em todo o perigo; Não posso viver comigo Nem posso fugir de mim.» Indisciplina literária chamo eu, por exemplo, tomar estes versos, a fim de transformá-los, mudá-los em meus versos, fruto da minha sensibilidade e dissemelhança. Ou seja: a mesma língua e quase as mesmas palavras, mas usadas com a marca do feminino. Portanto, sentidos e sentimentos totalmente diversos:

«Comigo me desavim minha senhora de mim sem ser dor ou ser cansaço nem o corpo que disfarço (...)» Ou seja, enquanto ele se condói com a própria conturbação e dôr, eu revolto-me contra a minha condição de mulher submetida e dependente da ordem misógina, do poder masculino, jamais dona da minha vontade e própria existência. Versos que eu queria e continuo a querer de desacato, de declaração de independência e de liberdade. Palavras que pretendia e continuo a pretender de deleite, de voo feminino na linguagem. No arrebatamento. e no júbilo. No testemunho, no ofuscar, no desocultar, na desconstrução. No transgressor discurso do desejo. No poder do olhar sobre o corpo-os corpos. Corpo a corpo constroi-se a poesia, de ardil a ardil e desacato, sedução e posse. Discurso do desejo a despir as palavras, a tirar-lhes lentamente os vestidos, as blusas, as luvas, as saias, os véus, as meias de vidro, com vagares de rumorejo num titilar de pássaro, a deitar o poema no lençol, no joelho, no papel, na pele ensimesmada do pulso. De deleite a deleite. 19

Num entrançar de escritas várias entre si, mas em si mesmas unas; árduas no acrescentarem-se, num imenso trabalho literário, dimencionando-se, criando avesso na sua outra criatividade. Ousando tudo. Num prazer único, que em si mesmo contém a aventura da palavra escrita.

A PALAVRA DO CORPO O CORPO DA PALAVRA E “Novas Cartas Portuguesas”, livro que a partir das cinco cartas de Mariana Alcoforado, escrevi com a Maria Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa, testemunham esse mesmo deleite e anseio, determinação em denunciar e transgredir, numa mistura de vários géneros literários: a poesia, o ensaio, a ficção, memórias, cartas e diários. Livro assumidamente de conturbação e desassombro, que nos valeu por parte do governo fascista de Marcelo Caetano, um processo político em tribunal, sob a capa de “atentado ao pudor, à moral e aos bons costumes”. Ou seja, com esta obra, infringimos vários interditos maiores: abordámos a guerra colonial, denunciámos a opressão da ditadura, falámos enquanto mulheres da discriminação das mulheres portuguesas, da sua sexualidade, do seu-nosso corpo, do seu-nosso prazer. E fizemo-lo, também e não só, em termos do desejo feminino. Falámos do corpo, usando as palavras do corpo. As palavras do corpo. O corpo das palavras:

II

Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

«Mas se o corpo é escrita no leito do papel onde a mão o deita, desnuda e o invade lhe acaricia os ombros e em seguida O possui de bruços e mesmo assim não sabe saciar o corpo no corpo do delírio com a avidez de uma emoção rapace»

Palavras do corpo que a mão desobediente da escritora conduz, desse modo transfigurando-se, tentando reconhecer-se no “transfert” que a transforma, a refaz e ouve, como se psicanalista à cabeceira da sua própria escuta. Corpo do texto, do poema, corpo de ruptura... «Corpo da escrita criando a linguagem Corpo da musa a inventar o verso Corpo inverso mas não sem a palavra Corpo brincando por dentro do poético» 20

Interrogando, questionando o mundo. Musa a musa constroi-se a poesia, silhueta em silhueta, neste ofício de lira e lentidão de lua. Misterioso trabalho, de sílabas, de rimas e metáforas. Obscuras vozes que as mulheres escutam à cabeceira da sua lonjura. Sonetos e odes e elegias, a traçarem no desenho das letras o tropel das emoções jubilosas. Com a farpa, com o espinho, a beberem no coração o vício da criação e do desalinho. De asa a asa. Revejo-me na sua solitude de negrume arrepiado... Vazio do que aparenta estar cheio, na permanente sombra da claridade que cega, tal como me encontro no lirismo das brasileiras Hilda Hilst, na sua voracidade-ferocidade; e igualmente na avidez poética manipuladora e ondulante de Cecília Meireles. Nelas, eu conto-me-encontro e desencontro-me. Como já disse um dia: Aquela que escreve é uma criadora de liguagem. Aquela que escreve é uma semeadora de desordem. Avidez a avidez

constroi-se a poesia, inquietude em inquietude, cave ou gruta ou sotão no cimo, no círio da claridade; em jeito de assombro e de desagasalho. Esta é a minha linguagem e país e pátria; língua com a qual escrevo e onde o ninho se faz e refaz com a sede, com a seda, com o cetim das pétalas e das hastes das rosas da Índia, sedentas. Escrita árdua e astuta e aventurosa; ao longo das linhas, das entrelinhas na doçura ou brancura da folha; tinta de limão e lágrimas, na sua transparência e simulação astuta. Desassossego a desassossego LINGUAGEM DE POETAS Com a palavra portuguesa. Canto e encantamento atlântico, aprendizagem e crescimento da nossa língua através do deleite e das tormentas, dos laços e das lanças, das batalhas e dos despiques das rimas, do gume das lâminas, e do fio dos versos. O português é uma língua lavrada, talhada, sulcada pelos poetas. – Da minha língua vê-se o feminino. Língua de tanta beleza antiga e sábia, tão sensível e dúctil e rica e maleável e múltipla, que em grande aprazimento e entrega com ela e nela se trabalha, e a partir dela se cativa, se seduz e inventa: «Jamais perco o travo da palavra que a poesia guarda Corpo português a deitar-se na fala» Corpo e escrita, num contínuo enlaçamento, entrelaçamento e nós, de dar bordadura à alma portuguesa... Sendo a minha escrita uma trança feita com o meu arrebatamento e com o das escritoras e escritores, das poetisas e poetas da nossa língua. Foi ao seu rio e lago e ria e braço de mar, que fui descobrir as minhas raízes, porque sempre por trás das nossas palavras estão outras palavras. Foi ao seu porto que cheguei para infringir o canto, foi a sua enseada que tomei para mim, com a determinação da mudança. No cercar, na vigília, na expiação.

Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

Que desassossego escondido confessamos, quando escrevemos? Em busca de enredamento, de multiplicidade. Insubordinação a insubordinação constroi-se a poesia, liberdade em liberdade, cuidando de desmanchar as regras dos poemas, as imposições, as disciplinas, as ordens. A retirar barreiras, grades, trancas, entraves e limites; e pelo seu avesso, traçando rotas e mapas de navegação dos versos, a exorcisar fronteiras e interdições, recusando princípios de aceite imposto, de onde espreitam ocultos: os censores, os mentores, os predadores, os inquisidores embuçados do Apocalipse. De motim em motim. Imagina-se a escrita. Num moroso, rumoroso trabalho sobre a linguagem. E tudo já se chamou àquelas que escrevem: Ladras das palavras. Salteadoras da escrita. Aventureiras. “Uma bela aventureira portuguesa”, foi como Fouché, chefe da polícia de Napoleão, no início do século XIX, se referiu numa carta, à marquesa de Alorna, então Condessa de Oeynhausen.

DESMESURA Mortalidade a imortalidade Constroi-se a poesia, fiada-entretecida pena a pena pelo do fio das malhas de escrever, do entrançar esquivo e fino da arte da rima; tinta e orvalho na lisura, no sustento do poço do peito. Em busca da glória, da posteridade, que Orfeu persegue ao longo dos séculos; na dádiva e na entrega, na procura da eternidade. Enquanto Eurídice, obstinada, foge à sua posse que, a enclausura de amor, a detém e impede, a encarcera e nega. De desatino em desatino.

No enlaçamento, no envolvimento... De enredos e interditos, entre enganos e sigilos, maneiras ínvias de narrarmos, de confessarmos a nossa desmesura... «Entre fala e outro enredo interdito e já escondido

II

sussurrando sem medida Na entrega fusional confundida e obscura lascivos na desmesura» No costurar do imaginário, num sobrepor de tecidos: o passado e o presente, o ontem e o hoje, interligados numa malha entretecida com as suas linhas de cor, logros e perplexidades... «Entre o dito e o não dito culto no sobressalto entre colher veia e veio. (...) Entre Brasil Ásia e África entre saudade emigrante origens de tão largado e depois de tão distante»

Em afirmação maior e essencial de nossa similitude unívoca. Entre a portugalidade e o ser-se português, na fala e na escrita da nossa língua... «Na saudade e na poesia na pena e no penar na tristeza e entre versos Entre a pátria e outras pátrias do outro lado dos mares» «Ó Portugal da minha infância / não sei porque é, amo-te a distância, / amo-te mais quando estou só...» , como escreveu António Nobre... E eu como ele na melancolia, mas também no regozijo, dizendo-escrevendo o modo e a maneira de ser-se português / portuguesa. Língua e escrita. Minha poesia encontrada no embalo, no vai-vem das águas. Onda e voo que não sabe por onde, nem como flutua e paira. Ou se no seu arroubo e encantamento se ergue do raso chão, a alcançar o alto, o espaço sonhado de onde partiram as caravelas; como quem olha da rendilhada Torre de Belém o vasto mar, ali ainda caldeado de rio, a perder-se no

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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

horizonte em frente... Num trato fascinado e revolvido com a palavra escrita, com a língua portuguesa espalhada pelo mundo:

Espelho e aço Nesta fundura boa e mar profundo Para depois subir a pulso o mundo

PORTUGUÊS Se a língua ganha a dimensão da escrita e a escrita toma a dimensão do mundo Descer é preciso até ao fundo na busca das raízes da saliva que na boca vão misturar tudo

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Mas há ainda a pressa do papel que no tacto navega a brusca seda Se a sede se disfarça sob a pele descendo pela escrita essa vereda

E já se inventa enlaça ou se insinua Se entrelaça a roca e o bordado que as palavras tecendo lado a lado querem do país a alma nua Aí podes parar e retornar à boca esse espaço de beijo e de cinzel Onde a fala retoma a língua solta trocando a ternura pelo fel Um lado após o outro a dimensão está dita O tempo a confundir qualquer abraço entre o visto e o escrito

A língua materna é a minha mátria, o meu universo literário. Com ela pretendo afirmar a minha singularidade. E a ela chego através daquilo que escrevo, e escrevo aquilo que sou; em resposta aos meus apelos ardentes, numa envolvência de nós atados no sentir e no expressar. Ou não fosse a escrita do imaginário português um imenso todo tansbordante: o excesso que me extravasa. A plenitude que se me impõe. Paixão a paixão constroi-se a poesia, de delírio em delírio; discurso amoroso a alimentar-se de si próprio, desejo que arde e queima ao pé dos lábios até à loucura. No refazer da sua identidade, ideia e metáfora; linguagem possuida e elaborada com devastados e chameados signos e sinais. Palavras de fogo e vidro... Sem salvação possível. A escrita nunca esquece, nunca redime nem sublima; questionando-se e a questionar-nos o mínimo e o tudo da criatividade. Com a sua arte poética. Diante do espelho literário: atenta à própria imagem. Escrever salva-me.

Portalegre, 12 de Junho de 2012

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CLARICE LISPECTOR: a mulher e a escritora; o mérito e o mito Angela Maria Rodrigues Laguardia Universidade Nova de Lisboa, Portugal

Resumo: Em A Descoberta do Mundo, antologia de crónicas de Clarice Lispector,escritas para o Jornal do Brasil, entre os anos de 1967 e 1973, confrontamo-nos com a mulher, a ficcionista e a cronista que emerge de reflexões metalinguísticas para resultar no mito Clarice. Ao mover-se entre as fronteiras da literatura e do jornalismo, Clarice constrói um espaço que vai além do modelo convencional do género cronístico: descobre-se para “descobrir o mundo” e possibilita um processo de genuína identificação do leitor com os temas que propõe. Percorrendo estas crónicas e elegendo algumas, aqui, para tentar compreender como ocorre esta relação ficcional/factual de seus textos com o leitor, deparamo-nos com o enigma clariciano, como no excerto intitulado Sim ou não: “Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós” (LISPECTOR, 1984:279). A sedução e o desafio desta cumplicidade constituem-se em um jogo escritural, dimensionando a travessia da personagem Clarice dentro de sua própria obra, num olhar que se move de dentro para fora e vice-versa, constituído pela poesia e filosofia de seus múltiplos papéis, hábeis disfarces do mistério que alimenta sua obra.

Introdução Este trabalho pretende refletir sobre as crónicas de Clarice Lispector, reunidas na obra A Descoberta do Mundo. Por um lado, visa ajudar a compreender o nascimento da cronista dentro do percurso da escritora. Por outro, procura configurar a mulher e a personagem que emerge dessa escrita, instituindo, através dela, o seu grande mérito e erguendo-a aos píncaros do mito. 1- A mulher e a escritora nas crónicas de A Descoberta do Mundo A Descoberta do Mundo reúne 468 títulos de crónicas publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. Esta obra, postumamente editada, em 1984, por seu filho Paulo Gurgel Valente, apresenta “uma continuidade” que permite ao leitor da antologia compreender como os textos que, “aparentemente”, não se enquadrariam no género (comentários, recados, trechos de romances, contos, novelas e outros), vão conquistando seu espaço enquanto género e também ganham uma proximidade e cumplicidade entre Clarice Lispector e os

leitores de suas crônicas. Este espaço viria também a contribuir para a divulgação das obras da escritora. Segundo Teresa Montero, inicialmente, foram os contos que tornaram Clarice Lispector mais próxima de seus leitores, principalmente quando a revista Senhor publicou contos como A menor mulher do mundo, Feliz Aniversário e A imitação da rosa, na década de 50, obtendo uma resposta positiva do público, assim como o interesse das editoras. Esta proximidade aumenta em 1964, com a publicação do romance A paixão segundo G. H. e do livro de contos A legião estrangeira, alguns dos quais são publicados na Senhor, “mas a sua recepção se expandiu quando o grande público pôde ler alguns deles na coluna de Clarice no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973” (MONTERO, 2009:13). Em Felicidade Clandestina (1970), a escritora resgata contos de A legião estrangeira e crônicas do Jornal do Brasil. Aqui, com Teresa Montero, pergunta-se: “O que é crônica e o que é conto neste livro? Os gêneros se misturam. Clarice afirmava: ‘Gênero não me pega mais’” (MONTERO, 2009:13). As experiências anteriores de Clarice Lispector

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no jornalismo, como colunista, podem ter contribuído para este exercício “transgressor” do espaço da crónica. Em 1952, ela assina a coluna “Entre Mulheres”, no semanário Comício, sob o pseudónimo de Teresa Quadros, a convite do escritor e jornalista Rubem Braga. Em um contexto do pós-guerra, ela tratava de assuntos do lar e de moda, dava conselhos para as leitoras sobre a silhueta, receitas e até da maneira de prevenir problemas no casamento, entre outros assuntos. Porém, ela foi além dos considerados assuntos fúteis, porque a ficcionista, ou a “personagem Teresa Quadros” acrescentou àquele espaço do Comício, seu gosto pela literatura, reproduzindo trechos de textos e referências de autoras como Virgínia Wolf, Katherine Mansfield - e de Clarice Lispector. Sua segunda colunista fictícia aparece em 1959, como Helen Palmer, no “Correio feminino – feira de utilidades”, no jornal Correio da Manhã. Um trabalho menos sofisticado do que o anterior que, sob o patrocínio da indústria de cosméticos Pond’s, tinha a missão de passar à leitora conselhos de beleza que fossem associados aos seus produtos. Um público em que a “rainha do lar” e zelosas donas de casa eram o enfoque da coluna. Durante este período, Clarice aceita o convite de Alberto Dines para assinar uma outra coluna feminina no Diário da Noite, desta vez como ghost-writer de Ilka Soares, modelo e atriz do cinema brasileiro. Com o nome de “Só para mulheres”, “Ilka Soares” conversava com as leitoras desta seção, aproximando-se das leitoras para dar dicas sobre o mundo da moda ou sobre questões relacionadas ao cotidiano da mulher comum. Sua contribuição terminaria em março de 1961. Assim, em agosto de 1967, quando Clarice novamente recebe o convite de Alberto Dines para participar de uma coluna no Jornal do Brasil, sente-se temerosa ao saber que iria escrever crónicas, algo que ainda não fizera e ainda assinadas por ela mesma, sem a “proteção” dos pseudónimos anteriores. Ao mesmo tempo, era um momento delicado da vida de Clarice, sua única atividade extra eram as traduções e ainda se recuperava de um acidente doméstico, um incêndio provocado por um cigarro com graves queimaduras, especialmente nas mãos, abatendo-a profundamente. No capítulo “O acidente (corpo, a ferida, a escrita)”, de Figuras da Escrita, Carlos Mendes de Souza refere-se a este acidente e como sua colaboração nas páginas do Jornal do Brasil também contaminará a escrita do livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, fator que se define como um marco na escrita clariciana: “Com efeito, a partir daqui

desencadeia-se, pelo menos aparentemente, um certo deslaçamento de tensões temáticas expressivas, uma atitude nova perante a escrita (...) ao qual não se pode deixar de associar ao acidente” ( SOUZA, 2011:496). O nascimento da cronista vai revelando as faces da escritora, da mulher e do mito Clarice. Em uma de suas crónicas iniciais, Amor Imorredouro, um aparente despojamento inaugura o tom confessional que ela imprime a muitas de suas crônicas: Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que se pode chamar propriamente de crônica. E além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo que não por dinheiro, a gente se expõe muito (LISPECTOR, 1999, p.29). A cronista vai-se revezando entre as crónicas em que exprime esta sua preocupação em não revelar-se, entre aquelas que possuem um caráter metalinguístico, entre aquelas em que afirma, ou discute sobre ser misteriosa ou não, aquelas em que também questiona seu papel de escritora e tantas outras que não mencionaremos aqui, devido à brevidade deste trabalho. Neste percurso, o mecanismo de identificação com o leitor é o eixo que conduz ou amarra as crónicas, ora de forma perceptível, ora de forma implícita, em um jogo sedutor e prazeroso com as palavras. Em Outra Carta, ela responde à carta de um leitor que “parece revelar” que conheceu Clarice só a partir da crónicas e que pede à escritora que não largue sua coluna sob o pretexto de defender sua intimidade, porque para ele, o “escritor, se legítimo, sempre se delata”. Ela responde que, embora seus romances não fossem autobiográficos, quem os lê acaba por informá-la de que ela se delata, por isto o cuidado de não expor-se nas crónicas. Porém, ela diz que, paradoxalmente, “lado a lado com o desejo de defender a própria intimidade, há o desejo intenso de me confessar em público e não a um padre” (LISPECTOR, 1999:78). O leitor é seu interlocutor, tem sua função questionada neste diálogo, ao mesmo tempo em que ocorre o processo de identificação entre escritor/ leitor: “O personagem leitor é um personagem

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curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias , é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor,é o escritor” ( LISPECTOR,1999: 79). No desvão desta escrita, Clarice provoca o leitor de suas crónicas, insinuando-se pelo caminho da possibilidade, do que não se define, como na crónica Sim ou não: “Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós” (LISPECTOR,1999:279). Para José Castello, não interessava a Clarice “escrever ‘para o leitor’, mas ‘ser’ este leitor. Escrevia como uma leitora, que se delicia com as palavras alheias” (CASTELLO, O Globo, 2011). Nesta inquieta incompletude, ela procura palavras que lhe possibilitariam o encontro com o outro e este caminho, sob o pretexto das crônicas, é aludido através da crónica Em Busca do Outro: Não é à toa que entendo os que buscam o caminho. Como busquei arduamente o meu!E como hoje busco (...) o melhor de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei; eis o meu ponto de chegada (LISPECTOR, 1999: 119). Escrever é um caminho, um modo de aproximar-se do outro, e Clarice, ao longo das crônicas, reporta-se muitas vezes a estes deslocamentos, ora com a angústia de quem tateia o caminho, ora com o entusiasmo da aventura, ora questionando o próprio caminho, ou mesmo “filosofando” sobre ele. Com o título de Anonimato, temos uma crónica, que expõe esta tensão entre o ato da escrita e a “pessoa Clarice”, diante desta proximidade com o público, imposta pelo espaço da crônica, uma entrega em que resiste e, resistindo, ancora-se na palavra “silêncio” para preservar-se e preservar as palavras: Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer [:] já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. (...) Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande

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silêncio dentro de mim. E este silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio. (LISPECTOR, 1999: 75-76). Em Ser Cronista, Clarice indaga-se para indagar o género, um “esboço” que ganha forma na sua singularidade: Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade, eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Mas quero ver se consigo tatear sozinha no assunto e ver se chego a entender. Crônica é um relato? É uma conversa? é o resumo de um estado de espírito? (LISPECTOR, 1999:112). Outras crónicas de natureza metalinguística refletiram sobre o ato da escrita e assinalam esta preocupação constante de Clarice, para quem escrever é transcender o próprio ato. Na crônica Escrever, ela expressa este seu sentimento diante da escrita: Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. (...) Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva. (...) É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada (LISPECTOR, 1999:134 - grifos nossos). Clarice compartilha com o leitor de suas crônicas esta “intimidade” com a escrita, daí a genuína cumplicidade, o passaporte lícito para “colocar-se” com leveza e autenticidade, sem abdicar de seu valor como cronista. Para ela, escrever é também uma aventura, e duas crônicas nomeadas com este tema ilustram a razão desta afirmação: A Perigosa Aventura de Escrever e Aventura. Na primeira, ela diz : “Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras” (LISPECTOR,1999:183), mas depois discorda do que havia dito: “Mas está errado, pois que, ao escrever, grudada e colada, está a intuição. É perigoso porque nunca se sabe o que virá _se se for sincero” (ibidem). E remata a crónica, dizendo: “Não se brinca com a intuição, não se brinca com o escrever: a caça pode ferir

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mortalmente o caçador” (ibidem). A segunda crônica, Aventura, repete a frase sobre o valor da intuição, falando de sua necessidade de escrever para entender e como se relaciona com a aventura: Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o pensamento (...); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. (...) Sempre tive um profundo senso de aventura (...). Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever (LISPECTOR, 1999:236).

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Porém, Clarice foi além da “aventura” da escrita. Ela mergulha dentro de si, busca as palavras, questiona suas origens, como em Escrever ao Sabor da Pena, sabor que consiste na procura: “Estou falando de procurar em si próprio a nebulosa que aos poucos se condensa, aos poucos se concretiza, aos poucos sobe à tona - até vir como num parto a primeira palavra que a exprima” (LISPECTOR, 1999:278). “Escrever é lembrar-se do que nunca existiu” (LISPECTOR, 1999:385) - filosofa Clarice. E esta insistência na “memória” é fundamental para a existência, segundo ela: “Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva”( ibidem). Ao abordar o tema da escrita em suas crónicas, Clarice estava constantemente lembrando aos seus leitores, sua preocupação com as palavras, não prescindia de seu compromisso com elas, e ainda chamava a atenção para elas: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas” (LISPECTOR, 1999:385). 2. O mérito e o mito na voz da cronista Foram as crónicas que mais “falaram” de Clarice. Embora ela almejasse o anonimato, suas palavras acabavam por suscitar, paradoxalmente, o inverso: “No dia-a-dia, ela caminhava sobre o tênue limite entre mostrar e esconder. Não se queria misteriosa, mas tampouco tinha vontade de se expor” (Cadernos de Literatura, 2004:57). Esta aparente contradição, no decorrer da leitura da Descoberta Do Mundo, ajuda-nos compreender como o mito Clarice se vai delineando através das crônicas e, paralelamente, através de depoimentos ou entrevistas, onde, ora se confirmava, ora se

desmentia este mistério que lhe era atribuído. Numa crónica escrita em agosto de 1967, logo no início de sua participação no Jornal do Brasil, denominada A Surpresa, temos o olhar de Clarice sobre si mesma: “Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência” (LISPECTOR, 1999:23). Ao surpreender-se, ela surpreende quem lê, um espelho de duas faces que alterna a cronista e a personagem Clarice. Quase um ano depois, na crónica O Meu Próprio Mistério, ela resume-se assim: “sou tão misteriosa que não me entendo” (LISPECTOR, 1999:116). Perscrutar o mistério? Em Fernando Pessoa Me Ajudando, ela alude ao poeta e aponta o jogo ambíguo do revelar-se: Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte de mim. (...) O que me consola é a frase de Fernando Pessoa, que li citada: “Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos (LISPECTOR, 1999, p.136-137). Em entrevista para o Correio do Povo, em janeiro de 1971, Antonio Hohlfeldt lhe indagaria se suas crónicas seriam uma confissão. Ela, sem negar nem confessar, justifica-se, dizendo: “Eu preciso do dinheiro. A posição de um mito não é muito confortável. Por isso eu gosto de crônica. Porque ela diminui a distância que existe entre mim e o leitor” (ROCHA1, 2011: 58). Em 1977, em entrevista concedida ao programa Panorama da TV Cultura, responde a Júlio Lerner que não se considerava uma escritora popular. E, quando ele pergunta qual seria razão, ela dispara: “Ué, me chamam até de hermética. Como é que eu posso ser popular sendo hermética?” (ROCHA2, 2011: 178) Outra preocupação de Clarice, revelada através de uma de suas crônicas, denominada Como É Que Se Escreve?, prendia-se com seu “ofício de escritora”. Diante do leitor, ela se questiona sobre o conceito do ato de escrever e, também, sobre a razão pela qual ainda não se considerava uma escritora: Por que, realmente, como é que se escreve? 1 Entrevista feita por Antonio Hohlfeldt e originalmente publicada no Correio do Povo em 3 de janeiro de 1971, com o título de Uma tarde com Clarice Lispector. 2 Entrevista feita por Júlio Lerner, para o programa Panorama da TV Cultura em 1977, com o título A última entrevista.

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que é que se diz? e como dizer? como é que se começa? (...) Sei a resposta, por mais que intrigue, é a única: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda não me habituei a que me chamem de escritora. (...) Será que escrever não é um ofício? Não há aprendizagem, então?O que é? Só me considerarei escritora no dia em que eu disser: sei como se escreve” (LISPECTOR,1999, p.156-157). Para Clarice, escrever era uma forma de existir: “Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever” (LISPECTOR, 1999:101). Por isto, dispensava os rótulos que lhe eram atribuídos, questionava-os como uma forma de não se deixar impregnar por eles, dispensando-os se sentia “livre” para se exercer, para ser Clarice. Intelectual? Não - responde Clarice em outra crónica, explicando as razões pelas quais não se considerava como tal. “Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’” (LISPECTOR, 1999:149). “O que sou então?”, pergunta Clarice, para depois falar de “si mesma”: Sou uma pessoa que tem coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal. (LISPECTOR, 1994:149). Somos, assim, surpreendidos pela mulher, pela cronista e pela escritora Clarice, que emergem destas palavras. Seu grande mérito, assim compreendemos, surge deste modo de ser, da autenticidade que seduz o leitor, e da capacidade de colocar em palavras o que o leitor gostaria de dizer e ouvir. Conclusão Ao percorrer as crónicas de Clarice Lispector em A Descoberta do Mundo, com destaque para aquelas que elegemos para o presente trabalho, podemos perceber como ela constrói um espaço que vai além do modelo convencional do género cronístico: descobre-se para “descobrir o mundo”, movendo-se entre as fronteiras da literatura e do jornalismo. Nesta “travessia”, conseguimos entrever como ocorre a relação ficcional/factual de seus textos com o leitor de suas crónicas, cujo processo de

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genuína identificação, por si só, já justificaria o mito e o mérito clariciano. Porém, lendo suas crónicas, vamos mais além, como Guimarães Rosa, que confessou ler Clarice “não para a Literatura, mas para a vida”. Referências Bibliogáficas AAVV, Cadernos de Literatura Brasileira. Edição Especial, números 17 e 18. Dezembro de 2004. Instituto Moreira Salles. CASTELLO, José. Clarice Lispector- Clarice na Cabeceira: romances. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011. CASTELLO, José. O Globo. Caderno Prosa e Verso. 8 de janeiro de 2011. LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999. MONTERO, Teresa. Clarice Lispector- Clarice na Cabeceira. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009. ROCHA, Evelyn. Clarice Lispector- Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.

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Mulheres: vozes femininas que se dão a ler Isabel Maria Barreiros Luclktenberg Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

Resumo: O objetivo da pesquisa é mostrar a inserção das mulheres no campo literário brasileiro e como essa inserção se dá no século XX-XXI, com a atuação dos movimentos feministas e de uma produção acadêmica que se volta para o estudo da literatura produzida por mulheres. Nesse contexto, acadêmico e crítico, surge a Editora Mulheres (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil), com o objetivo de recuperar textos e autoras do passado. Pretendo mostrar a trajetória da Editora e como a visibilidade e o acesso a vozes de teóricas e críticas contemporâneas tornaram possível ampliar a história literária brasileira não apenas pela inclusão de nomes próprios femininos, mas por uma linha editorialmente coerente de outras, e não mais silenciadas, formas de pensar, ler e escrever.

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Este texto é um recorte da minha dissertação, que procurou, a partir do estudo da formação do livro e da leitura no Brasil no século XIX, refletir sobre a sociedade leitora no período e como a história da literatura se relaciona com a solidificação de uma produção editorial.1 Minha primeira hipótese apontou na direção de que, para falarmos da história do livro e da leitura no Brasil, devemos nos debruçar também sobre a história da leitora e do escritor, uma história muitas vezes de encontros e desencontros... Quando tratamos da história da leitora, nos dirigimos para o século XVIII, quando a impressão de livros passa a ser empresarial na Europa. Para se expandir, a leitura dependia ainda da valorização da família, que se deu graças às revoluções dos séculos XVIII e XIX. Pois é no interior da família que se torna mais forte o gosto pela leitura, por ser apropriada ao contexto da privacidade e essencial para a formação moral das pessoas. Ao contrário da Europa, somente em 1840, o Brasil passa a apresentar alguns traços de uma sociedade leitora, a do Rio de Janeiro, pois é somente nessa época que surgem as tipografias, livrarias e bibliotecas... Porém, nessa época a situação da mulher no 1 Uma versão deste texto foi publicada nos Anais do XIV Seminário Nacional e V Seminário Internacional Mulher e Literatura, realizado de 4 a 6 de agosto de 2011, em Brasília (Brasil).

país era ainda bastante precária e, para melhorá-la, era necessário acabar com sua reclusão e atraso intelectual. Por isso surgem as Escolas Normais, que, em virtude da organização rudimentar do curso e da falta de infraestrutura, são fechadas e só reabrem em 1870, quando o Estado institui a educação obrigatória. A popularização dessas escolas só ocorreu quando passou a ser uma atividade profissional exercida pelas moças de classe média, que não podiam desempenhar outra atividade porque era reservada aos homens ou considerada masculina. Destinada ao ensino, a mulher resolvia então os problemas com a falta de mão de obra no magistério e desobrigava o Estado a remunerar melhor os professores, porque seu salário era um complemento ao do marido. Ou seja, o exercício do magistério não escandalizava as bases machistas da sociedade patriarcal brasileira, permanecendo intocada, e também idealizada, a associação mulher-esposa-mãe, mesmo quando essa estivesse fora de casa, ganhando um modestíssimo pão de cada dia (Lajolo, 2009). A mulher podia estudar e trabalhar, mas continuava dependente da família, da casa e do marido. Não era aconselhado que lesse folhetins, romances ou histórias de fantasias porque afastavam a leitora

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das suas atividades domésticas; ao contrário, era recomendado que lesse obra de moral e religião. Como visto, a sociedade tentou controlar as mulheres convertendo o magistério em tarefa maternal, desvalorizando suas leituras e condicionando a recepção de obras às necessidades de doutrinação. Do outro lado da circulação de livros encontramos eles, os escritores brasileiros do século XIX. Sua história é cheia de lutas, reivindicações, vitórias e derrotas e se relaciona à sua inserção social. Enquanto na Europa e nos EUA víamos o aperfeiçoamento da legislação que estabelecia a proteção à propriedade intelectual – em 1710 na Inglaterra, em 1783 nos EUA e em 1793 na França –, a lei que trata desses direitos é sancionada somente em 1898 no Brasil. Era de se esperar que no século XIX os escritores não conseguissem viver de literatura. Um dos motivos foi o aparecimento tardio da imprensa entre nós, mas esse atraso tecnológico não foi o maior problema, o pior era contar ainda no final do século XIX com mais de 70% de analfabetos. Esse século representou a falta de profissionalismo no âmbito das Letras e ainda o conformismo do escritor diante da falta de infraestrutura socioeconômica. Sua profissionalização inicia-se, mesmo que lentamente, no mercado escolar, em que o retorno financeiro estava assegurado pela importância que tinha o livro didático na educação brasileira. Para receber ganhos consideráveis, era necessário não resistir ao apelo do livro didático, já naquela época. Esses escritores nos mostram que o texto literário articula-se com o modo de produção da sociedade. Esse modo de produção, circulação e consumo da literatura brasileira é a história de contratos entre escritores, editores, críticos, leitores, livreiros; hoje podemos acrescentar agentes literários, publicitários, professores, bibliotecários... Como vimos, a literatura só pôde ser incorporada ao dia a dia depois da descoberta da imprensa e de seu aperfeiçoamento, que tornou possível a produção e a circulação industrial de livros, revistas, jornais, entre outros veículos. Sendo assim, foi importante também o fortalecimento da industrialização e da comercialização desses objetos em editoras, distribuidoras, livrarias, além de uma regulamentação, através de legislação específica, do funcionamento das etapas do processo de produção, importação, implantação de parque gráfico, regulamentação dos direitos do autor e remuneração dos intermediários. Outras necessidades precisavam ser igualmente atendidas, como a formação discursiva de legi-

timação da literatura, elemento da prática social da leitura e escrita, papel que será cumprido pela história da literatura. Era necessário credenciar uma nacionalidade que dependia de uma identidade literária e sua confirmação, assegurada pela produção e pelo consumo de textos por escritores e público locais. Portanto, a partir do século XIX vemos a necessidade de se organizar a história de uma produção literária. O certificado de nossa identidade é emitido pelos estrangeiros Ferdinand Denis e Almeida Garret, precedidos de outros historiadores que lhes fornecem critérios de análise e seleção. O primeiro amplia o cânone da literatura brasileira e o segundo reúne poesia de autores portugueses antigos e modernos e alguns autores brasileiros. Com essas e outras coleções se determinou o cânone literário, dando visibilidade a alguns autores e textos e excluindo as autoras. Nessa perspectiva da exclusão e de visibilidade busquei como se processou a inserção das mulheres no campo literário brasileiro e como essa inserção se dá no século XX-XXI, com a atuação dos movimentos feministas e de uma produção acadêmica que se volta para o estudo da literatura produzida por mulheres e para perspectivas de teoria de gênero e da crítica feminista. Meu olhar então recaiu sobre a Editora Mulheres e seu objetivo de recuperar, editar ou reeditar obras de escritoras do passado, sejam elas brasileiras ou não. Busco então fazer um trabalho que chamei de arqueologia literária: um levantamento e registro documental das obras publicadas pela Editora desde 1996, quando de sua criação, através de pesquisa na internet, em arquivos pessoais e de textos mantidos pela própria Editora. A homofonia na minha leitura ao falar editora me remete tanto ao campo editorial quanto à professora e pesquisadora Zahidé Muzart, cujos papéis se fundem e se confundem no fazer história literária. Editora e editora, onde começa uma e outra? Embora não tenha feito uma análise formal dos conteúdos do material recolhido e sistematizado, todos os textos foram lidos e organizados e, através deles, constato que com a recuperação dessas escritoras do passado e a visibilidade e o acesso de vozes de teóricas e críticas contemporâneas é possível ampliar a história cultural brasileira e escrever uma história que não apenas inclua nomes de autoras e obras, mas apresente, numa linha editorialmente coerente, outras e silenciadas formas de ler e de escrever, especialmente porque o trabalho editorial da Editora Mulheres se cerca de paratextos: olhares críticos contemporâneos de

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pesquisadoras que se debruçam sobre os textos e sobre a teoria que dele emerge. Fica visível na materialidade aqui recolhida que a inserção das mulheres no campo literário brasileiro só acontece com a atuação dos movimentos feministas, de eventos nacionais e internacionais sobre gênero e feminismo, eventos transdisciplinares que garantiram a publicação e a veiculação tanto de narrativas e poesias de escritoras brasileiras quanto da reflexão teórica contemporânea. É, portanto, graças ao esforço da crítica literária feminista e de movimentos como mulher e literatura, mulher na literatura, que outra história dos livros no Brasil pode ser contada. É com esse objetivo de recuperar e publicar obras de escritoras do passado que Zahidé Lupinacci Muzart, Elvira Sponholz e Susana Bornéo Funck, professoras de Literatura da UFSC, fundam, criam, inventam, materializam a Editora Mulheres em 1996, preocupadas com a memória cultural e a história literária do país que passasse pela história das mulheres. O que eu constatei em minha pesquisa? Desde que foi criada, a Editora teve uma boa receptividade por parte do público leitor e recebeu muitos incentivos, como cartas e e-mails saudando a fundação de uma editora dedicada às mulheres. E ficou muito conhecida, mesmo sendo “uma editora de fundo de quintal”, expressão utilizada modestamente por Zahidé Muzart em Mulher e literatura (Stevens, 2010), não tendo funcionários, nem sede, nem bons distribuidores. Mas por que o interesse pela literatura feminina do século XIX? Porque a literatura feminina só se torna visível entre nós no século XX. As mulheres do século XIX, mesmo que muito produtivas, foram excluídas do cânone literário, feito pela crítica e historiografia masculinas. Elas permaneceram à margem, mesmo estando presentes nos periódicos do século XIX, dirigidos por homens ou criados e mantidos por elas mesmas. Muitas dessas mulheres do passado se uniram para criar jornais e revistas, os quais se constituíram em uma rede de informações e cultura. Escreveram poemas, contos, diários, romances, dramas, comédias, ensaios, teatro e crítica literária, e publicaram seus livros, que acabavam se perdendo nas primeiras edições. Toda essa produção foi sendo esquecida a partir do século XX, ou seja, do Modernismo, e é somente com o trabalho de algumas pioneiras – Josefina Álvares de Azevedo, Carmem Dolores, Gilka Machado e Maria Lacerda de Moura – que as mulheres conseguem respeito como escritoras. Por isso a intenção da Editora de recu-

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perar as obras de escritoras do passado. Trata-se de um trabalho árduo que impõe persistência e paciência para que essas obras possam ser lidas, reavaliadas e estudadas. Evidencia-se, seja nas entrevistas, seja nos prefácios ou nas apresentações que precedem os textos originais, por exemplo, que um dos maiores problemas enfrentados pela Editora é a inexistência de reedições, porque as obras de mulheres vendiam pouco ou se perdiam, desaparecendo ao longo dos anos. Dessa forma, a Editora tem que “ressuscitar” muitos desses textos, que se encontram, em sua maioria, dispersos em antigas bibliotecas. Assim entendi o processo da Editora: quando um título é descoberto, começa-se o processo de sua localização: contato com sebos, visita a bibliotecas, apelo a bibliófilos. É a partir das informações bibliográficas e da reprodução das obras que se conhecem tantas mulheres produtivas. Para Constância Lima Duarte (2007), uma das pesquisadoras que mais têm publicação pela Editora Mulheres, essas pesquisas realizam ainda o questionamento da cultura hegemônica, estabelecem uma nova tradição literária, revelam a mulher como sujeito do discurso literário [...]. Enfim, contribuem para a construção de uma história das mentalidades femininas e uma nova história das letras no nosso país. Quero também enfatizar neste trabalho de arqueologia literária que as obras recuperadas pela Editora são muito bem organizadas pelas pesquisadoras, que incluem biografia, ensaio crítico, bibliografia, fotografia e pequena amostragem de prosa literária e jornalística, ensaio, memórias, poesia, com excelente trabalho de tradução e de revisão. As edições, em média a tiragem é de 500 exemplares, são de qualidade, com uma boa apresentação gráfica. Tanto que fiz questão de documentar as capas em minha pesquisa. Essas capas constituem uma narrativa por si. Quinze anos depois, a Editora conta em seu catálogo com 96 obras, não somente romances, poesia, teatro, mas relatos de viajantes estrangeiras e estudos sobre questões de gênero (de cunho teórico). Todas reunidas nas séries Referências (7 obras), Ensaios (51 obras), Gênero e violência (3 obras), Romance/Narrativas (18 obras), Poesia e teatro (4 obras), Viagens (4 obras), Cartas e memórias (3 obras), Feminista (4 obras) e Infantojuvenil (2 obras). Há mais seis obras que serão publica-

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das em breve, entre essas Edith Gama, Francisca Senhorinha da Motta Diniz e Josefina Álvares de Azevedo. Assim eu fui terminando a minha pesquisa. Um trabalho que deseja um devir. Foram muitos meses para eu conseguir todo o material que eu desejava deixar em forma de pesquisa para leituras futuras. Uma dissertação-homenagem. Uma dissertação sobre uma Editora que faz parte da história do Curso, da história da UFSC, da história de Florianópolis foi o que constatei ao me debruçar sobre a materialidade dessa Editora e fazer o levantamento e registro documental de todas as suas obras. Reuni reportagens, artigos e resenhas encontrados na internet e/ou mantidos pela Editora. Ao todo encontrei aproximadamente cem reportagens, mais de cem artigos científicos e/ou resenhas e quase vinte trabalhos acadêmicos (entre dissertação, tese e TCC). São textos de acadêmicos/as, de jornalistas, de pesquisadores/as e das próprias autoras das obras, que em muitas páginas, mais de 1.000, procuram lançar novos olhares diante das obras uma vez esquecidas. Apresento as capas e seus paratextos (apresentação e/ou introdução). Em cada cor, em cada capa, em cada textura de papel, em cada título, em cada nome próprio, em cada texto crítico, em cada prefácio, em cada apresentação, histórias de mulheres. Mas muito mais: concluo que a Editora Mulheres é um capítulo na história do livro no Brasil, a possibilidade de outro entendimento da pequena editora, da edição, circulação e difusão do livro, da produção de conhecimento nas universidades, nos órgãos culturais, na intervenção das bolsas de produtividade pelos órgãos de fomento. Toda a materialidade que reúno quer se dar a ler, a conhecer e a responder como ler os códigos estéticos, regionais, ideológicos, políticos, inscritos nas publicações da Editora Mulheres. Cada obra, como já disse, é sistematicamente organizada numa espécie de arte de cuidar: a capa, a orelha, a contracapa, a autora, a apresentação, a biografia, o ensaio crítico, a bibliografia. O livro para a Editora e para a editora é visto como um espaço, um lugar, uma morada. Durante esses 15 anos – e aqui destaco a editora da Editora –, Zahidé Muzart fez um trabalho de “ressuscitação” (no sentido mesmo bíblico de um renascer, de outra vida, de outro plano) de muitas obras através de contatos, visitas a sebos e bibliotecas, apelo a bibliófilos e pesquisadores. E congrega, inegavelmente, um dos maiores e sólidos grupos de pesquisadoras brasileiras do século XX e XXI, materializando e concretizando o investimen-

to público e privado na pesquisa, disseminando conhecimento, solidificando os estudos feministas e de mulheres, formando outras gerações de pesquisadoras. A Editora Mulheres possibilita, assim, a ampliação da história literária brasileira e, por que não, a mudança da nossa concepção sobre essa história. Soma-se a esta arqueologia, como eixo da Editora Mulheres, o seleto grupo, esse elenco, como se queira denominar, de teóricas, críticas, ensaístas contemporâneas que, nos livros organizados, na seleção de textos em antologias temáticas, nos prefácios e nas apresentações dos livros, acentuam e documentam suas experiências de leitura e seu amadurecimento intelectual. Acima de tudo, as publicações e a fortuna crítica sobre a Editora Mulheres e a partir da Editora Mulheres preenchem vazios e fazem falar o silêncio, levam à percepção de que, para se compreender como as escritoras (no sentido amplo de intelectual e escrevente) posicionam-se e são posicionadas no campo literário e cultural, é necessário levar em consideração, especialmente, as condições de exercício da leitura e como a crítica literária feminista influencia/influenciou esse campo, alterando substancialmente os marcos e as marcas da história das mulheres e da história da crítica feminista no Brasil. Referências Bibliográficas Duarte, Constância Lima. (2007). Arquivos de mulheres e mulheres anarquivadas: histórias de uma história mal contada. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, 30. Acesso em: 13 jan. 2011. Disponível em: . Lajolo, Marisa; Zilberman, Regina. (2009). A formação da leitura no Brasil (3a ed.). São Paulo: Ática. pp. 262. Stevens, Cristina (Org.). (2010). Mulher e literatura – 25 anos. Raízes e rumos. Florianópolis: Mulheres.

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A presença feminina na poesia brasileira como musa inspiradora e como poeta criadora - breve estudo comparativo da progressão de temas e linguagem usados por poetas brasileiros do séc. XVIII ao séc. XX Vera Abad, João Roberto Gullino Academia Brasileira de Poesia – Casa de Raul de Leoni, Petrópolis – Rio de Janeiro – Brasil

Resumo: Pretende-se, neste artigo, demonstrar que a obra de Alice Vieira destinada preferencialmente ao público juvenil coloca em cena personagens femininas adolescentes que problematizam e reconfiguram uma certa construção da identidade feminina, nas suas diversas representações discursivas e modalidades enunciativas. Assim, partindo de alguns textos literários da autora, procurar-se-á analisar a forma como as vozes plurais de um sujeito adolescente arquetípico (feminino) dão conta, na primeira pessoa, das suas inquietações de ordem existencial, psicoemotiva e relacional, e como, nos seus discursos introspetivos, as personagens adolescentes femininas narrativizam a problemática da constituição do sujeito como ser oscilante e dramático, plasmando na superfície textual os meandros da sua interioridade e do seu sentir.

A figura feminina, criatura e criadora. Desde sempre a figura feminina, a mulher, foi fonte e razão de inspiração para a poesia. É possível até que a própria serpente tenha cantado loas à formosura do ser recém esculpido por Deus antes de lhe oferecer a maçã. Entretanto, como autora de textos poéticos escritos, declamados ou cantados, a presença feminina na literatura fez-se esparsa ou totalmente ausente no espaço cultural ocidental por muitos séculos. Na antiguidade clássica, a poetisa Safo teve sua poesia igualada a Homero e foi elogiada pelo próprio Aristóteles, porém hoje seus textos nos chegam aos retalhos. Depois dela, nenhuma poeta pode medir ombros com reconhecidos nomes do mundo literário como Shakespeare, Dante ou Camões. A escritora inglesa Virginia Woolf (1882 – 1941)

nos dá uma explicação ao mesmo tempo irônica e bem humorada em resposta às considerações de Arnold Bennet expostas no livro “Nossa mulheres – capítulos sobre a discordância entre os sexos” (1920): “Bem”, diz ela, “acredito que todos concordam com o fato de que desde o início dos tempos até o dia de hoje, as mulheres deram à luz e cuidaram de toda a população do mundo. Esta ocupação lhes tem tomado muito tempo e esforço.”(1) Não acreditamos que as mulheres tivessem realmente ficado à margem da produção poética por tanto tempo. Afora textos resgatados por estudiosos como os de Santa Thereza D’Avila e Heloise Abelard, provavelmente, muitas produções femininas foram desconsideradas, destruídas e relegadas ao esquecimento, como de resto, a maior parte de suas manifestações artísticas. O processo de conquista de espaço no panorama cultural regido, estudado e produzido por represen-

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tantes do sexo masculino não aconteceu no Brasil de modo diferente do sucedido nos outros países da comunidade ocidental. Tal processo está diretamente relacionado com as modificações ocorridas no papel representado pelas mulheres no contexto social de cada época e de cada país. São histórias individuais de transgressão e ousadia e de lutas coletivas de afirmação, participação e autoconhecimento. Este pequeno estudo comparativo entre a produção poética masculina e feminina na poesia brasileira visa contar um pouco de tal história para melhor compreensão da produção poética feminina contemporânea que, embora exista em pluralidade de estilos, com formatos literários e linguagem similares a seus pares masculinos, mantém características próprias e ainda sofrem das muitas restrições e dificuldades impostas às mulheres ao longo dos séculos. Até meados do século XVII, as mulheres no Brasil quase não tinham acesso à educação. Eram em maioria analfabetas e se submetiam ao domínio social e intelectual masculino. Não por razão de gosto como afirmou Arnold Bennet no já referido trabalho: “(...) também afirmo que não só nos tempos correntes as mulheres gostam de ser dominadas, como continuarão a sê-lo daqui a mil anos senão para sempre. Sempre gostarão de ser dominadas. Este desejo é prova de inferioridade intelectual.” (1) As mulheres submetiam-se pela mais absoluta falta de outra opção. É tão falsa aquela ideia que foi pela mão dos homens ligados as elas que iniciaram seu aprendizado e começaram a crescer intelectualmente. Pais, esposos e mestres que nelas acreditaram por alguma razão e lhes proporcionaram oportunidade de adquirir conhecimentos e de se dedicar à expressão de sua arte. Assim como Bennet, na Europa, também no Brasil, vozes de respeitados jornalistas, escritores e juristas se levantaram ao longo dos tempos contestando a inteligência, a propriedade e a capacidade de criação das mulheres. Lima Barreto (1881 – 1922) em artigo publicado em 1918 foi diretamente contra a contratação de uma mulher para o serviço público por considerar que o ato “aberra a todas as nossas concepções políticas e vai de encontro a todos os princípios sociais. A ocupação pelas mulheres de cargos naturalmente destinados aos homens, prejudica a reprodução de nossa raça”. “As mulheres têm muita aptidão para a retenção e para a repetição,” _ diz ele em outro artigo “mas não filtram os conhecimentos através de seu temperamento, não os incorporam à sua inteligência”

“(... ) em geral em artes, nunca foram criadoras”. (2) Por muito tempo era dado como indiscutível que ao sexo masculino cabia a vida pública, a produção, a criação e regulamentação da vida social e ao sexo feminino cabia o universo doméstico, a geração e criação da prole. Vamos nos ater à resposta de Virginia Woolf às considerações mordazes de Arnold Bennet quanto à incapacidade das mulheres para a criação artística por deficiência de espírito e pouca inteligência nata. Do contrário, escapamos de nosso propósito que encara apenas um aspecto das conquistas sociais da mulher ao longo dos tempos. A reação masculina à invasão feminina nos espaços sociais ditos exclusivos do homem sempre foi ferrenha e imediata. Primeiras poetas Consideramos os primórdios da poesia dita brasileira as publicações do poeta Gregório de Matos no século XVII. Nascido em Salvador, Bahia, em 1633, apesar de contemporâneo do Padre Antônio Vieira, muito diferente foi sua produção literária. É conhecido por muitos como “Boca do Inferno” por seus poemas satíricos e irreverentes. Não foi, porém, indiferente à paixão humana e religiosa, à natureza e à reflexão. Quanto à mulher, como musa, em dois exemplos vemos o cantar lírico elogioso da figura feminina e o uso da linguagem jocosa e satírica para descrever uma mulher. Dois sonetos de Gregório de Matos: “À uma dama dormindo junto a uma fonte.” E “Anjo no nome, Angélica na cara”. GREGÓRIO DE MATOS Guerra (1633–1696) Soneto À uma dama dormindo junto a uma fonte À margem de uma fonte que corria, Lira doce dos pássaros cantores A bela ocasião de minhas dores Dormindo estava ao despertar do dia. Mas como dorme Silvia, não vestia O céu seu horizonte de mil cores; Dominava o silêncio entre as flores Calava o mar, e o rio não se ouvia. Não dão o parabém à nova Aurora Flores canoras, pássaros fragrantes, Nem seu âmbar respira a rica Flora.

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Porém abrindo Silvia os dois diamantes, Tudo a Silvia festeja, tudo adora Aves cheirosas, flores ressonantes. Soneto Anjo no nome, Angélica na cara Anjo no nome, Angélica na cara Isso é ser flor, e Anjo juntamente Ser Angélica flor, e Anjo florente Em quem, se não em vós se uniformara? Quem veria uma flor, que a não cortara De verde pé, de rama florescente? E quem um Anjo vira tão luzente Que por seu Deus, o não idolatrara? Se como Anjo sois dos meus altares Fôreis o meu custódio, e minha guarda Livrara eu de diabólicos azares Mas vejo, que tão bela, e tão galharda Posto que os Anjos nunca dão pesares Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda. Para fazer par a Gregório de Matos, nenhuma voz feminina se levantou naquela época. Ou se o fez, não logrou fama. A primeira mulher a fazer história na poesia brasileira foi Barbara Heliodora Guilhermina da Silveira, nascida em fins de 1758 na cidade de São João Del Rei nas Minas Gerais. Fez sua história como poeta e transgressora dos padrões sociais da época. Era esposa do aclamado poeta e inconfidente Alvarenga Peixoto, tendo vivido com ele por bastante tempo antes de desposá-lo, o que aconteceu só depois que a filha, Maria Ifigênia, já completara três anos de idade. Barbara Heliodora viveu os tempos do Arcadismo Brasileiro, cercada de poetas de fama como Cláudio Manuel da Costa, Tomaz Antônio Gonzaga, Basílio da Gama e Santa Rita Durão.(3) Sua produção literária é bastante reduzida e controvertida. A ela são atribuídos os poemas “Sextilhas a meus filhos” ou “Conselhos a meus filhos” e um soneto dedicado à sua filha Ifigênia. Segundo Rodrigues Lapa, os poemas não podem ser a ela atribuídos porque ela não teria cultura literária, pois não há em suas cartas qualquer menção literária, nem mesmo pedido de livros. No entanto, há cartas, e uma extensa bibliografia sobre sua pessoa, o que é por demais curioso, tendo ela produzido, na melhor das hipóteses, apenas as duas referidas peças. (4) Por que não seria ela capaz de usar uma linguagem tão enxuta e mordaz em seu poema? Não

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teria ela talvez escrito, rabiscado poemas e depois os jogado fora, por não levar a sério sua produção? Quantas outras procederam do mesmo modo? Temos hoje ciência de vários poemas soltos e livros representativos da produção literária de mulheres que viveram nos séculos passados através do resgate efetuado por estudos recentes, não por terem sido reconhecidos e divulgados em suas épocas. Nenhuma delas, nem mesmo as citadas mais adiante fazem parte das relações de poetas creditados nos compêndios de literatura brasileira. No entanto, se algo lhes faltou para merecer tal crédito, foi tão só o reconhecimento da academia que as ignorava apenas por razão de sua condição feminina. Comparemos alguns trechos da “Sextilhas a meus filhos” que, assim como o Soneto à Ifigênia, nos remete à figura feminina como mãe zelosa e amorosa, aos versos saudosos de seu marido, Alvarenga Peixoto, escritos no cárcere da Ilha das Cobras. BARBARA HELIODORA Guilhermina da Silveira (1758 – 1819) Mineira de São João Del Rei “Sextilhas a meus filhos” Meninos, eu vou dictar As regras do bem viver, Não basta somente ler, É preciso ponderar, Que a lição não faz saber, Quem faz sábios é o pensar. Neste tormentoso mar D’ondas de contradicções, Ninguém soletre feições, Que sempre se ha de enganar; De caras a corações A muitas legoas que andar. (...) Não vos deixeis enganar Por amigos, nem amigas; Rapazes e raparigas Não sabem mais, que asnear; As conversas, e as intrigas Servem de precipitar. Sempre vos deveis guiar Pelos antigos conselhos, Que dizem, que ratos velhos Não ha modo de os caçar: Não batam ferros vermelhos,

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Deixem um pouco esfriar. Quem fala, escreve no ar, Sem pôr virgulas nem pontos, E póde quem conta os contos, Mil pontos accrescentar; Fica um rebanho de tontos Sem nenhum adivinhar. Com Deus e o rei não brincar, É servir e obedecer, Amar por muito temer Mâs temer por muito amar, Santo temor de offender A quem se deve adorar! Até aqui pode bastar, Mais havia que dizer; Mâs eu tenho que fazer, Não me posso demorar, E quem sabe discorrer Póde o resto adivinhar.

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Do livro: “Florilégio da Poesia Brazileira”, de Varnhagen, 1946 (nos três tomos constam “fac-símile do frontespício da ed. princeps do “Florilégio da Poesia Brazileira”, de 1850), RJ

A Maria Ifigênia Em 1786, quando completava sete anos. Amada filha, é já chegado o dia, em que a luz da razão, qual tocha acesa vem conduzir a simples natureza, é hoje que o teu mundo principia. A mão que te gerou teus passos guia, despreza ofertas de uma vã beleza, e sacrifica as honras e a riqueza às santas leis do filho de Maria. Estampa na tua alma a caridade, que amar a Deus, amar aos semelhantes, são eternos preceitos da verdade. Tudo o mais são idéias delirantes; procura ser feliz na eternidade, que o mundo são brevíssimos instantes. Alvarenga Peixoto ou Barbara Heliodora?

Inácio José de ALVARENGA PEIXOTO (1743 – 1792) À D. Bárbara Heliodora Bárbara bela, do Norte estrela,

Que o meu destino sabes guiar, De ti ausente triste somente As horas passo a suspirar. Por entre as penhas de incultas brenhas Cansa-me a vista de te buscar; Porém não vejo mais que o desejo, Sem esperança de te encontrar. Eu bem queria a noite e o dia Sempre contigo poder passar; Mas orgulhosa sorte invejosa, Desta fortuna me quer privar. Tu, entre os braços, ternos abraços Da filha amada podes gozar; Priva-me a estrela de ti e dela, Busca dous modos de me matar! (Poema dedicado à sua esposa, remetido do cárcere da Ilha das Cobras) Nenhuma diferença há, na qualidade da produção e no apuro da linguagem. Entretanto, vemos que esta primeira manifestação registrada, embora se trate de um exemplo reduzido, nos traz a mulher, ainda que em situação diferenciada em seu contexto social, cumprindo seu papel de mãe e vista como amada esposa e terna genitora. Bem mais vasta e divulgada foi a produção de sua contemporânea, Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779-1868), natural de Vila Rica, atual Ouro Preto. Dedicada à poesia, à prosa e à tradução, encobria-se sob um pseudônimo D. Beatriz para colaborar no jornal “Marmota Fluminense”. Apelidada “Prima de Marília” em alusão ao poema de Tomas Antonio Gonzaga,(5) teve seus poemas publicados em livro: “Cantos da Mocidade” – 1856 e em coletânea no Parnaso Brasileiro: “Carta de Leandro a Hero” e “Carta de Hero a Leandro”. Foi bastante conhecida e elogiada, mas seu nome nunca foi incluído nos anais da literatura brasileira, mesmo tendo recebido a honra de ser patrona da cadeira 38 da Academia Mineira de Letras. A Maria Ifigênia Em 1786, quando completava sete anos. Amada filha, é já chegado o dia, em que a luz da razão, qual tocha acesa vem conduzir a simples natureza, é hoje que o teu mundo principia. A mão que te gerou teus passos guia, despreza ofertas de uma vã beleza, e sacrifica as honras e a riqueza às santas leis do filho de Maria. Estampa na tua alma a caridade, que amar a Deus, amar aos semelhantes, são eternos preceitos da verdade. Tudo o mais são idéias delirantes; procura ser feliz na eternidade, que o mundo são brevíssimos ins-

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tantes. Alvarenga Peixoto ou Barbara Heliodora? Inácio José de ALVARENGA PEIXOTO (1743 – 1792) À D. Bárbara Heliodora Bárbara bela, do Norte estrela, Que o meu destino sabes guiar, De ti ausente triste somente As horas passo a suspirar. Por entre as penhas de incultas brenhas Cansa-me a vista de te buscar; Porém não vejo mais que o desejo, Sem esperança de te encontrar. Eu bem queria a noite e o dia Sempre contigo poder passar; Mas orgulhosa sorte invejosa, Desta fortuna me quer privar. Tu, entre os braços, ternos abraços Da filha amada podes gozar; Priva-me a estrela de ti e dela, Busca dous modos de me matar! (Poema dedicado à sua esposa, remetido do cárcere da Ilha das Cobras) Trazia a mulher de longa data o seu papel definido dentro do binarismo “o bem” e “o mal”, “anjo” e “demônio”. Ao papel de “força do bem” quando maternal e delicada opunha-se o de “ potência do mal”, quando usurpadora de atividades que não lhe fossem culturalmente atribuídas. A mulher estava atada ao conceito de que a criação era prerrogativa do homem. À ela é negada a autonomia e a subjetividade necessárias à criação. “À ela cabe a servidão e o sacrifício, sem história própria. Demônio ou bruxa, anjo ou fada, ela é mediadora entre o artista e o desconhecido, instruindo-o em degradação ou exalando pureza. É musa ou criatura, nunca criadora.” ( Norma Telles. Escritoras, escritas, escrituras. Ed. Contexto 2009) D. BEATRIZ Francisca de Assis Brandão (1779-1868) Soneto Voa, suspiro meu, vai diligente, Busca os Lares ditosos onde mora O terno objeto, que minha alma adora, Por quem tanta aflição meu peito sente. Ao meu bem te avizinha docemente; Não perturbes seu sono: nesta hora, Em que a Amante fiel saudosa chora, Durma talvez pacífico e contente. Com os ares, que respira, te mistura; Seu coração penetra; nele inspira Sonhos de amor, imagens de ternura. Apresenta-lhe a Amante, que delira; Em seu cândido peito amor procura; Vê se também por mim terno suspira. TOMAS ANTONIO GONZAGA (1744 – 1810)

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Soneto 4 Ainda que de Laura esteja ausente, Há de a chama durar no peito amante; Que existe retratado o seu semblante, Se não nos olhos meus, na minha mente. Mil vezes finjo vê-la, e eternamente Abraço a sombra vã; só neste instante Conheço que ela está de mim distante, Que tudo é ilusão que esta alma sente. Talvez que ao bem de a ver amor resista; Porque minha paixão, que aos céus é grata Por inocente assim melhor persista; Pois quando só na idéia ma retrata, Debuxa os dotes com que prende a vista, Esconde as obras com que ofende, ingrata. de “Marília de Dirceu” A ideia de que a mulher era um ser frágil e inferior intelectualmente, necessitando proteção e apoio de um ser forte e superior, o homem, subsistiu por muito tempo – e ainda subsiste em algumas mentes masculinas. Século do romance, feminismo, revolução Passando ao século XIX que podemos chamar de século do romance, vemos que a produção literária geralmente se atém a descrever heróis e heroínas ainda dentro do mesmo binarismo: papel de homem, papel de mulher na sociedade. A mulher como ajudante do homem, educadora dos filhos, um ser de virtude, o anjo do lar. Ou o oposto: mulheres fatais e decaídas. A escrita e o saber ainda funcionando como forma de dominação. Mesmo assim, um grande número de mulheres começou a escrever e publicar, tanto na Europa como nas Américas. Encobertas por pseudônimos masculinos, publicando em jornais e revistas, muitas vezes criados por elas próprias, tiveram inicialmente que dominar o manejo da palavra escrita, difícil numa época em que se valorizava a erudição. Mesmo dominando outras línguas, se de camadas sociais mais elevadas, sua educação era sempre voltada para as prendas domésticas e a educação moral e religiosa. Tiveram que rever o que se dizia delas e rever sua própria socialização. Virginia Woolf dizia que para se tornar uma escritora, a mulher precisava primeiro “matar o anjo da casa’,(6) isto é libertar-se do papel estereotipado que lhe era atribuído para poder revelar seu próprio eu. É nessa busca que vamos encontrar as melhores expressões lite-

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rárias das mulheres poetas no Brasil. De início, os romances de mulheres eram em grande parte autobiográficos. Precisavam expressar-se descrevendo seu próprio sofrimento, defendendo uma causa própria. Ainda presas aos estereótipos criados pelos autores masculinos, sentiam-se podadas pela insegurança em romper com os padrões socialmente aceitos. Na poesia, o resultado foi uma quantidade de poemas retratando seus próprios sentimentos o que muitas vezes soava piegas, elaborado, sem valor. O grande jurista Clóvis Beviláqua(7) em crítica a tais poemas, comenta: “Com a direção mental a que geralmente se submetem, as mulheres que em nosso país têm uma educação intelectual, com sua sujeição inevitável à lei do atavismo... aqui as mulheres serão somente poetisas e poetisas voluptuosas, plangentes e desoladas.” Casado com Amélia de Freitas Beviláqua, escritora e editora da revista O Lyrio, incentivou-a a seguir o jornalismo, e a publicar artigos e livros. Porém, quando em 1930, ela se candidatou à Academia Brasileira de Letras, viu sua pretensão barrada pelo simples fato de ser mulher. Do mesmo modo, Julia Lopes de Almeida, autora de romances de sucesso, teve que ceder sua candidatura ao marido, Filinto de Almeida. Poetas brasileiras do século XIX Selecionamos entre tantas apenas algumas que por sua obra ilustram o caminho percorrido. Uma seleção simbólica que permite demonstrar, na comparação entre seus poemas com os seus contemporâneos do sexo masculino, as modificações sofridas nos temas e linguagem ao longo do tempo de modo a acompanhar as modificações vivenciadas no papel social da mulher. Do Nordeste do Brasil vem Nisia Floresta Brasileira Augusta (1810 – 1885). Dionísia Gonçalves Pinto, nascida no Estado do Rio Grande do Norte já revela no pseudônimo escolhido sua personalidade e opções existenciais: Nísia, diminutivo de Dionísia; Floresta, para lembrar o nome do sítio Floresta, onde nasceu; Brasileira, como afirmação do sentimento nativista; Augusta, uma homenagem ao companheiro Manuel Augusto. Sua obra reflete a preocupação com a posição feminina na sociedade. Escreve, de início, crônicas, artigos e opúsculos sempre sobre o mesmo assunto: “Conselhos à minha filha”, “A jovem completa” “O modelo das donzelas” “Discurso às educandas”.

Mas em 1849 sai a primeira edição de “A lágrima de um caeté” no Rio de Janeiro, sob o pseudônimo de Telesilla. O poema de 712 versos trata do processo de degradação do índio brasileiro colonizado pelo homem branco e do drama vivido pelos liberais durante a Revolução Praieira ocorrida em fevereiro do mesmo ano. É este exemplo que nos demonstra a ruptura com temas então ditos femininos, e seus versos – embora sejam mais narrativa e descrição, pelo vocabulário escolhido, por sua força e precisão nada têm da suposta pieguice ou “leveza” esperada por sua condição feminina. “As lágrimas de um caeté” fazem par com “I-JucaPirama” de Gonçalves Dias e incluem Nísia Floresta no rol dos melhores representantes da corrente indianista ou nacionalista da primeira geração dos românticos do século XIX, conforme se verifica nos trechos escolhidos. NÍSIA FLORESTA Brasileira Augusta (1810–1885) A Lágrima de um Caeté Lá quando no Ocidente o sol havia Seus raios mergulhado, e a noite triste Denso ebânico véu já começava Vagarosa a estender por sobre a terra; Pelas margens do fresco Beberibe, Em seus mais melancólicos lugares, Azados para a dor de quem se apraz Sobre a dor meditar que a Pátria enluta! Vagava solitário um vulto de homem, De quando em quando ao céu levando os olhos Sobre a terra depois triste os volvendo... Não lhe cingia a fronte um diadema, Insígnia de opressor da humanidade... Armas não empunhava, que os tiranos Inventaram cruéis, e sob as quais Sucumbe o rijo peito, vence o inerte, Mata do fraco a bala o corajoso, Mas deste ao pulso forte aquele foge... Caia-lhe dos ombros sombreados Por negra espessa nuvem de cabelos, Arco e cheio carcaz de simples flechas: Adornavam-lhe o corpo lindas penas Pendentes da cintura, as pontas suas Seus joelhos beijavam musculosos Em seu rosto expansivo não se viam Os gestos, as momices, que contrai A composta infiel fisionomia Desses seres do mundo social, Que devorados uns de paixões feras, No vício mergulhados falam outros

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Altivos da virtude, que postergam De Deus os sãos preceitos quebrantando! Orgulhosos depois... ostentar ousam De homem civilizado o nome, a honra!...

Antonio GONÇALVES DIAS (1823 – 1864) I-juca-pirama Em larga roda de novéis guerreiros Ledo caminha o festival Timbira, A quem do sacrifício cabe as honras, Na fronte o canitar sacode em ondas, O enduape na cinta se embalança, Na destra mão sopesa a iverapeme, Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, Como que por feitiço não sabido Encantadas ali as almas grandes Dos vencidos Tapuias, inda chorem Serem glória e brasão d’imigos feros. “Eis-me aqui”, diz ao índio prisioneiro; “Pois que fraco, e sem tribo, e sem família, “As nossas matas devassaste ousado, “Morrerás morte vil da mão de um forte.” Vem a terreiro o mísero contrário; Do colo à cinta a muçurana desce: “Dize-nos quem és, teus feitos canta, “Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa O índio, que ao redor derrama os olhos, Com triste voz que os ânimos comove. Por suas posições feministas, Nísia Floresta amargou severas críticas assim como Narcisa Amália, que veremos a seguir. Desta última disse C. Ferreira no Jornal Correio do Brasil em 1872: “Mas perante a política, cantando as revoluções, apostrofando a reio, endeusando as turbas, acho-a simplesmente fora de lugar (...) o melhor é deixar o talento da ilustre dama na sua esfera perfumada de sentimento e singeleza”. Pois Narcisa Amália (1852 – 1924) filha do poeta Jácome de Campos e da professora Narcisa Inácia de Campos foi a primeira mulher no Brasil a se profissionalizar como jornalista, alcançando projeção em todo o país com seus artigos em favor da abolição da escravatura, em defesa da mulher e dos oprimidos em geral. Da mesma geração de Junqueira Freire e Fagundes Varela e contemporânea de Ezequiel Freire, tem seus poemas mais

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ao lado dos poetas Condoreiros,(8) na busca da expressão da liberdade. Descreve a sua condição feminina não como ser frágil e delicado, mas como forte para a luta. Eis sua resposta à tal suposição, partida de Ezequiel Freire: Porque sou forte em comparação a Temor de Junqueira Freire, poeta cuja vida breve e angustiada é refletida em poemas plangentes. NARCISA AMÁLIA (1852 – 1924) Por que Sou Forte a Ezequiel Freire Dirás que é falso. Não. É certo. Desço Ao fundo d’alma toda vez que hesito... Cada vez que uma lágrima ou que um grito Trai-me a angústia - ao sentir que desfaleço... E toda assombro, toda amor, confesso, O limiar desse país bendito Cruzo: - aguardam-me as festas do infinito! O horror da vida, deslumbrada, esqueço! É que há dentro vales, céus, alturas, Que o olhar do mundo não macula, a tern Lua, flores, queridas criaturas, E soa em cada moita, em cada gruta, A sinfonia da paixão eterna!... - E eis-me de novo forte para a luta.

Luís José JUNQUEIRA FREIRE (1832 – 1855) Temor Ao gozo, ao gozo amiga. O chão que pisas A cada instante te oferece a cova. Pisemos devagar. Olhe que a terra não sinta o nosso peso. Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços. Escondamo-nos um no seio do outro. Não há de assim nos avistar a morte, Ou morreremos juntos. Não fales muito. Uma palavra basta Murmurada, em segredo, ao pé do ouvido. Nada, nada de voz – nem um suspiro, Nem um arfar mais forte. Fala-me só com o revolver dos olhos. Tenho-me afeito à inteligência deles. Deixa-me os lábios teus, rubros de encanto

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Somente para os meus beijos. Ao gozo, ao gozo amiga. O chão que pisas A cada instante te oferece a cova. Pisemos devagar. Olhe que a terra não sinta o nosso peso.

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Na terceira geração de românticos, brilha Castro Alves, o poeta dos escravos, e a figura feminina que vamos encontrar a lhe fazer par é justamente sua irmã, Adelaide de Castro Alves Guimarães (1854 – 1940). Marcada pela sombra de homens ilustres – a de seu idolatrado e famoso irmão que lhe deve o cultivo de sua memória e a conservação de seu acervo e manuscritos inéditos; e a do seu marido, intelectual e jornalista respeitado, também abolicionista, Adelaide cumpriu a sina de muitas mulheres do século XIX, que, imbuídas da “sagrada missão de mães e esposas” dedicaram-se à glória dos homens de suas famílias. De fato, assim ocupada, a poetisa esqueceu-se de si própria e de seu talento, vivendo num ineditismo quase absoluto. Só por intermédio de sua filha, também poetisa, Regina Glória de Castro Alves Guimarães, seus poemas foram publicados no século seguinte. ADELAIDE DE CASTRO ALVES GUIMARÃES (1854 – 1940) Só Acercou-se do leito em andar vagaroso: Condenada dir-se-ia a chegar ao degredo... O vazio... o abandono... o sossego penoso... Na marmórea brancura um funéreo lajedo!!... Onde a estância risonha, o país venturoso dos afagos sutis... da carícia em segredo... Dos seus dous corações o pulsar amoroso De onde a sorte cruel, a expulsara tão cedo?!... Nesta angústia, que espera esse olhar assim fito No macio colchão, na macia almofada, Testemunhos do amor que ora mata-a ora a encanta Se tão longe, tão longe! Em lençóis do infinito Prisioneiro ele dorme em alcova isolada Nesse leito do qual ninguém mais se levanta?...

Antonio Frederico de CASTRO ALVES (1847–1871 ) Tirana Minha Maria é bonita, Tão bonita assim não há; O beija-flor quando passa Julga ver o manacá. Minha Maria é morena Como as tardes de verão; Tem as tranças da palmeira, quando sopra a viração. Companheiros! O meu peito Era um ninho sim senhor, Hoje tem um passarinho Pra cantar o seu amor. Trovadores da floresta! Não digam a ninguém não! Que a Maria é a bunilha Que me prende o coração. Quando eu morrer só me enterrem Junto às palmeiras do Val, Para eu pensar que é Maria Que geme no taquaral... Extraído de Cachoeira de Paulo Afonso A poesia lírica que não a mera exposição de sentimentos adequados exigia um eu confessional forte, difícil para as mulheres sujeitas às definições culturais da época. Não podiam se expressar quando lhes era dito que deveriam se autossacrificar pelos outros, que não deveriam fazer afirmações, que deveriam se restringir a sugestões alheias, deixando ao interlocutor a possibilidade de recusa. Esperava-se da lírica feminina a surpresa, submissão, incerteza, ingenuidade. Adélia Josefina de Castro Fonseca (1827 – 1920) Viveu num contexto de efervescência cultural na Bahia. Escreveu o poema “A Aurora Brasileira” em resposta ao “Madrugada” do poeta português João de Lemos. Fala da individualidade feminina e dominando com maestria a forma clássica do soneto, define sua maneira de amar. Ao lado do trecho do poema de Álvares de Azevedo – outro poeta de vida breve, ilustra o ponto de vista feminino e masculino quanto ao objeto de seu desejo. (9) Os poemas escolhidos a seguir não são contrastantes ou semelhantes, constituem verdadeiros diálogos entre a produção poética masculina e feminina. Generalizar é perigoso, mas os exemplos existem e além dos aqui expostos vários outros podem ser encontrados sem grande dificuldade.

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ADÉLIA FONSECA (1827-1920) SONETO Ninguém nas asas da mais leve aragem, a ti enviou lembranças tão saudosas; ninguém horas passou tão deleitosas de amor te ouvindo a férvida linguagem; ninguém da tua vida na passagem semeou, sem espinhos, tantas rosas; ninguém te diz palavras tão mimosas, contra o peito estreitando tua imagem; ninguém de alma te deu mais lindas flores, nem tanto desejou quanto eu desejo, delas, tão puras, conservar as cores; ninguém sabe beijar, como eu te beijo; ninguém assim por ti morre de amores; ninguém sabe te ver, como eu te vejo. Do livro: “Vozes Femininas da Poesia Brasileira”, Cons. Est. de Cultura, 1959, SP

MANUEL ANTÔNIO ÁLVARES DE AZEVEDO (1831 – 1852) À T... (...) Meu amor, minha vida, eu sofro tanto! O fogo de teus olhos me fascina, O langor de teus olhos me enlanguesce, Cada suspiro que te abala o seio Vem no meu peito enlouquecer minh’alma! Ah! vem, pálida virgem, se tens pena De quem morre por ti, e morre amando, Dá vida em teu alento à minha vida, Une nos lábios meus minh’alma à tua! Eu quero ao pé de ti sentir o mundo Na tua alma infantil; na tua fronte Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros Sentir as vibrações do paraíso; E a teus pés, de joelhos, crer ainda Que não mente o amor que um anjo inspira, Que eu posso na tu’alma ser ditoso, Beijar-te nos cabelos soluçando E no teu seio ser feliz morrendo! “Lira dos vinte anos” 1853

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O comentário de Machado de Assis sobre a obra de Adélia Fonseca, embora imbuído de elogios, traz uma ressalva um tanto machista: “O que nos agrada sobretudo é que este livro exprime uma verdadeira individualidade feminina; não há essa pompa afetada, essa falsa imitação dos tons másculos que algumas escritoras procuram mostrar em suas obras, como recomendação dos seus talentos.” É curioso notar a menção publicada na capa ou no prefácio de um livro de Adélia Fonseca ressalvando o fato de que a autora não auferia nenhuma remuneração para seu trabalho. A sobrevivência através do trabalho intelectual para a mulher era vedada. Em 1850, começam a aparecer, com frequência, versos de mulheres, que publicavam sempre com a mesma ressalva. Esta situação vinha explicitada na capa ou no prefácio do livro Echos da minh’alma, de Adélia Fonseca, editado em 1866. Modernismo, século XX Na transição para o Modernismo, a poesia ganha novos rumos. Após a Primeira Guerra Mundial, o socialismo e o feminismo tomam força. Aos poucos as vozes femininas começam a ser reconhecidas em publicações de revistas, coletâneas e livros isolados. A Semana de Arte Moderna em 1922 consagra os poetas Manuel Bandeira, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Embora Tarsila Amaral e Raquel de Queiroz fossem artista e escritora presentes no rol dos intelectuais do movimento, apenas timidamente as poetas se fazem ouvir. Enquanto que ainda musas inspiradoras de seus pares, agora também criadoras, não têm o sexo oposto por inspiração, senão como personagem ou como gerador de sentimentos que agora expressam livremente. Em ordem cronológica citamos: Gilka Machado, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Hilda Hilst. Gilka Machado (1893 – 1990) rompe com a forma e expressa explicitamente sensações, sentidos, desejos eróticos. Seu primeiro livro de poemas foi publicado aos vinte e dois anos: “Cristais partidos”, seguindo-se “Estados d’Alma” (1917), “Mulher Nua” (1922), “Meu Glorioso Pecado” (1928), “Amores que Mentiram, que Passaram” (1928) Aclamada pela revista “O Malho” como a maior poetisa brasileira selecionada entre 200 intelectuais, tornou-se reconhecida e popular. Sua poesia permanece como um marco na ousadia de resistência aos limites impostos até então para a representação do prazer erótico usando de linguagem explícita e de forma artística qualitativamente reconhecida. Recebeu o

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Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Poesia em 1979 e poderia ter sido a primeira mulher a fazer parte da referida academia, tivesse ela aceitado o convite para se candidatar. Cecília Meireles (1901 – 1964). Sua formação pedagógica e intensa atividade intelectual a qualificam para títulos e honrarias, mas é a qualidade de seus versos que a fazem detentora do reconhecimento público como uma das maiores e mais importantes poetas brasileiras de todos os tempos. Nesta fase, o estudo comparativo já perde sua necessidade. É mister apenas colocar lado a lado poesia e poesia para perceber que traços sutis se perdem ou se alinham na poesia de autores do sexo masculino e do sexo feminino. GILKA MACHADO (1893 – 1980) Fecundação

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Teus olhos me olham longamente, imperiosamente... de dentro deles teu amor me espia. Teus olhos me olham numa tortura de alma que quer ser corpo, de criação que anseia ser criatura Tua mão contém a minha de momento a momento: é uma ave aflita meu pensamento na tua mão. Nada me dizes, porém entra-me a carne a persuasão de que teus dedos criam raízes na minha mão. Teu olhar abre os braços, de longe, à forma inquieta de meu ser; abre os braços e enlaça-me toda a alma. Tem teu mórbido olhar penetrações supremas e sinto, por senti-lo, tal prazer, há nos meus poros tal palpitação, que me vem a ilusão de que se vai abrir todo meu corpo em poemas. (in Sublimação, 1928)

GUILHERME DE ALMEIDA (1890 1969) O Idílio suave Chegas. Vens tão ligeira e és tão ansiosamente esperada, que enfim, nem te sentindo o passo e já te tendo inteira, completamente em mim, quando, toda Watteau, silenciosa, apareces, é como se não viesses. Vens... E ficas tão perto de mim, e tão diluída em minha solidão, que eu me sinto sozinho e acho imenso e deserto e vazio o salão... E, sem te ouvir nem ver, arde-me em febre a face, como se eu te esperasse! Partes. Mas é tão pouco o que de ti se vai que ainda te vejo o arfar do seio, e o teu cabelo, e o teu vestido louco, e a carícia do olhar, e a tua boca em flor a dizer-me doidices, como se não partisses! Cecília Meireles descreve dançarinas, Manuel Bandeira descreve pequenos carvoeiros, A ambos tocam os mesmos sentimentos, diferentes são os objetos e a razão da escolha. Henriqueta Lisboa (1901 – 1985). Poeta mineira, detentora do prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. Dedicou-se igualmente à tradução, ensaios e antologias. Em 1984, recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra. Manteve-se sempre em contato com os escritores de sua época, mantendo uma longa correspondência com Mario de Andrade.(10) No poema abaixo, já em 1982, descreve a mulher em conformidade com padrões estabelecidos. Enquanto Mario Rossi faz humor quanto criação da mulher. Expressa-se ela em formato livre e ele num clássico soneto. CECÍLIA MEIRELES (1901 – 1964) Motivo Eu canto porque o instante existe E a minha vida está completa Não sou alegre nem sou triste Sou poeta. (...)

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Balada das dez bailarinas no cassino Dez bailarinas deslizam Por um chão de espelho. Têm corpos egípcios com placas douradas, Pálpebras azuis e dedos vermelhos. Levantam véus brancos, de ingênuos aromas, E dobram amarelos joelhos. (...) Os homens gordos olham com um tédio enorme As dez bailarinas tão frias. Pobres serpentes sem luxúria, que são crianças durante o dia. Dez anjos anônimos, de axilas profundas, Embalsamados de melancolia. Vão perpassando como dez múmias As bailarinas fatigadas. Ramo de nardos inclinando flores Azuis, brancas, verdes, douradas. Dez mães chorariam, se vissem As bailarinas de mãos dadas. (in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)

MANUEL BANDEIRA (1886 – 1968) Meninos carvoeiros Os meninos carvoeiros Passam a caminho da cidade. — Eh, carvoero! E vão tocando os animais com um relho enorme. Os burros são magrinhos e velhos. Cada um leva seis sacos de carvão de lenha. A aniagem é toda remendada. Os carvões caem. (Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.) — Eh, carvoero! Só mesmo estas crianças raquíticas Vão bem com estes burrinhos descadeirados. A madrugada ingênua parece feita para eles... Pequenina, ingênua miséria! Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis! —Eh, carvoero! Quando voltam, vêm mordendo num pão

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encarvoado, Encarapitados nas alimárias, Apostando corrida, Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados. Petrópolis, 1921 HENRIQUETA LISBOA (1901 – 1985) Modelagem / Mulher Assim foi modelado o objeto: para subserviência. Tem olhos de ver e apenas entrevê. Não vai longe seu pensamento cortado ao meio pela ferrugem das tesouras. É um mito sem asas, condicionado às fainas da lareira Seria uma cântaro de barro afeito a movimentos incipientes sob tutela. Ergue a cabeça por instantes e logo esmorece por força de séculos pendentes. Ao remover entulhos leva espinhos na carne. Será talvez escasso um milênio para que de justiça tenha vida integral. Pois o modelo deve ser indefectível segundo as leis da própria modelagem. Publicado: Pousada do Ser (1982)

MARIO ROSSI (1911 – 1981) Divino Erro Cansado de curtir o dia-a-dia Sem qualquer atração do Paraíso, O Criador resolveu que era preciso Sair da fossa e da monotonia. Com argila celeste, de improviso, Compôs um alto estudo de estesia Modelando a mulher que lhe surgia Com a graça e a malícia de um sorriso. Previu que ali forjava a sua fama Mas, com o molde ainda inacabado, Sentiu-se exausto e se jogou na cama.

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Foi seu erro... o sono foi funesto, Mefisto, apologista do pecado, Aproveitou a chance... e fez o resto.

Na segunda fase do Modernismo, é a vez de Vinicius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt e Carlos Drummond de Andrade. Cecília Meireles já é incluída no grupo e Hilda Hilst (1930 – 2004) desponta rompendo com formatos padronizados e usando vocabulário corrente com toda irreverência e liberdade. Vemos ainda, a preocupação da descrição da mulher, junto com seus sentimentos, angústias e desejos. É curioso que tendo rompido com as formas clássicas da poesia e expressando-se à vontade sem métrica ou rima, possa ter colocado toda angústia da mulher moderna num maravilhoso soneto. HILDA HILST (1930–2004)

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“Aflição de ser eu e não ser outra. Aflição de não ser, amor, aquela Que muitas filhas te deu, casou donzela E à noite se prepara e se adivinha Objeto de amor, atenta e bela. Aflição de não ser a grande ilha Que te retém e não te desespera. (A noite como fera se avizinha) Aflição de ser água em meio à terra E ter a face conturbada e móvel. E a um só tempo múltipla e imóvel Não saber se se ausenta ou se te espera. Aflição de te amar, se te comove. E sendo água, amor, querer ser terra.”

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902 – 1987) As sem-razões do amor Eu te amo porque te amo, Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. À guisa de encerramento, uma resposta inédita a um famoso poema de Vinicius de Morais: VINICIUS DE MORAES (1913 – 1980) Receita de Mulher As muito feias que me perdoem Mas beleza é fundamental. É preciso Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). Não há meio-termo possível. É preciso Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. (...) É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas No enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras É como um rio sem pontes. Indispensável Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida A mulher se alteie em cálice, e que seus seios Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas. (...) Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão

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Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos Ao abri-los ela não mais estará presente Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá (...)

VERA ABAD (1943 - ) Resposta ao poeta As belas que me perdoem, porém tua receita, poeta, Começa com um erro fatal. Beleza abre portas, é certo. Negá-lo seria estultice, mas nem sempre é fundamental. Num julgamento apressado, beleza só de superfície, Não chega ao essencial. Além disso, beleza, beleza de mulher, então, É conceito variante, em tempo e espaço, mutante Em moda, raça, nenhum dominante, Subjetivos todos são. O que louvas, meu poeta, em tua mulher ideal? Sua formas atraentes, sua construção perfeita Para ser admirada. Seu corpo firme e macio, suave textura Para ser tocada. Frescor e odores, qual fruta madura que desejas provar. Quando falas do mistério, Vedas a paixão por trás de um muro E, se pintas a mulher com teu traço, Cintura, boca e braço Ainda assim a fazes deusa viva, Efêmera e irreal. (...) Amada, toda mulher sente-se bela, Pois o amor é para ela a fonte eterna de seu poder. Esta é a beleza que vem de dentro, E, poeta, não chegas ao centro, ao âmago da presente questão. Imagina se para ser amada toda mulher precisasse Preencher tua descrição. Os predicados que citaste, quase tudo que

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louvaste O tempo apaga, a idade muda, Com o abandono e o desamor fenece. Mais sábio o dito popular que explica: “Quem ama o feio, bonito lhe parece.”

Conclusão Da produção poética feminina dos séculos passados pouco ou quase nada foi divulgado e reconhecido. As precursoras que abriram caminho para que estas últimas, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Adélia Prado, Hilda Hilst e muitas outras hoje tivessem seus trabalhos publicados em livros, em coletâneas, na internet, que pertencessem a academias literárias e fossem traduzidas para outras línguas, aquelas tiveram seus trabalhos resgatados e publicados graças às pesquisas realizadas por universidades brasileiras nos últimos anos. Mencione-se em especial, o trabalho de Zahidé Lupinacci Muzart na compilação do livro publicado pela Universidade de Santa Cruz do Sul em colaboração com a Editora da Mulher, “Escritoras Brasileiras do Século XIX”, o qual apresenta o trabalho de 51 escritoras brasileiras, entre elas as mencionadas anteriormente, cujos nomes até bem recentemente não eram registrados em publicações sobre literatura. Pela pesquisa aprendemos que no final do século XIX, mulheres leitoras e escritoras publicavam em jornais e revistas, geralmente nos cadernos especializados como femininos. Delas, 40% eram professoras, 40% eram relacionadas por laços de família ou por matrimônio a artistas, escritores e jornalistas do sexo masculino. Apenas 20% lançavam-se destemidamente. E enfrentavam a discriminação e a crítica mordaz ao seu comportamento e à sua obra. Existe uma literatura feminina? Uma poesia feminina, oposta a uma literatura masculina e poética essencialmente masculina? Por certo que este trabalho não prova diferenças que possam ser detectadas para caracterizar exclusivamente uma ou outra manifestação literária. É certo também, que ainda hoje poetisas e romancistas tenham suas obras criticadas como não adequadas ao que se espera ser escrito por uma mulher quando se afastam de uma certa delicadeza ou contenção de linguagem. Pode-se dizer que ao longo de dois séculos e mais intensamente nos últimos cinquentas anos, a mulher conquistou espaço e reconhecimento no universo literário, no Brasil em igualdade com o resto do mundo. Jornalistas e editoras hoje emprestam nomes de prestígio às suas firmas de

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comunicação. Poderíamos dizer que é uma vitória, sem esquecer nunca que o Feminismo é uma luta onde a vitória é o empate. O caminho foi aberto, os espaços preenchidos. As mulheres exploram o mundo das mulheres e o mundo dos homens em suas obras literárias e são igualmente lidas e reconhecidas. Seis escritoras tomaram assento na Academia Brasileira de Letras: Raquel de Queiroz, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Lygia Fagundes Teles, Zélia Gattai e Cleonice Berardinelli. Estranhamente, nenhuma delas, poeta. O que é definitivo, porém, é que a trajetória feminina na busca de sua liberdade de expressão pautou-se pela imitação dos padrões vigentes em suas épocas, que eram masculinos, e pelo esforço por exprimir seus próprios sentimentos e ideias do melhor modo aceito no mundo acadêmico, e se não marcaram presença lado a lado de seus pares masculinos, foi por pura contingência social e falta de reconhecimento. Reconhecimento este que orgulhosa e agradecidamente lhes damos neste momento. NOTAS: 1 – No outono de 1920, a edição do livro de ensaios do novelista Arnold Bennet sobre: “Nossas mulheres: capítulos sobre a discordância dos sexos” deu origem a uma contenda verbal entre Desmond MacCarthy que fizera a crítica do livro e Virginia Woolf. A troca de cartas foi publicada no New Stateman em outubro do mesmo ano e fazem parte do livro “Killing the Angel in the House: seven essays” Virginia Woolf edição da Penguin Books 1995. 2 – Afonso Henriques de Lima Barreto ( Rio de Janeiro 1881 – Rio de Janeiro 1922) Jornalista e romancista brasileiro colaborou no Jornal do Commercio e na A Gazeta da Tarde, além das revistas O Riso, Fon-Fon e Careta. Em sua observação compara a mulher estrangeira e a brasileira não poupando duras críticas às suas conterrâneas nem como personagens em seus romances nem suas afirmações nos artigos publicados. Carlos Erivany Fantinati: “Literatura e Autoritarismo” Contextos Históricos e Produção Literária Revista nº 12 Universidade Federal de Santa Maria RS. Disponível em: http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num12/ art_08.php 3 – A revolta conhecida como Inconfidência Mineira, foi uma tentativa separatista, ocorrida

nas Minas Gerais contra o domínio português. Foi abortada em 1789 pela Coroa portuguesa. Dela fizeram parte intelectuais da então Vila Rica em sua maioria poetas cuja produção trazia forte influência do Arcadismo e Classicismo português. 4 – Manuel Rodrigues Lapa (Anadia 1897 – 1989). Filólogo e escritor português que, quando radicado no Brasil após se afastar de Portugal por motivos políticos realizou investigações sobre o Setecentos político e cultural de Minas Gerais. Suas pesquisas abarcaram os escritores da Conjuração Mineira publicando e comentando grande documentação sobre eles até então desconhecida. 5 – Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), nascido em Miragaia, no Porto, e falecido na Ilha de Moçambique, na costa oriental da África, foi um dos principais poetas árcades do Brasil. Seu poema Marília de Dirceu foi publicado em Lisboa em 1792. 6 – “The Angel in the House” – poema narrativo de Coventry Patmore publicado em 1854 e expandido até 1862. Tornou-se conhecido por personificar o ideal feminino na era vitoriana: a mulher como esposa e mãe abnegadamente dedicada aos filhos e ao lar, submissa ao seu marido. 7 – Sobre Clovis Beviláqua ver Silvio Meira. “Clovis Beviláqua. Sua vida. Sua obra.” Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1990. 8 – Geração condoreira, Condoreirismo. Tendo como símbolo o condor, ave cujo voo solitário alcança as alturas, abrange os poetas de aspiração libertária, com sentimentos liberais e abolicionistas da terceira geração do período romântico. 9 – Alvares de Azevedo foi um dos poetas que melhor personificou a estética ultra-romântica. Dado a temas mórbidos, de uma lírica macabra, teve vida curta, sofrendo de tuberculose o que explica suas inclinações e o fato de seus poemas não terem sido reunidos em livro enquanto viveu. 10 – Mário de Andrade foi um dos propulsores do movimento modernista, autor de “Macunaíma” publicado em 1928 e considerado um dos grandes romances modernistas do Brasil. Figura de projeção no meio literário, foi músico poeta e romancista. Referências Bibliográficas A MULHER NA LITERATURA. Catálogo de escritoras brasileiras GT 2002 – 2004. Disponível em: BATELLA,Nadia. Gilka Machado. Disponível em

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BENNET, Arnold. Our women: chapters on the sex discord. Coleção de Ensaios. c. 1920. Kindle Edition.2010. DEL PRIORE, Mary e BASSANEZI, Carla organização. História das Mulheres no Brasil. SP Editora Contexto 2009. FALCI, Miridan Britto Knox. Amelia de Freitas Beviláqua: a intelectual piauiense avançada. Disponível em JORNAL DE POESIA. Poemas e biografias de autores brasileiros. Site disponível em < http://www.jornaldepoesia.jor.br/> LIMA BARRETO. A mulher Brasileira, artigo. In: Vida Urbana. SP Brasiliense 1961 25 LIMA BARRETO. Feminismo e voto feminino, artigo. In: Férias e Mafuás. SP Brasiliense 1961 LIMA BARRETO. O anel das musicistas, artigo. In: Marginalia. SP Brasiliense 1961 LITERATURA ONLINE. Seção Modernismo (1922 – 1960). Disponível em <www.graudez.com.br/literatura/modernismo. html> MACHADO, Gilka. Poesias completas. RJ Léo Christiano Editorial Ltda 1993 MICOLIS, Leila. Mulheres da Belle-époque e suas parcerias textuais lyrio-líricas. Disponível em: MORAES, Vinicius de. Antologia Poética. 29ªed. RJ José Olympio Editora 1988 MUZART, Zahidé Lupinacci, organização. Escritoras Brasileiras do século XIX – Antologia. Ed. Mulheres/Edunisc SC 1999 PEREIRA DE MELO, Henrique Capitulino. Pernambucanas Ilustres, c.1878. PRICE, David. Victorian Web version of the Angel in the House by Coventry Patmore. Project Gutenberg e-text. Disponível em: TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras, artigo. In: História das Mulheres no Brasil. SP Editora Contexto 2009. WOOLF, Virginia. Killing the Angel in the House: Seven Essays. UK. Penguin 1995.

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Relações étnico-raciais e de gênero na cena literária brasileira do século XIX Isabel Silveira dos Santos e Marta Campos de Quadros PPGEdu/UFRGS, Brasil

Resumo: Em diversos e diferentes períodos da vida cultural brasileira, a literatura tem sido tomada como uma importante forma de pedagogia cultural, principalmente no âmbito da escola, relativamente aos modos de ser e de viver no país. Pode-se afirmar que o reconhecimento da presença feminina em nossa cena literária é recente, e mais recente ainda de mulheres negras como narradoras das histórias que nos produzem brasileiros. Esta comunicação, inscrita teórica e metodologicamente no campo dos Estudos Culturais em Educação busca discutir como mulheres negras procuraram através da textualidade literária narrar histórias sobre a cultura brasileira e como as teorias raciais do final do século XIX e início do século XX podem ter contribuído para que essa produção literária permanecesse desconhecida dos leitores negros (as) e brancos (as) no passado e na atualidade. A vida e a obra de Maria Firmina e Carolina Maria de Jesus, mulheres negras que escreveram sobre o modo de vida brasileiro num período em que muitos projetos literários de intelectuais nacionais priorizavam as representações inscritas em uma cultura marcadamente branca, de origem européia, masculina e católica como modelo a ser conhecido e seguido, ao mesmo tempo em que invisibilizavam representações inscritas em outras culturas, muito especialmente na afro-brasileira constituem aqui nosso foco de análise. A partir deste estudo observamos que a presença insignificante das mulheres na cena literária brasileira do final do século XIX e início do século XX e, principalmente, a não presença das mulheres negras escritoras que contavam em periódicos dirigidos aos afro-descendentes sobre a vida cotidiana e sobre seus personagens foram pedagogicamente produtivas na construção de uma determinada brasilidade.

Literatura, relações étnico-raciais e processo civilizatório De modo geral ao longo da história brasileira a literatura tem sido vista como detentora de um poderoso caráter didático-pedagógico e é tomada como importante elemento capaz de configurar determinadas identidades. Desse modo, pretendia-se através das obras literárias modificar comportamentos e resgatar da barbárie os “nativos” e incluí-los no empreendimento civilizador que se pretendia para o país tentando incluí-lo no rol das nações civilizadas. A produção intelectual, prioritariamente masculina é que vai participar desse empreendimento civilizatório. De acordo com Florentina Souza (2005), “intelectuais do século XIX fizeram

da literatura veículo de construção e transmissão de idéias e valores que compuseram os discursos oficiais sobre o Brasil”. A autora destaca que políticos e intelectuais brasileiros, como o imperador D. Pedro II, Gonçalves de Magalhães José de Alencar, Joaquim Nabuco e Machado de Assis utilizaram os textos literários como Pilares institucionais da nacionalidade, por vezes sugerindo modelos de heróis ou apontando vilões, outras propondo especificidades no uso brasileiro da língua portuguesa, ou através da exaltação de elementos da terra brasileira, ou ainda nas tentativas de inserção de seus textos e rostos na tradição escrita ocidental, esmaecendo o papel dos grupos étnicos des-

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prestigiados por esta tradição. (SOUZA, 2005, p. 64).

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Dentro dessa tradição, a cultura afro-brasileira e a produção intelectual de negros é invisibilizada, pois, nesse momento, negros (as)1, africanos e seus descendentes eram vistos como inferiores. Nesse sentido, torna-se importante, ainda que dentro das limitações que esse trabalho impõe discutir como negros (as), particularmente mulheres negras dos últimos anos do século XIX e primeiras décadas do século XX tiveram uma produção literária e como negociaram os discursos vigentes sobre as mulheres e sobre os negros (as), especialmente o discurso do racismo científico articulado ao discurso civilizatório que pretendia a construção de uma identidade nacional. Tomo como objeto de estudo a trajetória de uma mulher negras, Maria Firmina dos Reis (1825-1917) que em 1859 publicava o romance Úrsula. Para tanto, assumo como perspectiva teórico-metodológica o campo de teorização e investigação conhecido como Estudos Culturais que assumem que “a cultura é uma das condições constitutivas da existência das práticas sociais” e “que toda prática social tem uma dimensão cultural” (HALL, 1997, p. 33). Essa centralidade atribuída à cultura nos Estudos Culturais é também conhecida como Virada Cultural, no sentido de considerar que é através da linguagem e da representação que os significados são construídos socialmente e historicamente. Stuart Hall (1997) salienta que a representação é uma forma de produção de significados  que ocorre através da linguagem e está  articulada a um momento histórico e a uma cultura específica. Neste sentido, a produção de significado não é fixa, estável e imutável, mas, ao contrário, o significado desliza e se adapta conforme o contexto, o uso e as circunstâncias históricas. De acordo com Hall, o significado está sempre sendo negociado e às vezes é severamente disputado e contestado pelos diferentes circuitos de significação em circulação. O autor destaca ainda que a representação, sempre produzida no interior de códigos, não tem outro significado que não seja aquele que lhe é discursivamente atribuído. Por último, Hall (1997) chama a atenção para o fato de que a representação exerce um poder constitutivo, formativo, na construção da vida social e política e na construção da identidade. Tomaz Tadeu da Silva (2005) sublinha que a 1 Nesse trabalho negro (a) será utilizado para caracterizar pretos e pardos ao modo do Censo Populacional.

representação esta “estreitamente ligada a relações de poder” (SILVA, 2005, p. 91). Quem tem o poder de representar dita as regras de como o Outro será representado. É através dessa política de representação que estereótipos e preconceitos são construídos e naturalizados, justificando-se a discriminação étnico-racial assim como a discriminação de gênero. Carlos Skliar e Silvia Duschatzky (2001) analisaram o estereótipo como uma estratégia discursiva de poder, “... produzida dentro de relações de poder, por meio de mecanismos de delegação: quem tem o direito de representar a quem; e de descrição: como os diferentes grupos culturais são apresentados.” (SKLIAR e DUSCHATZKY, 2001, p.122). Neste sentido, quem tem o poder de representar dita as regras de como o Outro é visto na esfera da cultura. Nesse processo de construção de significados, neste jogo de poder, sistemas classificatórios são produzidos e reproduzidos simbolicamente, geralmente em oposições binárias: o bom e mau, o bonito e o feio, o sagrado e o profano, o civilizado e o primitivo, o sujo e o limpo, branco e negro. O Outro, geralmente, é constituído como uma inversão negativa do primeiro, e este, por sua vez, não existe fora, mas relacionado ao Outro. Neste sentido, investigar a narrativa literária produzida por mulheres negras torna-se uma rara oportunidade para a discussão das relações raciais e dos “papéis de gênero” antes e depois da Abolição da Escravidão, quando se iniciava a reorganização do mercado de trabalho e se repensava o futuro da nação. É importante indagar ainda sobre a possibilidade de a questão racial e de gênero terem contribuído para uma maior ou menor visibilidade da produção literária de mulheres negras, em especial, a produção de Maria Firmina dos Reis. Relações raciais e de gênero no Brasil entre o final dos oitocentos e primeiras décadas do século XX Pensar em narrativas produzidas por mulheres negras não é um processo simples. Em primeiro lugar a dificuldade de se ter acesso a materiais escritos por essas pessoas, principalmente porque a legislação do período colonial, extensiva ao século XIX, negava aos negros (as) o acesso a escolarização e, portanto, “não caberia aos negros escrever, publicar ou mesmo falar de si ou de seu grupo.” (SOUZA, 2005, p. 65). Já no inicio do período republicano, a pouca oferta de escolas, as dificuldades econômicas e a dificuldades nas relações entre brancos (as) e negros (as) impedia a freqüência e permanência dos negros (as) na escola.

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Em segundo lugar, o Brasil passava por transformações significativas de caráter urbano, que se iniciaram pelo Rio de janeiro, estendendo-se depois para as principais cidades brasileiras. Essas transformações aceleraram a necessidade de mudanças urbanas, especialmente nos hábitos de comportamento civil e higiênico da população, necessárias para o convívio em grandes cidades (COSTA, 1989, p. 29). Com a aceleração do crescimento das cidades, habitadas principalmente por uma população de mulatos e negros livres e de brancos pobres, desenvolvendo-se uma crescente preocupação com uma possível revolta desse contingente populacional “sem senhor”. A partir dessas modificações no âmbito social é possível descrever a produção de uma rede de discursos, disperso em variadas instituições, pretendendo disciplinar, governar essa massa populacional que ameaça o projeto de Estado pretendido para o país. Visando preparar os sujeitos para a nova ordem urbana e para a entrada do Brasil no “rol das nações civilizadas”, a medicina, através das campanhas sanitarista/higienista, irá tentar o comprometimento das famílias brasileiras com esse projeto, elegendo a higiene como forma de levar a população a aderir ao padrão de vida europeu, visto como modelo de “civilização” a ser seguido. A campanha higienista vai defender a assepsia das casas e das cidades, livrando o ambiente das “impurezas do passado”, estreitamente vinculadas à escravidão. Através da campanha sanitarista/higienista, a posição dos homens e mulheres negras antes da abolição e após o fim do regime escravista se converteu de patrimônio útil à propriedade, ao inimigo doméstico, nocivo à saúde da família branca, “produtor de efeitos morais” capazes de corromper os lares com seu comportamento não-civilizado e afeito a todos os vícios, muitos destes decorrentes da escravidão. No momento em que os médicos e o Estado se aliam na defesa de discursos e práticas que vão promover o saneamento da nação, através da modificação de hábitos alimentares, de indumentária, de costumes, colocava-se em destaque quem estava na norma e quem não estava, quem era “civilizado” e quem não era, mas principalmente, colocava-se em disputa a construção de uma idéia de nação que passava, necessariamente, pela questão do negro e seus descendentes no Brasil, que vão ser considerados “um dos fatores da inferioridade do povo brasileiro” e, portanto, alvo do disciplinamento e repressão. Não podemos esquecer ainda que, inicia-se no

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final dos oitocentos e solidifica-se nas primeiras décadas do século XX o processo em que novos papéis sociais vão ser criados para homens e mulheres. Nesse processo, a diferença entre homens e mulheres será demonstrada através da construção de marcadores sócio-sexuais que determinavam novos lugares a ser ocupado por cada um. Jurandir Freire Costa (1983) destaca que as mulheres passaram a ser vistas como moral e fisicamente mais frágeis que os homens, dominadas pelas faculdades afetivas e emotivas e assim sendo sua “natureza”, ligada aos sentimentos, com uma capacidade intelectual inferior. Cabia a mulher, o lugar de mãe amorosa que deveria cuidar e zelar dos filhos e do marido, e por isso, sua presença na academia não era tolerada e ela não podia ter uma profissão que a colocasse em situação de igualdade com os homens. Assim, na historiografia literária brasileira são poucas as mulheres que conseguiram ter uma produção literária. Destacamos que isso não significa que as mulheres não escrevessem, mas que, foram poucas as mulheres que tiveram sua produção intelectual publicada, seja em forma de livros, revistas literárias ou jornais, entre o final do século XIX e anos iniciais do século XX. Em se tratando de mulheres negras, essa presença é ainda mais escassa. É importante destacar que no período do qual esse trabalho se ocupa, o mercado editorial brasileiro não tinha uma grande produção, seja pelas dificuldades de impressão, seja pelo baixo índice de alfabetizado entre a população branca e negra. Mas, embora o índice de analfabetismo fosse grande, não podemos afirmar que as obras publicadas não circulassem entre a população, alfabetizada ou não. Basta ver o grande número de periódicos, revistas literárias, informativos publicados por agremiações de classe e sociais que circulavam nos grandes e pequenos centros urbanos brasileiros. Muitas pesquisas acadêmicas relatam a existência de grupos de “intelectuais” que atuaram na chamada “Imprensa Negra”2, que fizeram circular entre seus pares, letrados ou não, questões que se propunham a desbancar as teorias raciais que postulavam a “inferioridade dos negros” e a “superioridade dos brancos”, e outras questões de interesse da comunidade negra como: relações raciais, abolição, educação, direitos civis, moradia, democracia, trabalho, etc. Entretanto, esses grupos de “intelectuais negros” é composto quase que na sua totalidade por homens. São quase inexistentes 2 Ver, entre outros, trabalho “Imprensa Negra no Brasil do Século XX” de Ana Flavia Magalhães Pinto, 2010.

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os relatos de mulheres negras jornalistas, teatrólogas, poetisas, romancistas, contistas ou cronistas. Uma das poucas exceções é o caso de Maria Firmina dos Reis.

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Maria Firmina dos Reis (1825-1917) e Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977): contando outra história na literatura brasileira Ao percorrermos a historiografia brasileira geralmente podemos sentir a presença de muitos “silêncios” sobre a população negra brasileira. Desde o período colonial que negros (as) e seus descendentes se fazem presentes em praticamente todos os tipos de atividades, sejam elas braçais ou intelectualizadas. No entanto, nem sempre essa participação obteve reconhecimento ou divulgação. Negros (as) atuaram como sujeito, nas pequenas brechas que conseguiam abrir na sociedade brasileira, desde o período escravista até a atualidade, procurando modificar a estrutura social vigente. A participação de negros (as) e seus descendentes no processo que levou ao fim do regime escravista foi decisiva. Mesmo assim, esta participação geralmente é silenciada. Embora durante todo o século XIX, até praticamente metade do século XX, o índice de analfabetismo entre a população negra brasileira fosse grande, muitos eram os negros (a) alfabetizados que, individualmente ou em grupos, discutiam temas atinentes aos afro-descendentes, como a abolição e discriminação racial, especialmente em jornais. De acordo com Eduardo de Assis Duarte (2005), no caso da literatura, a produção dos negros (as) e seus descendentes sofreu, ao longo dos tempos, vários impedimentos, a começar pela própria materialização do livro. Sobre este aspecto o autor sublinha o seguinte: Quando não ficou inédita ou se perdeu nas prateleiras dos arquivos, circulou muitas vezes de forma restrita, em pequenas edições ou suportes alternativos. Em outros casos, existe o apagamento deliberado dos vínculos autorais e, mesmo, textuais, com a etnicidade africana ou com modos e condições de existência dos afro-brasileiros, em função do processo de miscigenação branqueadora que perpassa a trajetória desta população. (DUARTE, 2005, p. 114). Sem entrar na discussão de definir ou não a existência de uma “literatura afro-brasileira”, torna-se importante destacar que a produção literária dos negros e seus descendentes, tanto do passado como do presente, é quase que totalmente desconhecida nos currículos escolares do ensino

básico e do ensino superior. Embora o enorme esforço revisionista da historiografia literária brasileira, motivado, parece, pelas reivindicações dos novos agentes sociais na luta por representação, os estudos praticamente se restringem aos autores (as) negros (as) contemporâneos. Muitos autores do passado continuam praticamente desconhecidos. No caso das autoras negras, esse desconhecimento é ainda maior. Esse é o caso que parece impedir que a produção literária da maranhense Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus conste nos currículos dos cursos das instituições escolares no Brasil. Maria Firmina nasceu de São Luis, no estado do Maranhão em outubro de 1825. Mulata, vivendo num contexto de extrema segregação racial e social, num fato inédito para a época, aos vinte e dois anos é aprovada num concurso público para a cadeira de Instrução Primária, tendo exercido o magistério por boa parte dos seus noventa e dois anos de vida. Parecendo bastante instruída, Maria Firmina teve participação importante no Maranhão, atuando como folclorista, escrevendo poesias, contos, compondo hinos e músicas em jornais da província e sendo a primeira mulher a escrever um romance abolicionista no Brasil, Úrsula, de 1859. Nesse romance, pela primeira vez o escravo negro tem voz na narrativa e, diferentemente de outras narrativas abolicionistas da época, a personagem Mãe Susana vai contar como se deu sua prisão em África e como sobreviveu a longa viagem de navio até o Brasil. Embora esse pioneirismo, provavelmente devido às limitações a que estavam submetidas as mulheres naquele momento, Maria Firmina, ao publicar esse romance, recorre a um pseudônimo, identificando-se apenas como “uma Maranhense”. Talvez, também seja por ser Maria Firmina mulher, negra vivendo numa distante província nordestina que sua produção literária só tenha sido conhecida em 1975. De acordo com Duarte (2005), “uma espessa cortina de silêncio envolveu a autora por mais de um século. Silvio Romero e José Veríssimo a ignoram.” (DUARTE, 2005, p. 133). É importante destacar que no mesmo ano em que Maria Firmina dos Reis publicava o romance Úrsula, Luis Gama, poeta negro, trazia a público sua Primeiras trovas burlescas, considerada um marco na literatura produzida por afro-descendentes. Mas ao que parece, as questões de gênero impedem que o romance de Maria Firmina seja divulgado e reconhecido na literatura brasileira. Se a cultura brasileira vigente na época, até admitia que um homem negro desconstruísse os estereótipos vigentes que apregoavam a inferioridade intelectual dos negros e seus descendentes, ao que parece, não conse-

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guiu admitir que do mesmo modo uma mulher, que também era vista como incapaz intelectualmente e ainda mais, sendo negra, também promovesse essa desconstrução. Além de Úrsula Maria Firmina escreveu ainda o romance-folhetim Gupeva, de 1861, e o conto A escrava, de 1887. Em o Álbum, diário no qual, entre 1853 e 1903, a autora apresenta a visão de uma mulher, negra, brasileira do final do século XIX sobre a vida, religião, amor, solidão. Maria Firmina já completamente cega morre em Guimarães, Maranhão em novembro de 1917. Enquanto Maria Firmina dos Reis vive a maior parte de sua vida num período em que o espaço público era negado às mulheres e que a escravização dos negros (as) era instituída legalmente, Carolina Maria de Jesus vive no período pós-abolição em que, embora “livres”, a população afro-brasileira vivenciava uma profunda hierarquização social e racial. Neta de escravos, Carolina Maria de Jesus nasceu na cidade de Sacramento, Minas Gerais, em 1914 e faleceu no em 13 de fevereiro de 1977. Em Minas Gerais, freqüentou a escola somente nos dois primeiros anos as séries iniciais. Trabalhou em fazendas do interior de Minas e de São Paulo até 1937 quando migra para a capital paulista e passa a trabalhar como empregada doméstica, função históricamente destinada as mulheres negras, e posteriormente, como catadora de lixo na favela do Canindé, São Paulo. Apesar da condição e favelada, mãe solteira de três filhos e pelo pouco estudo, os trabalhos literários de Carolina estão repletos de reflexões sobre a vida das mulheres, sobre a política e sobre a vida daqueles que viviam em situação semelhante a sua. Em sés trabalhos Quarto de Despejo: diário de uma ex-favelada (1960), Casa de Alvenaria (1961), Provérbios (1963), Pedaços da fome( 1963), Diário de Bibita ( 1982) e Meu estranho diário( 1996) Carolina abordou, através de um relato intimo de quem vivieu a discriminação racial, o tema do racismo no Brasil, ainda naquele momento histórico, quase que somente discutido nos meios acadêmicos e em poucos movimentos sociais. Ao explicitar suas vivencias, experiências, expectativas e desilusões, Carolina Maria de Jesus subverteu, através de sua produção literária, vários estigmas historicamente associados aos negros e as mulheres. Quarto de despejo (1960) , principal obra de Carolina, alcançou mais de um milhão de cópias vendidas , superando todos grandes cânones da literatura brasileira. Também foi publicado em vários países em 13 línguas diferentes, sendo ainda muito lido e estudado fora do pais. No entanto, no Brasil, é praticamente desconhecido da população

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em geral e nem mesmo faz parte do currículo dos cursos de Literatura Letras, História ou Ciencias Sociais. Embora Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis, tenham vivido em tempos históricos diferentes e específicos, as duas escritoras utilizam a literatura como um meio onde é possível falarem e escreverem sobre si e, ao mesmo tempo construírem e atribuírem significado a sua própria experiência e á própria identidade. No entendimento de Renata Jesus da Costa (2007) as mulheres como Carolina Maria de Jesus (e Maria Firmina dos Reis) “tinham consciência que poucas pessoas compreendiam os seus desejos de ler e escrever, uma vez que as pressões sociais de sua época de certa forma, reprovava tal comportamento”(COSTA, 2007, p. 04). A existência do romance Úrsula (1848) de Maria Firmina dos Reis e Quarto de despejo (1960) de Carolina Maria de Jesus podem marcar a desconstrução de uma história literária marcadamente etnocêntrica e masculina. Ao mesmo tempo, serem as autoras de Úrsula, e Quarto de despejo duas mulheres negras, intelectuais, também parece apontar para outras representações sobre as mulheres negras, que não somente aquelas que geralmente circulam na cultura brasileira. Referências Bibliográficas: COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989. COSTA, Renata Jesus. Subjetividades femininas: mulheres negras sob o olhar de Carolina Maria de Jesus, Maria Conceição Evaristo Brito e Paulina Chiziane. Anais do XXIV Simposio Nacional de História-ANPUH, 2007. DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política, identidade: ensaios. Belo Horizonte: FALE/UFGM, 2005. HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. HALL, Stuart. The Work of Representation. In: HALL (Org.) Representation. Cultural Representation and Signifying Practices. London/ Thousand Oaks/ New Delhi: Sage/Open University, 1997. SANTOS, Isabel Silveira dos. Abram-se as Cortina: representações étnico-raciais e pedagogies do palco no teatro de Arthur Rocha. Dissertação de Mestrado, Universidade Luterana do Brasil – ULBRA- Canoas, 2009. SKLIAR, Carlos e DUSCHATZKY, Silvia. O Nome dos Outros. Narrando a alteridade na cultura In: LARROSA, Jorge e SKLIAR, Carlos. Habitantes de

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Representações femininas e escrita de si na literatura de Maria Helena Cardoso Cláudia J. Maia Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes, Brasil

Resumo: Este texto tem como proposta discutir a escrita de si e representações femininas nas obras Por onde andou meu coração e Vida, vida da escritora mineira Maria Helena Cardoso. Nessas obras, de caráter memorialístico e autobiográfico, a autora percorre suas próprias vivências e experiências reconstruindo, a partir delas, fatos e acontecimentos que marcaram sua vida. Ela fala de muitas mulheres, das amizades e paixões, da família, de sofrimento e morte, mas, principalmente, fala de si mesma, nos permitindo entender os modos pelos quais ela constrói significados, percebe e representa outras mulheres e a si mesma. Embora uma escritora talentosa, Maria Helena Cardoso é pouco conhecida e seus livros raramente estudados, possivelmente por não ter se dedicado ao romance ideológico privilegiado pela crítica literária da sua época e ao pouco reconhecimento dado à literatura de autoria feminina no Brasil, frequentemente considerada uma “literatura menor”. Esse trabalho pretende contribuir com a literatura de autoria feminina e dar visibilidade à esta escritora mineira e seus escritos.

Introdução Nos últimos anos a crítica literária feminista no Brasil tem ressaltado a ausência de mulheres no cânon literário brasileiro muito mais pelo silêncio dos historiadores da literatura – que as qualificavam como fracas e de fazerem uma literatura “menor”– do que da inexistência de mulheres escritoras. Foi somente no primeiro quartel do século XX que a literatura feminina começou a ser visível, embora a produção de livros e, sobretudo de textos em periódicos não tenha sido nada desprezível em períodos anteriores (Muzart, 2000, p.19). Restritas ao âmbito doméstico e recebendo uma educação voltada exclusivamente para a formação de prendadas donas-de-casa; esposas dedicadas e mães amáveis, cumprindo assim as prescrições do seu gênero e o modelo desejado de feminino, as mulheres tiveram poucas condições de possibilidade de explorar e desenvolver sua criatividade, talento e expressividade literária, e quando o fizeram, de tornar público seus escritos. Conforme ressalta Zahidé Muzart (2000) “a educação patriarcal cerceou de maneira bárbara a vida das mulheres e estiolou muitas vocações literárias”(p.22).

Escritoras como Júlia Lopes de Almeida, no início do século XX, chegaram a esconder seus escritos com receio do pai descobrir sua atividade, de certa forma, clandestina, pois no mundo literário predominantemente masculino, as mulheres eram intrusas e sua “aceitação passava por códigos burgueses e de boas maneiras”(Muzart, 2000, p.22). A conquista da carreira das letras pelas mulheres foi longa e difícil, conforme sublinhou a escritora e crítica literária inglesa Virgínia Woolf em conferência de 1929, “uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só para si, se quiser escrever ficção” (2005, p.18). Para tornarem-se escritoras as mulheres necessitavam conquistar primeiro sua autonomia e independência, matar o anjo do lar e, nas palavras de Norma Telles, enfrentar “a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia ou da desobediência”. Esse processo de “matar o anjo ou o monstro refere-se à percepção das prescrições culturais e das imagens literárias que de tão ubíquas acabam também aparecendo no texto das escritoras” (Telles, 1997, p.408). Seja na ficção, nos parcos romances, na poesia, em contos ou ensaios essas primeiras escritoras

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registravam em seus escritos as experiências de vida e de confinamento a que estavam submetidas, sendo que muitas delas, através do romance autobiográfico, procuraram denunciar a situação de submissão das mulheres. Mas foi através da literatura memorialística que essas experiências e vivências foram mais detalhadamente rememoradas, resgatadas, descritas e reavaliadas por elas. A publicação desses escritos possibilitou torná-las, mais tarde, conhecidas. Maria José Viana (1995) sublinha que, enquanto no século XIX, a escrita memorialística já se afirmava como gênero literário na Europa, no Brasil, limitava-se a “parcas obras escritas obviamente por homens de renome entre a intelectualidade nacional” (p.14). Dessa forma, o caminho das memórias começou a ser trilhado pelas mulheres pouco depois da poesia e da ficção, mas de forma ainda muito tímida. Todavia, o diário íntimo e os cadernos de memórias, em que elas registravam pensamentos, estados de alma, lembranças ou ideias foi uma prática muito comum entre as mocinhas e senhoras burguesas, mas que ficaram restritos à família ou esquecidos em gavetas e baús empoeirados. Será, sobretudo, a partir do final da década de 1960, que esses registros saírão das gavetas e do âmbito familiar para ocupar espaço nas livrarias e bibliotecas, ao lado de outras escritas e escritores. Nessas obras de cunho memorialístico, as mulheres procuravam, com sua narrativa, a inscrição de si mesmas (Viana, 1995, p.16). Ao contrário das escritas masculinas, as femininas nesse gênero literário, conforme sublinha Ruth Silviano Brandão (2004), [...] apontam para uma visão subjetivada e intimista da vida, com inquietações pessoais, passando por fatos miúdos, relatos narrados de forma fragmentária ou reflexões sobre pedaços do vivido, talvez marcado pela reclusão, em que os horizontes podem por vezes parecer demasiadamente estreitos para o leitor dos grandes romances ( p.78). Essas características estão presentes nos livros de Maria Helena Cardoso que misturam os gêneros memória e autobiografia. Seus escritos abrem, assim, possibilidade de tornar inteligíveis suas vivências, mas principalmente entender como uma mulher celibatária, sexagenária, constrói suas experiências e relações sociais, constitui-se como sujeito, representa a si mesma e os/as outros. Seus livros sugerem o estudo de inúmeros temas, entretanto, nesse texto limitarei a discutir as representações femininas e elementos da escrita

de si presentes nas obras Por onde andou meu coração e Vida, vida. Conforme argumenta Tânia Navarro Swain (2011), “faz parte da construção dos saberes e das estratégias de implantação da heterossexualidade compulsória a extinção da memória, dos traços das atividades das mulheres, em conjunto, ou individualmente” no passado; pois “[...] uma vez controlados os processos de construção do saber e o acesso a eles, é muito fácil negar a existência da criatividade e de presença incontornável das mulheres na história” (p.8). As memórias de Helena são não apenas evidências da criatividade feminina, por meio da escrita, mas, sobretudo nos fornece mais do que indícios das representações e fazeres femininos no passado. A escritora e sua escritura Maria Helena Cardoso nasceu na cidade de Diamantina, em 1903, passou sua infância em Curvelo e em outras pequenas cidades do interior mineiro; em 1914, a família mudou-se para a capital, Belo Horizonte, onde ela cursou o ensino secundário no Ginásio Mineiro. Foi também nessa cidade que ela iniciou suas leituras e sua grande paixão pela literatura e pela música clássica. Em 1923, época em que ainda eram raras as mulheres que ingressavam em cursos superiores, ela concluiu o curso de Farmácia, mas nunca pôde exercer essa profissão. No mesmo ano, mais uma vez, a família mudou-se, agora e definitivamente para o Rio de Janeiro, onde ela passou a trabalhar como secretária, até aposentar-se em 1967. No Rio, junto com o irmão Lúcio Cardoso, conviveu com reconhecidos escritores, intelectuais, poetas e jornalistas. Morreu em 1997, aos 94 anos. Embora uma escritora reconhecidamente talentosa, conforme ressaltou Clarice Lispector (1973), capaz de “pegar numa asa de borboleta sem quebrá-la”, somente começou sua carreira literária aos 64 anos. Em seus escritos, se considera uma pessoa tímida e covarde, usando esse argumento para justificar o seu não engajamento como escritora no mundo das letras, como descreve em Vida-vida: [...] na verdade não me importa tanto assim editar meu livro! Sei lá, enfrentar a crítica não deve ser agradável e por mim prefiro ficar esquecida [...] O que dizer, quais as perguntas que me farão lá? Saberei conversar com desembaraço, vencendo minha incrível timidez, sem que pareça tola? [...] meu coração bate desordenadamente [...]. Parece mais que cometi um crime do que

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escrevi minhas memórias. Tenho tal medo que chego a desejar não seja publicado... (Cardoso, 1973, 42-43, 46).

obras anteriores, seguiu a linha memorialística. Em um manuscrito encontrado no arquivo pessoal de Lúcio Cardoso, Helena fala da sua preferência pela literatura íntima:

Entretanto, o que suas memórias deixam entrever é que ela não tinha condições econômicas para dedicar-se a carreira das letras limitada às mulheres, sobretudo às mais pobres. De família tradicional do interior mineiro, mas sem dinheiro e pai “aventureiro”, Helena teve, desde muito cedo, que ajudar no sustento da mãe e dos irmãos menores. Assim, foi obrigada a empregos indesejados, fora de sua área de formação profissional, que não gostava e onde parece não ter sido bem-sucedida; o emprego em escritórios era, na década de 1920, quando entrou para o mercado de trabalho, um dos poucos abertos às mulheres. Além disso, a admiração e o sucesso do irmão, o escritor Lúcio Cardoso, parecem ter aumentado seu “medo” ou ofuscado seu desejo de lançar-se na carreira de escritora:

Cada dia me interesso menos pela ficção, se a ficção me interessa menos, a curiosidade pelo diário, memórias, aumenta. Quero saber como viveram antes de mim outras pessoas, as suas relações perante os sofrimentos e alegrias. O que me interessa, não é somente saber como viveram, mas principalmente se souberam morrer. A experiência criada pela imaginação, eu a admiro, enquanto a experiência vivida me desperta paixão. (FCRB. Lc 08/320, prit. S/l., s/d).

Lembrei-me com certa tristeza do que Walmir me disse à hora do almoço: que estava convencido de que eu era realmente uma escritora e que se não tinha aparecido até agora devia-o somente ao meu enorme respeito por Nono [Lúcio Cardoso]. No primeiro momento fiquei feliz, cheguei mesmo a acreditar (a vaidade está sempre latente). Quem sabe esta minha incapacidade para qualquer outro trabalho não teria sua razão de ser? Sentia-me justificada de todos os meus fracassos no escritório, onde qualquer funcionária sem grandes conhecimentos desempenhava muito melhor as minhas funções, eu a eterna distraída, a fora do ambiente. (Cardoso, 1973, p.14). Seu primeiro livro Por onde andou meu coração, publicado em 1967, obteve sucesso de crítica e de venda. Helena pertencia a uma família errante, que sempre se mudava de um lugar a outro em busca de melhoria de vida, por isso, nesse livro, ela percorre suas vivências e reconstrói, a partir de suas lembranças, fatos, histórias e acontecimentos que viveu em diversos lugares por onde passou. Seis anos depois, publicou Vida-vida, também no estilo memorialístico. Nele, o foco da narrativa são seus sentimentos mediante a morte que rondava a família e os amigos, o sofrimento e paralisia do irmão Lúcio, seu envelhecimento e a vida. Em 1979, publicou Sonatas perdidas: anotações de uma velha dama digna, um romance que mistura personagens reais e ficcionais, mas, assim como suas

Mulheres escritas O livro Por onde andou meu coração é caracterizado pela riqueza de detalhes, descritos muitos anos após o vivido. Helena oferece uma verdadeira “descrição densa” de objetos, roupas, fantasias, cores, cheiros, ruas, praças, imóveis, decoração de casas, pessoas, etc. A arte de lembrar, misturada ao seu talento de romancista, transporta-nos por uma viagem no tempo e em espaços, criando a impressão de serem familiares os lugares narrados, de sermos íntimos das pessoas saudosamente lembradas. Ela dá vida, emoção, sentimentos aos seus personagens retirados da vida real, muitas delas figuras sertanejas típicas, excêntricas, pitorescas, quase cômicas, que parecem saídas da sua imaginação como construções fictícias. Pessoas como Sá Maria da Ponte, Terto Veludo, o anão Faria, Sá Maria Papuda, Leopoldo de Amor, Sá Miloca, Sá Cota de Bilá e Cotinha de Primainês, as Filipas e as Cardinali, dentre muitas outras. A autora penetra em seus pensamentos e sentimentos, dando mais vivacidade à sua narrativa. Helena narra sua infância pobre e sofrida na cidade de Curvelo, mas longe de querer despertar sentimento de compaixão no leitor, faz-nos rir e nos divertir com as brigas e brincadeiras de crianças, apresentando-se como uma menina faceira, esperta e curiosa que se metia em situações embaraçosas. Descreve o pavor da professora “neurastênica” dona Esmeralda por quem frequentemente sentia-se “humilhada” e “aniquilada”. Dona Esmeralda era proprietária de uma das duas escolas de Curvelo, que à época se ocupava de todos os aspectos da formação das meninas “de posição”, como sempre repetia. Em Belo Horizonte, a ênfase de suas lembranças é no seu interesse pelas aulas no colégio e na Escola de Medicina. A passagei-

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ra melhoria de vida da família que lhe possibilitou adquirir livros e discos. O gosto pelo francês, pela música e pela literatura, registrando a veemência com que lia os livros de todos os gêneros literários e as peripécias que fazia para adquiri-los. É, sobretudo, a família o foco central da sua narrativa. Extensa, empobrecida, mas de certo prestígio em Curvelo, preservava alguns valores aristocráticos como a importância dada à educação, às artes e aos costumes. Pertencia à família Vianna – pelo lado materno – uma das que, tradicionalmente, controlava a política local e os cargos públicos importantes, assim, embora pobres, tinham lugar cativo no cinema e de destaque nas festas e comemorações tradicionais. Composta pela avó, tios, tias, irmãos e a mãe, ora morando todos juntos, ora em casas separadas, a família se caracterizava, acima de tudo, por permanecer sempre unida e em torno das mulheres. A avó e tios acompanhando a mãe, Nanhá, em suas mudanças de uma cidade para outra, sempre em busca de uma vida melhor. O pai era um engenheiro carioca que chegou a Curvelo a fim de trabalhar na construção da estrada de ferro Central Brasil; homem disputado pelos melhores partidos, preferiu casar-se em segundas núpcias com a mãe de Helena, moça pobre da cidade com que teve seis filhos. Era presença forte na vida dos filhos, mas nas lembranças relatadas no livro pouco aparece, justamente pela ausência constante da família. É descrito como aventureiro e sonhador, um homem que não teve muita sorte na vida, fracassando em todos os negócios que empreendeu. Assim, coube à mãe a tarefa de criar e educar sozinha os filhos e constantemente recomeçar a vida em nova cidade, sempre que o marido vislumbrava uma situação melhor para a família em outro lugar ou se aventurava em um novo negócio. A liderança e chefia feminina é, assim, uma característica marcante da família de Helena. Primeiro a avó, seguida de Tidoce, tia solteirona, a mãe e ela própria. A avó, Leopoldina, foi obrigada a assumir o sustento da família, pois, o marido “absolutamente incapaz para a vida prática”, depois de muitos insucessos nos negócios que se metia, começou a beber, tornando-se completamente apático até morrer, deixando-a viúva, com quatorze filhos pequenos, na mais absoluta pobreza. “Para sustentar a família, batia máquina dia e noite, só contando com o aluguel de duas escravas que lhe tinham cabido como herança do pai” (Cardoso, 2007, p.351). Quando já estava velha, o sustento da casa ficou a cabo de Tidoce, modista famosa em Curvelo, com o auxílio de outras duas tias solteironas, Sanóre e Dazinha. A mãe, mulher de grande inteligência, cul-

ta, respeitada, admirada e amada em Curvelo; era interessada por política e entusiasta da Revolução de 1930; apaixonada pelo marido de quem suportou “todas as suas infidelidades de homem bonito”; amava a vida e os filhos; A sua atividade intelectual, entretanto, não prejudicava os seus deveres de mãe de família pobre: na semana em que estava na cozinha, preparava comida para duas famílias, sem por isso deixar de lavar a nossa roupa, costurar, fazer enxovais de batizado para ajudar Tidoce nas despesas da casa (...). Era enérgica e ai dela se não o fosse, a educação dos filhos tendo ficado inteiramente a seu cargo. Expansiva e alegre, era orgulhosa, no bom sentido da palavra, e fechada com relação aos seus problemas íntimos (...). Ao lado do charme que lhe emprestavam sua inteligência e vivacidade, fisicamente era também dotada: elegante e de traços regulares, agradava a todos, pois, sabendo costurar, mesmo com poucos recursos, conseguia vestir-se com graça e elegância (Id. Ibid.,p.149-150). Dedicada e preocupada com a educação dos filhos, conseguiu formar um médico, um advogado, as duas filhas em farmácia; e Lúcio Cardoso, que se tornou um dos grandes e admirados escritores da literatura brasileira. Os casamentos mal-sucedidos da avó e da mãe serviram de parâmetro e justificativa para a opção pela solteirice das tias e dela própria; numa época em que “ficar solteira” era alvo de condenação moral, sinônimo de desqualificação social e em que o terror causado pelo estereótipo da solteirona coagia muitas mulheres ao casamento (Maia, 2011). No Rio, a avó e Tidoce mortas, a mãe envelhecida, foi a vez de Helena – das irmãs a que permaneceu solteira – dar continuidade à chefia feminina da família. As memórias de Helena estão, assim, repletas de histórias extraordinárias de mulheres e de amizades femininas, a começar pelas da própria família. Em sua narrativa, figuram lideranças comunitárias, profissionais, donas-de-casa, beatas, prostitutas, pianistas, viúvas, solteironas, loucas, ex-escravas, cozinheiras, domésticas, concubinas e muitas outras em quem prestou atenção, como Aninha Veludo, filha de escravo e rainha da festa do divino; a pobre Emília Perácio, assassinada brutalmente pelo marido; Áurea, a doce professora de francês; Dona Isabel, a estranha estrangeira; Raimunda, a solteirona dona da farmácia; Babita, a mau-humorada prima-avó. Ela retrata um precioso e rico universo feminino do interior mineiro, com seus afazeres, a faina do dia-a-dia, suas lutas e esperas, aspirações, desejos, amizades e solidariedades.

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Ao contrário das memórias masculinas que frequentemente privilegiam pessoas de prestígio social e de grandes “feitos”, ela descreve mulheres simples, plurais e que escapam aos padrões e ideais femininos do período rememorado, construídos pelas representações de gênero. Assim, longe de mulheres fracas, sujeitadas, desprovidas de inteligência, econômica e emocionalmente dependentes que constituem as representações femininas instituídas no passado, Helena escreve e inscreve na realidade histórica mulheres fortes, capazes, livres e independentes. Sua escrita contribui dessa maneira para a desconstrução das imagens que tradicionalmente associam as mulheres à passividade e submissão tanto na História, quanto na Literatura. Escrever a si mesma Helena fala de muitas mulheres, dos amigos, dos irmãos, mas, principalmente, fala de si mesma, constitui-se na própria escrita, perante o olhar do outro. Por onde andou meu coração é uma viagem por lembranças, episódios, lugares em que pessoas são revividas. Vida-vida, por sua vez, é uma viagem a sentimentos e à arte de viver. A ênfase do livro recai sobre si e na relação com o irmão Lúcio Cardoso: narra o trágico Acidente Vascular Cerebral de Lúcio que o deixou parcialmente paralítico, suas crises de convulsão e seus pequenos progressos; lembra sua vida boêmia e despreocupada, mas sempre a partir de um sentimento, uma emoção que ela experimentou e vivenciou: angústia, tristeza, dor, alegria, alívio, orgulho, saudade, ansiedade, medo. Nessas travessias – que são suas obras – a autora se constitui “como alguém capaz de dar um depoimento de uma época e de espaços diferentes” (Brandão, 2004, p.78), e de existir singularmente. Vida-vida segue o estilo memorialístico, a que a autora se filia, mas desta vez a narrativa assume características do diário e da autobiografia. Philippe Lejeune (2008) define autobiografia como a “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria existência, quando focaliza sua vida individual, em particular a história da sua personalidade” ( p.14), o que não exclui a crônica e a história social ou política. “Trata-se de uma questão de proporção ou, antes, de hierarquia: estabelecem-se, naturalmente, transições com os outros gêneros da literatura íntima (memórias, diário, ensaio) e uma certa latitude é dada ao classificador no exame de casos particulares” (Lejeune, 2008, p.15). Vida-vida é uma narrativa descompassa, os

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textos foram escritos em diferentes momentos e não ordenados cronologicamente. Embora alguns trechos assumam um tom confessional – característica do gênero autobiográfico moderno – não percebo tal escrita como um mero “exame de consciência” para redimir-se de culpas ou para encontrar e decifrar a essência de si, um eu coerente e unificado que reitera condutas e discursos normalizados (Rago, 2011). Mas, seguindo a elaboração teórica proposta por Michel Foucault ao retomar as “artes da existência” dos antigos gregos e romanos – dentre essas a escrita de si – vejo um eu móvel, que nunca é, mas está, um trabalho constante de elaboração de si, na escrita. Agora era eu mesma quem estava ali e entretanto era outra. Outra que tinha vivido tudo que se findara e voltava. Voltava vivendo a mesma vida, porém mais calma, mais profunda. Viver é bom, mesmo depois de se ter vivido prazeres e desencantos. Tudo retorna mais calmo, mais suave. (CARDOSO, 1973, p.126) Uma das técnicas da escrita de si apresentada por Foucault é os hupomnêmata, espécie de livros de notas e suportes da memória, onde se anotavam “citações, fragmentos de obras, exemplos e ações que foram testemunhadas ou cuja narrativa havia sido lida, reflexões ou pensamentos ouvidos ou que vieram à mente”. Constituíam “uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas”. Conforme Foucault (2004), os hupomnêmatas “formavam também uma matéria prima (...) para superar alguma circunstância difícil” tais como um luto, um exílio, a ruína ou a desgraça. (p.147-148). A escrita de Helena em Vida-vida se aproxima das características do exercício dos hupomnêmatas que, conforme Foucault, não se trata de um diário, de narrativas de experiências espirituais ou “de si mesmo”, cuja função seja uma confissão com valor de purificação; mas de “(...) perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si” (Foucault, 2004, p.147-148). Assim, ao escrever sobre si, ela se mostra ao outro e, ao mesmo tempo, constitui a sua própria identidade mediante “a recolocação das coisas ditas”. (Id. Idid.). Conforme sublinha Norma Telles, “ao escrever o escrevente cria a si mesmo ativamente. Trata-se de se constituir como sujeito da ação racional mediante a apropriação, unificação e subjetivação do fragmentário e da seleção do já dito e já selecionado”. (Telles, 2009, p.8). A Helena que vai se constituindo e se revela

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perante o olhar do outro é uma mulher sexagenária, culta, independente, sem beleza, que gosta de chope, gim-tônica, bares, aventuras, viagens e estradas sem destino, medrosa, mas ao mesmo tempo independente e forte. Amante da beleza, das coisas simples, da literatura, pintura, dos amigos, da vida e acima de tudo da música. Ao contrário do estereótipo da solteirona infeliz e mal-amada, Helena se mostra uma mulher feliz, que ama a vida e sabe viver, se constituindo em um exemplo para outras mulheres que por opção ou não viveram solteiras. Seu modo de vida desdobra o discurso do casamento como única forma de felicidade para as mulheres. Uma mulher livre, mas que vê esvair-se sua liberdade mediante as experiências trágicas: a doença que faz perder o controle do próprio corpo: “Torno-me propriedade de médicos, escrava de exames e mais exames, eu que antes era dona de mim, da minha alegria ou da minha tristeza. Sinto-me como um livro de biblioteca pública a quem todos consultassem” (Cardoso, 1973, p.299). E a do irmão que a faz perder o controle do próprio tempo e espaço: “[...] mais uma vez penso na liberdade. Não tenho mais a minha vida, vivo a dele”. (Id. Idid. p. 289). Ela, que já estava acostumada a viver só, sem “laços de amor que me criassem compromisso” (Id. Ibid.p.136). Assim, a dependência que se estabelece do irmão – a quem tanto ama – faz com que a liberdade, valor que lhe é caro, essencial e o mais cultivado em sua forma de viver, passasse a ser percebida como paradoxo: “De novo as correntes e de novo o anseio pela liberdade [...] quero minha vida antiga, a vida em que ninguém precisava de mim, em que eu era só. [...] E o que farei sem o sofrimento, da liberdade sem amor?” (Id. Ibid. p.201). Ela se debate com a “culpa” – este “eterno”sentimento que acompanha as mulheres desde o “pecado original” – pelo desejo de viver para si e a “obrigação” de viver para o irmão. Enquanto sujeitos, as mulheres são constituídas para serem altruístas, colocando o outro sempre em primeiro lugar. Quando mães, os filhos e o marido; quando celibatárias, os idosos, irmãos e sobrinhos. Assim, a dedicação e o cuidado de outros com suas tarefas de doação associadas foram socialmente construídas como forma de redimir as mulheres celibatárias do egoísmo, expresso na ausência da maternidade biológica, e de restituí-las à sua condição de mulher (Maia, 2011, p.231-232). Mediante a completa absorção e dependência do irmão doente, seu constante mau-humor e depois sua ausência repentina, a escrita foi, por um lado, um exercício de liberdade para Helena,

momento em que poderia pensar e viver para si, situação historicamente negada às mulheres pelo seu dever de altruísmo. Por outro, se em Por onde andou meu coração a escrita foi uma forma de não deixar morrerem pessoas e lugares do seu coração, Vida-vida foi uma forma de resistir, driblar e vencer a própria ideia de morte. Desvencilhar-se do sentimento de morte, do cheio da morte, do desejo de morte. Diz ela: “Não quero pensar nem falar mais na morte. Entretanto, este pensamento não me deixa um instante sequer”. (Cardoso, 1973, p.20). E ainda: “[...] penso na minha, na morte de uma mulher já velha que já viveu o seu tempo, foi e é feliz apesar de tudo, mas que continua amando a vida tanto quanto uma jovem de quinze ou dezesseis anos, o amor dos velhos à vida tão bela” (Id. Ibid. p.309). Os escritos que se tornaram depois o livro foram elaborados durante e após a doença e falecimento do irmão que fez pesar e sentir ainda mais outras mortes que, na sua idade, tornaram-se sucessivas: a avó, o pai, as tias Dazinha, Sanóre, Tidoce, os tios Leopoldo e Oscar, os amigos Vito Pentagna, Jaime. Assim, o “medo da morte”, não aparece na escrita como decorrência inexorável da sua velhice, mas muito mais pela dos outros. Na experiência trágica e na escrita ela vai construindo também sua relação com a morte: “[...] eis-me lutando para aceitar a idéia da morte, da minha morte.[...] Ainda não posso morrer, ainda não consigo acreditar na minha morte. E só se morre, só se pode morrer, quando se acredita nela”. (Id. Ibid. p.301-302). Esse exercício de colocar a morte no discurso escrito, de se constituir como sujeito mortal é também uma forma de reescrever a vida. Desta maneira, o entusiasmo e o gosto pela vida também percorre o livro, contrapondo o discurso-presença da morte: “Nem a tristeza da situação de Nono, nem seu desalento alguns dias, nada consegue deter o meu entusiasmo pela vida, a minha vontade de ser eterna”. (Id. Ibid. p.159). Assim, no trabalho de elaboração de si e recriação da vida, a Helena, profundamente religiosa, desencantada da existência, que se sente envelhecida, cercada e centrada no pensamento de morte do início da narrativa, não é coerentemente a mesma até o final. Ela vai se reconstituindo como sujeito amante da vida nas coisas mais belas e simples. 24 de Maio de 1967. Faço hoje sessenta e quatro anos de idade. [...] Absolutamente não me sinto uma mulher dessa idade. [...] minhas paixões atualmente se estendem à música, plantas, livros, objetos lindos, o mundo que amo cada vez mais e

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mais e que não me resigno a deixar. [...] Mas não sei ainda o que é ser velha, não tomei consciência, não me sinto uma velha ainda. [...] Ah! Ainda posso ser jovem, ainda o sou [...] Poderia cantar hoje, aos sessenta e quatro anos, de amor, de prazer de viver. Vida, Vida! (Id. Ibid. p.179-180). Referências Bibliográficas Brandão, R. S. (2004) Maria Helena Cardoso: um teto não-todo seu. In: Castelo Branco, L.& Brandão; R. S. A mulher escrita (pp.77-83). Rio de Janeiro: Lamparina Editora. Cardoso, M. H. (1973). Vida-vida. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. Cardoso, M. H. (2007). Por onde andou meu coração. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Foucault, M. (2004). A escrita de si. In: Mota, M. B.d (org.) Foucault: ética, sexualidade, política (Ditos e Escritos V, pp.145-162). Rio de Janeiro: Forense universitária. Lejeune, P. (2008) O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: UFMG. Lispecto, Clarice (1973). Crônica publicada no Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. Maia, C. de J. (2011). A invenção da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral. Ilha de Santa Catarina: Ed. Mulheres. Muzart, Z. L. (2000). Escritoras Brasileiras do século XIX. Florianópolis: Ed. Mulheres. Rago, M. (2011). A aventura de contar-se: Foucault e a escrita de si de Ivone Gebara. In: Souza, F. A. F.; Sabatine, T. T.; Magalhães, B. R. (org.) Michel Foucault : sexualidade, corpo e direito (pp.01-18). Marília: Oficina Universitária/ São Paulo : Cultura Acadêmica. Swain, T. N. (2011). Desfazendo o natural: heterossexualidade compulsória e continuum lesbiano. Brasília, Disponível em : http://www.tanianavarroswain.com.br/brasil/rich.htm. Acesso em: 20/10/2011. Telles, N.(1997). Escritoras, escritas, escrituras. In: Priore, M. D. (org.) História das mulheres no Brasil (pp.401-442). São Paulo: Contexto. Telles, N. (2009). A escrita como prática de si. São Paulo: In press. Viana, M. J. (1995). Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte: UFMG. Woolf, V. (2005). Um quarto só para si. Lisboa: Relógio D’Água.

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O locus eroticus na poesia de Gilka Machado Darlene J. Sadlier Indiana University, (EUAl)

Marília Simari Crozara1 (UFU), (Brasil)

A poetisa Gilka Machado tinha uma fama extraordinária no início do século 20 mas está curiosamente ausente do panteão de escritores modernos brasileiros. Embora não fosse a primeira pessoa a ser ignorada no processo da formação do cânone, a exclusão da poetisa parece diretamente ligada ao conteúdo erótico de seus versos – um conteúdo que transgredia as regras literárias daquilo que era considerado bom gosto – sobretudo para uma escritora. O meu estudo focaliza o que chamo o “locus eroticus” na poesia dela. Palavras chaves: erotismo, cânone, locus amoenus Subtema: Literatura e autoria feminina; ou Texto, género e linguagem [email protected] 67

Em 1922, no ano da Semana de Arte Moderna em São Paulo, Gilka Machado publicou seu quinto volume de poesia com o título simples, mas provocante, Mulher nua. Nos primeiros anos da década de 30, depois da publicação de mais dois livros de poemas, O meu glorioso pecado (1928) e a antologia Carne e alma (1931), a revista literária, O malho, pediu a duzentos intelectuais que votassem na poetisa mais importante do Brasil. Gilka Machado recebeu o maior número de votos, ultrapassando escritoras notáveis como Henriqueta Lisboa, Francisca Júlia e Cecília Meireles. Mas apesar de sua produção considerável nas primeiras três décadas do século 20, e apesar da atenção e elogios críticos que recebeu como poetisa, Gilka Machado está curiosamente ausente do panteão de escritores modernos brasileiros. Embora não fosse a primeira pessoa a ser ignorada no processo da formação do cânone, a exclusão de Gilka Machado parece diretamente ligada ao conteúdo erótico de seus versos – um conteúdo que transgredia as regras literárias daquilo que era considerado bom gosto – sobretudo para uma escritora. Para avaliar o lugar de Gilka Machado na literatura brasileira, é importante levar em conta que a originalidade de sua poesia vem não só de suas representações do amor físico, mas também de uma crítica feminista mais generalizada que resultaram numa obra tão radical como a poesia anti-

-burguesa de seus contemporâneos mais famosos da Semana de Arte Moderna. Mas quando ela é mencionada nas obras de referência, é classificada como simbolista ou colocada ao lado de outras escritoras sob a rubrica genérica de “poetisa.” Embora ela publicasse alguns poemas em Festa, revista literária dos espiritualistas (Andrade Muricy, Tasso da Silveira, e Cecília Meireles, entre outros), não há nada especialmente simbolista a respeito da obra de Gilka Machado. De facto, alguns de seus poemas tratam da classe operária, da pobreza e da injustiça social, enquanto muito mais poemas descrevem uma sexualidade feminina liberada que, não surpreendentemente, ganhou para ela um público substancial de leitores. Mas escrevendo sobre o amor erótico também se meteu em apuros com o testamento, alguns membros do qual publicaram resenhas altamente negativas da sua poesia. O ensaísta João Ribeiro tentou desviar certas críticas ao declarar que seus poemas não eram “nem imorais nem amorais” e que seu conteúdo erótico foi mais “sublimada e espiritualizada” e “nada têm de ofensivos ao pudor” (278). Os comentários de Ribeiro são interessantes a considerar ao lado daqueles de Agripino Grieco, crítico que observou que os sentimentos expressos em seus versos não eram de jeito nenhum uma reflexão de “sua vida modesta e altiva.” E ele acrescentou: “... nunca ninguém a viu tomar a atitude de certas

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madamas desabusadas - misto de sabichonas de Molière e de `bas-bleus’ de 1830 – que pretendem adotar as maneiras masculinas, virando fulanos de saias, usando gravata e monóculo, fumando pelos botequins” (93). Numa defesa igualmente duvidosa de sua obra, o crítico Humberto Campos atribuiu seu ardor poético a sua “mentalidade creoula.” E disse: “Ao ler-lhe as rimas cheirando ao pecado, toda a gente supôs que estas subiam dos subterrâneos escuros de um temperamento, quando elas, na realidade, provinham do alto das nuvens de ouro de uma bizarra imaginação” (314). Campos cita Henrique Pongetti, que escreveu num ensaio em 1930 que para aqueles que “lhe conhecem a intimidade, [Gilka é] a mais virtuosa das mulheres e a mais abnegada das mães (315). O que estes comentários nos dizem é que os defensores de Gilka se sentiam tão pouco confortáveis com seu erotismo como seus críticos mais virulentos. Além disso, ao descrever seu erotismo como espiritualizado - em vez de humano e carnal – Ribeiro ajudou a decidir-lhe para sempre o destino de ser classificada como simbolista. Mas qualquer pessoa que leia Gilka Machado sabe que sua poesia erótica não é espiritualizada – a não ser que se considere a rapsódia sexual e o êxtase orgásmico como estados místicos. O facto de ter escrito sobre um erotismo feminino tornou-a voz única na literatura brasileira na primeira parte do século vinte. Esta é a razão por que ela foi excluída do cânone e por que agora ela é o foco de considerável análise feminista e revisionista.i Neste estudo, quero ir além dos comentários de Gilka Machado como poetisa erótica, e que são na maior parte generalizados, para focalizar a poesia em si e, mais especificamente, o papel da natureza na sua obra. Paradoxalmente, o que seus defensores como Ribeiro e Grieco não perceberam foi o facto que Gilka estava re-elaborando certas convenções clássicas ligadas ao poeta, ao amor e à natureza às quais se dá o nome de locus amoenus” A poesia de Gilka oferece um conceito totalmente novo e original da natureza como locus eroticus e estímulo para uma lírica anti-tradicional na qual uma voz feminina descreve as emoções e os atos associados com um amor físico desenfreado. Ao contrário de outros autores modernistas, Gilka Machado mostra-nos um diferente tipo de natureza - uma natureza mais pagã e animista cujas implicações são freudianas em vez de espirituais - e é isso que a distingue dos simbolistas. Na poesia de Gilka, a natureza não só representa uma sexualidade feminina liberada, mas também representa às vezes o amante-objeto. Como foi

observado antes, Gilka pagou caro por ter escrito sobre o amor erótico e a sexualidade da mulher – assuntos considerados até muito recentemente no Brasil e noutros lugares como de proveniência dos homens. Ao mesmo tempo, sua criação dum locus eroticus é consistente com o espírito radical e anti-burguês do modernismo literário. Em outras palavras, Gilka Machado merece ser reconhecida como uma escritora inovadora e, como muitos de seus contemporâneos da geração da Semana de Arte Moderna, ela merece ser incluída no cânone. Foi o erudito e gramático Sérvio quem disse, ao ler os versos de Virgílio: “Amoena sunt loca solius voluptatis plena,” ou seja, amenos são os lugares cheios só de prazer. Para Sérvio, a ideia de amoenus associava-se com um lugar específico – nesse caso, a natureza, com ênfase dada às árvores, frondes, fontes, rios, água em geral, florestas e jardins. Pode-se encontrar sinais da noção da natureza como lugar para prazer nos versos de Homero. Mas foi as Bucólicas de Virgílio que transformaram a ideia do locus amoenus num topos literário, e foi através de Virgílio que o conceito se disseminou pela Europa. Em Portugal, encontramos referências ao locus amoenus nas cantigas de amigo, com suas fontes e regatos; o topos também aparece em várias outras obras, inclusive no anónimo Boosco deleitoso, em Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, na poesia de Camões e na obra de Sá de Miranda, na qual se fala dum “prado ameno” que inspira amor (Biblos 24-25). Na tradição do locus amoenus dos poetas clássicos e renascentistas, arcadistas do século 18 no Brasil escreveram versos aristocráticos sobre lugares pastoris idílicos onde pastores-poetas falam com pastoras-musas bonitas, às vezes tentando convencê-las a aproveitar o momento (tema do carpe diem). Em poema após de poema dessa época, vemos a ideia do agradável e do pastoril ligada ao amor. As odes de Ricardo Reis, o heterónimo de Fernando Pessoa, são bom exemplo duma variação contemporânea do locus amoenus. Mas ao contrário dos arcadistas, Ricardo Reis nunca aproveita o momento, preferindo utilizar o imaginário lugar pastoril no sentido estrito para uma contemplação estóica. Para os poetas românticos, a natureza já não era amena nem consoladora, mas sim escura, sombria e às vezes assustadora. A natureza ainda é um lugar real, mas funcionou também como um espelho para as emoções angustiadas do poeta. Esse retrato da natureza mais dramático e subjetivizado tornou-se comum na poesia do século 19, e a natureza tornou-se conhe-

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cida como o locus horrendus ou locus terribilus. Gilka Machado reúne as ideias de prazer e amor associadas com o locus amoenus clássico e a subjetividade dramática associada com o locus horrendus para criar o locus eroticus. Como os românticos, ela é atraída para a natureza como um lugar distante das vicissitudes do mundo moderno – mas com a importante diferença que não é ao tumulto da vida urbana que ela quer escapar, senão ao “jugo atroz dos homens e da ronda / da velha Sociedade (Poesias completas 24). Note-se que os mesmo críticos que deploraram suas descrições do amor físico nunca comentaram sua denúncia aqui e alhures da sociedade, dos homens e do estamento. Na opinião dos críticos de Gilka, escrever sobre o desejo erótico – mesmo quando este está encoberto numa linguagem sobre a natureza – é muito mais transgressivo que escrevendo um poema como “Alerta, miseráveis” que explicitamente denuncia a injustiça social ao referir-se àqueles “que sempre tudo nos roubaram / que planejam agora / um roubo mais/ audaz: / querem ainda esta migalha que nos resta, / a independência de morrer de fome / em paz (391). Ao mesmo tempo, seu retrato da natureza, que inclui “prados ondulados pelo vento,” “mares molemente espreguiçados,” “praias espalmos” e árvores dançando,” é uma celebração dos prazeres físicos que encorajam a poetisa a “cantar, vibrar e gozar” (24-25). Na natureza, e já não debaixo do “jugo da Sociedade,” Gilka imagina-se a si mesma como “qual desenfreado potro [a correr] ,/ por estes campos / escampos” (25). O desejo e a necessidade de uma liberdade (sexual) total e seu reconhecimento que a liberdade de qualquer tipo ainda está fora de seu alcance, faz com que ela olhe os aspetos mais humildes da natureza como desejáveis para sua condição como mulher: “Ai! Antes pedra ser, inseto, verme ou planta, / do que existir trazendo a forma de mulher” (26). O locos eroticus de Gilka Machado é povoado de árvores altas e sensuais que balançam, rosas vermelhas cuja “aroma excita, enleva e estua” (34), e “rios, espreguiçados à sesta, [como] / u[ns] sátiro[s], com o corpo encurvado, a lamber / o ventre virginal e verde da floresta” (67). As árvores tem papel proeminente em sua poesia. Elas dançam, gesticulam lentamente, e transmitem seus pólens de uma a outra num abraço fecundo. Uma das imagens mais sensuais da poetisa eu-lírico aparece no volume Estados de alma (1917), onde ela se torna “árvore a oscilar,” e cujos “cabelos são franças.” Como uma árvore, ela se deleita no vento “ora lagoroso, ora forte, medonho”, e ela está estática

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na sua condição “nua / completamente exposta a Volúpia do Vento!” (164). O que é interessante é que a poetisa dirige-se a um amante neste poema. Mas é à natureza que ela se dá mais livremente e da qual ela experimenta o “gozo violento” que diz que o amante não consegue entender – um gozo que está diretamente associado com a natureza (“este ermo”) como o locus eroticus. Num poema do volume O meu glorioso pecado, a imagem da árvore torna-se o meio pelo qual Gilka descreve o êxtase do orgasmo feminino: “Beijas-me e todo o corpo meu gorjeia, / e toda me suponho uma árvore alta, / cantando aos céus, de passarinhos cheia. . .” (297). Note-se que enquanto um beijo do amante é o estímulo para o prazer, a natureza outra vez serve como metáfora do êxtase sexual. Noutro poema do volume Estados de alma, a sensualidade da poetisa é despertada pela “pubescente poma” dum pessegueiro. O poema é uma exploração táctil da fruta cujos contornos suaves e carnais excitam a poetisa. Ela fica resoluta a não prejudicá-la; “saborei[a]-a num beijo, evitando ressabio” ao mesmo tempo que ela oscula o “lábio morno” do amante. Acordada sexualmente pelos lábios, ela acaricia a fruta e experimenta um “prazer insensato” cujo erotismo torna-se até mais forte pela repetição do verbo “comer.” Este poema é um “tour de force” de sinestesia. Ao contrário da maioria dos poetas simbolistas que mistura os sentidos para evocar mundos além do reino físico, Gilka emprega a sinestesia para retratar um momento intensamente erótico derivado do desejo feminino sexual – um desejo explicitamente nascido de e ligado ao mundo natural que a rodeia. Uma das representações mais dramáticas do locus eroticus aparece no poema intitulado “Enamoradas”– uma composição em verso livre que se encontra no volume com o título freudiano, Sublimação (1938). Na primeira estrofe, a natureza é descrita em termos do amante que a chama com “seus múltiplos lábios de corola” (318). A natureza aqui é fresca e cheirosa, e seus sons embriagam-na e penetram-na. O aspeto primevo da natureza é que atrai a poetisa e, ao mesmo tempo, sua “atração irresistível das origens” cria dentro dela uma certa ansiedade. Sua trepidação vem da idéia de entrar num estado de abandono absoluto ou o “desagregamento dos átomos” pelo qual seu ser fica totalmente superado pelas forças da natureza: “sinto que o azul me absorve, / que a água tem sede de mim, / que a terra de mim tem fome, / e pairo, ectoplásmica, desfeita / em ar / em água, em pó, / misturada com as coisas / integrada no infinito” (318). Gilka é uma poetisa da natureza, ao

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mesmo tempo sua identificação com a natureza é reciproca e absoluta: “cantas nos meus versos; / vegeto nos teus cernes; / vôo com os pássaros, / respira-lo com os perfumes / marejo com as ondas, / medito com as montanhas / e espojo-me com as bestas” (319). Aqui a natureza é o “tu” que sabe “os caminhos secretos de [s]ua alma,” e quem, segundo ela, é o único ser que a possui completamente. Na estrofe final do poema, há uma sugestão não muito sutil que o que a poetisa está experimentando nesses “imortais momentos / em que confund[em] os seres, / em que rola[m] pelo infinito” (318) não é só os prazeres do abandono sexual mas também uma paixão que só as mulheres enamoradas podem sentir. Assim como a poetisa é transformada por e torna-se a verdadeira essência da natureza, à natureza, nas linhas finais, é dada uma recíproca forma humana como “fêmea enamorada.” O poema termina com as duas fêmeas “loucas de liberdade” “num longo enleio” (319). É difícil determinar se Gilka Machado descreve um amor lésbico em “Enamoradas,” mas o poema está aberto a esta possibilidade. Em outro poema do mesmo volume, intitulado “Na festa da beleza,” algo semelhante é sugerido. A natureza é retratada tanto como lugar para os sentimentos e emoções da poetisa quanto como um ser que está enamorada da poetisa e que se identifica com sua nudez e sensibilidade. O que é distinto neste poema é que o Homem (com letra maiúscula) também aparece. Mas ele só aparece no fim do poema, onde é descrito como ser receoso que mantem sua distância. Ou como diz no poema “...o Homem, / receoso de se defrontar, / fugindo à projeção de si mesmo / na objetiva / da minha frase / passou ao largo...” (323). Enquanto ela experimenta a liberdade e êxtase na natureza, o Homem passa “incrédulo e...desconfiado” da “carne de [s]eu espírito” e do “desatavio de [s]eu verso” (323). O poema termina com uma pergunta feita pelo Homem: “`Por que te vestes assim?’” (323). Nesse poema, Gilka oferece uma visão positiva e libertadora duma mulher que rejeita ser como a sociedade, ou o Homem, quaisquer que eles sejam. A natureza é a desejada e desejável alternativa a uma vida de constrangimentos físicos – os quais são metaforicamente descritos no poema como indumentárias que ela experimenta e rejeita; e sua nudez e encanto no locus eroticus confundem e desafiam o patriarcado que, distanciado, olha-a e a julga. “Na festa da beleza” pode ser lido como uma obra meta-poética sobre o medo, desconfiança e incredulidade que outros (homens) exprimiram sobre seus poemas eróticos. A linha “Por que te

vestes assim?” transmite o desconforto e condenação que ela frequentemente experimentou como uma poetisa que foi determinada a escrever sobre sua sexualidade. O facto que tenha escrito sobre um assunto proibido enquanto ainda era jovem e continuou a escrever apesar da reprovação de alguns críticos fez com que ganhasse apoio das críticas feministas. Mas Gilka também merece ser reconhecida como uma poetisa importante cuja sensibilidade lírica e talento linguístico eram aparentes mesmo àqueles críticos que “mantinham sua distância.” Pelo uso altamente imaginativo da natureza como o locus eroticus, ela abriu a porta ao tema do desejo sexual feminino. Até hoje, os seus poemas são ímpares no seu tratamento poderoso e delicado desse assunto. Notas .Vejam-se, por exemplo, os estudos de Cristina Ferreira-Pinto e Sylvia Paixão. Referências Bobliográficas Biblos: Enciclopédia Verbo das literaturas de língua Portuguesa. Vol 3. São Paulo e Lisboa: Editorial Verbo, 1999.. Campos, Humberto de. Crítica: Segunda Série. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1935. Ferreira-Pinto, Cristina. “A mulher e o cânone poético brasileiro: Uma releitura de Gilka Machado. http://www.iacd.oas.org Grieco, Agripino. Evolução da poesia brasileira. 3a ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. Machado, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro: Léo Chriatiano Editorial, Ltda. 1992. Paixão Sylvia. “A fala de Eros.” A Fala-A-Menos. Rio de Janeiro: Numen Editora, 1991. 121-165. —. “`A sombra de Eros.” Anais do IV seminário nacional mulher e literatura. Org. Lúcia Helena Vianna. Niterói: ABRALIC, 1992. 115-128. Ribeiro, João. Crítica. Vol. II. Poetas. Parnasianismo e simbolismo. Rio de Janeiro: Edição da Academia Brasileira de Letras, 1957.

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Literatura, Imprensa e representações da vida social portuguesa Elisabeth Battista Universidade do Estado de Mato Grosso -UNEMAT/CAPES, Brasil

Resumo: Neste trabalho, representações da vida social na Literatura e na imprensa de Língua Portuguesa, serão objeto de estudo, com intuito de apreender e discutir o registro relacionado à prática de escritoras enquanto exemplares positivos de uma relação entre literatura e imprensa. Entre as versões propostas para este projeto, aqui dirigiremos nossa atenção para um caso específico. Isto porque os documentos que fornecem um testemunho da gênese da obra e vida da autora portuguesa Maria Archer registram que a atuação literária corre paralela ao jornalismo. O interesse em investigar aspectos relacionados à escrita jornalística de autoria feminina é motivado pela constatação de que a produção intelectual da autora portuguesa laborada para os periódicos de Língua Portuguesa, constitui-se exemplar positivo de uma relação íntima entre a experiência literária e o jornalismo. Deste modo, pretende-se apreender o olhar da autora, afim de pensar como a prática intelectual de Maria Archer, no segundo quartel do século XX, elabora, recorta, e põe em circulação dadas ideias, fazendo funcionar uma espécie de (re) visão de conceitos, imprimindo novos olhares para os modos de ser e de viver, nas relações entre cultura e vida social nos países de Língua Portuguesa. Assim, o estudo de recortes ficcionais da coletânea de Eu e Elas – Apontamentos de Romancista (1945), publicado pela da Editora Aviz, selecionado busca a identificação de aspectos da vida social encenados na representação literária e cultural, sob o olhar de Maria Archer.

Literatura, Imprensa e representações da vida social portuguesa Os documentos que fornecem um testemunho da gênese da obra e vida da autora portuguesa Maria Archer registram que a atuação literária corre paralela ao jornalismo. Nosso interesse em investigar aspectos relacionados à escrita jornalística de autoria feminina é motivada pela constatação de que a produção intelectual da autora portuguesa laborada para os periódicos de Língua Portuguesa, constitui-se exemplar positivo de uma relação íntima entre a experiência literária e o jornalismo. Como observa Arrigucci Jr. (1987), trata-se de textos escritos de forma despretenciosa no sentido de permanecerem no tempo, uma vez que a palavra deriva do vocábulo grego crhonus, marcando sua relação provisória com os leitores e temporal ao relatar os eventos da vida social cotidiana.

Deste modo, afim de pensar como a prática intelectual de Maria Archer, no segundo quartel do século XX, elabora, recorta, e põe em circulação dadas ideias, fazendo funcionar uma espécie de (re) visão de conceitos, imprimindo novos olhares para os modos de ser e de viver, nas relações entre cultura e vida social nos países de Língua Portuguesa. Assim, o estudo do recorte ficcional de Eu e Elas – Apontamentos de Romancista (1945), publicado pela da Editora Aviz, selecionado para esta comunicação busca a identificação de aspectos da vida social encenados na representação literária e cultural, sob o olhar de Maria Archer. A autora nasceu no limiar do século XX (1899) e viveu parte de sua vida entre Portugal, a África e o Brasil, tendo legado expressivo contributo literário dedicado ao temas da África, da condição feminina e de resistência ao regime político ao tempo do

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Estado Novo. Em seu Intróito1 a autora informa que trata-se de “apontamentos de romancista, caderno secreto e pungente onde retirou anotações leves – de sátira amena, de entretenimento, de humorismo, de crítica” – os textos que compõe a coletânea tinham sido publicadas semanalmente, a partir de 1942, no periódico lisboeta “Acção”. A recolha, conforme a autora, é composta por crônicas de quadros vividos e, os seus títulos, bem como as respectivas datas de publicações, foram mantidos conforme a sua difusão no semanário. Um olhar sobre a temática deste livro, estruturado em cinquenta e duas narrativas, verifica-se, com espanto, a apresentação de textos, que à priori não tinham sido feitos para durar, uma vez que elas são filhas do jornal – publicação efêmera que se compra num dia, e se descarta no outro – , e da era da velocidade tecnológica da máquina de escrever. Ao passá-las do jornal para o livro verificamos que a sua durabilidade será maior do que se pensava. É o caso da coletânea de narrativas Eu e Elas – Apontamentos de Romancista (1945), no qual verifica-se o registro literário de cenas da vida cotidiana num dos gêneros mais populares – a crônica. A partir da vivência pessoal, a produtora textual descortinou o panorama da vida íntima e social. O Intróito – termo usado na apresentação pela autora – anuncia o cariz humoristico da coletânea : Nenhuma imaginação nestas páginas. Relatos fotográficos de casos acontecidos e de que tive conhecimento directo. Fui buscá-las à l’humble verité, como me ensinou Maupassant. Se falo também de mim, como me ensinou Montaigne, é apenas porque cada um de nós traz em si o mesmo paradigma da humanidade. A lente satírica com que fitei os outros também se virou para quem a tinha na mão. O meu trabalho neste livro foi quase o de um artista plástico. Moldei a obra sobre o modelo vivo. Colori-o com o humor dos meus dias – hoje alegre, amanhã triste, ontem saudoso, de quando em quando mordaz, nunca cruel. (…) Creio, porém, que há-de haver quem as leia e sofra na sua sensibilidade. Nem todos os meus modelos gostarão de se ver reproduzidos no quadro. Isso faz-me pena, mas não me causa remorsos. A cópia é fiel. Se os modelos se arrepiam da própria contemplação, a culpa não me pertence. O povo me ensinou que “o 1 Termo da autora no prefácio na pág. 7, de Eu e Elas – Apontamentos de Romancista (1945).

que arde cura”. “Não é preciso ser bom, basta ser justo...” Isto foi Platão quem me ensinou e eu queria aprendê-lo, com êle, e em relação aos outros e a mim. Castigai ridendo mores... Possa eu também receber, como único castigo, aquêle que dou!” Um olhar, ainda que superficial à representação estética de passagens do cotidiano que ganham materialidade linguística no gênero popular, constataremos que elas estão perto do dia a dia, promovendo uma quebra com o monumental, com o esperado, conferindo perenidade ao fugaz, a eventos aparentemente banais do cotidiano. Ou seja, ao invés de investir em assuntos de impacto, em cenários exuberantes, seus textos pegam o miúdo, mostram nele a grandeza que não suspeitávamos e ajudam-nos a restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas e, inusitadamente, nos levam a pensar em consequência disto. A coletânea fornece um rico repertório temático. Faremos neta reflexão um referência a um recorte exemplar: A casa da volframista, publicada inicialmente na imprensa portuguesa. A narrativa apareceu no semanário Acção de Lisboa, em 18 de novembro de 1943. Posteriormente a crônica circulou no Jornal brasileiro O Estado de São Paulo – OESP, no dia 21 de setembro de 1956. Na aldeia onde passei o último outono falava-se, com sincero e deslumbrado espanto, no velho solarengo que os volframistas tinham comprado e feito restaurar de ponta a ponta. Restauro rico, de apainelados, de paredes pintadas a “fresco”, de douraduras em portas e alisares. A mobília causava pasmo que nunca vi. E era o professor, e o padre, e o funcionário dos correios, e o homem da mercearia, enfim, tôda a gente a falar-me no palácio, dos salões doirados, nos tapêtes do chão e nas tapeçarias murais, nos cetins dos estofos e cortinados, nos quadros de Santos e Reis, “como há nos museus”. A escrita para os jornais, como se sabe, tem um público específico e pressupõe a presença do leitor como a figura que percebe, em sua consciência, a essência da criação literária. Assim, se por um lado temos a autora no polo da produção, por outro temos o público leitor que se encontra no polo da recepção. O recorte ficcional, na instância da produção, evidencia o olhar atento da narradora na captação de pormenores e não deixa escapar nenhum detalhe ao passear pelas vastidão do pa-

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lácio restaurado para causar impacto no conjunto arquitetônico local e impressionar. O exibicionismo dos seus novos proprietários serão alvo de ironia. Isto se dá após a narradora constatar, ao levantar discretamente a colcha da cama do quarto, onde a volframista apresenta como seus aposentos pessoais, depois de ter afirmado ainda, que cultivava o hábito de rezar de antes de dormir, diante do quadro legítimo do famoso pintor Rubens. A narradora revela que abaixo da colcha, sem os lençóis, há apenas um colchão de palha vulgar e grosseiro, ou seja, um simulacro. O fato evidencia que os anfitriões-proprietários afirmavam categoricamente algo que não se confirma, ou seja, uma inverdade. A veia irônica e a originalidade que perpassam a tessitura da escrita; da memória; do feminino e sua relação com a imagem desencantada do outro são aspectos que darão a tônica da coletânea. Centrada no universo da literatura de língua portuguesa e lançada em 1945, a coletânea Eu e Elas de Maria Archer, constitui-se emblema significativo enquanto registro literário da vida social. É assim que posso dizer que com Maria Archer gasto horas de trabalho e de lazer ficando-me sempre a impressão de haver passado momentos em boa companhia. Conheci Maria Archer na travessia para a outra margem do Atlântico. Sim, depois que li Ela é Apenas Mulher (1944), no contato com Esmeralda, personagem principal do referido romance, foi encanto à primeira leitura. Naquela oportunidade, debrucei-me à janela e fitei, junto com ela, o majestoso Tejo, no seu desembarque em Cacilhas, frente à Lisboa. Quando isto se deu? Parece que foi ontem, mas remonta a 2003, o tempo em que a Universidade de Coimbra sediou um evento internacional, no qual, em companhia de uma equipe de investigadores do Brasil, participei com apresentação de trabalhos. O grupo2 de estudiosos da Universidade de São Paulo – USP, dentre os quais a minha orientadora do Doutorado, a Professora. Doutora. Benilde Justo Lacorte Caniato (in memorian), e a Professora. Doutora. Tania Macêdo, tomou parte ativa no evento que congraçou investigadores de diversas áreas e vários países, visto se tratar de um Congresso Internacional Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Entretanto, de passagem por Lisboa, a Professora Benilde Caniato adquiriu a obra Ela é Apenas Mulher, de Maria Archer, reeditada em 2001 pela Editora Parceria A. M. Pereira, e recomendou-me a sua leitura. Esta foi motivação suficiente para que 2 de Estudos de Culturas e Literaturas de Língua Portuguesa – CELP

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despertasse em mim o desejo de conhecer o conjunto da produção criativa da autora e saber mais sobre a sua biografia. E tendo o meu Projeto de Doutoramento a finalidade de contribuir para o estudo de autores da literatura de Língua Portuguesa a partir do século XX ainda pouco explorados nas relações literárias Brasil, Portugal e África, a obra de Maria Archer logo me pareceu ser um corpus em potencial. Foi assim que ao ter elegido como objetivo dar visibilidade à diversidade cultural gerada por essas relações, me lancei na busca de documentos que fornecessem um testemunho da gênese da obra e da vida de Maria Archer, inclusive visitando alfarrabistas e adquirindo todos os títulos disponíveis. Nessas andanças conheci a escritora Maria Albertina Mitelo. À medida que sobre os materiais me debruçava, deparei-me com um fato curioso que corroborou ainda mais a minha reflexão: O fato de tendo ela nascido no limiar do século XX, e tendo contatado direta ou indiretamente com as correntes de pensamento que influenciaram, ou afetaram de forma intensa o ambiente político-cultural português até meados dos anos cinquenta do século passado, e ser, não obstante, pouco estudada pela historiografia literária da Literatura Portuguesa. Buscando entre os lusitanos notícias sobre a autora e sua obra, contatei a amiga e poetisa Maria Albertina Mitelo3, a qual se referiu a uma recente entrevista do Professor Fernando de Pádua4 à televisão portuguesa, em que ele, na ocasião teria nomeado a escritora Maria Archer como sua tia, e dava a conhecer a última reedição da obra Ela é Apenas Mulher. De fato, o dado fornecido pela Maria Albertina Mitelo foi fundamental para que eu acessasse um outro estágio da investigação. Isto porque, ao tomar conhecimento dos objetivos que o mesmo perseguia, o Professor Fernando de Pádua, com a generosidade que lhe é peculiar, acolheu-me muito prontamente e concedeu uma entrevista, colocando-me em contato com pessoas simpatizantes à causa. Na oportunidade, citou existência da Dissertação de Mestrado5 da Professora Dina 3 Maria Albertina Mitelo é autora de quatro obras de poemas: Entre Pássaros e o Mar (2002), O Corpo das Aves (2004), Uma Leve Matéria (2007) e Matéria Brevíssima (2009). Edições Afrontamento. 4 Professor Doutor Fernando Manuel Archer Moreira Paraíso de Pádua, Fundador da Fundação Professor Fernando de Pádua e do Instituto Nacional de Cardiologia Preventiva – INCP. Autor de O Livro do Coração, (2008) e Conversas no Meu Consultório (2011). 5 BOTELHO, Dina Maria dos Santos. “Ela é Apenas Mulher” Maria Archer Obra e Autora. Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-portugueses, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sob a orientação da Professora. Dra. Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa, 1994, 182p.

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Botelho, trabalho que mais tarde fez chegar às minhas mãos. Gesto que por si só fala da confiança depositada, motivo pelo qual sou grata. Trata-se de uma investigação que resultou num primoroso ensaio sobre a obra e a vida de Maria Archer que veio a servir-me de relevante base e fonte de consulta. Este trabalho, de certa forma pretende contribuir para colmatar uma falha que pesa sobre o nome da autora, e não merece ser deixada ao abandono dos investigadores, tanto mais que é amplamente reconhecida pelo público-leitor.

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Referências Bibliográficas ARRIGUCCI, Jr. Davi. Enigma e comentário. Ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Cia das Letras, 1987. BATTISTA, Elisabeth. Entre impressões e opiniões: Apontamentos sobre Machado Cronista e a imprensa periódica no Brasil. Revista ECOS. Literaturas e Linguísticas. SILVA, A, R, (org). Cáceres-MT : Editora Unemat, 2011. P. 33-40. 265 p. Ano 8, n°. 11. _________. “Literatura e Solidariedade – um estudo de Brasil, Fronteira da África, de Maria Archer”. In Vida e obra de Maria Archer – Uma Portuguesa da Diáspora. GOMES, Rita & MOREIRA, Olga Archer (orgs.). Edição Mulher Migrante – Associação Estudo, Cooperação e Solidariedade. Lisboa, 2012, p. 28-31. _________. “Maria Archer – O encontro com uma escritora viajante”. AGUIAR, Maria Manuela & GUEDES, Maria da Graça Sousa. (orgs.).In.: Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas na Diáspora. Edição Mulher Migrante – Associação Estudo, Cooperação e Solidariedade. Lisboa, Portugal, 2012, p.16 e 17. CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas/Rio de Janeiro: Editora da Unicamp/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. MORICONI, Ítalo. “Pósfacio a moda da casa”. In: Prose, Francine. Para ler como escritor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. REBELO José. O Discurso do Jornal: O Como e o Porquê. Lisboa, Notícias Editorial, 2000.

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‘Afinidades eletivas’: uma análise de duas poesias de Yolanda Morazzo Maria da Graça Gomes de Pina Maria da Graça Gomes de Pina

aos dois aninhos do Vicente

Resumo: A cumplicidade não é algo que nasça por escolha e decisão. É uma seleção que se faz naturalmente, fruto de um sentir uníssono que liga em sístole e diástole modos afins de percepcionar o mundo. Razão pela qual, o que me proponho examinar aqui é a maneira como as poetisas se veem, como analisam o género feminino, o dignificam, o dissecam. O meu ponto de partida serão algumas poesias de Yolanda Morazzo, escritora caboverdiana que viveu muitos anos em Angola e que entrou em contacto com outras poetisas, sobretudo com Alda Lara. Pretendo, pois aprofundar o estilo e a intensidade semântica de alguns textos poéticos em que o sujeito é a mulher. 75

Em 1961, Jaime de Figueiredo trazia a lume uma meticulosa seleção e apresentação antológica dedicada aos Modernos poetas cabo-verdianos. Essa antologia, sob a veste de uma edição que comemorava o Meio Milénio do achamento das ilhas de Cabo Verde, causava maravilha pela presença de um nome. É que ao consultar o índice geral se notava que dos 20 poetas que haviam contribuído para a realização do volume apenas um era do sexo feminino: Yolanda Morazzo. Tal nome não pôde deixar de provocar uma espécie de desconforto, pois me levou a questionar se a sua inserção fosse devida a um ato de pura cortesia, ou se a uma autêntica demonstração de apreço pela qualidade da sua poesia. Espero poder demonstrar aqui ter sido a segunda das duas hipóteses mencionadas a ter vingado. Segundo testemunho de Elsa Rodrigues dos Santos (2006: xi), que é também a prefaciadora do volume que contém toda a obra poética da autora caboverdiana, Yolanda Morazzo era uma «conversadora nata, com uma cultura vasta, leitora compulsiva e atenta [...], detendo-se nas literaturas africanas, em especial na cabo-verdiana e angolana [...]».

Estas qualidades devem ter sido logo notadas pelos seus conterrâneos e contemporâneos poetas que a acolheram na antologia supracitada. Em boa verdade, as poesias de Yolanda Morazzo que pretendo analisar são fruto de uma longa conversa da poetisa com a realidade que a circundava, de onde se deduzem o seu feitio questionador e a sua curiosidade dialética. Yolanda Morazzo nasce e cresce num ambiente favorável à sementeira do gosto pela leitura e pelo saber. Neta do já consagrado poeta caboverdiano José Lopes, é desde logo nutrida pelo néctar da poesia, manifestando a sua veia lírica ainda na juventude A sua passagem por Lisboa, a transferência para Angola, unidas à privação com algumas das intelectualidades mais marcantes da época, moldar-lhe-ão ulteriormente o carácter e enrobustecer-lhe-ão a veia poética. Quando digo que Lisboa e Angola ‘moldam’ de certa forma a natureza psicológica da poetisa, não estou a afirmar que esses dois espaços geográficos, tão contrastantes quanto distantes um do outro, funcionem como vasos por onde vazou a personalidade de Morazzo. A sua personalidade está longe de poder ser comparada com um sim-

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ples recetáculo ou depósito de estruturas conceptuais pré-formadas e pré-enformadas. O espírito de Yolanda Morazzo soube, sim, elasticamente, retirar das experiências provenientes do contacto com esses espaços uma riqueza que se traduziu em criação poética, tal como um útero materno se ajusta ao corpo do embrião que nele ganha vida e se desenvolve. Assim, creio, funcionava a poesia para ela, a saber, como um nascituro. De espírito bastante fértil, todo e qualquer assunto penetrava nela com a força de uma conceção. E quando a sua atenção e curiosidade se debruçavam particularmente sobre um ou outro aspeto da realidade, um ato de concebimento dava vida imediata à poiesis. Por exemplo, é de 22 de janeiro de 1958, a poesia Colheita que cito (Morazzo 2006: 74-5):

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Mistério? Não rapazes Nada de mistérios É tempo de aniquilar os enigmas Todos os enigmas E estrangular os soluços na garganta O mundo move-se Amigos A noite virou madrugada A vida é mais do que um cântico A vida é uma certeza. É por isso rapazes Que me apetece pegar numa enxada Atirar para os ombros as pás e as picaretas Todas as picaretas do mundo E ir assim por esses campos fora. Vamos Amigos. Basta! Tirem as mãos dos bolsos E deixem esse ar de interrogar as nuvens É tempo de começar E eu preciso da vossa ajuda Camaradas! Venham comigo! Tragam também as foices e o arado E vamos. Olhai! É tudo Nosso!...

A terra Uma seara imensa O trigo a perder-se no longe Amadurece Não o deixemos apodrecer...

É preciso ceifá-lo Irmãos!...

A primeira impressão com que ficamos desta poesia é a da sua similitude com outra, escrita alguns anos antes por uma poetisa que Yolanda Morazzo teve a ocasião de conhecer. Falo da angolana Alda Lara. Em Rumo (Lara 20052: 92-3), poesia que toca dois momentos cronológicos, 1949 e 1951, Alda Lara enfrenta precisamente o mesmo tema e chega grosso modo às mesmas conclusões. Vejamos como. (ao J. B. Dias em 1949 à sua memória em 1951)

É tempo companheiro! Caminhemos... Longe, a Terra chama por nós, e ninguém resiste à voz da Terra!... Nela, o mesmo sol ardente nos queimou a mesma lua triste nos acariciou, e se tu és negro e eu sou branca, a mesma Terra nos gerou! Vamos companheiro! É tempo... Que o meu coração se abra à mágoa das tuas mágoas e em prazer dos teus prazeres irmão: que as minhas mãos brancas se estendam para estreitar com amor as tuas longas mãos negras... E o meu suor, quando rasgarmos os trilhos de um mundo melhor. Vamos! que outro aceno nos inflama Ouves? É a Terra que nos chama... E é tempo companheiro! Caminhemos... Não posso afirmar que Morazzo tenha lido a poesia de Lara, mas de uma coisa nos apercebemos imediatamente, isto é, de que ambas haviam estabelecido uma cumplicidade de sentires que por sístole e diástole uniam modos afins de percecionar o mundo. Não só esta temática interessava

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a ambas, como estimulava nelas igual desejo de dissecação poética. Existem alguns versos-espias que no-lo indicam. O principal e mais evidente é dado pelo que cadenceia e ritma temporalmente toda a ação: «É tempo». Morazzo e Lara exortam à autodeterminação do próximo, à tomada de consciência do indivíduo, pois é chegada a hora: «É tempo». Alda Lara abre a sua poesia já na primeira estrofe com o verso «É tempo companheiro». Em seguida descreve o instante revolucionário que se avizinha e se consolidará, intermediando-o novamente com o verso «É tempo...» (2a estrofe, verso 7), para terminar a sua exortação poética na terceira estrofe com «E é tempo companheiro! / Caminhemos...». Estes três passos dados com igual passo/ peso numérico, distribuindo de forma trinitária o percurso que o destinatário companheiro-irmão-companheiro deve seguir, podem ser encontrados de forma subsumida em dois versos de Yolanda Morazzo: «É tempo de aniquilar os enigmas» (1a estrofe, verso 3), «É tempo de começar» (3a estrofe, verso 4). Morazzo, ao contrário da trindade de momentos temporais aplicada por Alda Lara, prefere ritmar a ação por meio de dois tempos apenas, em que se une o princípio com o fim, e vice-versa. Em primeiro lugar, a meu ver, para Yolanda Morazzo é preciso não começar do princípio, segundo e seguindo o ponto de vista criacionista, como se nada existisse antes; é antes necessário ‘aniquilar’, isto é, destruir o que se apresenta hoje como caótico, eliminar o cancro que corrói o que deveria ser todo igual em cada parte de si mesmo, destruir aquele enigma que não justifica nenhuma ação de supremacia sobre o próximo. Só depois se poderá dar início ao começo, e nesse princípio o destinatário é primeiro rapaz, em seguida Amigo, Camarada, por fim, Irmão. Ao intercalar os termos «rapazes» (1a estrofe, verso 1; 2a estrofe, verso 1) com «Amigos» (1a estrofe, verso 6; 3a estrofe, verso 1), Yolanda Morazzo constrói um percurso em crescendo, onde se vai dando espaço progressiva e simultaneamente ao crescimento pessoal. Contudo, a meu ver, a poetisa pauta esse crescendo por meio da diminuição gradual da distância que separa os indivíduos, obtendo com isso que eles se reconheçam como semelhantes, embora conscientes da própria e inalienável diversidade. O crescendo é facilmente intuído pelo dosear dos termos. Aos «rapazes» a poetisa mostra a vacuidade e a ilusão daquilo que poderia parecer um problema sem solução, precisamente um mistério ou um enigma. Portanto, é preciso «[...] aniquilar os enigmas / Todos os enigmas / E estran-

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gular os soluços na garganta» (1a estrofe, versos 3-5). Este último verso mostra perfeitamente que os «rapazes», em vez de chorarem pelo que não conseguem entender ou por aquilo contra o qual não sabem combater, deveriam dar o grande passo em direção à maturidade. A consciência desse ato de maioridade tem como efeito imediato a constatação à maneira de Galileu de que o mundo se move (1a estrofe, verso 6), isto é, de que nada é estático: o mundo não está fossilizado na forma granítica em que fomos habituados e/ou obrigados a conhecê-lo/vê-lo. Em suma, é mester verificar que existe a vida e que ela é pujante, ela é a força da juventude: «A vida é mais do que um cântico / A vida é uma certeza» (1a estrofe, versos 8-9). Essa consciência madura é o que torna os «rapazes» «Amigos». E superior ao «rapaz», a quem Morazzo primeiramente se dirige, é o «Amigo». Mas um «Amigo» revela-se também um «Camarada», pois é este quem arregaça as mangas («Tirem as mãos dos bolsos»: 3a estrofe, verso 2) e se dispõe a agir segundo a sua consciência, em uníssono com as de quem considera «Amigos». E enquanto que os ‘rapazes-Amigos’ usavam as pás e as picaretas para abater o muro do ontem e construir as escadas para o amanhã, os ‘Camaradas’ usarão as foices e o arado (3a estrofe, verso 7) para alcançar esse objetivo, tornando-se assim ‘Irmãos’, pois um mesmo destino e finalidade os une. Como se vê, embora com termos diferentes mas afins, Yolanda Morazzo e Alda Lara sentem o mesmo desejo e intuem a mesma necessidade. Ambas leem no horizonte da realidade a obrigação de intervir e ambas, por um ato de generosidade poética, transcrevem para o papel a mensagem que leram nesse horizonte. Alda Lara, além de chamar a nossa atenção para o tempo, alerta-nos também para o fator ‘terra’. «É tempo», sim, mas é tempo de responder ao chamamento da Terra: «Longe, a terra chama por nós» (5a estrofe, verso 1); «É a terra que nos chama» (3a estrofe, verso 4). Alda Lara usa esse conceito quatro vezes ao longo da poesia e sempre ligando-o ao fator tempo (cf., por exemplo, 3a estrofe, versos 4-5). Também Yolanda Morazzo une o fator tempo à terra, e ainda que este vocábulo só ocorra uma vez (5a estrofe, verso 1), encontra-se presente em toda a poesia. São suas testemunhas o facto de aparecerem ligados a ele todos os utensílios agrícolas que servem para revolver a terra e prepará-la para a sementeira, isto é, os utensílios típicos da lavoura. Tempo e espaço são, pois, o elo de cumplici-

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dade que liga as duas poetisas e, a meu ver, as respetivas poesias. Essa cumplicidade, que não é algo que nasça por escolha e decisão, revela-se também uma fraternidade de sentires. De tal forma irmãs de pensamento e irmãs de escrita, que uma delas, na ausência da outra, sente a necessidade de lhe dedicar duas poesias. É o que faz Yolanda Morazzo aquando da morte de Alda Lara. Morte prematura e sofrida. No ano da sua morte, em 1962, Alda Lara é contemplada com duas poesias que revelam o quanto a sua presença, amizade e cumplicidade fraternas haviam marcado – profunda e indelevelmente – a vida de Yolanda Morazzo. Trata-se das poesias Elegia, de 30 de janeiro de 1962 (Morazzo 2006: 113-4), e Partida, de 31 de outubro do mesmo ano (Morazzo 2006: 126-7), escritas em Cambambe. Elegia

Vibravam sonhos? Onde ficaram teus versos? A tua ansiedade? A tua sabedoria? A tua sabedoria!... Inútil, triste e vazia... Todo o contingente da tragédia humana E do sofrimento Livros, tratados e compêndios Que os teus nervos tiveram de absorver Para quê? Agora lançada aonde? Ah! Que é feito da tua Vida Sem Sentido?... Cerrou-se uma cortina... Um sopro Um bater de asas Alda Uma vela que se apaga...

em memória de Alda Lara Partida

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Hoje sinto-me doente Gostaria de ir ter contigo Contar-te tudo... Sei que só tu Me poderias compreender Se fosse bater à tua porta E dizer-te da minha tristeza. Mas sei que não estarias lá E é por isso mesmo que estou triste... Sim, amiga! Não estarias lá Para envolver a minha chegada Com o teu sorriso Não estarias lá Para me perguntar o que tenho Não estarias lá Para escutar A prece do meu silêncio Que só tu saberias escutar. Doce poetisa Ó alma que te foste Em que esferas Em que sempiterno mundo Deixaste o olhar parado? Que é da tua alma de artista? Por onde se dispersou tua energia? Que é feito da tua poesia Onde ainda há pouco

Desapareceste na curva da estrada Agora pertences a um mundo diferente O auto desliza por outros caminhos Outras paisagens outros céus e novos horizontes Os teus olhos encheram-se de outros olhos É tudo já um sinal de Começar Eu... Simplesmente desenhei um adeus Com a palma da mão indiferente E fiquei a sorrir... Um sorriso de pássaro tonto – preso na gaiola Que não chegou a soltar a última palavra Fiquei olhando aquele ponto de fuga Do auto a dobrar a esquina da rua Eu... sentada nesta mesma varanda Onde há tantos anos te vejo chegar e partir Sem nunca ter havido uma partida. Aqui fiquei! E o eterno – íntimo quadro De novo se repete. Vejo os pequenos brincando no jardim O João deitado sobre a relva O Pedro com seu chapéu à cowboy A Bebé e Teté chapinhando na água do tanque A Babá a ralhar... menino Vou dizer ao senhor doutor... E a macaca no poleiro... Enfim!

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Mas... Para além de tudo Nas paredes Nas árvores Nas janelas fechadas Um ar de prece... O vulto da mãe reaparece A sombra trágica e dominante Alda Lara pairando sobre a casa... É evidente que dedicando um canto poético sob forma de elegia, Yolanda Morazzo está automaticamente a reconhecer na ausência física de Alda Lara uma presença que todavia permanece. Ao usar este oximoro chamo a atenção para a relação de opostos existente ao longo da poesia como forma, por excelência, utilizada por Morazzo para focar justamente esta característica paradoxal da ausência presente. Alda Lara formara-se em Medicina e exercia essa atividade junto com o marido Orlando de Albuquerque, em Cambambe. Dedicara a alma e a frágil corporeidade aos ditames hipocráticos, pondo a saúde alheia à frente da própria. Quando Yolanda Morazzo quebra o silêncio poético logo no primeiro verso com «Hoje sinto-me doente», a sua confissão – que não se fará («Mas sei que não estarias lá», 3a estrofe, verso 1; «Não estarias lá», 4a estrofe, versos 2, 5 e 7) embora, em boa verdade, esteja a ser feita – apresenta-nos outro aspeto dos seus laços de amizade com Alda Lara: uma sorte de cumplicidade tácita entre médico e paciente que só se revela/desvela quando ambos entram em sintonia psíquica. «Sei que só tu / Me poderias compreender / Se fosse bater à tua porta / E dizer-te da minha tristeza» (4a estrofe). A tristeza de Yolanda Morazzo é, portanto, um mal de alma e essa enfermidade, como já havia dito Platão de forma magistral no século iv a.C., pode ser curada unicamente por meio das palavras que se dão e se recebem como fármacos para a nosopsyche. É pela presença daquela voz amiga, na mesma onda de pensamento e sentir, que nos empresta o ombro para «Contar-te tudo...» (1a estrofe, verso 3), «Para envolver a minha chegada / Com o teu sorriso» (4a estrofe, versos 3-4), «Para escutar / A prece do meu silêncio» (4a estrofe, versos 8-9); é devido à presença confortante que nos embala e envolve a nossa existência num abraço fraterno, que a ‘paciente’ Morazzo pode abrir o seu peito à ‘médica’ Lara. E ao fazê-lo Yolanda Morazzo fundeia com uma âncora poética o navio naufragado

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que é Alda Lara, impedindo-a de desaparecer de todo como espuma do mar após a travessia de um barco. É por isso que, a meu ver, os versos finais da última estrofe veiculam a mensagem contrária que formal e semanticamente denotam, ou seja, Não se cerrou uma cortina, Não se apagou uma vela sobre a existência da poetisa angolana. Afirmo isto amparando-me também na segunda poesia dedicada a Alda Lara. Decorridos 9 meses sobre Elegia, exatamente o tempo necessário para dar à luz o embrião (ser estranho e simultaneamente familiar) que sentia desenvolver-se dentro do seu corpo, Yolanda Morazzo regressa de novo à ausência de Alda Lara com a composição Partida. Nesta, a poetisa caboverdiana acusa a forte personalidade de Lara, uma presença imperante que assombra benevolamente a vida daqueles que mais amou: «Alda Lara pairando sobre a casa...» (8a estrofe). Utilizo de propósito o advérbio benevolamente embora o verso de Yolanda Morazzo possa induzir-nos a pensar justamente o contrário: «A sombra trágica e dominante» (7a estrofe, verso 8). É que, como vimos, a sua composição poética vai-se criando através de paradoxos tão ao gosto do rótulo atribuído à sensibilidade feminina, que diz exatamente o inverso do que pretende afirmar, que nega a evidência por meio de um anuir. Yolanda Morazzo não foge à regra. Se na sua poesia podemos encontrar o corte racional e analítico que define o modo de pensar masculino (cf., por exemplo, Poema para um operário, Morazzo 2006: 159-60), este, ao seguir a via reta da razão, prefere o desvio da emoção e a curiosidade. Se em Elegia Yolanda Morazzo afirmava que lhe bastava pouco, meia palavra apenas, para fazer-se compreender pela ‘irmã’ Alda Lara e dizia-o de forma paradoxal, usando termos contrários nos versos 8 a 10 da 4a estrofe, «Para escutar / A prece do meu silêncio / Que só tu saberias escutar», em Partida o que também poderia parecer uma ambiguidade, na realidade não é: «Onde há tantos anos te vejo chegar e partir / Sem nunca ter havido uma partida» (4a estrofe, versos 10-11). Para qualquer caboverdiano não há tema mais sentido do que o da Partida, traduzido sempre na forma crioula “hora di bai”. O que é a partida senão um regresso que se antevê? Um eterno retorno que se pressente? Uma ausência presente? Para Yolanda Morazzo, poetisa caboverdiana, a partida de Alda Lara nunca poderá representar um ‘adeus eterno’. Estes termos não se conjugam, afastam-se como ímanes cujos polos são ambos positivos. Por essa razão, o ‘adeus’ de Yolanda

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Morazzo é descrito «Com a palma da mão indiferente» (4a estrofe, verso 3). Todavia, pelo adjetivo “indiferente” não se pretende denotar tanto desinteresse, quanto a plena consciência de que essa despedida é provisória e passageira. Mais do que um ‘adeus eterno’, que nos levaria a pensar numa separação irrevogável, sem retorno, em vez disso poder-se-ia ver um ‘eterno adeus’, um marcar encontro para mais tarde, isto é, uma despedida que se refará, pois continuará a existir alguém que espera e alguém que parte para depois voltar: «Aqui fiquei! / E o eterno – íntimo quadro / De novo se repete» (5a estrofe). Como estamos no foro da intimidade, «O vulto da mãe reaparece» (7a estrofe, verso 7) e reaparece porque nunca abandonou definitivamente a casa da poetisa, nem tão-pouco a casa da poesia. Eis porque Alda Lara é também mãe, não por ser apenas progenitora de João, Pedro, Bebé e Teté (cf., 6a estrofe, versos 1-4). Alda Lara é mãe porque consente que a amiga encontre nela o conforto de um colo. Vimo-la primeiramente na veste de amiga confidente. Pela sua confidência a poetisa angolana ganhou o estatuto de médica – por alma e profissão – e agora ela atinge o grau mais elevado: o da maternidade. A verdadeira cumplicidade feminina faz-se portanto pela oscilação destes dois aspetos fundamentais: amizade e maternidade. A sintonia deve cobrir ambos os papéis através da confidência: a que se cria entre irmãs e a que se cria entre mãe e filha. Mas ao contrário do que sucede na natureza, essa sintonia poética não nasce especificamente entre seres do mesmo ambiente familiar. São laços que se constroem por afinidade eletiva. Para concluir, gostaria de examinar precisamente a mulher (Morazzo 2006: 296-7) na sua singularidade poética, para tentar acompanhar, qual aprendiz de medicina, o procedimento de dissecação do corpo que tenho mais próximo de mim: o corpo feminino. Mulher

Traz a poesia para a rua e a liberdade bem alto cantando na madrugada com passos feitos de lua candeias para o futuro archotes pelos caminhos repercutindo mil vozes. Mulher poesia liberdade Vem toda nua para a praça pés descalços braços nus cabelo lançado ao vento marchetada de prazer do sal a salpicar-te Mulher guia farol luzindo no mar do canal Corta os rochedos das nuvens rasga a carta de alforria e olha os sulcos que abriste nas rotas do teu silêncio Mulher guia liberdade pelas rotas do mar largo Tu és uma coluna erecta a prumo no espaço vertical uma canção irreversível ecoando do alto da pirâmide Flecha arremessada-imparável pedra cravada na rocha firme uma pincelada inapagável na memória das cavernas no vértice e no limiar de tudo eterna geratriz e Universo Mulher Porta aberta para o mundo esculpida no Centro da Muralha.

A poesia é uma mulher a liberdade é uma mulher chama bandeira flor ilha género feminino mulher

(Lisboa, 29 de março de 1989) Até aqui tenho explorado mormente a relação de amizade fraternal entre duas poetisas que se reconhecem nesse papel de mensageiras líricas e lhe acrescentam a cumplicidade de sentires. Com esta última poesia, gostaria de passar para outro campo, que não é oposto mas, sim, complementar

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ao primeiro. É que antes de ser poetisa, Yolanda Morazzo se vê e se sente claramente como mulher. O seu elogio ao género feminino representa, por assim dizer, o desfecho do mito de Pandora. Se esta figura mitológica conseguira guardar apenas a esperança dentro da caixa, após ter deixado fugir todos os males do mundo, Yolanda Morazzo empreende uma viagem ao contrário para resgatar a esperança, que é ao mesmo tempo o único meio de salvação desses males. Quer isto dizer que na sua caça ao tesouro, a poetisa encontrará a mulher e, porventura a si mesma, como prémio. Mas o que é a ‘mulher’? Yolanda Morazzo di-lo logo no seu mote: «A poesia é uma mulher / a liberdade é uma mulher / chama / liberdade / flor / ilha». Não por acaso ela simboliza a “mulher” por meio de vocábulos cujo género é feminino, facto que Morazzo afirma de maneira explícita já no penúltimo verso do mote. Portanto, aqui mulher e poesia confundem-se e misturam-se intensa e intencionalmente. Ambas possuem o mesmo género quanto à morfologia, ambas são uma forma de expressão de liberdade do ser, ambas incendeiam ou apelam para a nossa razão de viver, ambas fazem desabrochar os sonhos na primavera da vida, ambas são a porção de terra que, circundada por mar (elemento masculino), oferecem refúgio e porto de abrigo. O mote ou proémio à poesia Mulher pode ser lido também como epílogo, pois encerra a rota de desconstrução do ‘objeto’ feminino. Mas é na própria poesia que encontramos desenhada a cartografia dessa desconstrução construtiva. As primeiras três estrofes representam as etapas desse procedimento poético e cada uma delas é cadenciada por refrões diferentes que condensam as características da mulher explicitadas em cada bloco. Na primeira estrofe a mulher é convidada a sair à rua, a tomar a palavra, gritando liberdade, para poder, segundo o preceito do médico grego Alcméon, unir o fim com o princípio, a manhã com a noite: «cantando na madrugada / com passos feitos de lua» (versos 3-4). Na posse plena da liberdade que lhe pertence por direito e que não lhe deve ser oferecida como se se quisesse tirar um peso da consciência (veja-se o verso 2 da 5a estrofe: «Rasga a carta de alforria»), vejo os argumentos fortes de Alda Espírito Santo em Luares de África (1996), onde a autora santomense defende a tese da emancipação da mulher africana como primeiro passo para a emancipação do continente. Logo, a mulher-poesia contém em si a diversidade do mundo, por isso Yolanda Morazzo diz «repercutindo mil vozes» (1a estrofe, verso 7), pois

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esta relação de diversos que por vezes se demonstram opostos – tão ao gosto poético de Yolanda Morazzo – revela precisamente aquilo que para ela representam a mulher e/ou a poesia, a saber, declaração de liberdade máxima do ser humano, eco que emite as diferenças de género mas que todavia nesse ecoar faz com que estas se atenuem para originar uma simbiose perfeita a partir de contrários. Por essa razão também, se afirma no verso 7 da 8a estrofe que ela é «eterna geratriz». E aqui regressa novamente a figura da maternidade como aspeto específico da mulher e da poesia. Ambas dão à luz, fazem vir ao mundo o embrião que trouxeram no seu corpo. Por elas e através delas se dá espaço ao novo, se cortam «[...] os rochedos das nuvens» (5a estrofe, verso 1), ou seja, coloca-se no mundo outro ser que fará o seu caminho nele e que poderá tornar-se para outros um bálsamo. Da mesma forma o produto da poesia, isto é, a composição lírica, funciona como um bálsamo para os males de quem vive privado dela. A mulher enquanto poesia é, conforme o segundo refrão, um «guia farol / luzindo no mar do canal». Ela simboliza o ponto fixo e iluminado que permite a navegação segura em mares tempestuosos que tantas vezes se encrespam na vida do ser humano. A mulher-poesia é, portanto, amiga-irmã-companheira-mãe, e cada um destes papéis corresponderá ao tipo de relação que pretendermos ou escolhermos estabelecer com ela. O encómio de Yolanda Morazzo à mulher deixa-nos assim uma «Porta aberta para o mundo / esculpida no Centro da Muralha» (9a estrofe), querendo com isto dizer que somos nós, cada um de nós individualmente, a dever entrar pela porta que nos leva ao mundo ao qual queremos aceder. E nesse atravessamento, cada um de nós escolhe ser levado por uma determinada mão, ou seja, pela mão pertencente à nossa interpretação da poesia. Referências Bibliográficas Ativa: Morazzo Yolanda (2006). Poesia completa 19542004. Prefácio de Elsa Rodrigues dos Santos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lara Alda (1979). Poesia. Luanda: União dos Escritores angolanos. Lara Alda (20052). Obra completa i Poemas. Notas biográficas e Introdução de Orlando de Albuquerque. Braga: APPACDM. Passiva Campos Sandra (2006). «Mulheres na diáspora

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africana: os contos de Orlanda Amarílis e Dionne Brand». In: Nóbrega José Manuel da & Mora Nuno Pádua de (org.s). Estudos de Literaturas Africanas... cit., pp. 754-66. Ferreira Manuel & Amarílis Orlanda (dir.). Mensagem: boletim da Casa dos Estudantes do Império. Vol. 1. Linda-a-Velha: ALAC. Figueiredo Jaime de (org.) (1961). Modernos Poetas cabo-verdianos Antologia. Praia: Edições Henriquinas Achamento de Cabo Verde. Gomes Simone Caputo (2008). «Literopintar Cabo Verde: a criação de autoria feminina». In: Revista Crioula, N° 3 (maio), pp. 1-23. Houaiss Antônio (2003). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Vol. iii. Lisboa: Temas & Debates. Mata Inocência & Padilha Laura Cavalcante (org.s) (2007). A mulher em África: vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Edições Colibri. Nóbrega José Manuel da & Mora Nuno Pádua de (org.s) (2006). Estudos de Literaturas Africanas. Cinco Povos, Cinco Nações – Actas do Congresso Internacional de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: Novo Imbondeiro Editores/Illp. Pires Laranjeira José (2006). «Mulheres que escrevem: Noémia, Alda, Conceição, Chiziane». In: Veredas, vol. 7 (dezembro), pp. 31-9. Santo Alda Espírito (1996). «Luares de África». In: Ferreira Manuel & Amarílis Orlanda (dir.). Mensagem... cit. Vol. 1., pp. 113-5. Santos Elsa Rodrigues dos (2006). «Elsa Rodrigues dos Santos entrevista Yolanda Morazzo». In: Artiletra, ano xvi, n° 79 (novembro/dezembro), pp. xi-xv.

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O apoderamento da cidadania por meio da leitura: vinte e cinco projetos brasilienses voltados para essa busca Dinorá Couto Cançado Biblioteca Braille Dorina Nowill - DF (brasil)

Resumo: Com o objetivo geral de analisar a atuação de projetos sociais, envolvendo leituras, no Distrito Federal, contribuindo com práticas de cidadania foi realizado um estudo que buscou respostas para o problema: projetos sociais vivenciados por meio de práticas de leituras contribuem com os princípios da cidadania, gerando transformação social? A abordagem metodológica contou com uma pesquisa de campo e com aplicação de questionários em cem participantes (autores, executores e beneficiários dos projetos) envolvidos com leituras, com destaque para a literatura; além de observações em evento intitulado “Fórum Brasília, capital das leituras”. Após análise qualitativa e quantitativa dos dados coletados, apresentada por meio de tabelas, gráficos e depoimentos, foi possível concluir, em relação ao perfil dos entrevistados, que a maioria dos respondentes é do sexo feminino, representando 84% do total. Outros resultados constatados, com mulheres à frente da maior parte dos projetos analisados, mostram que a leitura é um poderoso instrumento de cidadania e contribui com a inclusão social; é importante trabalhar a leitura, pois só assim os cidadãos se tornam capazes de buscar e questionar seus direitos e deveres; todo e qualquer movimento em busca de conhecimento e informação contribui para a formação de um cidadão consciente e participativo; as escolas precisam incentivar mais a leitura para que tenha mais avanços na educação e nos princípios da cidadania; os que se beneficiam de projetos literários estão à frente em termos de cidadania.

Introdução Há muito de ousadia e criatividade na prática de dinamização voltada para a leitura, no Distrito Federal. São desenvolvidos muitos projetos que têm como objetivo fomentar o hábito de ler. A máxima a ser considerada ao enfocar esse tema é a de que o indivíduo que lê e que desenvolve sua criticidade é um cidadão participativo, está à frente de outros, torna-se mais bem informado e mais sábio no que se refere a seus direitos e deveres. Portanto, é aquele que caminha em busca da cidadania plena. A percepção da necessidade de se fazer pesquisa sobre o tema deu lugar à concretude da ação e resultou em uma monografia (CANÇADO, 2010). O local onde as ações se realizam é o Distrito Federal (DF), nas suas trinta regiões administrativas (cidades), sendo Brasília a capital. Por serem muitas ações, muito espalhadas e

muitas sem reconhecimento, surgiu a necessidade da criação de um Fórum para congraçamento das pessoas e conhecimento dos projetos, com o nome: Fórum “Brasília, capital das leituras”. Com base no que afirma Silva “a leitura crítica sempre leva à produção ou construção de um outro texto, o texto do próprio leitor [...] a leitura crítica deve ser caracterizada como um projeto, pois se concretiza numa proposta pensada pelo ser-no-mundo” (SILVA, 1991, p. 81). Dessa forma, foi criado o projeto/Fórum que destacou alguns projetos em prol da leitura e foi, a partir da sua publicação e divulgação, que a iniciativa cresceu. Lançado na 26ª Feira do Livro de Brasília, em 2007, o Fórum foi, inicialmente, um projeto simples. Começava, assim, um evento que se repetiria nos anos seguintes. Passaram a ser expostos, em cada edição, os mais variados tipos de ação coletiva, focando leituras.

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O Fórum “Brasília, capital das leituras” tornou-se um encontro especial de celebração entre atores sociais multiplicadores de leituras, responsáveis por 25 (vinte e cinco) ações coletivas, já mapeadas em Brasília. De acordo com Aguiar (2002, p. 120), “o potencial criativo é inerente ao ser humano; na maior parte das vezes, o que se precisa é oferecer oportunidades”. A oferta de espaços, no caso desse Fórum, é a oportunidade fundamental para a inclusão. A pesquisa citada refere-se a três edições do Fórum (até 2009) e tem como foco: quais projetos foram divulgados; o desempenho dos mesmos; o perfil dos executores e dos participantes; o acolhimento aos projetos; os resultados de cada Fórum; o alcance das ações desenvolvidas e a verdade sobre o apoderamento do hábito de ler, por parte dos participantes. A consciência da importância do evento instigou a buscar respostas para a pergunta-problema: projetos sociais vivenciados por meio de práticas de leituras contribuem com os princípios da cidadania, gerando transformação social? Além do público-alvo, que são os participantes beneficiários de cada projeto, a intenção também se voltou para saber se esses específicos indivíduos, que atuam na função de atores sociais, à frente das mais diversas ações em prol de leituras, vivenciam aspectos de cidadania, da mesma forma que os beneficiários dos projetos. Referencial teórico Ezequiel Theodoro da Silva, em seu livro Criticidade e leitura destaca que “a presença de leitores críticos é uma necessidade imediata de modo que os processos de leitura e os processos de ensino da leitura possam estar vinculados a um projeto de transformação social.” (SILVA, 1998, p. 12). Antunes (2000) e Kuhlthau (2002), responsáveis por ações dinâmicas motivadoras de leituras, reiteram Silva (1998). No artigo Leitura instrumento de Cidadania, Blattmann e Viapiana (2005) discorreram sobre os aspectos que servem de estímulo para a proposição de projetos que sejam essenciais ao desenvolvimento educacional, evidenciando que cabe aos educadores buscar formas de minimizar a falta do gosto por leitura. O apoderamento desse hábito é a base de sucesso do processo ensino-aprendizagem e é ferramenta que propicia criar estratégias para que a educação cumpra a função de socializar e permita que o indivíduo se apodere do conhecimento, integrando-se à sociedade. Somente com educação, com muitos livros e muitas leituras ocorre o processo de construção cidadã que, “[...] numa perspectiva contemporânea,

compreende todos os direitos de uma só vez: os fundamentais, os políticos, os civis, os sociais, os econômicos, os culturais, os ambientais [...]” (MATOS, 2009, p. 24). Portanto, há toda uma preparação para que o indivíduo se sinta imbuído de seus direitos e deveres e possa exercê-los em toda sua abrangência. Com educação de qualidade, pode-se alcançar esse desejado estágio de formação, já que “[...] de nada adianta ser titular de liberdade de expressão se não se possui a educação mínima para a manifestação crítica das próprias ideias” (MATOS, 2009, p. 24). Segundo Blattmann & Viapiana (2005, p. 2): “As ações leitoras precisam acontecer em espaços educacionais, desde o ambiente familiar aos ambientes de ensino fundamental e também no ensino profissionalizante, indiferente se para crianças, jovens, adultos e idosos”. A leitura “[...] é a mola propulsora na libertação do pensamento e possibilita desencadear reflexões e desenvolver ações para melhoria da cidadania e desenvolvimento do ser humano” (BLATTMANN e VIAPIANA, 2005, p.6). Um exemplo da importância de dar fomento a ações que deflagrem o hábito de ler está no fato de o Programa Nacional do Livro e Leitura – PNLL ter realizado, em Brasília, um Fórum, dia 07/10/09, em que foi feita a orientação para que Estados e Municípios criem também os seus Planos de Leituras – PELLs e PMLLs. Construído a partir de muitas experiências que fizeram a história da luta pela leitura no Brasil, o PNLL teve sua origem em mais de 150 reuniões públicas em todo o país nos anos de 2005 e 2006 (CASTILHO, 2009). Mobilizar estados e municípios será um marco para transformar o Brasil em um país de leitores e na conquista de melhores índices de desenvolvimento humano e social. Espaços públicos de leitura podem ser desde bibliotecas públicas e escolares, ou espaços mais reservados em entidades so ciais como asilos, creches, favelas, centros comunitários e de bairros, locais de acesso e frequência de grande público como em rodoviárias, terminais urbanos, entre outros. Estes ambientes precisam oferecer informação segura, objetiva e clara, conforme Blattmann e Viapiana (2005) destacam no seu artigo Leitura, instrumento de cidadania. A pessoa, para poder interagir na comunidade em que reside ou trabalha, necessita de informação. A informação pode auxiliar, direta ou indiretamente o ser humano, para o desenvolvimento da sua identidade, cidadania e desempenho profissional. A leitura torna-se mola propulsora de seu auto-desenvolvimento.

Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo

O Currículo de Educação do Distrito Federal aponta estratégias, mostrando a importância de estimular a leitura. Todos citam a leitura, referem-se à cidadania, mas faltava mapear e divulgar iniciativas com esse propósito, relatando conquistas e dificuldades. O PNLL já faz isso, em nível nacional e agora a intenção é cobrar dos governos estaduais e municipais um Plano próprio, com recursos apropriados à causa. Inclusive, um dos projetos respondentes dessa pesquisa em questão foi escolhido para compor um vídeo mobilizador da campanha do Ministério da Cultura, instituição responsável pelo PNLL e incentivadora/realizadora dos outros, a serem criados. A educação deve ser prioridade de todos os governos, pois por meio dela as pessoas se aperfeiçoam e obtêm elementos para serem mais úteis à coletividade. Objetivos Para maior clareza quanto ao que se pretendeu investigar, foi definido, como objetivo geral: analisar a atuação de projetos sociais, envolvendo leituras, no Distrito Federal, contribuindo com práticas de cidadania. E, foram definidos os seguintes objetivos específicos: (1) analisar os aspectos inovadores dos projetos sociais envolvidos; (2) analisar o perfil dos atores sociais que estão à frente dos projetos brasilienses; (3) descrever atuações relevantes para o alcance da consciência da cidadania, alcançados com os projetos; (4) estimar, com base no relato dos beneficiados, em que medida a leitura pode ser considerada fator de transformação social para uma cidadania mais plena. Metodologia/Desenvolvimento A pretensão de saber sobre os resultados colhidos nos projetos pesquisados, participantes do Fórum “Brasília, capital das leituras”, com base na aplicabilidade deles, ocasionou a elaboração e aplicação de questionário com perguntas voltadas à busca por respostas embasadoras sobre estes Projetos serem, ou não, instrumentos que permitem, efetivamente, que os beneficiários sejam levados à aquisição da consciência de que lendo são mais capazes de fazer análises das situações, de serem mais justos, críticos e donos do seu próprio destino. Portanto, todos estes projetos são voltados para a leitura e para a conscientização da cidadania. Por meio das atividades com leituras, os participantes interagem e se desenvolvem enquanto pessoas e cidadãos. Por meio da leitura, o cidadão se apro-

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pria de conhecimentos relevantes para dispor de argumentos e ideias para lutar por uma sociedade mais justa. Questionários semi-abertos foram aplicados em 100 executores e/ou participantes dos projetos investigados para buscar respostas sobre a viabilidade da aplicação deles. A descrição dos resultados colhidos, ou seja, o relato dos dados colhidos com base na aplicação desses questionários vem a seguir: A maioria dos 100 executores e/ou participantes respondentes dos questionários semi-abertos é do sexo feminino, representando 84% do total. Destas mulheres destacam-se 36% beneficiárias dos projetos, 24% executoras e a mesma percentagem (24%) para outras funções como: colaboradoras, coordenadoras, cooperadoras, divulgadoras, gerente, parceiro, promotor, voluntária, escritora, guardadora de livros, observadora. Duas são as faixas etárias predominantes: 43% entre 25 a 40 anos e 45% entre 41 a 60 anos. Portanto, a maioria se encontra em idade adulta. Independentemente da função que cada um executa nos projetos analisados, as profissões que mais se destacaram foram: professor regente correspondendo a 26%; e estudante correspondendo a 11%, seguidas de outras funções, totalizando 62%, dentre elas: direção de escola, jornalista, coordenadora de programa, empresária, editor, supervisor, voluntário, etc. O instrumento mais utilizado nos projetos foi “Livros Infantis”, totalizando 47%, sendo que vários projetos de leituras utilizam-se de outros suportes também, como revistas, jornais, livros didáticos e literatura, de modo geral. Na opção outros, apareceram gibis, computador, literatura em geral, livros adultos e qualquer conteúdo escrito. Desde a sua data de implantação, 54% dos projetos estão na faixa de 1 a 3 anos; 28% entre 4 a 6 anos; 6% de 7 a 10 anos e 12% com mais de 10 anos. Uns em plena ascensão, com inúmeras atividades dinamizadoras, outros já consolidados, bem reconhecidos, mas sempre alimentados e bem vivos, contrastando com apenas um sem atividade recente. Quanto ao local/sede, assinalaram sala de aula, biblioteca, escola, comunidade e outros. O local Escola teve 30% das respostas que identificam como individuais, acrescidos de mais 8% agrupados com outros locais. Biblioteca com 21% individuais, mais 9% agrupados; comunidade com 13% mais 11% agrupados. Já em outros locais, onde o próprio respondente completou a questão (questionamento aberto), computou-se 12%, dentre: empresa, jardim de creche, grupo de educação fiscal, centro editorial, diversos lugares

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Quadro 1: DADOS DOS PROJETOS DE LEITURAS

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Nome dos Projetos de Leituras

Ano de implantação

Instrumento principal Local do Projeto

Público beneficiado

Faixa etária

1. A Boneca Bela Aparecida

2008

Livros infantis e infanto-juvenis

Escola rural de Sobradinho

Entre 101 e 500

Crianças e pais

2. Baú de Histórias

2004

Livros infanto-juvenis

Espaços culturais de Brasília

Mais de 4000

Crianças e adolescentes

3. Beija-Flor e os Livros

2007

Livros infantis

Creche de Taguatinga

Menos de 100

Crianças e voluntários

“4. Brincando de Biblioteca com Programa Literário“

2003

Livros infantis

Escolas públicas do DF

Entre 2001 a 4000

Crianças e adolescentes

5. Café com Letras

2000

Livros infanto-juvenis

Escola rural de Planaltina

Entre 901 a 2000

Adolescentes

6. Casas do Saber

2007

Livros gerais: literatura,didáticos...

Comunidade de todo o DF

Mais de 4000

Crianças à adultos

7. Chocolate Literário

2004

Livros infantis

Escola pública de Ceilândia

Entre 501 a 900

Crianças

8. Descobrindo o encanto da leitura

2009

Livros infantis

Escola pública de Sobradinho

Entre 101 a 500

Crianças

9. Hemerotecas Criativas

2007

Revistas

Escolas públicas do DF

Entre 2001 a 4000

Crianças, adolescentes e professores

10. Jornal e Educação

1995

Jornais

Sede de jornais e escolas do DF e do país

Mais de 4000

Todas as faixas etárias

11. Ledor Interativo

2008

Livros didáticos, apostilas... Biblioteca Braille de Taguatinga

Menos de 100

Jovens e adultos

12. Leitura: uma janela aberta para o mundo

2004

Livros infanto-juvenis

Escola pública de Taguatinga Entre 501 a 900

Adolescentes

13. Ler e Criar

2006

Livros infantis e juvenis

Comunidade: instituição de saúde

Entre 101 a 500

Crianças à 3ª idade

14. Luz & Autor em Braille

1995

Livros de literatura brasiliense

Biblioteca Braille de Taguatinga

Mais de 4000

Jovens, adultos e idosos dvs; escritores

15. Mala do Livro

1990

Literatura de modo geral, técnicos

Secretaria de Cultura, Comunidade: todas as cidades do DF

Mais de 4000

Todas as faixas etárias

16.Manhã e Tarde Cultural

2009

Livros infantis

Escola pública de São Sebastião

Entre 101 a 500

Crianças

“17. Os Craques da Educação Fiscal“

2006

Livros temáticos/didáticos

Escolas públicas, Biblioteca Braille e Feira do Livro

Entre 101 a 500

Adolescentes, jovens e adultos

18. O escritor no meio da gente

2004

Livros infantis e infanto-juvenis

Bibliotecas públicas do DF

Entre 501 a 900

Adolescentes, jovens e adultos

19. O livro na rua

2004

Minilivros de literatura editados

Centro editorial em Brasília

Entre 2001 a 4000

Todas as idades

20. Revista Pensamento Livre

2005

Revista

Penitenciária

Mais de 4000

Jovens e adultos

21. Roedores de Livros

2006

Livros infantis e infanto-juvenis

Comunidade – creche em Ceilândia

Entre 101 a 500

Crianças e adolescentes

22. Sacola Literária

2007

Livros infantis e de histórias Escola particular de Ceilândia

Entre 101 a 500

Crianças

23. Servidor Solidário

2006

Livros infanto-juvenis

Escolas rurais e Biblioteca do Entre Planalto 501 a 900

Todas as idades

24. Solidários da Visão

2007

Livros didáticos, jornais, computador

Biblioteca Braille de Taguatinga

Entre 101 a 500

Jovens e Adultos

25. Teatro Infantil em ação

2007

Livros infantis

Escolas públicas, Biblioteca Braille, Feira do Livro

Entre 501 a 900

Crianças e adultos

Fonte: Pesquisa de Campo no DF/2009

Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo

como, bibliotecas públicas, escolares e comunitárias. Um exemplo de projeto desenvolvido em Centro Editorial é o Livro na Rua, com edição e ampla distribuição de minilivros. As atividades mais presentes em todos os projetos são: oficinas, cursos; debates, discussões; pesquisas. Dependendo das características de cada projeto, desenvolvem-se, ainda: encontro com escritores; visitas às instituições; rodas de leituras; produção de textos; apresentações teatrais, atividades lítero-musicais, recitais, concursos culturais, contação de histórias, criação de jornais, desenhos, dramatizações, mediação de leituras, empréstimo de livros, leitura compartilhada, álbum seriado, fantoches, tenda da leitura ao ar livre, etc. Cada um desses projetos, de acordo com suas metas e seus objetivos, planeja atividades e utiliza estratégias que geram bons resultados ao que se propõe. Ler é uma questão de cidadania e essa questão passa tanto pela inclusão social quanto pela inclusão escolar. Nas respostas dos questionários, quando perguntados sobre as vantagens do projeto de leitura, os respondentes destacaram (1) os métodos empregados no projeto podem ser utilizados em outros contextos e isso já acontece; (2) amplia o acesso para as pessoas aos recursos culturais dentro e fora da comunidade, promove a socialização; (3) desenvolve parcerias e a responsabilidade social dos envolvidos, enriquecendo os participantes. Vale destacar que vários projetos já extrapolaram fronteiras, destacando o Programa da Mala do Livro, que foi também implantado em outros países. O Projeto Casas do Saber é o exemplo-destaque por ter estimulado e criado cerca de mais de 80 bibliotecas em todo o Distrito Federal. O Projeto Luz & Autor em Braille que é voltado para os deficientes visuais é um exemplo pioneiro no DF, já foi apresentado em Cuba, Peru e Portugal. Seu destaque é, sem dúvida, o da socialização que Tardif (2007, p.71) descreve como “um processo de formação do indivíduo que se estende por toda a história de vida e comporta rupturas e continuidades”. Isso representa que o desempenho e a capacidade social e cultural dos indivíduos tornam-se variados graças às oportunidades de acesso aos saberes que lhes permitem compreender melhor o mundo socializado, para que possam construir, em interação com os outros, a própria identidade pessoal, enriquecendo a identidade coletiva. Todos os projetos se encaixam na afirmação contida no questionário aplicado Incentiva práticas culturais, o conhecimento da produção literária

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local e outras obras nacionais. Com certeza, o destaque fica por conta do Projeto Brincando de Biblioteca com Programa Literário. Em destaque, também, o Programa de Jornal e Educação com 62 projetos desenvolvidos no país. Conforme Relatório de Responsabilidade Social 2006/2008 o Programa é a principal iniciativa de responsabilidade social da Associação Nacional de Jornais – ANJ; o programa quer que as pessoas leiam o mundo, leiam-se no mundo, posicionem-se no mundo e possam assumir com firmeza seu papel como agente de transformação. Depoimentos evidenciam que, por existirem pessoas que se preocupam em aprender e precisam de incentivo para ficarem à frente das ferramentas de apoderamento dessa aprendizagem, é que existem pessoas que se voltam para abrir essas portas. São eles os idealizadores e dinamizadores de projetos, que dão acesso a ambientes de fomento à leitura e marcam vidas com marcas de cidadania. Porque ler é viagem que se faz só ou em companhia de sonhos que unem as pessoas e mudam a realidade para melhor. Quem lê se apropria de condições de reflexão e pertencimento e descobre que a capacidade de cada um depende de sua própria busca por mudanças. Os depoimentos dos respondentes, participantes da pesquisa, comprovaram que os caminhos estão abertos para que essas mudanças aconteçam. O Fórum, Brasília, capital das leituras pretendeu, desde seu início, servir como veículo de divulgação dessas atividades literárias. Conclusões Nem as bibliotecas públicas, nem as escolares estão aparelhadas, suficientemente, para atender a todas as necessidades dos cidadãos no Distrito Federal. Por isso, as iniciativas que democratizam o livro e a leitura revestem-se de importância. As questões propostas, na pesquisa realizada, mostram isso, comprovando que a cidadania é vivenciada e que a leitura é uma ação que está presente na vida dos entrevistados. Os resultados foram positivos, em sua totalidade. Mesmo os projetos de menor alcance, realizados em salas de aula, como é o caso do Projeto Leitura, uma janela aberta para o mundo; ou em creche infantil, como é o caso do Projeto Beija-Flor e os Livros; ou em uma única comunidade, como é o caso dos alunos de uma creche, beneficiados com o Projeto Roedores de Livros evidenciaram sua importância e alcance. Todos demonstram transformação social muito acentuada nos beneficiários. A solidariedade, acrescida da inclusão so-

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Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo

cial, são características fundamentais dos projetos: Luz & Autor em Braille, Ledor Interativo, Solidários da Visão, Servidor Solidário. Temas transversais, como ética e cidadania e outros sugeridos nos parâmetros curriculares do MEC, como saúde, meio-ambiente, pluralidade cultural, são abordados em vários dos projetos pesquisados, por meio dos livros trabalhados, destacando-se: Os Craques da Educação Fiscal, Teatro Infantil em Ação, Hemerotecas Criativas. Os projetos A Bela Boneca Aparecida; Projeto Baú de Histórias; Projeto Ler e Criar; e Projeto Sacola Literária evidenciam transformações sociais, trabalham com contação de histórias, interagindo autores/executores com os beneficiários, de forma educativa, prazerosa. Tanto o Projeto Brincando de Biblioteca, quanto o Projeto Café com Letras e o Projeto Chocolate Literário contam com a atuação dos atores sociais na dramatização das obras lidas. O Projeto O Livro na rua e o Projeto Revista Pensamento Livre destacaram-se como exemplos de desempenho voltado à democratização do livro e leitura, com materiais acessíveis, nas mais diversas realidades sociais; um com milhares de livros distribuídos e outro com produção de revista em sistema prisional. A conquista de leitores é um desafio contínuo e o caminho é longo. As principais descobertas nos projetos, dos mais simples aos mais abrangentes são: igualdade de oportunidades para todos, inclusão social, solidariedade, criticidade e compreensão leitora, democratização do livro e leitura, ludicidade, inclusão cultural, parceria entre estado e sociedade civil. O caminho percorrido, até aqui, por todos esses projetos sociais evidencia que serão colhidos frutos que disseminarão sementes e beneficiarão mais e mais envolvidos. Também é latente a certeza que há muito mais a ser feito. Depende de cada um que se empenha e que só faz a diferença por ter se apoderado da leitura e da consciência de que é cidadão todo indivíduo que sabe ser responsável por si e pelo próximo. Referências Bibliográficas AGUIAR, Ritamaria. Convergências: educação, arte, inclusão. In:Caderno de Textos Educação, Arte e Inclusão.  Nº 1 - set/dez de 2002, p. 115-122. ANTUNES, Walda de Andrade; CAVALCANTE, Gildete; ANTUNES, Márcia Carneiro. Curso de Capacitação para Dinamização e uso da Biblioteca Pública. 2ª ed. São Paulo: Global, 2000. BLATTMANN, Úrsula e VIAPIANA, Noeli. Leitura como Instrumento de Cidadania,. In: XXI CBBD

- Congresso Brasileiro de Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação, Curitiba, 2005. Disponível em www.geocities.com/ublattmann/papers/ao55.html acesso em 10-04 e 22-08-09. BRASIL. Ministério da Educação; Ministério da Cultura. Plano Nacional do Livro e Leitura. Brasília: MEC, MINC. 2007. 48 p. ___________________________. Guia para elaboração e implantação dos Planos estadual e municipal do livro e leitura. 2009, 24 p. CANÇADO, Dinorá Couto. Leitura, Cidadania e Transformação Social. Brasília, 2010. 50 p. CASTILHO, José. Uma nova agenda para as políticas públicas do livro e leitores. In: AMORIM, Galeno (org.). Retratos de leituras no Brasil. Vários autores. São Paulo: Imprensa Oficial: Instituto Pró-livro, 2008. KUHLTHAU, Carol. Como usar a biblioteca na escola: um programa de atividades para a pré-escola e ensino fundamental. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. MATOS, Marlise. Cidadania Porque, Quando, Para Quê e Para Quem? Desafios contemporâneos ao Estado e à democracia inclusiva. In: Leonardo Avritzer. (Org.). Cidadania e a luta por direitos humanos, sociais, econômicos, culturais. Belo Horizonte: Editora do Departamento de Ciência Política da UFMG, v. 6, 2009. SILVA, Ezequiel Theodoro. Criticidade e Leitura. SP, Campinas: Mercado de Letras, 1998. ________________________. O ato de ler. Fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 5ª ed. SP: Cortez, 1991. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007

Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

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Dois finais de século na Bahia: cenas de mulheres Nancy Vieira / Milena Britto Universidade Federal da Bahia - UFBA/CNPQ1 (Brasil)

(Doutoras em Professoras Adjuntas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).)

RESUMO: O projeto de pesquisa “Dois finais de séculos na Bahia: cenas de mulheres” dedica-se a levantar, cotejar e analisar produções de autoras nascidas ou radicadas na Bahia em dois finais de séculos, final do 19 e final do 20, a fim de verificar, sob o viés dos estudos de gêneros e identitários, de que modo essas mulheres expressavam sua subjetividade, sua visão de mundo, sua politização ou como articulavam os mecanismos da escrita como estratégia para outras relações ou finalidades que não a meramente artística. Sobretudo no século XIX, percebe-se uma zona interessante a ser investigada: a liberdade de “ser” no mundo, muitas vezes, só vivenciada ficcionalmente. Tanto há diferenças quanto semelhanças em se tratando dos temas escolhidos pelas escritoras, embora, no final do século 20, continuando até a produção mais recente, a sensualidade, a quebra da linearidade, a experimentação de linguagem passam a ser aspectos explorados por muitas escritoras, quase sendo uma resposta aos limites impostos ao gênero feminino até tardiamente: a poesia, a contenção no estilo, a escrita pedagógica e convencional, ainda que se perceba uma espécie de fixação temática: a maternidade, a morte, a velhice. Contrastes e semelhanças tornam ricas as cenas finisseculares e mostrar-se-ão algumas das passagens mais relevantes de escritoras e poetisas do século XIX e XX, incluindo-se as autoras que escolheram o blog como veículo de escrita.

O artigo ‘Dois finais de séculos na Bahia: cenas de mulheres” traduz os resultados da pesquisa comparativa entre a escrita das mulheres que têm produzido na Bahia na virada dos séculos XIX e XX, tendo em vista o foco desse I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea – A Mulher na Literatura e outras Artes, discorrer-se-á particularmente nas autoras coevas. É inegável que a situação “autoral” feminina passa por uma grande transformação com o advento tecnológico. Primeiramente, essa escrita sofre o que de um modo geral a própria literatura sofreu diante do fenômeno mass media no decorrer do século XX e, de maneira particular, houve uma tomada de vantagem, nos últimos dez anos, dos espaços e dos mecanismos oferecidos pelas ferramentas ligadas à rede. Desde os folhetins, mas, sobretudo, com o cinema e as telenovelas, o ofício de escritor tem mudado e, tal como afirma Sérgio Sá ( 2010, p. 30), A decisão de ser escritor não vem mais da

descoberta da fantasia nas páginas dos livros. O cinema e a televisão concorrem com o que Sylvia Molloy chama de “a cena de leitura”, momento epifânico de contato com o livro e, mais adiante, com a escritura. Os escritores contemporâneos passam a descobrir a literatura por meio da ficção audiovisual. Assim, não é de surpreender que as escritoras não apenas se apropriem dos espaços ligados à cultura para as massas como façam desta uma aliada, pervertendo a história que, durante todo o século XIX, as mantiveram romanticamente reféns de uma ideia de escritura traduzida por diários secretos. Esses diários obedeciam ao subjetivo desejo “de ser”, de ter um “espelho” que desdobrasse e refletisse algo que não estivesse subjugado e controlado como todo o resto – ou por “genialidades” fora do comum que justificavam um pai, um marido ou um amigo de família a dar licença para que elas pudessem ir a público. Uma das estratégias utilizadas pelas escritoras

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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

do século XIX consistia em buscar um mecanismo de legitimação para justificar a escrita e a publicação de suas obras através da parceria com a Igreja Católica, seja nos jornais ou nas revistas das senhoras católicas, muito comuns até as primeiras décadas do século XX na Bahia. Das autoras do arco temporal delimitado nesse projeto, nota- se a preocupação com a formação da mulher e com as leituras a elas adequadas, na busca de uma literatura de formação, uma espécie de bildungsroman feminino, a que se propunham a fazer sob a égide da Igreja. De acordo com a historiadora Michelle Perrot (1989, p.14), [...] Elas se inscrevem num século XIX que faz do privado um lugar de felicidade imóvel, cujo palco é a casa, os atores, os membros da família, e as mulheres, as testemunhas e as cronistas. [...] A memória feminina, assim como a escrita feminina, é uma memória familiar, semioficial.

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A escrita feminina ganhou espaço dentro da sociedade após o processo de alfabetização conquistado ao longo do século XIX pelas mulheres brasileiras de famílias tradicionais ou mesmo pela incipiente família de traços burgueses, incentivadas pelas transformações sociais e culturais advindas da divulgação dos valores dessa nova classe social. A leitura e a escrita, comuns aos filhos dos senhores de terras no final do século XIX, aconteciam no espaço da casa através das chamadas preceptoras. Em torno dos 12 anos, os meninos iam para as escolas, ao tempo em que as moças interrompiam os estudos e se preparavam para o casamento, com a aprendizagem de corte e costura e da culinária. Poucas continuavam com a leitura, o estudo das línguas e do piano, após esse período. A sociabilidade burguesa recomendava a que as mulheres tivessem certa desenvoltura nos salões, trazida pelo convívio social, sem dúvida, mas também pela leitura dos folhetins, a frutinha daquele tempo para parafrasear o escritor Machado de Assis. Os folhetins, ainda que de acesso controlado pela família, se tornaram leitura comum entre os jovens daquela época. Quanto à escrita, além dos textos publicados pela Imprensa Católica, temos ainda uma farta produção esquecida de poemas de consumo familiar, ou poemas para datas festivas ou históricas – formas de divulgação da produção de mulheres e ainda de acesso à esfera pública, pela declamação dos versos produzidos. Enquanto nesses textos vigiados pelos ideais da “literatura moral” – termo empregado pelo censor

de leitura da época Frei Sinzig –, rica das “verdades religiosas”, ou pela sociedade em geral, os diários se constituíam no espaço privilegiado de evasão das almas femininas. Mesmo a escritora Lygia Fagundes Telles refere-se a esse hábito das moças como resistente ao longo do século XX e intitula de “cadernos goiabada”, esse espaço de escrita das mulheres. Sem dúvida, foram esses cadernos os responsáveis por guardar os sentimentos mais íntimos das mulheres, seus desejos, suas histórias. Conforme as predecessoras da autora de As meninas, essas narrativas secretas deveriam ser esquecidas, assim como as leituras, após o casamento, visto que os afazeres domésticos, os cuidados com os filhos e o marido eram prioridade. Pelo menos era o que os homens recomendavam e eram deles as preocupações com a influência da má literatura junto às mulheres, elas, porém, incluíam o acesso aos livros como uma das conquistas fundamentais para uma melhor vida doméstica. Poucos foram os exemplares dessa escritura em tom confessional produzida por mulheres em forma de diários ou memórias, que escaparam do tempo, do abandono ou mesmo foram vítimas da ação violenta dos membros da família ao descobrirem esses registros, que não deveriam ter leitores posteriores. Na contemporaneidade, ao não mais submeterem o que pensavam ao crivo da autoridade masculina, as mulheres escritoras também se viram diante de uma encruzilhada: ferramenta e publicidade podem ser objetos de transgressão ou apenas espaço para colocar os modelos aceitos pela sociedade sexista. Outro fator ligado ao mass media também chegou para as escritoras com relação ao repertório. Ainda que usando os novos espaços para se realizarem como escritoras, muitas autoras talvez não houvessem pensado nisso se por trás não estivesse mais a vontade de falarem como indíviduo antes reprimido do que de fato possuírem uma literatura para mostrar. Nesse ponto, sendo ou não o repertório vindo da cultura para as massas ou de influências literárias, estamos diante de um novo momento que tensiona todas as implicações do ofício de escritor e questiona o lugar dessa escrita, feminina ou não, pois, como diz Eneida Souza (2002, p. 80) Um vez que o objeto literário encontra-se, há muito tempo, desprovido da aura e transformado em mercadoria, recalcando-se o traço do trabalho que o produziu, torna-se igualmente difícil identificar o repertório de leitura do escritor. Esse sentimento de perda esten-

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de-se ainda à memória, que tanto pode ser cultivada como o reduto das grandes obras presentes na biblioteca dos autores, quanto como resquício de outras manifestações culturais, entre as quais aí se inclui o universo da cultura de massa.) Com a falta de censura, a maioria das mulheres queria usar de sua pena – ou de sua tecla – para expressar a sua voz e apenas viraram o jogo com relação à publicidade, mas não com relação ao conteúdo, à estética, à linguagem, sendo ainda os temas universalmente relacionados ao feminino que tomavam conta de seus escritos. Ao por em contato essa produção contemporânea, divulgada nos blogs com a escrita das mulheres do século XIX – resguardados os contextos históricos e culturais no cotejamento dessas épocas – ressalta-se, por exemplo, certa linhagem literária que investiga/discorre/propõe acerca da identidade feminina tematizando a questão do corpo e da maternidade, em autoras baianas contemporâneas como Ângela Vilma, Adelice Souza e Mônica Meneses, escritora sergipana, radicada na Bahia, as quais guardam semelhanças temáticas com Anna Ribeiro, Emília Leitão Guerra e Maria Augusta Guimarães, entre outras autoras oitocentistas. A aproximação dessa nova literatura de mulheres com as novas linguagens e, em particular, com a gramática da mídia tem apontado, ao menos nesse grupo de autoras listadas, temáticas que tratam de questões ligadas ao feminino. É assim que se observam ambíguas ocorrências nas “escrituras” divulgadas por poetas, contistas, cronistas, romancistas na rede: algumas das produções em nada questionam o lugar destinado à mulher e nem escapam da temática presente na obra do século XIX: amor, maternidade, a mulher romântica, a que se preocupa com o mundo, com o lar, com a natureza. Mas há também o uso irônico desses temas ou uma nova abordagem destes, em que se explicita uma consciência desse lugar e um questionamento dele também. Com relação à publicidade da escrita, enquanto no século XIX as mulheres que escreviam usaram as revistas femininas como lugar de escrita literária, no século XXI, as autoras baianas começaram um movimento profícuo em torno do blog. Na primeira década, praticamente todas as escritoras que estavam publicando na cidade passaram ao ou vieram do blog. Isso acrescenta muitíssimo à discussão, uma vez que, como dito, estamos diante de um fenômeno que está diretamente ligado à vontade de ser pública, de ser ouvida, de ser consumida e aceita como sujeito.

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Em se tratando de usar tanto a cultura para as massas quanto as ferramentas tecnológicas como recursos de transgressão, as escritoras estão empenhadas em mostrarem e assumirem o seu trabalho como fruto do tempo em que elas estão inseridas, não importando do passado de suas “irmãs”de ofício a mesma visão de mundo, mas tampouco fugindo dos temas que circundavam aquelas. Temos, como exemplo disso, três escritoras contemporâneas: Karina Rabinovitz, Katherine Funke e Laura Castro. A segunda é radicada na Bahia, a primeira nunca morou fora e a terceira morou na capital do país por alguns anos. Como disse Sérgio de Sá (2010, p. 31), “a atividade de escritor em tempos audiovisuais vive o drama da busca pela comunicação”. Essa busca vai encontrar na imagem um recurso que ampara e amplifica a estética reivindicada pelas autoras que utilizam como recurso as tecnologias. Karina Rabinovitz possui dois livros de poesia publicados, mas é em seu blog Sussurros que a sua obra aparece sólida e impactante, pois os recursos audiovisuais são incorporados como parte de sua obra, que também tem uma dimensão performática e de instalação. É lá que encontramos poemas audiovisuais, poesia eletrônica e versos de poemas que ilustraram a paisagem da cidade. Recolhemos alguns exemplares do site da autora:

quarta-feira, 31 de agosto de 2011 duas meninas

alheias à quarta-feira, qualquer sujeira, às viroses pós-chuva, neuroses, engarrafamentos, documentos, mormaço ou compasso de um dia comum de trabalho. duas meninas, [aqui dentro] tomavam banho de mar e rolavam na areia. gargalhar!

segunda-feira, 30 de maio de 2011 melancolia

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ninguém nas ruas. o som de um piano longe numa vitrola velha. cortinas verdes voando pra fora de uma janela aberta. [a cor do vento] e eu, esta rua deserta, por dentro.

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O blog dessa autora é composto por múltiplas produções, desde suas postagens do cotidiano, ao registro fotográfico das suas intervenções poéticas nas ruas de Salvador (“nos pontos de ônibus – bilhetes poéticos”, “na rua – meus poemas fragmentos”, “poesia no carnaval”, “poesia dia-dia”, “poemas em exposição”, “lambe-lambe poesia”, “babadinhos de poesia”), ou ainda ao recurso audiovisual no vídeopoesia. Ao definir seu blog como “uma porta que sempre está aberta, proporcionando diálogos e encontros”, a autora assume uma escrita poética na qual os elementos verbais dialogam amplamente com os não verbais, numa composição “híbrida” (ALCÂNTARA, 2008). Sua literatura rompe não somente com o suporte papel, como também com o espaço da poesia, deslocando-a para a rua, em busca de um leitor que vai além do leitor virtual, atingindo os leitores “de uma forma irreverente e criativa, tornando-a acessível aos olhos mais distraídos, transitando seus versos pelas ruas, e, através da performance de seus desdobramentos, torna presente a dicotomia entre arte e vida” (FONSECA, BRITTO, 2011). A poética de Karina Rabinovitz se faz em uma multiplicidade de linguagens, em intervenções poéticas que ocupam o espaço público, se espraiando no asfalto ou se fixando nos murais da universidade. Sua temática passa ao largo das questões tomadas como de literatura feminina, performatizando novos espaços de escrita e de inscrição de autoria feminina, ou talvez, em uma perspectiva contemporânea, teatralizando uma nova imagem de autora. A segunda autora relacionada é Katherine Faunke, jornalista com atuação na imprensa baiana. Ela explora, em seu primeiro livro, a condição de mulher com uma fina ironia e uma amargura que desfiguram os temas importados do século passado. A velhice, o assédio sexual, o abandono, o sexo, a solidão, são temas que chegam em textos

curtos ou pequenos textos de prosa poética. O recurso gráfico das páginas do livro é parte de sua tentativa de dar à obra a dinâmica e a velocidade obeservada em seu tempo. Ela escreve em blogs, utiliza-se ativamente das redes sociais, possui um site e twitter e expõe em todos esses cyberespaços uma imagem de si mesma muito apegada à ironia e à crítica de mundo. Das suas Notas Mínimas, microcontos, publicados em blog e, posteriormente, lançados em livro pela Solisluna, em 2010, temos: subterrânea aos 70 “[...] ah que droga como espetam as pontas da página do tempo - “ (Kerouac, em Os Subterrâneos) “Ah, minha filha”, foi dizendo a velha, “eu na minha idade tenho que agradecer porque posso fazer tudo quanto é tipo de prevenção: acupuntura, hidroginástica, massoterapia e -” e ela disse ter 70 anos, mas parecia ter 50: uma vitalidade e uma disposição sem igual. Até usava um decote e, embora os seios fossem derretidos, até podia se assemelhar com algo vagamente mais jovem. “Minha mãezinha morreu num sábado, aos 95, lá em Maceió, e eu numa terça-feira já estava morando em Salvador. Faz 8 meses. Mandei colocarem tudo num caminhão e - “ e ela falava sem parar sobre sua recente mudança de vida mas o meu tempo estava se esgotando. Eu precisava de informação, não daquilo, mas estava até me divertindo -. chuva e sol A velha abre a porta da varanda. Entra um vento úmido; chove. Ela inspira entediada. - Gosto bem mais dos dias de sol. Valha-me, Deus. Mas continua a olhar para fora, a sentir o cheiro do asfalto quente soltando bafo. Aquilo dói no peito. No dia em que seu marido foi enterrado, chovia. elza e ruan A roupa de garçonete deixava bem claro que Elza era funcionária dali. Ruan observou bem esse detalhe quando ela chegou. Demonstrou total atenção pelos mínimos movimentos do rosto dela. Sabia que isso deixava uma mulher louca: calar-se e apenas investigá-la visual-

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mente com insistência e alguma malícia mal escondida. tonta de fastio “Emancipate yourself from mental slavery” (Bob Marley)

O quarto fechado, escuro e sem ar, era como a cabeça da mulher que ali vivia. Ela sempre dizia estar “cheia de fastio”. Melhor seria falar “vazia de fastio”, apressei-me em julgar, quando a conheci. Depois, entendi melhor, acho: assim como aquele ambiente em que a falta de ar era compensada pelo excesso de angústia, aquele cansaço extremo também trazia consigo toneladas de pensamentos, sentimentos e memórias. Tantos, tantos, tantos, que nem dava vontade de ter outro dia inteiro para remoê-los todos de novo... Em Katherine Faunke, o tom é diverso do de Karine Rabinovitz. Ela discute em pequenos contos, ou em suas notas mínimas, como intitula seu livro, aspectos da condição feminina. As situações são diversas, a velhice de uma mulher é narrada não mais como uma vida de dedicação aos seus, como propunham as escritoras de antes ao referir-se às cãs femininas, mas como recomeço de vida, uma vida subterrânea era o que se via naquela mulher, tamanha sua energia de recomeço. O olhar da narradora é de impaciência, alternada com certa curiosidade ante aquela mulher atenta ao seu tempo. Nos dois outros trechos, o enfoque sobre as questões femininas permanece, seja pelo olhar de um homem – Ruan – a observar Elza, em um jogo de sedução, ou seja dissecando a cabeça da mulher. A epígrafe do compositor Bob Marley parece ser uma resposta possível a essa personagem: libertação de certa escravidão a que as mulheres foram submetidas pela sociedade hegemonicamente masculina. A falta de ar parece indicar a falta de liberdade, do enclausuramento psicológico a que esteve submetida. A última das escritoras relacionadas, Laura Castro, mestre em Letras pela UNB e com formação teatral, foi a mais radical tanto em sua proposta estética quanto em sua discussão sobre o que é a escrita, o que é o autor e o que é a obra nos dias de hoje. Em seu romance-objeto Breu: Cabidela bloco de máscaras, a autora coloca como personagem-narrador uma autora que não sabe que é escritora e que questiona esse lugar, confundindo a sua própria vida com o “romance”. Ela radicalizou

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escrevendo um romance em “post” diariamente publicados em seu blog de mesmo nome e depois transformou o blog inteiro numa publicação em forma de kit: um livro em forma de caderno, um bloco de notas e umas máscaras. Há uma performance tanto da escrita quanto do escritor e toda a obra é confeccionada usando-se da metalinguagem como recurso, pois há tanto uma consciência da quebra de paradigmas da contemporaneidade, com o pós-moderno enfrentando a “prosa de Estado”, como diz Marcelo Cohen, quanto a busca de uma estética que traduza a sua reflexão sobre o momento contemporâneo. Laura Castro registra em sua obra aquilo que Sá adverte: Outro caminho que os narradores encontram para “pelear”contra a prosa de Estado é o da “hiperliteratura”. Trata-se de uma “insuborninação estética” a partir de uma performance literária que se quer perfeita ao extremo. “Contra a demência lógica da prosa de Estado, a hiperliteratura enlouquece a narração de si mesma.”(SÁ, 2010, p. 95, grifos no original). De Cabidela bloco de máscaras, recortamos os seguintes trechos: Voltei. Abri a gaveta que havia se tornado um armário. Desenrolei a frota de barquinhos de papel. Decidi transcrever tudo, à caneta. Mas aqueles papéis avulsos não tinham rota. Davam voltas, isso sim. No umbigo, disse um supereu. Não senhor. Suprimi essa parte do texto para não levar outra bronca de Edith e ouvir pela milésima vez que eu não era uma romancista de verdade. De verdade, ela dizia inclinando um pouco os óculos para me fitar, enfática. Voltando: eu comecei assim, me terminando. Tirei o figurino de personagem - que sou - e me pus a narrar. Era isso sair da gaveta: me pôr nua, me expor à diagnóstico. Está tudo aqui transcrito, neste rolo de papel, à caneta. É o retrato do artista quando moça. É uma página inteira e só. É um emaranhado de fios. Romance não é mais novelo, tento explicar a Edith. Eles não permitirão, ela diz, em tom de sentença, não te deixarão passar. Eles quem? às 10:21:00 síndrome da gaveta Escolhi a caneta para começar. Já não era mais tempo de grafite, lápis de olho, giz de cera, borrão. Era tempo do definitivo. O que

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permaneceria sem meu corpo, sem meu punho. A voz, à caneta. Tive medo dessa eternidade. Esses anos todos tive medo de sair do armário e dizer: sou eu a escritora, a atriz que encena textos em tempo real, a narradora de carderninhos, marinheira só em blocos de carnaval. Mas por que explicar? Quem estaria ouvindo? Redatores insones numa madrugada googlística de trabalho? É assim: pergunto, pergunto, nunca termino. Ele disse: é ininterrupto. Ininterrupta, parei, abrupta. às 10:14:00 [envelope azul exato] Luísa, Eu sei que eles vão me pegar lá fora. Você deve estar se perguntando quem? Eu digo: os cães. Mesmo assim, publicarei.

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Envio neste envelope tudo reunido em espiral. Mandei uma cópia também pra Chará (por onde anda ele?), pro Ney, pro Eugene (será que ele lembra de uma aluna silenciosa como eu?), para Marina, para Raimundo, Eduardo, e o Raul, é claro, e também a Bia, a Lídia e a Anaís. Leia como quiser. Abra ao acaso, de um lado ou de outro, comece terminando, termine começando... de todo jeito, estarei eu aqui, em pedaços, desaparecida. Não sei quando volto, se volto um dia. Mas sei que aqui, permaneço. Uma espécie de sobrevida, sabe como é?

às 20:40:00 Edith se sentou e fez um monte de perguntas sobre o que para ela estava muito confuso. Cadê a correspondência completa? Expliquei que eram só duas cartas, a primeira e a última. Ela disse mas assim não pode. Quis cortar tudo de vísceras e todas, todas as miudezas. Quis me dar a receita certa, olhe, é assim, pescoço, fígado, estômago. Ai, ai, ai, nunca dá certo isso. Edith estava velha e reclamona. Nunca dá certo poesia em prosa. Você vai me dar muito trabalho, Luíza. Edith, não cospe no prato que comeu. Deixa eu te explicar que. às 20:25:00 a escritora quer dar um laço. mas não encontra a ponta. ela está emaranhada no fio condutor.

às 20:18:00 esperei o tempo da gaveta (guisando) li, reli, releio; me leio. digo, não digo; me edito. eu preciso sair daqui. daqui, da gaveta-armário onde me penduro. não sou profissional sou ficcional

às 05:34:00 escrevo para lembrar.

Não esqueça de se anotar aqui. Desenhe junto comigo. É doce morrer no mar, minha amiga. É Caymmi que canto enquanto escrevo. Vai assim esse bilhete meio suicida. Já te disse que acho os surfistas de uma coragem suicida? Então: é tempo de surfar ao invés de navegar. Deixa eu ir senão não termino nunca. Um beijo, Luíza às 09:44:00 o romance está solto nas páginas do bloco. favor recortar e montar numa possível encenação em palco imaginário.

Para encerrar, destaco Essa jovem escritora discute com bastante propriedade a condição da escrita contemporânea. Seu texto impresso parece ter saído mesmo da tela do computador, o leitor é convidado a participar do jogo literário de uma maneira mais intensa, desde a forma com que o livro se apresenta até a maneira de ler os textos nele presentes em formas de posts escritos em diversos momentos. O leitor de blogs se encontra no texto mais do que o antigo leitor de livros, a dúvida talvez esteja nessa transformação do suporte da “literatura sem papel” (RESENDE, 2008) para o suporte tradicional, visto que a produção da autora funciona muito bem daquela forma. Talvez a resposta esteja mesmo na busca do mercado editorial em adaptar as novas produções ao contexto das novas linguagens, em um nítido flerte

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com essa nova produção. Nos trechos selecionados, ressaltam-se as citações, a discussão sobre o que escrever e mesmo se se deve escrever, sair da gaveta, participar da literatura, em uma nítida cena autoral, de ficionalização ou melhor teatralização da condição da escrita e da construção do que é uma autora. Esses “escritos de computador”, para utilizar a expressão de Nelson Carneiro ao definir a geração de 90 (CARNEIRO, 2005, p. 31-2), garantiram para a geração atual de escritoras “um público crescente, que lhes permite a possibilidade de expressar seu discurso, muitas vezes subjetivos, com nítidas marcas de uma pessoalidade que pode ser apenas uma máscara nova de representação, com vistas à liberdade de criação” (FREITAS, VIEIRA, 2011). A escrita que circula na internet tem garantido o reconhecimento dessa produção proveniente dos espaços virtuais e feito com que essa produção da rede seja içada pelas editoras e passem a ter suas obras lançadas em livros (RESENDE, 2008). Fato ocorrido com essas três autoras que já tiveram publicadas suas primeiras obras. A produção contemporânea mapeada até agora pelo projeto Dois finais do século na Bahia: cenas de mulheres constitui-se em um mosaico fértil de criatividade, que ocupa com voracidade um território novo da escrita. Com textos marcados pela ousadia na experimentação estética, com qualidade e mesmo diversidade de escritos, essa nova produção do ciberespaço enriquece a reflexão sobre o que é literário, em um momento marcado pela chamada crise da literatura, rompendo com os próprios limites da arte literária. As experiências estéticas dessas jovens escritoras se caracterizam por já não mais pesar sobre elas os cárceres do convencionalismo exigidos antes à escrita das mulheres, nem os modelos literários de valores androcêntricos, nada mais impede que elas modelem sua própria voz e possam ser ouvidas\lidas. E assim continuam a escrever e a produzir novas cenas literárias, apostemos em seu futuro. Referências Bibliográficas ALCÂNTARA, Simone Silveira de. Entrecruzamento de Linguagens em Arnaldo Antunes. Santa Catarina: Interdisciplinar, v. 7, jul-dez, 2008. CARNEIRO, Flávio. No país do presente; ficção brasileira no início do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. CASTRO, Laura. Cabidela bloco de máscaras. Bolsa de criação literária FUNARTE. www.cabidela.

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blogspot COHEN, Marcelo. Estados de la prosa. Otra parte- REVISTA DE LETRAS Y ARTES, Buenos Aires, n.8, p. 1-8, 2006. FONSECA, Mila. BRITTO, Milena. Entre palavras e imagens: o espaço híbrido na poética de Karina Rabinovitz. (artigo não publicado) FREITAS, Naiana Pereira de. VIEIRA, Nancy Rita Ferreira. Escrita de si, memórias e ficcionalidades. (artigo não publicado) FUNKE, Katherine. Notas Mínimas. Salvador: Solisluna editora. 2010. KLINGER, Diana. Escrita de si como performance. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, p. 11-30, 2008. PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. São Paulo, v.9, n.18, p.10- 18. ago/set. 1989. RABINOVITZ, Karina. Blog: Sussurros. Disponível em: http://www.karinarabinovitz.blogspot.com/ Acesso desde 16 mai. 2011. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Biblioteca Nacional, 2008. SÁ, Sérgio. A reivenção do escritor: literatura e mass media. Belo Horizonte: UFMG, 2010. SANTAELLA, Lúcia. Matrizes da linguagem e pensamento. São Paulo: Iluminuras, 2005. SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

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Itinerários femininos: um olhar sobre a escrita feita por mulheres no meio do século passado Joana Marques de Almeida CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal

Resumo: O presente artigo terá como objecto de estudo três romances portugueses de autoria feminina publicados nos anos 40 do século passado, os quais constituem um prenúncio da verdadeira irrupção de mulheres escritoras que se verificou na década seguinte: Ela É Apenas Mulher (1944), de Maria Archer, Joana Moledo (1949), de Maria da Graça Azambuja, e Rapariga (1949), de Ester de Lemos. Debruçar-se-á em particular sobre as respectivas protagonistas, analisando os traços que as individualizam e o modo como encaram o mundo, ao mesmo tempo que põe em evidência os pontos comuns às várias trajectórias, aliás também presentes em textos de outras escritoras que começaram a publicar por volta da mesma altura. Em simultâneo, e uma vez que a grande maioria delas acabou por resvalar para um lugar de esquecimento, o trabalho que aqui me proponho desenvolver terá ainda a preocupação de dar um passo no sentido de as resgatar do limbo em que hoje se encontram, dando assim nova voz a um grupo de mulheres cuja obra, reconhecida pela crítica na altura e com o passar do tempo imerecidamente ignorada, em muito contribui para enriquecer o panorama literário português.

No final da década de 40 do século passado, início da de 50, o panorama literário português viu surgir um número muito significativo de mulheres escritoras, de que nomes como Celeste Andrade, Judite Navarro, Natércia Freire, Natália Nunes, são apenas alguns exemplos. Sem terem formado qualquer escola ou movimento, deixaram-nos, no entanto, um vasto leque de obras, a que um conjunto de traços dá unidade. Neste estudo, os romances Ela É Apenas Mulher (1944), de Maria Archer, Joana Moledo (1949), de Maria da Graça Azambuja, e Rapariga (1949), de Ester de Lemos, constituem uma pequena amostra dessa herança literária, que aos poucos tem vindo a perder-se. Reler todos estes textos, reflectir sobre o mundo que retratam, a forma como é visto, reveste-se de particular importância por, antes do mais, se encontrarem hoje num limbo de esquecimento de que é urgente resgatá-los, apesar de terem sido na altura bem recebidos pela crítica e pelo público. Note-se, para além disso, que estas autoras, devido ao

facto de serem mulheres, foram tratadas como um grupo à parte, sem contudo receberem linhas de aprofundamento que as identifiquem como tal, o que as tem mantido à margem do cânone literário. Assim, se nada for feito em contrário, as gerações futuras ver-se-ão privadas de um legado que em muito enriquece a literatura portuguesa, representativo de uma realidade histórica e socio-cultural. No sentido de evitar que isso aconteça, impõe-se a necessidade de ressuscitar estas vozes que o tempo calou e que acabaram por ser imerecidamente relegadas para segundo plano. O primeiro dos três romances aqui em estudo, Ela É Apenas Mulher, de Maria Archer, apresenta-nos, como o próprio título de certo modo faz prever, uma protagonista que se debate num mundo hostil, onde todos os direitos lhe são negados, excepto o de se resignar, o de suportar calada e submissa o destino que lhe é imposto por uma sociedade surda aos seus apelos e cega perante a luta que trava. Esforça-se, então, para aí conquistar

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um espaço em que possa mover-se livremente, agir sem ser alvo de julgamento constante, em suma, ser mulher. A obra começa com a chegada da personagem a Lisboa, que olha para a realidade desconhecida de que se aproxima com uma atitude de deslumbrado espanto: “Esmeralda, encolhida no banco da camioneta, olha para o clarão das luzes da cidade, olha para as estrelinhas amareladas que cintilam aqui e além, e diz consigo: «Será festa...»” (p:1). E, se o momento em que entrou nessa mesma camionete, abandonando a aldeia em que nasceu e cresceu, simboliza o fim de uma etapa da sua vida, uma espécie de morte, o primeiro contacto com a cidade representa um renascimento. A jovem provinciana desapareceu, dando lugar à mulher que logo na página de abertura vemos chegar à capital do país, levada por um sonho e pela vontade determinada de o tornar realidade, a que se vem juntar o compreensível medo do desconhecido. A visão do rio que então atravessa, depois de a das luzes, cuja fluidez contrasta com a secura das planícies de que é oriunda, acentua de modo significativo o sentimento de insegurança: “E aquele rio, feito estrada, desnorteia-a, dá-lhe a primeira sensação do mundo estranho onde ficam as cidades imensas, onde fica essa Lisboa em que ela, daí em diante, vai viver para sempre, em que quer viver” (p:2). Tem vinte anos e é então que verdadeiramente começa o seu percurso, como se tudo o que ficou para trás não passasse de um prelúdio. É a infância que termina, estrangulada por esse caminho que perante si se estende, ao longo do qual avançará, em equilíbrio sobre a ténue linha que separa o universo da esperança e da visão de um futuro promissor, do universo das dificuldades que parte de si não deixa de antecipar. Avançará, ainda, entre dois tempos, o do passado, onde jaz aquela que outrora foi, com quem quer cortar todos os laços, e o futuro, para onde projecta a imagem da figura em que pretende transformar-se. A viagem, enquanto deslocação no espaço, dá origem a esta dualidade. De facto, a estrada que liga a pequena localidade à grande metrópole, ao interpor-se entre ambas, é a mesma que as afasta, estabelecendo-se, assim, uma incontornável oposição entre o rural e o urbano. Temos, pois, de um lado, um meio pequeno e apaziguadoramente familiar, mas também sufocante e castrador, e, do outro lado, o mundo imenso da cidade, desconhecido, perigoso, ameaçador até. Vibra, porém, sob um turbilhão de possibilidades: “Partia para Lisboa... Chorava e despedia-se, em lágrimas, da família. Ti-

nha medo da viagem, de Lisboa, e até desse futuro misterioso que a tia Juliana lhe prometia” (p:24). Medo e expectativa, eis os sentimentos que dominam a protagonista no momento em que abandona a terra natal, o pai, a mãe, os irmãos, em suma, tudo o que sempre conheceu, que troca pela casa da tia Juliana, pronvinciana abastada que se instalou em Lisboa. Será uma criada sem ordenado, devido ao parentesco que as une, mas agradece a oportunidade. As desilusões, porém, cedo lhe ensombram o horizonte, que via limpo e claro, e a primeira tem precisamente a ver com essa casa, que imaginara “à moda de Lisboa” (p:59) e que afinal “cheira a província” (p:12), reflectindo a personalidade mesquinha e avarenta da sua habitante, o que pode ser visto como um prenúncio de dificuldades vindouras. Esmeralda, contudo, deslumbrada perante o desfile de novidades que já consegue adivinhar, não atenta neste detalhe. Para mais, incapaz de resistir ao apelo do mundo que agora começa a explorar, obstina-se em conquistá-lo, alimentando-se, num primeiro momento, de ilusão, de sonho, de esperança, que depressa se transformam, quando a personagem se apercebe de que a realidade é bem mais dura do que idealizara e de que a tia Juliana não tenciona cumprir as promessas feitas, numa vontade inquebrável. A mudança de atitude é evidente: “Lisboa já não a deslumbra, já a conhece, e agora começa a sentir a presença da sua própria pessoa dentro de Lisboa e a reflectir na situação e colocação da sua própria pessoa nessa Lisboa que já conhece” (p:70). A ruptura com a terra natal torna-se inevitável e o regresso às origens, que em outras autoras da mesma época se reveste de uma forte aura positiva, quase edénica, surge aqui como algo a evitar a qualquer custo. O casamento, numa fase idealizada do seu percurso, parece-lhe o melhor caminho, mas a relação com o sedutor e mulherengo Gerardo, o homem que a obriga a enfrentar sozinha uma situação de aborto, para além de estilhaçar parte do sonho que Esmeralda ainda acalenta, transforma-a no alvo de uma condenação unânime. Ela agarra-se, então, à hipótese de se empregar, saltando do curso de corte e costura para o de dactilógrafa, sem que de um ou de outro lhe advenha a estabilidade que deseja. Por tudo isto, Esmeralda representa a mulher jovem que apenas quer conquistar o seu espaço e a sua liberdade. É nesse sentido que avança, quebrando regras, é certo, mas mantendo-se dentro de certos limites, até que as desilusões, os fracassos, o desdém de que é vítima, a obrigam a mudar

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de atitude e a casar com o vizinho cuja aparência lhe causa repulsa. É com esse gesto desesperado que alcança a independência desejada, uma espécie de felicidade que o reatamento com Gerardo de certo modo completa. Alcança também o respeito e admiração dos outros, situação que as palavras da vizinha do terceiro andar exprimem de forma irónica e evidente: “– É com o marido que traz ao lado que uma mulher triunfa na vida – continua a mãe – e esta, que veio da província, bem lhes dá o exemplo, o bom exemplo, e vocês podem ir mais longe, que são de Lisboa...” (p:296). Passando para o segundo romance, Joana Moledo, de Maria da Graça Azambuja, deparamo-nos com uma protagonista em demanda idêntica à de Esmeralda, trilhando, no entanto, um caminho diferente daquele por que esta envereda. Tem dezanove anos, no início da obra, e prepara-se para abandonar a escola interna em que vive desde os treze. Está à beira, portanto, de trocar um espaço de evidente clausura pela casa paterna, marcada por um ambiente também até certo ponto claustrofóbico. Por isso, e porque a sua natureza inquieta a leva a continuamente perscrutar o horizonte, na ânsia de aí encontrar o significado oculto da vida, não sente a alegria que seria de esperar: “A ideia de que deixaria o colégio daí a pouco não lhe provocava júbilo idêntico ao das outras raparigas, nas mesmas circunstâncias. Não a alegrava grandemente. Ao contrário, acarretava-lhe até secreto mal-estar. Desejaria sim, sair dali, não para mergulhar na existência que a esperava, mas penetrar no mundo que mal entrevia” (p:13). A personagem ignora que contornos irá essa existência assumir, mas sabe que a pequena localidade em que nasceu, fechada sobre si própria e por isso também sobre aqueles que aí se movimentavam, lhe estreitará os horizontes, que deseja vastos e ilimitados, o que mais uma vez nos coloca perante o confronto entre o mundo rural e o urbano. No entanto, o apelo com que este último envolve Joana diverge do que seduziu Esmeralda, na medida em que a protagonista deste romance procura na imensidão da cidade uma forma de se conhecer a si própria, de apaziguar a angústia que a corrói por dentro, e não um modo de cortar os laços que a prendem ao passado e à família. Ainda assim, passam ambas por sofrimento idêntico, feito de solidão, de miséria, de relações frustradas, evoluindo até se aproximarem da felicidade que nunca alcançam em pleno. Aproxima-as a determinação com que enfrentam as adversidades e a forma corajosa como avançam por um caminho sinuoso e irregular, pleno de recantos e de reentrâncias, onde

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por vezes se perdem. O de Joana começa no momento em que sai do colégio, algo apreensiva, como vimos, desejando mais do que aquilo que espera encontrar. De facto, o regresso à casa paterna transporta-a para um espaço em que se vê como intrusa. Neste sentido, sentindo-se estranha entre os seus, devido à prolongada ausência e ao facto de a madrasta não a olhar como filha, apercebe-se de que não pertence a lugar algum e de que, em casa ou no colégio, será sempre uma prisioneira da vontade alheia: “Afinal a vida não se modificara com vir do colégio para casa. E admirava-se, a Manuela, por não estar contente de regressar de todo! Lá como cá... Em qualquer lado existiam quatro paredes a encarcerá-la. Apenas mudara de prisão” (p:58). A personagem tem ânsia de liberdade, portanto, tal como Esmeralda. Muda apenas o caminho que percorre para a encontrar e a forma que esta assume. Deseja poder passear sozinha pelo campo, em comunhão com a natureza a que se sente tão intimamente ligada, ou agir de acordo com o que considera correcto, sem que as opiniões de terceiros ou as regras instituídas ergam uma barreira quase intransponível. Quer ainda compreender-se a si própria, conquistar o seu espaço, o que acaba de facto por acontecer, embora passe antes por um longo percurso marcado por confrontos dolorosos com a realidade que se lhe impõe e com a amálgama de sentimentos que daí advem. Com efeito, o choque causado pelo regresso a casa desperta em si recordações adormecidas, que lhe permitem reviver a serenidade de certos momentos da infância e transportar esses sentimentos passados para o que no presente a rodeia, a família, a relação com Joaquim Pedro e a perspectiva de um caminho promissor: “A vida apresentava-se-lhe como um milagroso alvorecer que não residia num ou noutro facto, mas, em quanto surgira na sua existência” (p:74). Semelhante estado de felicidade, porém, cedo se revela efémero, ensombrado pela doença do avô e pelo rompimento com o noivo cuja postura face à vida o seu espírito inquieto não lhe permite aceitar. Parte para Lisboa, então, a cidade em que tantas outras personagens femininas criadas por mulheres escritoras por volta da mesma altura se perdem e se descobrem. Poucas aí encontram o que procuram, mas menos ainda regressam às origens, como Joana virá a fazer. Debate-se, antes disso, com uma solidão imensa, embora esteja hospedada em casa de uma amiga, com a dor de se sentir repudiada pela família, apesar de ter partido por iniciativa própria, com a falta de dinhei-

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ro, com a dureza do meio laboral e com mais uma relação falhada. A certa altura, porém, quando, desapossada de tudo o que alguma vez teve ou desejou vir a ter, sente que as forças lhe faltam, ouve o chamamento das origens, como antes ouvira o da cidade, e procura refúgio na promessa que este encerra. É na terra natal, portanto, na forja e na casa contígua deixada pelo avô em herança, que encontra a tranquilidade desde sempre procurada e uma felicidade que, em si, jamais poderá ser total: “É uma ansiedade mais alta, que nada pode sustar, que não admite diques, que só em Amor e luta, na procura de um sentido sempre mais aprofundado da vida, se realizará. Como um rio que não pára de correr, incansável, para o fim a que aspira” (p:242). No terceiro e último romance, Rapariga, de Ester de Lemos, temos uma protagonista, Luísa, cujo percurso apresenta características ligeiramente diferentes das que marcam os de Esmeralda e Joana. Com apenas 16 anos, é pouco mais jovem do que estas, mas encara o mundo com uma inocência que elas perderam no momento em que deixaram o espaço protegido mas sufocante em que cresceram, para, num outro mais vasto e mais hostil, se transformarem em mulheres. Passam, portanto, por um processo de morte e renascimento, que neste romance não se verifica. De facto, como o título indica, a fase da vida aqui em destaque é a da adolescência, marcada pelas descobertas, hesitações, dúvidas e também supostas certezas que a caracterizam. Neste sentido, podemos dizer que o percurso de Luísa termina onde o das outras começa. Há, no entanto, pontos comuns aos três, como o contraste entre o universo rural e o urbano, a angústia com que as figuras se debatem, a desadequação face ao mundo que as rodeia, questões que em Rapariga surgem de forma ainda embrionária. Serão, de facto, desenvolvidas e aprofundadas pela autora no admirável romance Companheiros (1959) cuja protagonista, Flávia, vergada sob o peso da dor de ter perdido os pais, se lança numa vertigem de desepero, guiada pela réstia de esperança que ainda subsiste e que a faz amar a vida. Luísa não é muito diferente, oscilando entre estes pólos opostos, que alternadamente a aproximam e a afastam daqueles que a rodeiam. No início do romance, o desfasamento entre si e os outros é já evidente: “Todos tinham coisas que os preocupavam, coisas que lhes enchiam a alma e lhes impulsionavam a vontade. Eu não; tinha desgostos, mais nada” (p:3). Esta confissão, feita na primeira pessoa, o que imprime ao texto um tom

íntimo, semelhante ao de um diário, leva-nos a atribuir à protagonista uma experiência de vida mais extensa e mais dolorosa do que realmente tem. No entanto, sabêmo-lo pouco depois, não passa de uma rapariga a braços com o primeiro amor e com dúvidas existenciais que não preocupam as outras jovens da sua idade. Por isso as inveja, desejando caminhar com leveza idêntica, sentindo-se, em simultâneo, orgulhosa por ser como é: “Mas ao mesmo tempo, qualquer coisa como um orgulho amargo se insinuava em mim, em mim que lia Cícero e Virgílio, em mim que escrevia versos e supunha desenhar com talento, em mim que era uma filósofa, uma amorosa e uma desiludida da vida (como se pode ser tanta coisa, quando ainda se não é nada!) ao contemplar essas meninas fúteis, passarinhos amáveis, sem miolo, que não sabiam amar, nem sofrer, nem trabalhar” (p:12). Esta dualidade, que a faz oscilar entre inveja e orgulho, entre a tristeza que lhe tolhe os movimentos e a felicidade que a faz vibrar, acompanha-a durante toda esta etapa da existência, como uma sombra, ou uma segunda pele, capaz de condicionar o modo como encara o mundo. Sofre por saber que a infância é um país que se perdeu com o passar dos anos – “Nesse tempo, o quintal era azul e doirado, em vez de ser cinzento e amarelo como é agora; e tinha ilhas de coral, grandes palmeirais sombrios, mares tempestuosos e grutas profundas, onde havia tesoiros...” (p:20) – e porque o que o presente tem para oferecer se lhe afigura baço e sem vida. O futuro, porém, agita-se ao longe, e é para lá que se dirige. Ao longo da caminhada, terá de enfrentar obstáculos, desilusões, incertezas. Terá de lidar com a doença do irmão, com as dificuldades financeiras da família, com a impossibilidade de continuar os estudos, com o quotidiano cinzento de um emprego de escritório. Considera-o medíocre, mas acaba por se habituar, manifestando assim uma capacidade de adaptação que lhe permite suavizar o sofrimento e retirar daí um prazer inesperado. Contente com o facto de se sacrificar pela família, de ajudar os pais com o dinheiro que ganha, alcança um simulacro de felicidade: “Quanto a mim, pouco teria a dizer-lhe a respeito do que sentia nessa época; a minha vida interior parecia reduzida a um vegetar mortiço e débil. Eu era, de resto, a essa data, quase completamente feliz” (p:238). Esta é, porém, uma felicidade viciada, própria daqueles que, como que anestesiados, não vivem os acontecimentos por inteiro. Com efeito, Luísa, tendo sufocado o seu desejo de escrever poesia e de estudar literatura, sente latejar dentro de si uma

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insatisfação contida, de que apenas se consegue libertar perto do fim do romance, com a reviravolta nas finanças familiares que lhe permite finalmente frequentar a universidade e movimentar-se por Lisboa com o à-vontade de quem aí pertence. Dá assim o primeiro passo no caminho que a afastará da casa paterna e, apesar da centelha de tristeza que semelhante perspectiva faz brotar, experimenta um sentimento pleno e total que jamais antes conhecera, encerrando a sua história e todo um ciclo da existência com as seguintes palavras: “A consciência da minha mocidade toma-me a cada momento. Sinto que vivo uma época única e excepcional da vida, persuado-me cada vez mais da beleza das coisas e da sua facilidade” (p:290). Eis-nos perante três mulheres e três itinerários diferentes. Esmeralda, protagonista de Ela É Apenas Mulher, luta com todas as forças e recorre a todos os meios ao seu alcance para realizar o sonho de se instalar de vez na cidade e de aí conquistar um espaço, deixando para trás o ambiente humilde e rural de que é oriunda. Joana, de Joana Moledo, persegue também um objectivo, o de encontrar um local a que sinta pertencer, onde possa amar e conseguir a paz de que o seu espírito intranquilo precisa. Por fim, Luísa, de Rapariga, embora percorra um caminho que termina no ponto em que os das outras começam, leva a cabo busca idêntica, procurando por outros meios, como a escrita e os estudos superiores, saciar a sede de vida. Não obstante as diferenças que afastam estes itinerários, une-os um conjunto de traços, comuns a muitas outras escritoras que começaram a publicar por volta da mesma altura. Um dos mais importantes é o protagonismo dado às personagens femininas, as quais, porque criadas por mulheres, ao contrário do que até então era mais comum, nos são apresentadas sob uma perspectiva que parte do interior para o exterior. Assim, mais do que no eixo central da narrativa, estas figuras transformam-se na própria ação, o que nos permite reflectir sobre a condição da mulher na sociedade da época. Outro traço, que surge na sequência do anterior, é a alusão recorrente a uma série de questões que poderão dar um contributo significativo no que diz respeito à problemática de género, como o acesso ao mercado de trabalho, a dependência face ao sexo oposto e consequente importância do casamento, e até a maternidade. Esmeralda, por exemplo, mesmo perseguindo avidamente o amor, acaba por casar com um homem de quem não gosta verdadeiramente, para evitar o regresso à aldeia. Um terceiro traço tem a ver com a angústia que

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envolve as personagens. Este sentimento pode ter causas diferentes, nem sempre definidas ou concretas, e manifestar-se de formas diversas, mas é sempre denso e pesado, pairando no próprio ar que se respira. Constitui, em certa medida, um reflexo do clima de dificuldade e de desilusão que então se vivia em Portugal, na sequência da Segunda Guerra Mundial e da conjuntura socio-económica que se lhe seguiu, que em Joana Moledo está patente na quase incompreensão com que a protagonista olha para o que a rodeia e na sua incapacidade de se satisfazer com a existência superficial que aos outros parece bastar. Quarto traço prende-se com um constante regresso ao passado. De facto, uma vez que esta angústia provém de uma insatisfação face à realidade, as personagens procuram nas suas memórias um refúgio, quando se referem a acontecimentos positivos, ou uma forma de se auto-analisarem e melhor compreenderem a situação em que se encontram, processo que nos três romances aqui em estudo surge de forma ainda embrionária, tornando-se bem mais evidente em obras posteriores. Note-se, no entanto, o modo como Luísa, apesar da ainda tenra idade, recorda a infância, conferindo a esse tempo passado os contornos de um paraíso perdido. A saída da casa paterna, do meio demasiado pequeno e sufocante em que nasceram, em suma, do espaço de origem, que no entanto continua a desempenhar um papel importante no percurso das protagonistas, é também um traço a ter em conta. Esta quebra de laços, que pode ser mais ou menos radical, brota de causas distintas, como vimos. Temos, assim, a necessidade de transformação, em Ela É Apenas Mulher, uma dificuldade de integração no espaço envolvente, em Joana Moledo, e o desejo de prosseguir os estudos, em Rapariga, mas lança sempre as personagens numa viagem rumo a um mundo que lhes é estranho e que funciona como um passaporte para o auto-conhecimento e para a liberdade. Semelhante coexistência de dois mundos tão diferentes coloca-nos perante novo traço, a oposição entre o campo e a cidade. Isto porque as personagens, estas e outras criadas por volta da mesma altura, são normalmente oriundas de um ambiente rural, fechado, capaz de lhes limitar os movimentos, mas familiar, trocando-o não raro pelas promessas da urbe, que se lhes afigura libertadora e plena de promessas. Estas, no entanto, ficam muitas vezes por cumprir, o que transforma esse mundo que deixaram para trás, independentemente do desejo de aí regressarem, numa espécie de

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refúgio. Um derradeiro traço prende-se com a ligação estreita que se estabelece entre estas personagens femininas e o espaço casa. De facto, seja a que Esmeralda abandonou voluntariamente ou a que sonha possuir na cidade, a que Joana herdou do Avô e onde por fim consegue apaziguar a natureza inquieta, ou ainda a que serve de porto de abrigo e de ponto de partida para Luísa, funciona como um prolongamento do próprio corpo da mulher. Assim, refúgio, prisão, ou em ambos os casos, real e palpável ou sonhada e etérea, desempenha um papel central e determinante. Eis-nos, pois, para concluir, perante três romances escritos por mulheres, representativos de um grupo mais vasto de obras de autoras que começaram a publicar por volta do meio do século passado. Partilham, por isso, um conjunto de traços que as transforma num todo coeso, sendo o protagonismo dado às personagens femininas o que se reveste de uma maior importância. Estas figuras dominam, assim, toda a acção, constituindo uma espécie de pilar em torno do qual tudo gravita. São jovens, determinadas, inquietas perante uma realidade que as oprime, que lhes limita os horizontes. Incapazes de se resignarem, avançam, derrubando barreiras, ultrapassando obstáculos, movidas por uma intranquilidade que as conduz por um itinerário que é, em simultâneo, íntimo e privado, rumo ao auto-conhecimento, e de conquista do espaço exterior, até atingirem a desejada liberdade. Referências Bibliográficas . ARCHER, Maria, Ela É Apenas Mulher, prefácio de Maria Teresa Horta, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2001 . AZAMBUJA, Maria da Graça, Joana Moledo, Lisboa, Portugália, 1949 . LEMOS, Ester de, Rapariga, prefácio de António Ferro, Porto, Tavares Martins, 1949

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Teorização literária no feminino: textos teórico-críticos de Guiomar Torresão (1844-1898) no arquivo digital E-poeticae – Textos de teorização literária on line Isabel Rio Novo e Célia Vieira CEL/ISMAI, Portugal

Resumo: E-poeticae é um projeto de edição eletrónica de textos de teorização literária produzidos em Portugal, França e Espanha ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, com vista à constituição de um arquivo digital contendo o maior número possível de textos de produção metaliterária elaborados nesses países, no período temporal indicado. Por textos de teorização literária ou metatextos entendemos «aqueles textos nos quais, com objetivos analítico-explicativos e/ ou normativos, se mencionam, formulam, caracterizam ou justificam as convenções, as regras, os mecanismos semióticos que subjazem aos processos de produção, estruturação e recepção do texto literário» (Silva, 1988: 112). Esses textos consubstanciam uma poética explícita, cujo conhecimento, a par do da poética implícita, se afigura crucial para «a reconstituição dos códigos literários actuantes num dado período histórico e numa determinada comunidade sociocultural» (Silva, 1988: 113). Assim sendo, o website denominado E-poeticae – textos de teorização literária on-line, com o endereço www.e-poeticae.com, poderá constituir um recurso essencial para a investigação no domínio da produção metaliterária, ao desenvolver uma base de dados em boa medida inédita, com as vantagens inerentes ao suporte digital, que represente documentadamente as questões que mais solicita(ra)m a consciência metaliterária de críticos e escritores, do século XIX à época contemporânea. A presente comunicação pretende apresentar o acervo de textos de teorização literária da autoria e escritora oitocentista Guiomar Torresão (1844-1898) que vem sendo reunido no arquivo E-poeticae e apresentar um escorço de análise das teorias literárias neles explanadas. Numa época em que a mulher era muito mais objeto do que sujeito da expressão (meta)literária e em que o realismo se afirma como corrente estética e artística, Guiomar Torresão assume-se na sua condição feminina («nós, mulheres, pobres sedentas de ideal», Torresão, 1888: 10) e surge como uma voz a todos os títulos singular no discurso teórico-crítico da literatura portuguesa do século XIX, debruçando-se sobre questões como o problema do romance moderno; a estética naturalista; a poesia satânica; a expressão literária no contexto finissecular. 1. O arquivo E-poeticae – Textos de teorização literária on line E-poeticae é um projeto de edição eletrónica de textos de teorização literária produzidos em Portugal, França e Espanha ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, iniciado em 2010 no âmbito do CEL – Centro de Estudos em Letras, com vista à cons-

tituição de um arquivo digital contendo o maior número possível de textos de produção metaliterária elaborados nesses países, no período temporal indicado. Até à data, a plataforma E-poeticae – textos de teorização literária on-line contém cerca de duas centenas e meia de entradas relativas a autores e textos de teoria e crítica literárias, na sua maioria produzidos no século XIX, por razões que

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explicaremos adiante. Por textos de teorização literária ou metatextos entendemos, com Vítor Aguiar e Silva, «aqueles textos nos quais, com objectivos analítico-explicativos e/ou normativos, se mencionam, formulam, caracterizam ou justificam as convenções, as regras, os mecanismos semióticos que subjazem aos processos de produção, estruturação e recepção do texto literário» (Silva, 1988: 112), assumindo algumas vezes as caraterísticas de textos doutrinários ou programáticos1. Consubstanciam esses textos uma poética explícita, i.e., a reflexão que sobre e a pretexto da literatura e por vezes mesmo no interior desta é produzida, poética explícita essa cujo conhecimento, a par do da poética implícita, i.e., a poética defluente da própria criação literária, se afigura crucial para a reconstituição dos códigos literários atuantes num dado período histórico e numa determinada comunidade sociocultural (Silva, 1988; Miner, 1990). Na constituição do corpus do site E-poeticae – textos de teorização literária on line, necessariamente vasto e aberto, considerámos à partida uma grande diversidade de textos, relativos a vários tipos de “expressions of literary consciousnes” (Głowínski, 1976: 242): (i) Textos de teorização/crítica literária publicados na imprensa periódica, onde, ao longo dos séculos XIX, XX e ainda XXI, o discurso teórico e crítico encontra um espaço privilegiado, considerando jornais e revistas de grande expansão, publicações literárias e artísticas, mas também outros periódicos de menor difusão. (ii) Textos de teorização/crítica literária sob a forma de registos áudio, audiovisuais ou hipermediáticos divulgados, nos últimos anos, na internet (Vieira et alii, 2008); (iii) Textos que acompanharam a publicação em volume de obras literárias (prefácios, posfácios, dedicatórias, notas e todos os seus parassinónimos), que fazem parte do que Gérard Genette (1987) chamou paratexto e Philippe Hamon (1977) designou aparelho demarcativo do texto literário; (iv) Coletâneas de ensaios e tratados publicados autonomamente; v) Fragmentos metatextuais presentes no interior das obras literárias; (vi) Fragmentos metatextuais incluídos em correspondência privada. O objetivo principal do projeto E-poeticae é, 1 Carlos Reis entende por textos doutrinários os “testemunhos de escritores que, quase sempre imersos no fluxo da produção literária a que se referem, procuraram estabelecer e propor orientações para essa produção literária e mesmo, nalguns casos, para a do futuro.” (Reis, 1995: 489.).

nessa medida, constituir uma base de dados que represente documentadamente as questões que mais solicita(ra)m a consciência metaliterária de críticos e escritores, do século XIX à época contemporânea, aproveitando as vantagens de armazenamento, publicação e disponibilização de dados inerentes ao suporte digital. Este arquivo poderá fornecer aos investigadores corpora para o desenvolvimento de estudos no âmbito da teoria, da crítica e da história literárias, contribuindo, assim, para a renovação da História das Ideias Literárias. Numa perspetiva comparatista, o projeto pretende, através da recolha, igualmente, dos textos de teorização literária produzidos em Espanha e França ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, desencadear um novo olhar sobre as relações culturais e literárias que se estabeleceram entre a França e os países ibéricos, e promover o conhecimento mais aprofundado da dicotomia entre tradição nacional e orientação estrangeira na literatura portuguesa. A plataforma E-poeticae – Textos de teorização literária on-line disponibiliza, para já, textos do século XIX publicados maioritariamente em Portugal, opção decorrente não apenas da área de especialização das investigadoras responsáveis pelo projeto, mas sobretudo da vontade de resgatar textos de difícil acesso, raros ou mesmo únicos, em mau estado de conservação, ocultos ou esquecidos em páginas que poucos (re)visitaram. Um dos méritos do website E-poeticae poderá ser, aliás, o de apresentar textos produzidos pelos chamados autores menores, aqueles que a história literária remeteu para a (semi)obscuridade, mas que porventura no seu tempo desempenharam um papel importante no palco de discussão das ideias literárias e culturais, representando, glosando ou prolongando as tendências estéticas definidas pelos maiores. (Machado e Pageaux: 1988). A recolha on line de textos de teorização literária produzidos no século XIX em Portugal afigura-se-nos um projeto tanto mais interessante quanto ainda hoje parece subsistir uma certa tendência para a subvalorização dos textos de reflexão literária dos escritores oitocentistas portugueses, manifesta na relativa escassez de estudos globais sobre a sua teoria e estética, sublinhada por investigadores como Jorge Osório (1974), Margarida Vieira Mendes (1980), João Palma-Ferreira (1985), Fernando Venâncio (1998) e Isabel Rio Novo (2008). O menor interesse pelo estudo dos textos de teorização literária, sustentado pela ideia de que a atividade doutrinária dos autores relacionados com o Romantismo, o Realismo e/ou o Naturalismo careceria de relevância e de originalidade, tem, ainda assim,

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vindo a esbater-se, podendo registar-se, nas décadas mais recentes, algumas iniciativas de recolha e de análise dos textos de reflexão literária desse período (Mendes, 1980; Palma-Ferreira (1985, 1986); Moisés, 2000; Hess, 1999; Venâncio, 1998; Buescu, 1999; Vieira, 2003; Rio Novo, 2008), bem como, numa perspetiva comparatista, algumas abordagens significativas da dita part d’étranger da literatura portuguesa deste período (Machado, 1986, Santos, 2005), incluindo alguns estudos que tomam como corpora de análise textos de teorização literária, numa abordagem comparatista (Vieira, 2003; Rio Novo, 2008). Assim sendo, no estado atual do projeto, consideramos que, sendo indesmentível a ausência de um conjunto articulado de escritores oitocentistas portugueses entre os quais se evidencie uma produção teórica sistemática e unitária, é igualmente inquestionável que essa reflexão dominou toda a época, sendo a esse título surpreendente e reveladora a quantidade de textos de teorização literária recolhidos, publicados ou em condições de serem publicados na plataforma E-poeticae.2 2. Teorização literária no feminino: textos teórico-críticos de Guiomar Torresão (1844-1898) no arquivo digital E-poeticae Um dos corpora recentemente recuperados e editados no arquivo E-poeticae corresponde ao acervo de textos de teorização e crítica literária da escritora oitocentista Guiomar Torresão (18441898). Nascida em 1844, Guiomar Delfina de Noronha Torresão, cedo por razões familiares teve de assegurar a sua própria subsistência, dando lições de instrução primária e de francês, dedicando-se ao folhetim e à tradução de autores como o romancista romântico Victor Cherbuliez, o poeta realista François Coppée e o dramaturgo Pierre Decourcelle. Estreou-se em volume aos dezasseis anos, com o romance Uma Alma de Mulher (1869), prefaciado por Júlio César Machado, a que se seguiram, entre muitas obras, o volume de contos Rosas Pálidas (1873), prefaciado por Tomás Ribeiro; o romance histórico A Família Albergaria (1874); as recolhas de artigos Meteoros (1875) e No Teatro e na Sala (1881), prefaciado por Camilo Castelo Branco; o 2 O exame desse corpus permite-nos compreender que, longe de ser inexistente ou despicienda, a teorização oitocentista apresenta certas particularidades: o seu caráter esparso e fragmentário; o facto de se tratar, muitas vezes, de um conjunto de reflexões circunstanciais e circunscritas, motivadas pela necessidade de escrever um parecer crítico sobre uma determinada obra ou, no caso das reflexões autorais, de afirmar ou justificar uma praxis literária sentida como polémica ou inovadora; a imbricação profunda entre a teoria e a crítica, que sabíamos ser, em boa medida, uma característica da reflexão romântica, quando não uma realidade de todos os tempos.

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livro de viagens Paris (1888); e a comédia Educação Moderna (1894). Ao longo da sua carreira literária, colaborou em vários periódicos, como o Diário Ilustrado, Diário de Notícias, O Repórter, Artes e Letras, A Ilustração Portuguesa, bem como o Almanaque das Senhoras e O Mundo Elegante, que fundou. Morreu de doença cardíaca. É preciso assinalar que a análise à produção literária, sobretudo folhetinesca, de Guiomar Torresão, precisamente sob a perspetiva da escrita no feminino e da imagem da mulher no mundo das letras oitocentista, foi iniciada por Maria de Fátima Outeirinho (1998), num excelente artigo escrito por ocasião do centenário da morte da escritora. Aqui, interessar-nos-emos particularmente pela produção teórico-crítica de Guiomar Torresão, a qual se concentra entre as décadas de 70 e 90 do século XIX, um período da história literária e cultural portuguesa balizado entre, por um lado, a Questão Coimbrã e a afirmação da Geração de 70, a que corresponde, numa primeira fase, a emergência de um Romantismo social e panfletário, influenciado por Vítor Hugo, numa segunda fase, a afirmação do Realismo-Naturalismo, e, por outro lado, as correntes finisseculares simbolistas e decadentistas. Não surpreende, pois, que encontremos a autora a debruçar-se sobre questões como o novo lirismo ou o problema do romance contemporâneo. O novo lirismo Em 1864, antes mesmo das formulações de Antero de Quental e Teófilo Braga em torno da missão revolucionária da literatura que incendiariam o panorama literário nacional, Joaquim Guilherme Gomes Coelho, que viria a celebrizar-se como romancista com o nome de Júlio Dinis, publica sob o pseudónimo feminino de Diana de Aveleda uma carta ao redator do Jornal do Porto onde ironiza acerca da “terrivel doença” que vê propagar-se entre os jovens poetas da atualidade, uma espécie de “febre philosophica” inspirada em Vítor Hugo (Dinis, 1910: 193, 194): Philosophos a fazerem versos! Cada poesia era a exposição de uma theoria de metaphysica ultra germanica, uma argumentação de sophista, e até, quando Deus queria, o desenvolvimento de qualquer principio de sciencia politica; e nós, as mulheres que nos afizeramos a contar com os poetas do nosso lado, a acharmo-nos abandonadas por elles! (Dinis, 1910: 189, 190)

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Lamentando o abandono do lirismo amoroso, religioso e patriótico, Diana de Aveleda procurava demonstrar a inutilidade prática de uma poesia filosófica e chegava ao extremo de convocar uma “cruzada feminina” contra “a poesia que se estuda”: “Por amor de Deus, chorae, chorae se tanto preciso fôr, mas salvae-me a poesia da doença que a corroe, transformae-me estes poetas, de reformadores em amantes, e tereis conseguido tudo, tereis operado uma das mais salutares revoluções que se tem visto no mundo.” (Dinis, 1910: 190, 194, 195) Uma década depois, década essa de afirmação da poesia panfletária, por intermédio de autores como Guilherme Braga, Guilherme de Azevedo, Guerra Junqueiro ou Gomes Leal, uma voz feminina parece responder àquele chistoso apelo de cruzada: a da crítica literária Guiomar Torresão, que, no entanto, curiosamente, não se eximiria a lançar o confronto entre o modelo ficcional dinisino e a estética realista-naturalista estribada nas doutrinas de Émile Zola, nem sempre em benefício do primeiro (Torresão, 1875).3 Cerca de dez anos depois, num artigo sobre o poeta brasileiro Luís Guimarães, Guiomar Torresão consolida a sua negação da poética do mal, condenando os poetas da geração nova, que transformaram o “sonoro rythmo de crystal” na “aspera gargalhada de Mephistopheles”, que converteram “a meiga e consoladora Poesia” na “cathedra, onde elles, os Moysés da nova lei, blasfemam e negam tudo o que nossas mães nos ensinaram a amar e respeitar, curvadas para o nosso berço […]” (Torresão, 1886: 7) Para a crítica, contudo, enquanto a alma humana continuar a sentir, a sonhar, a ser devorada pela sede de ideal, por tudo aquilo, enfim, que “nenhum dos livros de Comte, de Spencer, de Darwin ou de Leittré [sic] poderá saciar-lhe”, os homens e as mulheres continuarão a “espalhar violetas n’essa cova adorada, onde dorme, á sombra das nossas saudades, o unico amigo que entendia e suavisava os nossos amargos desencantos”, entenda-se, o lirismo. (Torresão, 1886: 7, 8) Nesse sentido, condena a atitude de descrença de que padece a moderna poesia francesa, consubstanciada no ateísmo de Jean Richepin, no 3 esse artigo, Guiomar Torresão interroga-se sobre se ao realismo de Feydeau, Zola e Flaubert, que “pinta só o monstruoso e copia de preferencia o hediondo”, serão preferíveis as “doces aguarellas intimas” de Júlio Dinis, para, todavia, rejeitar a estética que “abusando do idyllio, falseia a vida pintando-a com a palheta do Ideal, desconhece o homem prestando-lhe azas de cherubim, desacredita o Ideal forçando-o a intervir, a proposito de tudo, nos vulgares incidentes quotidianos, e não corresponde, porque as não entende, ás pungitivas contradicções, ás revoltas perennes, ás illimitadas aspirações e infinitas dôres da Alma nova.” (Torresão, 1875: 10, 11.)

satanismo de Maurice Rollinat e na arte vazia dos parnasianos, como atentado que são ao “pobre lyrismo innoffensivo” (Torresão, 1888b: 3). Porém, ao contrário de autores como Eça de Queirós, que se limitam ao diagnóstico dos “poetas do mal” (Queirós, 1881: 1), Guiomar Torresão acredita na existência de um “antidoto” para o “veneno subtil” que constitui a violenta nevrose mental refletida em toda a obra moderna, antídoto que não se encontra nas manifestações mais recentes da poesia francesa ou portuguesa, mas sim nos novos poetas brasileiros, onde a poesia (res)surge como “eterno milagre”, “exuberante florescencia de uma arte ainda não contaminada”, “impetuosa força creadora inherente a um mundo que renasce”. (Torresão, 1888d: 3) E, por isso, grande parte dos seus textos de crítica serão dedicados à pujança e ao entusiasmo vital desses autores.4 Buscando definir as caraterísticas do novo lirismo, Guiomar Torresão evoca por diversas vezes a “bella idade” do Romantismo, época de entusiasmos palpitantes, loucuras heróicas e ideais ingénuos, para concluir que parece ter mediado um século entre a geração dos românticos e a geração atual, de tal forma os homens de finais de oitocentos, embrenhados no naturalismo, empenhados em subordinar tudo à observação, à análise, à dedução científica, desdenham desses “pallidos visionarios de grande cabelleira, que compunham romances, poemas e dramas, por entre as allucinantes miragens de haschich, e que pediam á antithese e á idealisação, todas as suas fantasticas efflorescencias” (Torresão, 1887: 3)5 Compreendendo embora que os princípios erigidos pela revolução literária do início do século não se coadunam com o contexto finissecular, parecendo à época uma escola pueril e fora da verdade humana, a autora admite que havia no movimento romântico uma tão “tumultuosa e indomita seiva”, que ainda hoje “nós temos no sangue e nos ossos o romantismo, que empiricamente condemnamos”. Assumindo-se como voz feminina – “nós, mulheres, pobres sedentas de ideal, que buscamos sem cessar nos ethereos dominios da arte as sobrehumanas perfeições, embora ficticias, as delicadas sensibilidades, embora ephemeras, que a vida ferozmente nos recusa” (Torresão, 1888c: 10) –, a crítica defende, pois, a perenidade da poesia lírica, convicta de que, “a despeito dos methodos, das escolas, dos processos modernos e das anatomias da alma, haverá sempre no mundo estas duas loucuras: o sonho dos poetas e a credula ingenuidade dos felizes que se amam”, as quais configuram verdadeiramente “toda a sabedoria humana” (Torresão, 1888c: 10).

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O problema do romance moderno No artigo de 1875 já citado, Guiomar Torresão repudiava os modelos literários incompatíveis com um projeto de reforma moral e cultural da sociedade, repúdio esse que iria também condicionar negativamente a apreciação da aplicação ao romance do Naturalismo, corrente que, no seu entender, cingia a perceção da verdade à estreiteza de alguns “quadros de uma geometria implacavel”, alguns “horisontes asperos e limitados”, alguns “personagens materiaes e viciosos, cuja alma figura apenas como um acessorio subordinado ao corpo”. (Torresão, 1875: 10, 11). A afirmação da falência da estética naturalista, e especialmente do materialismo positivista que a fundamenta, na consolação das dores da alma humana, em última instância, a denúncia da supressão de toda e qualquer forma de metafísica que venha responder aos anseios mais profundos do indivíduo, serão recorrentes na teorização de Guiomar Torresão. Num texto já de 1888, “Litteratura Moderna”, a autora, inscrevendo-se numa vasta bibliografia que patenteia a receção de Émile Zola na Península Ibérica (Vieira, 2003), vê repercutidos na literatura sua contemporânea os efeitos nocivos de um autor que, “sem nos indicar, no futuro, a solução do nosso destino da terra, supprimiu com implacavel ferocidade todos os cultos do nosso passado!” e nos romances impregnados por essa estética o “producto doentio” de uma “crise de nervosismo cerebral” (Torresão, 1888a: 3). Nos seus textos de teorização literária que se inscrevem na querela realista- naturalista, Guiomar Torresão situa-se na fileira de um anti-naturalismo esclarecido, atento à renovação narratológica e intelectual conseguida pela nova estética, mas também crítico das “brutalidades” da escola zoliana. Assim, num texto de 1888 acerca d’Os Maias, Guiomar Torresão, apesar do repúdio do Naturalismo, considera a publicação do romance queirosiano um acontecimento literário e professa a sua admiração pelo estilo de Eça de Queirós, autor que, devido ao seu idealismo, não considera discípulo de Émile Zola e no qual reconhece “complexos dotes de analysta, de psychologo, de humorista e de estylista” (Torresão, 1888c: 10). Lamenta, contudo, que, neste autor, a obediência à “deploravel convenção da escola” tenha tido consequências negativas tanto ao nível discursivo, com a adoção, nas falas das personagens, de termos que descambam na “reles vulgaridade”, ou com o uso recorrente de galicismos, como ainda, ao nível da construção

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ficcional, apontando a crítica várias inverosimilhanças e estereótipos presentes no retrato de algumas personagens, sobretudo femininas: As metaphoras repetem-se com uma obstinação inverosimil na palheta de um colorista uberrimo, e nada menos de seis mulheres encontramos ao longo do romance, com «peito de rola farta (!)» (Torresão, 1888c: 11). A rejeição da nova escola naturalista por parte de Guiomar Torresão fundamenta-se, entre outros aspetos, no modo como o Realismo e o Naturalismo abordam globalmente o tema da mulher. Recorde-se que, do ponto de vista do pensamento filosófico e sociológico, para a intelligenzia da época, a mulher, mãe e esposa, detinha um papel fundamental na regeneração social, a tal ponto que qualquer erro cometido com a sua educação ou com a organização da sua existência quotidiana era entendido como fonte de grande parte dos vícios morais da sociedade. É o que sublinha Eça de Queirós, entre outros textos, nas crónicas “As meninas da geração nova em Lisboa e a educação contemporânea” e “O problema do adultério”, incluídas na coletânea Uma Campanha Alegre, avultando aí, sobretudo, uma imagem da mulher enquanto ser passivo, cuja fragilidade moral e física impõe uma redobrada atenção num universo ordenado pela autoridade masculina, um ser cuja capacidade de intervenção na esfera pública é praticamente nula. E, com efeito, as representações ficcionais no âmbito da estética naturalista colocam em relevo uma imagem da mulher marcada essencialmente pelo sentimento, pela submissão, pelos instintos, pela culpabilidade, pela animalidade, enfim, uma imagem da mulher como corpo seduzido e sedutor. Nas palavras de Guiomar de Torrezão, A mulher, emancipada pelo christianismo da odiosa e deprimente tutella da idade media, baptisada pela sciencia em nome da civilisação, a mulher, a despeito do prismatico colorido em que a envolvem os modernos Ticianos, accendendo-lhe no fundo do olhar enigmatico a scentelha que deslumbra, imprimindo-lhe na bôca ironica o sorriso que perturba, pondo-lhe na espadua olympica a curva hellenica e desdobrando-lhe em ondas o cabello setinoso; a mulher, repito, embora sob um outro aspecto, é mais do que nunca, na obra dos novos e dos modernos, a femea primitiva, a bête, que não tem na vida senão um unico ideal, – o goso, que não obedece senão a um só agente, a que está fatalmente vinculado o seu organismo, o

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instincto carnal, que não procede senão em harmonia com uma suprema preoccupação, – o interesse. (Torresão, 1888a: 11). Note-se que esta crítica de Guiomar Torresão aos escritores que minimizam a capacidade de a mulher conduzir a sua existência entronca numa crítica mais generalizada ao modo como o romance naturalista coloca em causa o livro arbítrio do homem, que, sob o determinismo do meio e da natureza, é “apenas o docil escravo impotente do vicio que o governa, do sordido interesse que o orienta, e da passiva e gelida indifferença que o reduz, pela atonia de todas as suas faculdades affectivas, de todas as suas sensibilidades extinctas, de toda a sua alma narcotisada e silenciosa, á simples qualidade de automato” e que representa na vida o papel “pouco mais ou menos, identico ao de um titere” (Torresão, 1888a: 3).

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6. Conclusão Numa época em que a mulher era muito mais objeto do que sujeito da expressão literária e da expressão metaliterária e em que o Realismo-Naturalismo se afirma como corrente estética e artística, Guiomar Torresão, sem deixar de assumir a sua condição feminina, a sua “sensibilidade de mulher” (Torresão, 1888c: 10), surge como uma voz a todos os títulos singular no discurso teórico-crítico da literatura portuguesa do século XIX, debruçando-se sobre questões como o problema do romance moderno; a estética naturalista; o novo lirismo; em suma, a expressão literária no contexto finissecular.

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Raparigas sem brinco de pérola: figuras femininas em Dulce Maria Cardoso Teresa Coelho Instituto Politécnico de Portalegre/Escola Superior de Educação , (Portugal)

Resumo: Personagens femininas na literatura portuguesa contemporânea: de que palavras são feitas aquelas que perderam os brincos de pérola? Teresa Veiga e Dulce Maria Cardoso são as escritoras escolhidas. Porque os seus retratos são traçados por vozes comuns, públicas e íntimas. Procura-se, na leitura dos textos, compreender como a obra estética se contrapõe a algumas construções sociais do género.

Quando pensei no tema deste congresso de cultura contemporânea, “a mulher na literatura e outras artes”, imediatamente me surgiram, em oposição, duas figuras: “the girl with a pearl earring”, de Vermeer – (1666-67) e “the girl with the dragon tatoo”, Lisbeth Salander. Uma, personagem de mulher comum e anónima que terá dado origem à Mona Lisa do Norte; outra, figura sem nada de convencional na sua feminilidade,1 plenamente nomeada, direta e indirectamente caraterizada na sua bizarria. A rapariga de Vermeer, ligeiramente virada para mim, espreita do fundo do tempo, num álbum dos mestres da pintura holandesa e continua aqui, com as mulheres que passaram incógnitas, no mundo e na literatura; Lisbeth Salander está algures na rede virtual, quando abro o mail que ela olha desinteressada. É a heroína extraordinária e silenciosa que redime outras personagens femininas secundarizadas na submissão a mundos violentamente masculinos. Estas duas imagens de mulher, plástica e literária, são como extremos de um grande espectro de personagens femininas universais, e, por influência direta do ficcional no real, imagens de mulheres que querem parecer-se com elas. Porque na sociedade mediatizada em que vivemos, a mulher, como a criança, o jovem e as relações que estabelecem, o que consomem e como se transportam, tudo é imposto por imagens, discursos sobre essas imagens e discursos sobre os próprios discursos, em que se perdeu o fio a quem imita quem, quem surge primeiro, quem dá origem a quê. Não nos juntámos nós aqui também falando e discorrendo sobre o discurso de outras 1 Personagem da trilogia Millenium, bestseller póstumo de Stieg Larsson.

ou outros, e tendo escrito sobre outros escritos? Vou então “ler” convosco, mais no sentido hermenêutico (de interpretação) do que no filológico (de quem “analisa e situa no contexto histórico”), textos de uma autora portuguesa contemporânea, Dulce Maria Cardoso. Preferia fazê-lo no sentido de quem incorpora a voz do texto e a reproduz, interpretando-o, como o actor – porque alguns destes textos parecem escritos para serem ditos, porque os seus parágrafos têm a dimensão dramática da oralização, da fala que se interrompe e retoma, e comenta o próprio discurso, motor do pensamento e da história. Mas para isso seria necessário outro espaço. Como a maioria saberá, Dulce Maria Cardoso adquiriu maior notoriedade pública quando recebeu, em 2011, os Prémios Ler/Booktailors, pelo seu último romance publicado, O retorno. Já fora premiada com o Prémio Ciranda e o Prémio do PEN Clube Português de Novelística, em 2010, pelo seu terceiro romance O chão dos pardais, e recebera o European Union Prize for Literature, em 2009, pelo romance Os Meus Sentimentos, assim como o Grande Prémio Acontece, em 2002, pela primeira obra, Campo de sangue. Limitada por questões de tempo e espaço, colhi uma “amostra” da “população feminina” apenas de dois universos ficcionais da escritora: Campo de Sangue e Os Meus Sentimentos. Vou falar-vos de Eva, da mãe, da rapariga bonita, de Violeta, Celeste, Dora, figuras da contemporaneidade, marcadas pelas características de uma sociedade que Bauman classificou como líquida, por nela se ter perdido a consistência das relações interpessoais

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e o sentido da busca intrapessoal. Sendo a obra de arte “apenas um substituto enquanto a beleza da vida for deficiente”, no dizer de Mondrian, cabe-lhe revelar esteticamente, no espelho em que nos reflete, a matéria da nossa humanidade. É isso que a escritora faz com um estilo muito femininamente atual, atrever-me-ia eu a dizer. No percurso literário de Dulce Maria Cardoso, com a singularidade que caracteriza a sua obra no panorama literário português, gostaria no entanto de traçar um ramo genealógico com Virgina Woolf. Mulheres-escritoras de universos espácio-temporais muito diferentes, cada uma a seu modo escreveu/escreve romances, narrou histórias que fogem à linearidade cronológica e se desenvolvem dentro e fora do presente e do passado, entrando e saindo da mente das personagens, entrando e saindo dos seus discursos, pensamentos e silêncios. Por outro lado, em Dulce Maria Cardoso parece-me também patente a constatação do absurdo da existência, da fragilidade da linha que separa normalidade e loucura, ser e parecer. As suas personagens, simultaneamente atuais e intemporais na dificuldade de se definirem e de encontrarem um sentido para a vida, inscrevem-se em várias classes sociais, e “vivem”, cada uma a seu modo, a luta entre quem são ou querem ser e aquilo que parecem ou se esforçam por parecer. Vão da senhora que recebe semanalmente as amigas para o chá-canasta formalmente perfeito2, à sua filha, “monstrengo” desolado e mal-amado, envergonhado de si, vítima de desamor e indiferença. Da funcionária de notário, de dias amarfanhados, consolada na desgraça alheia3, à Denise do shopping, personagem-tipo de uma sociedade de escravos. Profundas ou planas, a nenhuma sobrou o brinco de pérola, símbolo da perfeição evolutiva da natureza e ponto de focagem do olhar, no quadro. Campo de Sangue começa: “Estão quatro mulheres na sala. Destas mulheres é preciso saber antes de tudo que estão aqui por causa de um homem que cometeu um crime e que se por acaso se encontrassem na rua não se cumprimentariam.” (p. 9) Chamadas a identificar o homem, filho, ex-marido, amante, hóspede, são definidas pela relação com ele. São testemunhas da vida que ele não teve. São actrizes contrariadas perante os funcionários e o médico que as questiona. As epígrafes iniciais, versículos da Bíblia, falam do pecado de 2 “a minha mãe sentada na sala da casa que hoje vendi com o vestido amarelo-clarinho de pregas que lhe assenta tão bem ou aqui no Salão Princesa, ao fundo nos secadores, com a perna traçada, a folhear uma revista de moda, o dernier cri, in, Os meus sentimentos, p.61. 3 idem, pp.139-151

Judas, que identifica Jesus e, assim, o entrega. As mulheres também foram chamadas para identificarem o homem, o explicarem e, talvez, o entregarem. Ele cometeu um crime que lembra L’étranger, de Camus: “com o calor há sempre quem mate por razões alheias à vontade, o calor ferve o sangue que uma vez derramado é rapidamente pó, um pó que se entranha facilmente na calçada,” (p.27) –indício que surge logo no início da narrativa. Houve um crime, levado a cabo pelo absurdo da existência, pela ilusão que conduziu o homem a confundir a rapariga bonita que encontrara na praia com a outra, semi-marginal, que levou para casa e amou como nunca antes. Cada uma das mulheres “Conta a verdade apesar de saber que a verdade se apresenta de várias formas. Escolhe a verdade dela, a que lhe convém.” (p.164) Porque verdade e realidade dependem de quem pensa, de quem vê, na literatura e na vida. E são as analepses de um narrador que acompanha os pontos de vista das diferentes personagens que nos dão uma visão global da(s) história(s). Cerca de um ano de narrativa, onde todo o passado se encaixa em episódios evocados diversamente por cada personagem. As mulheres são herdeiras de um pecado original. A ex-mulher chama-se Eva. ES no remetente dos postais enviados de férias para o homem (cf. p.25). É a única personagem com um nome no romance. Mesmo o homem, à volta de quem elas se reúnem, não adquire nunca a identidade de um nome. Embora pense: (…) o nome que é o que se diz sempre apesar de dizer tão pouco de cada um, o nome é muito importante, já lho perguntaram tantas vezes, o seu nome por favor e ele diz o nome que lhe puseram aquando da fotografia em que se conhece mais pequeno, a fotografia que só foi feita porque se baptizou outra criança no mesmo dia, os pais da outra criança contrataram o fotógrafo para eternizar a entrada do filho no reino dos céus, os seus ainda não se tinham desgraçado, mas nunca se lembrariam de contratar o fotógrafo, diz ao menos o nome, se disseres o nome pensam que te conhecem.”4 (p.47) Sem o nome como vai o leitor conhecer as personagens? O campo de sangue foi provocado pelo homem. Mas teria sido motivado pela senhoria da pensão decrépita onde vivia? Pela mãe pisada pela vida? Pela mulher-primeira, a Eva protetora (ou que o perdeu?) e nada exigia em troca do tudo 4 Sublinhado meu.

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que dava? Pela rapariga que o levou à loucura? Ou seria o amor que o levou à loucura? Ou o sol, como a Mersault? Os pensamentos de cada uma delas sobre as outras são julgamentos aos quais mulheres sujeitam outras mulheres, num mundo de dominados. Mas também o homem é reduzido à condição de objeto imprestável, depois do crime. O romance, enquanto género literário, continua a explorar este fenómeno da reificação. Todas estas personagens foram reduzidas à condição de coisas, à semelhança dos seres humanos cujas relações se degradaram em valores de compra e troca, nas sociedades contemporâneas imitadas/traduzidas na ficção. Quando a senhoria sai da sala, as três mulheres sentem-se melhor, mais unidas porque ele foi de cada uma delas durante algum tempo, unem-se na posse, cada uma delas o usou em determinado tempo para algum fim, ele foi de cada uma daquelas três mulheres e isso deixa sempre alguma saudade mesmo que nenhuma delas o queira neste momento, ele já não lhes serve, aconteceu o mesmo com uma camisola de que a rapariga gostava muito, deixou de lhe servir e a rapariga deitou-a fora, a ex-mulher desfaz-se de muitas coisas no lixo ou nas obras de caridade conforme lhe apetece, a mãe deixou que a máquina de costura se avariasse porque já não lhe serve para nada. Mas cada uma das três mulheres culpa as outras e é isso que as desune, atiram para as outras o dever de o salvar, é acima de tudo a culpa que as desune. A mãe culpa a ex-mulher por o ter desencaminhado antes, na noite do corte de electricidade, e depois. A mãe tem a certeza de que a ex-mulher o fez pecador e um pecador acaba sempre mal, a menos que se arrependa. Para a mãe a ex-mulher ainda vive em pecado e dificilmente se arrependerá, é disso que os olhos opacos da mãe a acusam, e é também disso que fogem porque o pecado é guloso, anda sempre à procura de novos corpos. A ex-mulher culpa a mãe por não amar o filho, por não o amar como uma mãe deve amar um filho. Se o amasse como deveria nunca teria deixado de acreditar que o filho podia ser alguém na vida, nunca o teria deixado dormir em restos de lençóis por bordar, os que sobravam e que lhe davam azar aos sonhos. Se a mãe o amasse como devia teria acreditado que eles podiam ser felizes e a mãe nunca

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acreditou. A mãe não sabe o esforço que a ex-mulher fez para o salvar, a ex-mulher não sabe o esforço que a mãe fez para que ele fosse alguém, uma da outra sabem apenas a culpa de que se acusam apesar de nunca terem falado nisso, sabem o que pensam uma da outra e até o que pensam da rapariga que não conhecem. Nenhuma delas gosta da rapariga. Algumas razões coincidem, outras não. (pp.202-203) São razões mesquinhas de ódios entre mulheres que se enfrentam pela posse do homem, das que conhecemos da literatura, do cinema e da vida. Mulheres que suportam papéis familiares predestinados mas nem sempre assumidos, papéis turvos onde se perdem de quem são, na preocupação de cumprirem a regra social. A rapariga não gosta delas mas não as culpa. Carrega na barriga a culpa mais pesada que pode sentir, aquele filho é um estúpido acidente na vida que escolheu, daqui a quatro meses livra-se finalmente daquele contratempo e descansa. 113

Mas apesar de tudo sentem-se cúmplices porque todas o tiveram e usaram da forma que lhes deu jeito. E como cúmplices têm um entendimento secreto sobre o crime que cometeram.” (p.204) O crime dele foi um crime delas. São parceiras de jogo. O narrador oscila entre os seus pontos de vista. Os campos de sangue associam-se. Real e virtuais. O crime que lança o romance fez-se mais verdadeiro porque passou na TV, foi noticiado em todo o fulgor da sua ficção nos jornais. O que a senhoria contou e os meios de comunicação revelaram é um conjunto de mentiras fabricadas pelo homem no tempo todo que lhe sobrava da vida que não tinha que “ganhar”. Na sala de espera onde Eva fica sozinha enquanto as outras almoçam, ela pensa o seu ódio pela rapariga e há outro homicídio que não chega a acontecer, o do filho do homem, tem a rapariga deitada no centro da sala e a criança já foi expelida em bocados ensanguentados que estão pelo chão. Mais tarde tem de se reconstruir tudo para se ter a certeza de que a criança está completa, as mãos da rapariga querem agarrar os bocados espalhados, grita, são meus, os bocados do meu filho são meus, falta pouco para que a rapariga se esvaia em sangue, jorra muito sangue

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da boca do corpo, o sangue é quase bonito, uma cereja esmagada que escorre, a rapariga tem o útero rasgado para sempre, nunca mais poderá passar a mão pela barriga, o desprendimento tem sempre um preço, a ex-mulher guarda os bocados da criança, bastará um saco de plástico, um caixão branco de anjinho, um saco de plástico, (p.134)

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Outro crime por cometer, o do homem, no dia de festejar o aniversário da mãe, dividido entre deixá-la ou não morrer com o gás do forno avariado. “Não sei o que faça mãe, a mãe sempre soube o que se devia fazer, o que ficava bem que se fizesse, (…) não sei o que faça, mãe (…) acordo-a ou deixo-a morrer, mãe,” (p.113)5. O monólogo não verbalizado é um homicídio por omissão, num mundo onde o pecado reina (vd. p. 238). Entre o homem e cada mulher da sua vida há um comportamento específico. Repetido como para fundar a relação, mas sublinhando a discrepância entre o que é um comportamento e o que são os pensamentos e sentimentos que atravessam as personagens, na lucidez com que o narrador as conta, adotando os vários pontos de vista. O homem e a ex-mulher “portavam-se como amantes”, leitmotiv repetido ao longo da narrativa. “Ambos gostavam de se comportar como amantes, não tendo a obrigação de fingir que se amavam, de se mostrarem felizes. Não se conseguiam afastar porque a única obrigação que tinham era de se portarem como amantes.” (p.25)6 A sua relação não é aquilo que parece, não corresponde aos comportamentos observáveis. Daí a ferida de Eva, preterida, enganada, esquecida, limitada à vida interior, às suas invenções, aos três níveis de água e de azul de que diz necessitar para viver. O homem e a rapariga “portavam-se como apaixonados.” Andavam abraçados na rua. Beijavam-se. Riam de tudo. Não achavam nada de que não gostassem. Falavam ao mesmo tempo e forçavam coincidências. Quando se deitavam provocavam o desejo com medo de adormecerem sem se terem amado. Quando isso acontecesse a ilusão desfazia-se e a verdade apareceria intolerável. Seriam apenas dois corpos que não sabiam o que faziam ao lado um do outro.” (p. 179) O homem e a mãe: “Portavam-se como desconhecidos. (…) portavam-se como estranhos mas nunca sentiram necessidade de se portarem de forma diferente.” (p.97) 5 Novamente na p. 120.

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Vd. por exemplo, pp. 167, 206

Quem o visse pensaria que era um filho dedicado que ia visitar a sua mãe e com este engano aos olhos dos outros veio o prazer de se parecer com quem nunca foi, de se aproximar duma pessoa que poderia ter sido. (…) e soube que nunca poderia parecer um filho dedicado porque era necessário que a mãe também se parecesse com uma mãe com saudades do filho, uma mãe contente por ver o filho, e isso não acontecia. (pp.101-102) É sempre um jogo de papéis de cada mulher na vida do homem; dele na vida delas. A permanente ideia de que nada vai para além de uma aparência de normalidade que, nem mesmo ela se consegue, por vezes, inventar. A mãe gastou-se a bordar os enxovais de noiva de que sobreviviam, deixou de existir como mulher, como ser humano. “Há muito tempo que a única coisa que a mãe quer é repetir todos os dias os mesmos gestos até ao dia em que já não precise de os fazer.” (p.191) Mecanismos de autómato, não de gente. Elas reificaram-no, como ele as usou. Todos parecem alguém que não são de facto, e sofrem o absurdo desse desvio. A construção das personagens pelo discurso do narrador confunde o leitor naïf que tenderá a justapor narrador e personagem narrada, pela frequente sobreposição do ponto de vista de quem conta com o da personagem sobre quem se conta. DMC é exemplar na subtil passagem entre a voz de um narrador heterodiegético e omnisciente, para a de um narrador homodiegético, personagem e voz narrativa que evidencia o ponto de vista de um participante na história. Assim, é curioso notar que a proposição: “um amor tão exagerado, quase uma doença,” seja assumida por várias vozes, e que a ideia expressa se modifique na alteridade: “um amor tão exagerado, quase uma doença,” pensava o homem do sentimento da ex-mulher por si (p.175); pensou depois do seu amor pela rapariga bonita. (cf. pp. 176, 195, 199, 200, 220); pensa Eva, já no final da relação, do amor que dedica ao homem (cf. p. 213). O amor pode ser excessivo? Pode ser doentio? Pode camuflar o absurdo da sua ausência? Eva sabe que “A verdade é sempre muito difícil de compreender. A mentira é sempre mais compreensível, mais lógica, mais correcta como tudo o que é construído.” (p. 146) Como a ficção é mais compreensível que a realidade. A literatura é uma construção estética que imita o mundo, revelando-o. Mas o discurso do narrador e os pontos de vista que adota neste romance mimetizam, de certo modo, a confusão de cada ser enredado em relações familiares e sociais múltiplas e a ausência de nomes joga a favor da

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própria confusão do leitor. A rapariga assustada com o “novo” homem que a dada altura se revela, sabe que os tarados nunca parecem o que são, é por isso que enganam as vítimas tão bem, (…) um pobre coitado ou um tarado perigoso, podia ser as duas coisas, olhou bem para ele, não teve dúvidas, era apenas um pobre coitado, (…) a rapariga bonita pensava em deixá-lo quando lhe deu a mão e aceitou casar-se com ele,” (pp. 222-223) O pobre coitado revelou-se afinal um criminoso. A rapariga mentiu. Todas elas mentem. Para se defenderem. Para sobreviverem. Para acreditarem que são alguém que não são. uma mulher que aceita em casa um homem sem se casar só pode ser uma, nessa noite Eva disse-lhe que passava em frente do muro por causa dele, os olhos meigos de Eva pediam-lhe que ele também mentisse para que se amassem desde sempre, mas ele ficou calado e Eva desistiu do que queria inventar (p.132) São as palavras que não se dizem que prevalecem. Sempre. Quando Eva se cruza com a ex-sogra num corredor do hospício, a caminho do depoimento: A ex-mulher escolhe as palavras. As palavras que surgem são as que sempre quis dizer, que são as únicas que não serão ditas. Procura outras. Tem pouco tempo e está nervosa. (…) as duas mulheres têm pouco tempo para corrigir o silêncio de que se fez o passado.” (p.146) Quando fala com o médico que avaliará se o homem deve ser julgado pelas leis dos homens ou pelas leis de Deus: o médico nunca poderá compreender o pacto deles. Ninguém pode compreender. Escolhe as palavras que não pode dizer. Precisamos um do outro para nos enganarmos. Sobrevivemos ao bairro e os sobreviventes nunca são boas pessoas porque apesar de tudo sobreviveram. Uma boa pessoa sucumbe se vê coisas terríveis. Ele nunca me amou, eu nunca o amei. Ele amou-me e eu amei-o. Somos dois casos perdidos. Precisávamos um do outro para fingir coisas diferentes. (p.165) A vida destas mulheres faz-se de silêncios, de ilusões que fabricam e consomem. Está cheia do lixo de que cada uma se desfaz a seu modo.

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Os meus sentimentos é um longo stream of consciousness, refletindo as incoerências do fio da consciência humana, colada à voz da narração, aparentemente liberta de controlo exterior. Um texto construído na mente da protagonista autodiegética, que o leitor encontra, logo no início do romance, no momento do acidente e da morte anunciada no título, e realiza uma longa analepse, em que a própria voz mimetiza outras e se vai respondendo, no eterno diálogo que tece uma mulher, consigo própria e com o mundo. inesperadamente não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, durante algum tempo, segundos, horas, não sou capaz de mais nada, inesperadamente paro a posição em que me encontro, de cabeça para baixo, suspensa pelo cinto de segurança, não me incomoda, o meu corpo, estranhamente, não me pesa, o embate deve ter sido violento, não me lembro, abri os olhos e estava assim, de cabeça para baixo, os braços a bater no tejadilho, as pernas soltas, o desacerto de um boneco de trapos, os olhos a fixarem-se, indolentes, numa gota de água parada num pedaço de vidro vertical, não consigo identificar os barulhos que ouço, recomeço, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, são tão maçadoras as legalengas (p.9) Nas frases entrecortadas, o discurso suspende-se, por brancos na folha. E reproduz, num monólogo/diálogo interior de cerca de 300 páginas, a história de vida da personagem da mulher morta no carro, e as histórias, por ela imaginadas, daqueles com quem se cruzou. Imaginadas, porque a focalização interna da protagonista implica a focalização externa das outras personagens. Mas neste romance essa restrição parece, por vezes, ultrapassada. Daí o leitor ser arrastado num turbilhão de palavras em que não pode deixar-se confundir. Os discursos direto e indireto livre de outras personagens, inscritos entre as palavras de Violeta, figuram memórias dos outros nela e a confusão dos pensamentos numa consciência aceleradamente a atingir o fim. Como nos relatos de sobreviventes a naufrágios, afogada no temporal, nos segundos que precedem a morte, a narradora improvável, revê a vida numa longa analepse, onde outras se encaixam. E o romance conta a memória das emoções e conce-

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ções da mulher gorda a quem a vida aconteceu ao lado, a quem a vida impôs um destino que lhe roubou a vida. Porque “quando nos põem numa vida não sabemos ter outra” (p.28, 122, 156, 181) “quando nos põem numa vida temos de a levar para todo o lado” (p.139) “quando tentamos fugir da vida em que nos puseram acabamos por nos perder” (p.140) ”quanto mais queremos fugir da vida que temos mais ela se agarra a nós” (p.150). Um discurso interrompido aleatoriamente por ideias mais íntimas, ou por frases feitas, ou pela vox populi… “as regras de educação e de cortesia devem manter-se sempre que possível” (p.138); “uma senhora deve em qualquer circunstância ser chic, très chic” (p.189) “não houve rapaz deste bairro com quem não tenha ido até que se meteu com um retornado preto e já mais nenhum a quis” (p.90) É a ficcionalização de alguém que, podendo ter tido tudo, pouco ou nada teve, pouco ou nada foi: “a menina é má, a menina é uma menina mesmo muito má” (p.23, p.147) dizia a criada, vítima de todos, da criança com o estigma da rejeição dos pais: “esta miúda faz tudo para nos aborrecer”; “esta miúda faz sempre o que não deve”; “com esta miúda ninguém consegue fazer nada, nem sequer morrer” (p.159). “a vergonha que o teu pai tem de ti, Violeta” (p.31) “o meu pai tinha vergonha da mostrenga em vez de ter vergonha do bastardo” (p.188). Depois, a sua própria filha que não lhe chega a dizer “os teus pais não gostavam de ti porque não merecias, eu não gosto porque não mereces” (p77). E os últimos a vê-la: os rapazes calam-se por segundos quando me vêem, e depois, um deles, tanto faz, são todos parecidos, diz large, extra extra large, todos se riem, ainda a gargalhada não se desfez e já estão enredados em suposições, come para aí o triplo de uma pessoa normal, pode ser uma doença, a cama, já imaginaste a cama era uma mulher tão gorda, tão gorda, que quando caía da cama caía para os dois lados (pp. 20-21) Vamos encontrá-la só, no momento final da vida, em trânsito entre a casa que deixou de ter e a que não poderá, portanto, voltar e a casa de uma cliente. Entre o passado e o infinito… inesperadamente não sinto dores, não tenho medo, os meus olhos afogados na gota de luz, os meus ouvidos um albergue de grilos, neste momento posso já não existir aqui

este momento pode já não existir para mim (p.10) Se a narração depende da voz e da organização que o narrador impõe à história, há, neste romance, marcada pelos deíticos e pela focalização interna, uma exacerbação da subjectividade do que é narrado, na medida em que se anula a distância entre quem conta e o que é contado e se encurta também esse espaço com quem lê, empaticamente ou com a objectividade do leitor literário experiente. Por outro lado, a predominância da utilização do presente do indicativo para todos os tempos da história, compacta o tempo no momento da morte, o momento da narração, um tempo que escapa à cronologia: sei de tudo num tempo que não é este que está a passar, nem o que já passou, nem o que vai passar, um tempo planificado, acessível por inteiro como as estradas dos meus mapas, o tempo finalmente cartografado como as terras dos mapas, sítios que só existem para me esperarem, tempos que só existem para que eu os percorra, de cabeça para baixo, suspensa pelo cinto de segurança, num momento em que posso já não existir, num momento que pode já não existir para mim (pp. 215-216) Nos tempos de fim de um império cresceu Violeta, a filha de Celeste, a mulher que usa o Francês para parecer distinguée. Presa na teia das aparências, afivelada ao mundo colonial moribundo, Celeste pertence ao tempo da História onde se inscreve a ficção, na medida em que representa um sector da sociedade portuguesa que passou a viver em função do passado, descolado do real. A gorda vitimizada é a mãe de Dora, o anjo que salvou os avós. É ainda a vendedora de ceras depilatórias, a melhor, num combate desigual contra os lasers espanhóis. De entre as personagens secundárias, lembro as personagens-tipo Denise e Betty, clientes das ceras – nomes marcados de um mundo dos salões de estética, como as raparigas do Salão Princesa, de outros tempos, Denise com o seu escravo ucraniano, Betty na vivenda clandestina, com a profissão clandestina, a vida clandestina. E Maria da Guia, a criada da mãe que a criou a ela, que se matou a ser criada e não chegou a ser mulher, que contava a Violeta a história da sua infância e dos muitos irmãos, dos mortos em pequenos e da mãe que foi vendendo os outros por falta de pão e amor para dar. Violeta atravessa a vida e a história quase sem

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saber o que é o amor.

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com uma charada e 7

conheço o amor de ouvir falar

um nome de flor que também é uma cor

um corpo a repousar sobre outro corpo, a respiração acertada peito contra peito, uma mão caída e logo outra que a segura, o silêncio que cobre os corpos transpirados, pode o amor ser isto, pode o amor

bêtises ma chérie, bêtises

os rapazes gostavam de mim nas matinées ser esta paz da carne saciada (p.41) Só a maternidade a faz descobri-lo: “nasceste para que eu soubesse como é o amor que só conhecia de ouvir falar” (p.280). Muitas mulheres e algumas figuras masculinas: Baltazar, o pai, homem do regime salazarista que matava os gatos do quintal com leite envenenado, que esmagava os pássaros das gaiolas e queimava os bichos de olhos de vidro esbugalhados, espantados com a morte. (vd. p.39) Tal como o homem de Campo de sangue, também esta personagem masculina é desresponsabilizada pela loucura. o teu pai não está maluco, nunca mais te quero ouvir a dizer semelhante disparate o meu pai não enlouqueceu, foi apenas um hábito que tomou conta dele, a loucura é um abismo, não um caminho que se faz com mais ou menos vagar, o teu pai está bem, só precisa de estar sozinho, nada mais do que isso, não te quero ouvir a repetir os disparates que ouves na rua, e eu não repetia, e com o tempo ganhei o hábito de considerar tudo normal, (…) o meu pai nunca ficou xexé como o Ângelo diz, é tão maldoso o Ângelo, (p.103) Ângelo é o meio-irmão, o bastardo que vingativamente acusou o pai na época da revolução, o fantoche lamentável que matou o pai de ambos com a negação da paternidade ensinada pela mãe (outra mulher na sombra esconsa de uma espelunca de amante). “para se vingar o seu filho deitou-se com a mostrenga da irmã” (p.173) “engravidar a irmã mostrenga” (p.265). Vozes do mundo e personagens sem força própria, movidas pelas mulheres que os rodeiam e lhes inculcam os sentimentos a ter. E ainda os figurantes, sombras dos rapazes e dos homens dos momentos do sexo. A crueldade dos olhos e das palavras: “olha para aquela gorda perdida de bêbeda” (p.12, p.53). “este aspecto e ainda por cima bêbeda” (p.25) a todos os homens com quem fui e que calharam perguntar-me o nome respondi sempre 7 p. 41, p. 50, p. 52, p. 251

nunca nenhum acertou, talvez fosse estranho, talvez tivesse achado realmente estranho se tivesse pensado nisso, não pensei, até ele todos os homens que tentaram adivinhar, responderam Rosa, a maior parte não arriscou, sorriu e pôs-se a andar, queriam lá saber o meu nome, era só uma pergunta, a mais comum, para afastar o silêncio, o embaraço, a vergonha de terem estado dentro de uma mulher como eu, nunca conheci nada mais desapiedado do que a carne saciada, o que é certo é que até esta noite, até ele, todos os homens tinham respondido Rosa, um erro de que gostava, outro nome e não era eu que ali estava mas a tal Rosa, uma criatura que chegava a lamentar quando me dava para isso. (…) e se nunca mais tiver lugar em mim, se nunca mais me pertencer, por que me deixo morrer, por que me mata a avida acelero em direcção ao infinito que se tornou o meu destino, (p.13-15) Só o último homem, que Violeta não sabia ser o último, acertou. E talvez o facto de ser finalmente nomeada por um homem de passagem, a tenha feito aproximar daquela que o nome designava, de quem ela era, reduzindo-a ao monte de carne do desenlace. “O inferno são os outros.”, disse uma personagem de Sartre. Este romance é uma demonstração do aforismo. “o inferno é o esquecimento” (p.166) diz a narradora. E o romance é um combate da memória. As raparigas e mulheres que figuram na obra de Dulce Maria Cardoso não têm a sedução do brinco de pérola a focar o olhar do leitor ou, dito de outro modo, não têm o encanto da simplicidade de vidas feita de acasos naturais, sem contornos trágicos. Mas também, como vulgarmente se diz e dos contros tradicionais se conclui, os amores/vidas felizes não têm história. Eva, Violeta, Dora, as outras (e nós) situam-se na zona do arco-íris entre uma rapariga de Vermeer e a redentora e tristemente solitária heroína tecnológica. As suas histórias, contadas maioritariamente por vozes femininas, estão ancoradas por informantes (quase transformados em indícios) nos nossos dias, em vagos espaços nacionais: a grande cidade, o bairro periférico, a zona litoral, a aldeia do interior… Cada leitor visualizará a

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sua Lisboa, Marvila, Caparica, Estoril, Forcalhos... “quando nos contam uma história ouvimos sempre outra” (p.29, p.289) diz a voz da narração em Os meus sentimentos. É o contributo da nossa subjetividade. Estas personagens são contemporaneamente trágicas porque efémeras, sem heroísmo, numa sociedade que, sendo de massas, é esquizofrenicamente individualista. As narrativas reproduzem a ideia de identidades problemáticas, errantes na confusão das cidades onde os caminhos se multiplicam e o indivíduo se perde. São personagens que figuram a precaridade das relações e a liquidez da sociedade onde o absurdo da velocidade quotidiana asfixia a vida: mulheres à deriva, sem as âncoras de laços duradouros, à procura de si na desordem do mundo. Steiner diz que “Um intérprete é um decifrador e comunicador de significações. É um tradutor entre linguagens, entre culturas, e entre convenções de representação.” (Steiner, 1993:19) Na realidade, os textos de Dulce Maria Cardoso não necessitam intérpretes, apenas leitores. Esta comunicação pretende apenas contribuir para contagiar o prazer de os ler. Referências Bibliográficas CARDOSO, Dulce Maria, (2002) Campo de sangue, Alfragide, Edições ASA. (2005) Os meus sentimentos, Alfragide, Edições ASA. . Steiner, Georges (1993), Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença.

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A inscrição do feminino e dos afetos na emoção e na razão da poesia escrita por mulheres Moíza Fernandes Almeida* Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) (Brasil)

Resumo: Em nosso artigo analisaremos poemas das poetisas brasileiras Darcy França Denófrio, Lília Pereira da Silva e Raquel Naveira com base no Construtivismo Radical que norteia nossa pesquisa na busca de compreender a “realidade” e o sujeito epistemológico por trás do eu lírico, suas impressões do feminino, sua inscrição social e seus afetos, afinal, segundo os estudos desta teoria, não há outra alternativa para o indivíduo a não ser construir o que ele/ela conhece nas bases da sua própria experiência, pois, aquilo que fazemos da experiência constitui o único mundo onde vivemos de forma consciente (GLASERSFELD, 1995). De acordo com este ponto de vista, o sujeito não pode transcender os limites da experiência individual a refletir seu estar-no-mundo, da mesma forma, a poesia com suas metáforas reconstroem-no e geram outras tantas imagens simbólicas que possibilitam nosso autoconhecimento, em uma inter-relação entre o tempo e a ação que cria a impressão de que a humanidade é capaz de “fazer” sua própria história (Gumbrecht, 1998). Abordaremos também as questões da neurociência que nos esclarecem que sem uma mente dotada de subjetividade não poderíamos saber que existimos, e muito menos quem somos e aquilo que pensamos. Se a subjetividade não tivesse surgido, a memória e o raciocínio provavelmente não teriam se expandido de forma tão prodigiosa e o caminho evolutivo para a linguagem e para a elaborada versão humana da consciência não teria sido aberta: “O amor nunca teria sido amor, apenas sexo. A amizade não passaria de uma mera vantagem cooperativa. A dor nunca se teria tornado sofrimento, [...] o prazer nunca viria a se tornar alegria” (DAMÁSIO, 2010, p. 20). Nosso artigo é uma reflexão sobre a Poesia, um conversar sobre a inscrição do feminino, dos afetos, da emoção e razão que impulsionam nosso estar no mundo.

Tudo é dito por um observador – Humberto Maturana No cenário mundial do século XXI, a prosa aparenta ser o único sinônimo de Literatura, contudo a poesia não se transformou em algo do passado, ela continua viva e a promover uma aventura *Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ex-bolsista da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior de doutorado sanduíche pelo programa de cooperação internacional entre PUC-Rio e Universidade de Copenhagen, DK. E-mail: [email protected]

invejável, ao fazer da vida conhecimento e devolver vida ao conhecimento através das confissões em primeira pessoa do sujeito lírico, suas histórias, suas emoções e seus afetos. Afinal, ela [...] se rende e se aumenta no esforço de interpretar o mundo, mas esse mundo interpretado é o universo coletivo dos homens, e seus problemas não apenas a afetam – como chegam a criá-la. A primeira pessoa do singular é hoje mais do que nunca uma primeira pessoa do plural. E assim o “tempo interior”, ele próprio,

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pois se a lírica se dedica a pensar o social, devota-se a pensar História, e faz matéria sua a temporalidade feita pelos homens: eis o tempo íntimo confundido e engrandecido com o próprio tempo da História. A poesia se torna então crítica da sociedade (MERCHIOR, 1965, p. 154).

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A Poesia, semente do novo, carrega marcas da inscrição do sujeito lírico por trás da mancha no papel, na escrita de poetisas contemporâneas e seus olhares múltiplos sobre o mundo. Para falarmos da poesia e do feminino, selecionamos quatro poemas de língua portuguesa retirados da obra de quatro poetisas: Darcy França Denófrio (1936, de Jataí - Go - Brasil); Ana Luísa Amaral (1956, de Lisboa - Portugal); Lília Pereira da Silva (1926, de Itapira - SP - Brasil); e Raquel Naveira (1957, de Campo Grande - MS - Brasil). Os poemas ampliam suas vozes para além do cânone e nos proporcionam repensar afeto, emoção, razão e nosso estar no mundo à luz dos estudos do Construtivismo Radical e de pesquisadores como António Damásio, Humberto Maturana, Michel Foucault, Óscar Gonçalves entre outros. Reflexões sobre o humano Não existe o humano fora do social - Humberto Maturana Para organizarmos nosso conhecimento de mundo e nos situarmos nele é preciso indagarmos sobre o que é a mente, o que conhecemos e como conhecemos e, desta forma, compreendermos: “como vivemos, de fato, em um espaço psíquico, e como esse viver modula a dinâmica do nosso sistema vivo e vice-versa” (MATURANA, 2002, p. 107). Depois das descobertas da neurociência1, o dualismo mente versus corpo perdeu terreno para a visão do homem integral, multifacetado, ligado a sua biologia, mas muito mais a cultura a que pertence. Contudo, somos ainda fortemente influenciados pela visão dualista que esteve presente em nossa cultura em concepções, como por exemplo, as de Platão que distinguia matéria e forma, Kosmos aisthetos e Kosmos noetos, corpo e razão, e, principalmente, nas epístolas de São Paulo que marcaram decisivamente a tradição ocidental com distinções entre alma e corpo, espírito e matéria, 1 A neurociência faz parte das chamadas “ciências cognitivas” e seu campo é bastante vasto e heterogêneo por isso, não é nossa intenção abarcá-lo em toda sua multiplicidade, mas apenas nos aspectos da formação da mente inteligente que dão base para repensar a linguagem e o eu lírico.

bem e mal, entre tantas outras dicotomias. Descartes (1596-1650) com sua máxima “Penso, logo existo” relacionou a razão como traço distintivo do espírito humano a representar a clareza do pensamento e a competência dedutiva enquanto que a emoção conota a obscuridade e a vida menos disciplinada das paixões. Segundo essa lógica, para se alcançar os melhores resultados, as emoções teriam de ficar “de fora”, pois o processo racional não deveria ser prejudicado pela paixão. Tal pensamento leva-nos a Maturana (2002, p. 12) que diz que: Todos os conceitos e afirmações sobre os quais não temos refletido, e que aceitamos como se significassem algo simplesmente porque parece que todo o mundo os entende, são antolhos. Dizer que a razão caracteriza o humano é um antolho, porque nos deixa cegos frente à emoção, que fica desvalorizada como algo animal ou como algo que nega o racional. Quer dizer, ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional. “Antolhos” são também uma boa tradução para a visão do sujeito homem a representar a parcela racional e da mulher, a emocional, como se possível fosse entender a “razão” separada da “emoção”. Não há como negar que inda subestimamos nossas mentes e o funcionamento de nossos corpos, e não nos darmos conta que o cérebro em constante e profunda comunicação com o corpo é o responsável pelos sentimentos que nos surpreendem com um mundo de emoções. Para Damásio (1996, p. 282): A perspectiva da “razão nobre”, que não é outra senão a do senso comum, parte do princípio de que estamos nas melhores condições para decidir e somos o orgulho de Platão, Descartes e Kant quando deixamos a lógica formal conduzir-nos à melhor solução para o problema. Um aspecto importante da concepção racionalista é o de que, para alcançar os melhores resultados, as emoções têm de ficar de fora. O processo racional não deve ser prejudicado pela paixão.

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A mente é fruto do cérebro; fruto de uma combinação refinada e fluida de imagens do presente e recordadas em proporções que variam constantemente, em uma inter-relação lógica, que se formam mesmo quando não temos consciência delas e, em muitos casos, essas imagens conseguem influenciar o nosso pensamento e nossas ações. Embora as emoções sejam considerados entidades diáfanas, incapazes de partilhar o palco com o conteúdo palpável dos pensamentos, não parece sensato exclui-las de qualquer concepção geral da mente, haja vista que “os sentimentos são tão cognitivos como qualquer outra imagem perceptual e tão dependentes do córtex cerebral como qualquer outra imagem” (DAMÁSIO, 1996, p. 190). Conta-nos o autor, ainda, que a consciência está entre os mais espantosos, fundamentais e, aparentemente, misteriosos constituintes do nosso ser; sem ela, ou seja, sem uma mente dotada de subjetividade, não poderíamos saber que existimos, e muito menos quem somos e aquilo que pensamos. Se a subjetividade não tivesse surgido, a memória e o raciocínio provavelmente não teriam se expandido de forma tão prodigiosa e o caminho evolutivo para a linguagem e para a elaborada versão humana da consciência não teria sido aberta: “O amor nunca teria sido amor, apenas sexo. A amizade não passaria de uma mera vantagem cooperativa. A dor nunca se teria tornado sofrimento, [...] o prazer nunca viria a se tornar alegria” (DAMÁSIO, 2010, p. 20). Marcas do feminino na poesia contemporânea Foi escrevendo que descobri que sou uma mulher – Darcy França Denófrio Mulher e homem são iguais na essência de sua humanidade, contudo diferentes no a-temporal da sua condição de ser feminino e masculino; juntos formam o equilíbrio social que deve ser justificado pela via da igualdade e não da diferença (CASTRO, 2000). Desta forma, os gêneros masculino e feminino devem ser pensados como uma dimensão relacional haja vista que o ser humano é ser feminino e ser masculino, cujos papéis são moldados pela sociedade, frutos de uma escolha cultural. Para Castro (2000, p.5): Apesar das condições adversas e anti-naturais criadas pelo domínio histórico do mundo masculino [...] as mulheres nunca deixaram de afirmar, paulatinamente ou não, a sua condição de ser feminino. Foi um estar tantas vezes

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obscuro, sem deixar por isso de ser vital, como as plantas que nascem em terrenos áridos. Como um imperativo da natureza, na busca incessante pelo equilíbrio, a mulher foi emergindo pela afirmação da sua condição de ser humano e da sua identidade de ser feminino. Tais condições adversas e antinaturais de que nos fala Castro são também matéria da poesia escrita por mulheres e suas histórias se delineiam por trás do sujeito lírico; histórias que não se encontram em livros, mas retratadas por vozes esquecidas a margem do cânone que reportam múltiplas realidades e nos remetem a pensar o que diz Gonçalves (2002, p. 31): “Os tempos foram-se encarregando de mostrar que os indivíduos, que a ciência tomava como objetos, eram sobretudo projectos, isto é, seres em constante movimento no espaço relacional e que era neste espaço que, longe de encontrarem uma identidade, eles constituíam uma autoria.” As exigências da “multirealidade” (GONÇALVES, 2002) obrigam a acertos de ângulos; a rever vozes de poetisas esquecidas na invisibilidade do cânone literário, a fim de renovar nossa visão ampliada na alteridade. Pensar no conceito de identidade e de autoria que a multirealidade do século XXI convoca, faz-nos revisitar a poesia escrita por mulheres, a começar pelo poema Sou X “sou’” de Darcy França Denófrio (1980, p. 14) e sua visaõ da civilização como um lugar de desconforto: Eu sou o que não sou: peias e amarras da civilização. Eu sou “eu” Censurado, amordaçado, por milhões de mãos. Eu sou rio subterrâneo que desviaram de curso [...] Eu sou cérebro mais que coração. Eu sou mentira mais que verdade.

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Eu sou tristeza no dia da alegria. Eu sou alegria no dia da tristeza. Eu sou paradoxo: sou e não “sou”.

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Peias que tolhem a liberdade dos pés, amarras de uma forçosa ortogénese, ainda assim, o eu lírico flui por debaixo do muro invisível das coações a que se vê atado como voz de denúncia; existe um código velado de interditos que transforma o eu lírico em um eterno cativo; sentimento que reporta a civilização como um lugar de desconforto, mas, ainda assim, o eu lírico é agente capaz de perpassar o muro invisível das coações a que se vê atado. Para Foucault (1994, p. 103): “não se deve imaginar um mundo do discurso partilhado entre o discurso aceito e o discurso excluído ou entre o discurso dominante e aquele que é dominado, mas uma multiplicidade de elementos discursivos”. É preciso restituir posições de poder e permitir que as pessoas tenham direito à voz: Os discursos, tal como os silêncios, não são de uma vez para sempre submetidos ao poder ou erguidos contra ele. Há que admitir um mecanismo complexo e instável em que o discurso pode ser ao mesmo tempo instrumento e efeito de poder, mas também obstáculo, estribo, ponto de resistência e partida para uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder e permite impedi-lo de avançar. Do mesmo modo, o silêncio e o segredo albergam o poder, fixam as suas interdições; mas também afrouxam as suas influências e proporcionam tolerâncias mais ou menos obscuras (FOUCAULT, 1994, p. 104). Segundo Elias (2006) quando hoje refletimos e tentamos elaborar teorias acerca da estrutura dos afetos humanos e dos controles sociais, partimos da assunção tácita de que é possível construí-los a partir de nossa própria sociedade, tal como se apresentam aqui e agora. No entanto, se os juízos de valor podem parecer evidentes, o mesmo não ocorre com os fatos a que se referem e isso acontece, em parte, porque os estudos empíricos das transformações operadas a longo prazo nas estruturas da personalidade e, especialmente,

nas regulações dos afetos dos homens, em geral, perderam-se de vista. A formação da estrutura do “Ser lírico” conota sua imagem fictícia – na qual “sendo”, ainda assim, “não é” – tal qual uma máscara que o permite ser múltiplo e, ao mesmo tempo, ser único. Tal fato leva-nos a origem do termo “pessoa” e ao reconhecimento de que todo homem está sempre em todo lugar, a representar um papel. Através desses papéis é que nos conhecemos uns aos outros e a nós mesmos. A máscara, que nos esforçamos por representar e viver, torna-se nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser, como uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade (GOFFMAN, 1985). Outro poema que busca desvelar o universo interior do que move paixões e dá a tônica da existência é trazido nos versos abaixo, da poetisa lisboeta Ana Luísa Amaral (2005, p. 63): A química do cérebro é cruel, ao desdobrar-se em espaços de pensar, microscópicas teias de sentir E devia ser só robótico painel: capaz de funcionar logicamente, reagir à tristeza emitindo sinais, sedosos bips de intensidade igual. A química do cérebro é cruel ao misturar as certezas pensadas a notas de ternura musicais. Devia ser capaz de ignorar a dor, bloquear a angústia em cantos sem lembrar, amarrar o amor a postes de neurónios e deixa-lo morrer, esquecido e só. E depois exultar com a vitória: o calcanhar bem firme na serpente, a técnica em ardente e claro ceptro. Nas palavras do eu lírico: “E devia”, mas há “programas” em nosso cérebro que teimam em funcionar mesmo quando tentamos desliga-los; há um labirinto que nos deixa perdidos na vastidão dos caminhos neuronais e nos impedem de encontrar a “saída perfeita” para controlarmos nosso sentir, nosso emocionar, a maneira de afetar e de sermos afetados. É essa química que constitui nossos cé-

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rebros, a responsável pelo passageiro clandestino que habita nosso ser, aquele a quem tememos que ocupe a cabine de direção e nos deixe à deriva da dor e do medo: o nosso eu. O que nós experienciamos, conhecemos e vimos a conhecer é, necessariamente, construído pelo nosso cérebro e sua extraordinária química de pensar da qual não controlamos, como nos diz o poema, por isso, ainda que nos esforcemos, não somos capazes de “ignorar a dor” nem mesmo “bloquear a angústia em cantos sem lembrar”; não sabemos como “amarrar o amor a postes de neurónios e deixá-lo morrer, esquecido e só”. Cabe-nos, antes, conhecer nossas emoções, a forma com que nosso cérebro constrói seus mapas – imagens que vão do exterior para o interior do cérebro quando interagimos com objetos, pessoas, lugares (DAMÁSIO, 2010) –; a fim de compreendermos melhor seu funcionamento e assim podermos ser vitoriosos no objetivo de fincarmos o “calcanhar bem firme na serpente” como diz Amaral no penúltimo verso do poema. Segundo Damásio (2010, p. 99): “O desfile da mente é o resultado de seleções feitas com base no valor, inseridas ao longo do tempo”, e nossos sentimentos servem como barômetros da vida: “Não surpreende que seja também por isso, que os sentimentos têm vindo a influenciar as sociedades, as culturas, e todas as suas atividades e artefatos, desde que se tornaram conhecidos dos seres humanos” (DAMÁSIO, 2010, p. 79). Para Aristóteles (2004) o homem tem a tendência instintiva à imitação e é por ela que ele adquire seus primeiros conhecimentos e experimenta o prazer. Não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas, sim, o que poderia ter acontecido, pois a poesia é de caráter mais elevado que a história e permanece no universal enquanto que a história estuda apenas o particular. A missão do poeta consiste mais em fabricar fábulas do que versos, visto que ele é poeta pela imitação e porque imita as ações. A recriação desse universo que dá o tom de um eu lírico perdido entre paradoxos infindáveis, em recriações de narrativas bíblicas e sentimentos de transgressões, autopenitencia, esforços de libertação, busca de redenção e “cura” que trazemos, a seguir, o poema “Pescadora” de Raquel Naveira (1995, p. 34): Afasta-te de mim que sou pecadora, Magôo, Faço sofrer;

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Queria ser bondosa, Delicada, Mas tenho traumas, Alma atormentada, Peito de vulcão. Afasta-te de mim que sou pecadora, Mistura de abismo, Maré E absinto, Oculto nas entranhas Um veneno Que parece mel. Afasta-te de mim que sou pecadora, Tropeço sempre na mesma pedra, Guardo um espinho Fincado na carne. Não queres que me afaste de ti? Bem que te avisei, Sou pecadora, Não é medo, Ah! Se conhecesses o que há em mim, Minha angústia... Ficas Mesmo assim? Tu me tornaste então pescadora, Das que usam palavras Como iscas. Poema de um intenso conflito existencial que coloca o eu lírico perdido entre o desejo carnal e o terror da transgressão. É o que notamos nas palavras colocadas como iscas para o leitor, que transmutam “pecadora” em “pescadora” na qual a resolução para os questionamentos do sujeito lírico recai em um mecanismo místico que pretende redimir o pecado e desejo carnal deste ser que busca esconder do amado suas transgressões que o transformam em angustiosa alma atormentada. Em meio a um pretenso sentimento de autopenitencia, o eu lírico busca solucionar suas angústias, valendo-se (na última estrofe) da analogia entre os termos pecadora/pescadora que sabiamente associa a duas passagens bíblicas2: uma em que Jesus perdoa uma mulher pecadora que lava os Seus pés com lágrimas e a outra, quando Jesus transforma homens simples, pescadores de peixe, em pescadores de almas. Contudo, não é o

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Messias que a absolve e transforma, mas o ente amado. A associação antagônica entre “pecadora/ pescadora” amplia a imagem ambígua da personagem feminina (eu lírico) que embora pareça querer afastar o amante de si ao confessar o “veneno” que esconde em suas entranhas, esta deseja, outrossim, a aceitação do amado ao fazer uso retórico do conhecido mecanismo arrependimento-penitência-absolvição. Voltando aos conflitos psicológicos vividos pelo eu lírico do poema, perguntamo-nos por que o desejo carnal é associado ao pecado, a um sentimento de transgressão que impede o eu lírico de se sentir pleno? Para Foucault (1994, p. 26) é certamente legítimo perguntar por que é que durante tanto tempo se associou o sexo ao pecado, ou melhor, por que é que nos culpabilizamos tanto por dele termos feito um “pecado”? Segundo o autor:

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[...] a pastoral cristã procurava produzir efeitos específicos sobre o desejo, pelo simples facto de o pôr, integralmente e com aplicação em discurso: efeitos de domínio e de distância, sem dúvida, mas também efeito de reconversão espiritual, de regresso a Deus, efeito físico de bem-aventurada dor por sentir no corpo as mordeduras da tentação e o amor que lhe resiste. [...] o homem ocidental sofreu há três séculos efeitos múltiplos de deslocamento, de intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo. Essa reorientação e modificação dos próprios desejos que se refere o autor povoa a busca incessante do eu lírico em Ana Luísa Amaral, Darcy F. Denófrio, Raquel Naveira e a seguir no poema de Lília Pereira da Silva como forma de solução e tentativa de homeostase, de equilíbrio entre o mundo exterior e o vivido pelo eu lírico em cada verso. A necessidade de iluminação e comunhão com o divino vem desde a Idade Média, quando as sociedades ocidentais colocaram a confissão entre os principais rituais de que se espera a produção de verdade. Para Foucault (1994, p. 64): [...] um prazer de contar e de ouvir. [...] uma literatura ordenada à tarefa infinita de fazer erguer do fundo de cada um, entre as palavras, uma verdade de que a própria forma da confissão faz cintilar como sendo o inacessível [...] exame de si próprio que revela, através de tantas impressões fugitivas, as certezas

fundamentais da consciência. A obrigação da confissão [...] está tão profundamente incorporada em nós, que já não a entendemos como o efeito de um poder que nos constrange; parece-nos, pelo contrário, que a verdade, no mais secreto de nós próprios, não ‘pede’ outra coisa senão fazer-se luz. [...] a verdade não é livre por natureza [...] sua produção é integralmente atravessada pelas relações de poder. A confissão é um exemplo disso. É das relações de poder e a impossibilidade de vencer esse “cabo de força” que o próximo poema de Lília Pereira da Silva (1991, p. 169-173), a seguir, apresenta. Um eu lírico multifacetado e aflito, que se auto define ao longo de 109 predicativos a desenhar uma imagem desfocada, antagônica e transgressora nos paradoxos infindáveis do poema: Se fui ninfa, / borboleta, pastora, / estrela, pomba, / beata, mascarada, / semeadora, pobre, / rica, bêbada, / adormecida, satânica, / cintilante, tímida, / morta, perdida, / despedaçada, constante, / brisa, queimada, / heroína, trágica, / alegre, íntima, / só, fraterna, / surda, muda, / cega, paz, / guerra, programada, / romântica, agressiva, / compromissada, fogo, / cinza, fênix, / sonolenta, brasa, / dissoluta, paisagem, / perdão, muralha, / contorno, melodia, / musa, / silêncio, fada, / bruxa, companheira, / infiel, escrava, / rainha, primavera, / orvalho, raiz, / fonte, alma, / outono,

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horizonte, / sofisma, transparente, / presa, / liberta, cristal, / absoluta, / relativa, autômata, / grito, / sussurro, flecha, / decepção, generosa, / incansável, /pesadelo, amanhã, / ontem, / hoje, verde, / madura, / semente, chispa, / relâmpago, / estrela cadente, objeto, / cor, aurora, / tarde, estrutura, / fonte, abismo, / céu, aventura, / equívoco, ingênua, / orgasmo, explorada, / exausta, tesouro, / indefesa, torturada, / defendida, algema, / porta, subterrânea, / sepultada, / húmus, sonâmbula, / ponte, invisível, / retrato, bronze, / incêndio, angústia, / reencontrada, /asas, penitencio-me pelos erros no jogo de xadrez de tais pegadas, e discordo do desacerto ao me julgarem jamais o que realmente fui, nos tantos momentos que me fiz muitas. O ritmo do poema pulsa alternando batidas e pausas como pulsa-nos o coração alternando nossa respiração, nossa gesticulação, nossos movimentos, assim é no poema como na vida de qualquer pessoa (GOLDSTEIN, 1985). Entre palavras cronometradas no ritmo binário, terciário do poema, o encantamento se faz nesta sonoridade presente em cada verso, na disposição da página. A mudança na regularidade do ritmo de poemas do final do século XIX até início do século XX para um ritmo mais solto, mais livre e menos simétrico se deu, segundo Goldstein (1985, p. 13), devido a vida das pessoas ter sido mais calma e padronizada que nos dias de hoje: “[...] a vida das pessoas tornou-se mais liberta de padrões e mais imprevisível. O ritmo dos poemas acompanhou o processo: tornou-se mais solto, mais livre, menos simétrico”. Assim, o “eu lírico” do poema de Silva é,

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por excelência, coincidentia oppositorum; o infinitesimal e o infinito do universo; é passado (tradição), presente e devir. Essa personalidade fugidia pode ser percebida também como um protagonista rebelde, algo que nos lembra o que Damásio (2010) chama de “mente independente e rebelde” que surge após o processamento de um eu protagonista no interior do cérebro, a fim de melhorar nossa (sobre) vivência e criar um espetáculo no qual a realidade vale a pena ser vivida. Segundo o autor, o ‘rebelde”, sua imaginação, sua arte, serve como forma [...] de reduzir o sofrimento, minimizar a perda e aumentar a probabilidade da felicidade e da fantasia. Foi então que o rebelde começou a guiar a existência humana para novos rumos, numa combinação de desafios e acomodações, todos baseados numa reflexão sobre o conhecimento, mítica, de início, científica mais tarde, mas sempre indispensável ao progresso humano. (DAMÁSIO, 2010, p. 353) Fica a pergunta: Quem fala? Quem é esse “rebelde” contraditório, misto de “melodia”, “silêncio”; “musa”, “fada”, “bruxa”; “companheira”, “infiel”; “escrava”, “rainha”? O eu lírico é um ser sufocado em sua densa textura psicológico a criar imagens dinâmicas no imaginário do leitor; sua voz é eco de muitas outras vozes em um cenário de mudanças caóticas e paradoxais, de antíteses, oximoros que preenchem um reservatório de carências e buscas de compreensão que fazem do eu lírico, um ser penitente a tentar redimir-se em um jogo de erros e acertos que fazem dele um eterno perdedor, afinal esforça-se por controlar uma interpretação que, de fato, jamais pode dominar por completo. O penitente eu lírico do poema de Silva remete-nos ao pensamento de Foucault, para o qual a penitência nada mais é que “[...] um ritual em que a simples enunciação, independentemente das suas consequências externas, produz, em quem a articula, modificações intrínsecas: ela inocenta-o, redime-o, purifica-o, descarrega-o das suas faltas, liberta-o, promete-lhe a salvação” (FOUCAULT, 1994, p. 66). Desta forma a salvação que redime e incorpora o eu lírico na comunhão com o eterno está presente na arte, na poesia, tal qual um espetacular reservatório de memórias que serve de compensação parcial para a dor de cada um (DAMÁSIO, 2010). A poesia é, portanto, movimento que transpõe o

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mundo para o papel e nos leva a mergulhar no universo do “outro”; um exercício de alteridade que possibilita distanciarmo-nos de nosso mundo fechado e, ao retornarmos para este, podermos dar-lhe novas cores e significados. Nossa escolha pelos quatro poemas teve como intenção resgatar um pouco da poesia escrita por mulheres contemporâneas da margem esquecida e apagada do sistema Literatura; trazer o tom de suas vozes, a confidência de seus sentimentos, seus afetos e carências; a concepção intimista de diferentes eus líricos a descreverem seus mundos e suas buscas de completude. A participação da mulher na Literatura, bem como em todos os outros campos do saber, abre portas para um exercício ético de alteridade, de projetos autorais plurais quando a musa toma para si a pena e passa a ser ela, a voz do poeta. Abordar a escrita da poetisa contemporânea como autora, sujeito da enunciação (o eu lírico) e objeto do enunciado, levaram-nos não apenas a poetisa/mulher a falar do feminino (condição, sentimentos, afetos etc.), mas também a destacar este nicho literário e, assim, ressaltar sua importância, seu valor a fim de que todos tenham espaço dentro do mundo que participamos. Referências Bibliográficas AMARAL, Ana Luísa. Poesia reunida. 1990-2005. Vila Nova de Farmalicão: Quasi Edições, 2005. ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2004. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção razão e o cérebro humano. Tradução portuguesa Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo Companhia das Letras, 1996. . O livro da consciência. A construção do cérebro consciente. Portugal: Temas e debates, 2010. DENÓFRIO, Darcy França. Vôo Cego. Goiânia: UFG, 1980. CASTRO, Zília Osório de. Nota de abertura In: IPHI-UNL, Revista Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 2000. n. 3. p.5-7. ELIAS, Norbert. O processo civilizacional. Investigações sociogenéticas e psicogenéticas. Tradução Lídia Campos Rodrigues. Lisboa: Dom Quixote, 2006. Foucault, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. Tradução Pedro Tamen. Lisboa:

Relógio D’Água Editores, 1994. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 1985. GONÇALVES, Óscar F. Viver narrativamente. A psicoterapia como adjetivação da experiência. Coimbra: Quarteto, 2002. MATURANA, R. Humberto. A ontologia da realidade. Cristina Magro, Míriam Graciano e Nelson Vaz (Org.) Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. Naveira, raquel. Abadia. Rio de Janeiro: Imago, 1995. SILVA, Lília A. Pereira. 33 anos de poesia. Autobiografia poética. São Paulo: Scortecci, 1991. v.1.

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A escritora Maria Archer e o retrato da mulher do início do séc. XX Dina Botelho Escola Secundária de Cascais (Portugal))

Resumo: Maria Archer, escritora do início do séc. XX retratou, como nenhuma outra, a mulher da sua época, revelando, através das suas 31 obras, publicadas entre 1935 e 1963, tendo algumas delas chegado à 3ª edição, os seus medos, ambições, felicidades e desilusões. Para além de peças de teatro, literatura infanto-juvenil, escreveu também literatura colonial e ainda romances, novelas e crónicas. É nestes três últimos géneros que me irei basear para mostrar esta escritora e a forma simples, mas tão realista, como nos retrata as mulheres das várias classes sociais da sua época. Também as desigualdades da mulher face ao homem são bem notórias na sua obra, que prende o leitor do início ao fim dos seus livros. João Gaspar Simões chamou a atenção para a «força da personalidade atrevida e forte na observação» de Maria Archer, em 1937. Partindo de dois romances com temas diferentes, Ela é apenas Mulher e Casa sem Pão (este último apreendido pela Censura) farei uma abordagem das várias personagens femininas da obra de Maria Archer, uma escritora que vale a pena conhecer. Da jovem inocente, à mulher vivida e experiente, temos sobretudo a mulher vítima, normalmente com uma existência difícil e, não raro, dramática. Da mulher pobre à mulher de família abastada e vítima da própria família ou do seu desejo de independência. No fundo falarei do estigma de ser mulher numa época em que até ser mulher escritora era difícil e sobretudo se essa era a sua única profissão. Analisarei a sua obra como um documento histórico duma época e da situação da mulher. Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira, na cena literária Maria Archer, nasceu na Rua de S. Marçal, freguesia das Mercês, em Lisboa, a 4 de Janeiro de 1899, e não de 1905, ano referido nalgumas obras. Maria Archer terá feito apenas a 4ª classe (terminada aos 16 anos, por iniciativa própria) o que nos leva a considerá-la uma autodidata, em especial se pensarmos que escreveu 31 obras, publicadas entre 1935 e 1963, tendo algumas delas chegado à terceira edição (como por exemplo Há de Haver uma Lei e Aristocratas e Ela é Apenas Mulher que é de 1944 e no mesmo ano saiu a 2ª edição tendo chegado à 3ª edição em 1952), 5 delas foram publicadas no Brasil (Terras Onde se Fala Português, África sem Luz, Brasil, Fronteira de África, Os últimos Dias do Fascismo Português e do último nada se sabe), Dentre elas estão cinco peças de teatro e três traduções. Colaborou também em diversos jornais, tanto em Portugal como no Brasil, e escreveu desde novelas a romances, passando por ensaios e contos de literatura sobre as colónias e ainda peças de

teatro, como já disse. Podemos dizer, como iremos ver a seguir, que é uma das nossas melhores escritoras da primeira metade do séc. XX. Eu tomei contacto com Maria Archer num alfarrabista de Lisboa. Hoje, e ainda bem que assim é, temos já 3 livros de Maria Archer reeditados e que podem ser comprados nas livrarias Ela é apenas mulher, Nada lhe será perdoado e Memórias da linha de Cascais, dois deles (os 2 primeiros) graças à editora Parceria António Maria Pereira que apostou na sua republicação e portanto não é só através de alfarrabistas que podemos tomar contacto com a sua escrita, que considero ter sido um marco para a época em que viveu e é nesse sentido que sempre me deram testemunho quando dela falo com pessoas mais velhas. Maria Archer foi uma das poucas mulheres do seu tempo a ter como profissão a de jornalista e escritora. Mas não se julgue que era fácil ser uma mulher escritora na época. Este é outro reconhecido mérito de Maria Archer. Muitas mulheres da época, tais como Maria Lamas e Irene Lisboa,

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esconderam-se atrás de pseudónimos, quer femininos quer masculinos, para poderem escrever à vontade sem penalizarem a sua vida pessoal ou até mesmo para obterem maior imparcialidade por parte da crítica. Se agora temos muitas mulheres escritoras, no início do séc. XX, quando uma mulher queria escrever sobre outro tema, que não a vida doméstica ou a educação dos filhos, refugiava-se atrás de um pseudónimo. Maria Archer nunca se escondeu, nunca usou pseudónimos. Talvez esse mesmo facto tenha levado ao afastamento da família que, por vezes, não viu com bons olhos certas publicações suas. Também o seu divórcio (esteve casada apenas 10 anos durante os quais publicou apenas em periódicos) poderá ter tido alguma base na sua profissão apesar da causa pública do mesmo ter mais a ver com questões familiares (sevícias e injúrias graves) e menos profissionais. Maria Archer viveu numa época em que era suposto a mulher ser apenas boa filha, boa esposa e boa mãe. As únicas atividades permitidas à mulher eram a lida doméstica e a educação dos filhos. Maria Archer dizia que escrever era fugir ao longo silêncio a que a mulher da época estava votada. Até o acesso à cultura é negado à mulher na época, como Maria Archer retrata bem na personagem de Adriana (de Casa sem Pão) que tinha de se esconder para ler livros. Houve mesmo casos em que a crítica a um livro escrito com pseudónimo masculino era otimista e depois de se saber que havia sido escrito por uma mulher, o mesmo crítico dizia o contrário do que havia dito antes. João Gaspar Simões foi, dos críticos literários da época, o que melhor entendeu a luta da mulher escritora. Disse ele que «Em Portugal uma mulher que queira falar de si mesma com franqueza equivalente à de um homem quase pudico corre risco de enxovalho» Maria Archer mostrou as vozes profundas do seu ser sem nunca recorrer a pseudónimos o que fez dela única na sua época e no seu meio. Ela partia do real e era esse real que interessava aos seus leitores. Ela própria reconheceu que a literatura feminina da sua época não era criativa «pois a mulher encontrava-se subjugada pela estrutura social e familiar repressiva.» Talvez por ter sido tão direta e tão profunda nas suas obras tenha visto duas delas (Ida e volta duma caixa de cigarros, 1938, e Casa sem pão, 1947) apreendidas pela Censura. Mas passando agora à sua escrita em si. A preocupação/tema principal da sua obra era a situação da mulher e as dificuldades por ela sentidas. A vida da mulher, a sua relação com a família, com

o trabalho e com os homens dominavam os seus romances e novelas. Mas se o tema dominante era o mesmo havia novidades em todas as suas obras. O estatuto social das mulheres que retratava era diferente, a mulher tanto era vítima como até brincava com os homens e por isso lia-se com empolgamento as suas obras. O seu conhecimento profundo do pensamento da mulher das várias classes sociais permitia-lhe falar com à vontade e realismo das suas vidas. Já João Gaspar Simões falava, em 1950, do seu «superior espírito de observação, penetrante análise social, sólida expressão literária, magistral equilíbrio no doseamento do imprevisto, pelo que não poderia deixar de ser considerada desde já um grande contista, um grande escritor» . Pela sua obra passam desde a jovem inocente que vem da província para a cidade para trabalhar na casa senhorial por intercessão de uma tia (Esmeralda de Ela é Apenas Mulher) que conhece toda a vida diferente da cidade e se apaixona por um mulherengo que lhe jura fazer por ela todos os sacrifícios mas que, quando ela lhe diz que pensa estar grávida, a abandona e ela vê-se desgraçada, de volta à terra do Alentejo onde até os pais a tratam mal por terem tomado conhecimento do seu namoro na cidade. De regresso à cidade, já a pensar ganhar a vida com um trabalho decente verifica que é difícil uma jovem arranjar trabalho em Lisboa sem ter de “ser simpática para os homens”. Decide afinal casar por dinheiro e depois acaba por trair o marido com o homem que, nos primeiros tempos, a abandonara. Também temos a mulher da alta sociedade que vive pelo dinheiro e pensa (Maria Benta de Aristocratas p.129) que «na vida tudo falha, menos o gosto de gastar dinheiro, de ter dinheiro, de fazer coisas que se podem fazer com dinheiro». É esta a personagem que considera que com 20 anos a jovem deve casar. Também a única personagem da comédia “Alfacinha” se preocupa com o facto de ter vinte anos e ainda não ter casado. Neste caso vemos uma jovem da burguesia que, apesar de amar muito um jovem, como este ainda pensava tirar o curso o que pressupunha uma espera de 5 anos, decide jogar com vários outros mostrando toda a sua arte de sedução para ver qual decide casar com ela enquanto ainda «fazia vista». Também a vivência de uma vida de aparências e de preconceitos pode ser vista em Filosofia duma mulher moderna onde vemos uma mãe aristocrata (“Sujeição”) a convidar a filha e o marido, de quem esta está separada, para almoçarem em sua casa ao domingo. Também o drama da solteirona, cujo

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pai foi para África para casar as filhas que viam no casamento uma libertação, tendo na época, ao contrário das irmãs, decidido não casar, quando o quis fazer já era tarde de mais. Em Ida e volta duma caixa de cigarros temos a descrição pormenorizada de uma mulher que vive o prazer do sexo em sucessivos encontros até que vê o seu sonho destruído por uma mulher que reclama «os direitos do seu ventre fecundado» e depois vinga-se do homem que entretanto conhece e que por ela demonstra amor. Mas com nenhum dos dois fica. Conhecera o amor verdadeiro e o amor carnal, agora queria o amor integral. No romance Bato às Portas da Vida temos o problema da adolescência gerida pelas aparências, a necessidade de, independentemente de como se ganha o dinheiro, aparentar um estatuto superior ao que se poderia alcançar, mas que vem de família. Mais uma vez temos a jovem voluntariosa que rejeita vender-se por um estatuto mas que, depois de ter o seu dinheiro fruto de árduo trabalho, acaba por casar entregando o seu dinheiro ao marido, que lho rouba quando se separam. A solidão é uma constante deste romance onde as decisões mais importantes são tomadas por ela sem qualquer ap oio. Mas também temos, como disse no início, a vítima que ama e se vê traída ( a Adriana de Casa sem pão) mas que salva a casa quando o marido perde o emprego, fazendo traduções. Conhecemos o marido com dupla vida. O marido que reconhece a mulher como santa mas a quem não deseja. O que quer a mulher que todos desejariam ter e por isso casa com ela e nem imaginaria separar-se dela. Em Nada lhe será perdoado conhecemos o drama de uma mulher enganada até aos 41 anos pela família do marido e por ele. Vê-se obrigada a refazer a sua vida, não conseguindo permanecer muito tempo nos vários empregos por ter sido educada «para menina rica, para ser servida, para a inutilidade.» Maria Archer queixou-se de como as mulheres escritoras têm de trabalhar «Trabalhamos sem poder sair do círculo de arame farpado com que o clã e a sociedade nos limitam a criação» (in “Revisão de conceitos Antiquados”, Ler, out. 1952) mas parece que ela conseguiu sair desse círculo mostrando e descrevendo a vida social da época como nenhuma outra. Também como contista sobressai. É João Gaspar Simões (em Filosofia de uma mulher moderna) que diz que Maria Archer em alguns contos de Há-de Haver uma Lei nos faz pensar em Eça de Queirós e “Singularidades de

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uma rapariga loira”. Diz mesmo que ela se aparenta a Camilo. Diz-nos o mesmo ensaísta que se existir um tema nos seus contos este é o tema social: a rebelião da mulher contra as normas sociais sacrificadoras da sua sagrada independência». O conto de Maria Archer é o conto de fundo social, o conto de costumes.» Ela é considerada por ele «um dos nossos primeiros contistas contemporâneos, um dos nossos mais fortes temperamentos de escritor». Como diz o Prof. Fernando de Pádua, seu sobrinho, a propósito destes elogios carregados de masculinidade, «só faltaria dizer que Maria Archer é um homem». Termino apresentando duas citações da própria Maria Archer seguidas de um desafio: «Saibam quantos fazem coro no desprestígio da obra literária das mulheres que os nossos livros são momentos heróicos. Custam-nos coragem, e angústias, que os homens, para igual feito, desconhecem de todo» (in “Revisão de Conceitos Antiquados” out. 1952) «Eu precisarei de morrer para que a minha obra seja avaliada na altura que eu lhe atribuí quando a escrevi – como um documento histórico duma época e da situação da mulher. » (1973) Lanço então o desafio – Não deixemos que a sua obra morra, pois muito ainda há a fazer, nomeadamente estudos sobre os seus cadernos coloniais de que fala maravilhosamente o Prof. Salvato Trigo aos seus alunos da Universidade Fernando Pessoa e estudos sobre as suas peças de teatro. Devemos enaltecer e reconhecer a sua luta pela dignificação da condição da mulher através da apresentação da realidade que a mulher da sua época vivia. A vida da mulher de meados do séc. XX não está bem conhecida – os jovens de hoje não a conhecem e através da obra de Maria Archer poderão conhecê-la. Encontro-me no presente a escrever a sua biografia e vejo com prazer que, depois de fazer a minha tese de mestrado sobre Maria Archer, vários investigadores de outros países se interessam por esta nossa escritora e escrevem artigos e teses sobre ela. É pena os editores de livros escolares não se terem ainda lembrado dela como já se lembraram de Maria Lamas e Irene Lisboa. Talvez no futuro nos lembremos do seu testemunho histórico. Bem hajam todos por nos fazerem reviver a vida da mulher do início do séc. XX nas suas diversas vertentes.

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O sujeito feminino (des)encantado na(s) narrativa(s) de Lya Luft Ana Catarina Marques CITEM Portugal

Resumo: No panorama da ficção brasileira do séc. XX, a literatura de autoria feminina ganhou particular relevo pelo inventário de Lúcia Miguel Pereira, com o trabalho “As mulheres na literatura brasileira”, Revista Anhembi, 1954, e das ensaístas Nádia Gotlib e Nelly Novaes Coelho que se debruçaram justamente sobre a originalidade e a emergência de vozes femininas no Brasil contemporâneo. O epicentro desta revolução foi a ficção estilhaçada e radical de Clarice Lispector – voz que surge em plena década de 40 e esbate no paradigma documental/regionalista da literatura brasileira (ainda que nomes como Gilka Machado, Cecília Meireles ou Rachel de Queiroz já anunciassem a pluralidade de um topos feminino diversificado). Porém, a experiência radical da linguagem lispectoriana abriu caminho, sobretudo na década de 60, à manifestação de contistas e ficcionistas no feminino – as revoluções culturais e políticas instigaram ao debate e à afirmação da mulher-autora (numa célebre expressão de Lygia Fagundes Telles: “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”). Nomes como Nélida Piñon, Lygia F. Telles, Hilda Hilst, Adélia Prado, Ana Cristina César, Lya Luft, Renata Pallottini, Isabel Câmara, entre outros, entram em cena e desmistificam um mundo de literatura predominantemente masculina. É neste contexto que a obra da gaúcha Lya Luft (Santa Cruz do Sul, 1938) – da poesia ao conto, da crónica à novela – se afigura proeminente na abordagem de um discurso no e do feminino. Pretende-se analisar as obras As parceiras (1980), A Asa Esquerda do Anjo (1981) e Reunião de Família (1982) como caleidoscópio das representações femininas: para além do enfoque no núcleo familiar, pelas vozes das suas mulheres, problematiza-se o universo feminino dos papéis sociais e sexuais na sua faceta mais transgressora – a assunção plena do ser mulher e o choque violento das relações entre poder e desejo. Nesta escrita, o conflito, a loucura, o sexo e a identidade (questão central) constituem-se como redes periféricas que circundam e perfuram o centro da enunciação feminina e das suas próprias representações. A reconfiguração do erotismo e dos laços entre corpo e discurso reforçam a perspetiva luftiniana de uma dimensão (des) encantada que atravessa os domínios existencial, político, estético e filosófico. De acordo com Nelly Novaes Coelho, Lya Luft, ao trilhar a experiência da ótica feminina não advoga, por isso, qualquer paradigma fetichista de um feminismo arreigado na vertente jurídica ou partidário de um feminismo a la carte. A sua abordagem é, antes de mais, multímoda: ao invocar uma experiência radicada no sujeito feminino e suas perceções, a questão do feminino alarga-se ao ponto de, justamente, se transformar numa categorização filantrópica. 1. Mulher no palco ou o fio de Ariadne Em plena década de 70, na literatura brasileira do séc. XX, no fulgor dos anos do pós-tropicalismo e da poesia marginal (geração mimeógrafo), emergem autores como Ana Cristina César, Paulo Leminski, que participou, na década de 60, na revista Invenção, órgão da Poesia Concreta, Caio Fernan-

do Abreu, entre outros, considerados propulsores de novos discursos, durante os “anos de chumbo” da ditadura militar brasileira. Contudo, é neste mesmo período que se afirmam escritoras brasileiras tão díspares como Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Hilda Hilst, Adélia Prado ou a própria Lya Luft (gaúcha como Caio F. Abreu ou Moacyr Scliar),

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abrindo espaço à construção de uma narrativa de pendor existencialista que recupera os temas universais do conflito, da solidão, da morte, numa perspetiva de desconstrução do próprio texto literário – a asfixia da literatura brasileira no período da ditadura militar incita à abertura, transgressão e subversão das matrizes literárias.1 Em Lya Luft (Santa Cruz do Sul, RS, 1938), o trabalho da linguagem intensifica-se na ‘ótica do sujeito’: o processo narrativo é, conscientemente, motivado por uma narradora feminina que narra a sua própria história em diálogo com outras personagens, maioritariamente, femininas – trata-se de uma espécie de genealogia do feminino, como atesta a saga familiar da obra As parceiras. No inventário ou levantamento crítico da literatura feminina brasileira do séc. XX, Nelly Novaes Coelho marca, justamente, as décadas de 60 e 70, como viragem e afirmação de mulheres-autoras em busca do seu palco e da sua pujança criativa, como o desenrolar do fio de Ariadne em busca de uma saída do labirinto repressivo instaurado pela golpe militar de 64: 132

Isto significa que, da submissão ao ‘modelo’, ela [a mulher] passa gradativamente à sua transgressão e, nos anos mais recentes, à busca de uma nova imagem que lhe permita auto-identificar-se novamente com segurança. […]. Em busca de uma nova imagem ou identidade as mulheres rompem audaciosamente com a antiga imagem e, em encontrar a nova, assumem uma paradoxal multiplicidade de identidades conflitantes…2 De facto, a escrita luftiana coloca a mulher no palco – título homónimo do livro publicado em 1984 – como celebração do universo feminino, quer numa vertente mais ou menos patética (pathos) quer desafiando os poderes estabelecidos (morais e sociais), através de uma hybris libertadora. É neste sentido que apontam as narrativas da autora gaúcha: em linguagem lispectoriana, aqui, 1 Na obra Anos 70/80. Cultura em Trânsito, Ventura, Gsapari e Heloísa Buarque da Hollanda reforçam a abertura do universo literário em contraponto ao fechamento proposto pela ditadura, agudizado pelo fenómeno do exílio. Assim, da repressão à abertura, a própria ficção brasileira, através de uma intensa produção autoral feminina, sentirá a diluição do cânone e o transbordar para a periferia - o epicentro é, agora, o discurso no e do feminino, pelo ensaio textual da mais variada índole. De destacar que estas autoras – emergentes ou já de renome – experimentam os diversos géneros textuais, sendo a sua produção multímoda (ficção, teatro, poesia, crónica, ensaio) e plurais os enunciados veiculados. 2 COELHO, Nelly Novaes, A literatura feminina no Brasil contemporâneo, São Paulo: Siciliano, 1993, pp. 16-19.

o ser mulher é plasmado em toda a sua dimensão caleidoscópica, ao investir numa cosmovisão do feminino em permanente interação com o mundo circundante. A mulher não é, assim, elevada a uma categoria que a isola das relações humanas e a deifica enquanto paradigma, pelo contrário, ela assume as verdadeiras proporções de uma Ariadne que lança e desnovela o fio no labirinto do quotidiano. Deste modo, quando Lya publica, a abrir a década de 80, a novela As Parceiras, percorre o caminho antes trilhado por Clarice ou Nélida, singularizando os laivos da sua escrita não só no ethos feminino, mas também extravasando e superando os lugares comuns que colocam a mulher na sociedade e na própria literatura. Se atentarmos no percurso de Lya Luft, podemos verificar que a sua trajetória se inicia em plena década de 60 – sintoma dessa “explosão no feminino” – mas só se (con) firma e (con)sagra nos anos 80 – período de síntese e sincretismo. Por outro lado, Luft revisita com frequência a linguagem de Clarice Lispector – a forte herança desta escritora fará eco na escrita luftiana, sobretudo no recurso ao discurso indireto livre, ao monólogo e à digressão narrativa. Através de uma ótica no feminino, a autora de Pensar é Transgredir joga com os vários jugos que dominam as relações humanas, não fazendo, por isso, da mulher uma condição sine qua non reveladora de um pathos endócrino e crónico. É na noção de relação que a aposta ganha sentido, quer do ponto de vista dialógico ou, até mesmo, monológico. A relação com os outros (alteridade) ou com o próprio (identidade) é a rede que sustenta a existência não linear dos indivíduos. Ao propor uma enunciação no feminino, a narrativa luftiana aborda uma dimensão da ficção brasileira do séc. XX que marcou, simultaneamente, a emergência de mulheres-autoras e a reflexão em torno da problemática erótico-sexual (d)escrita pelo próprio sujeito feminino. A própria noção de pacto ou testemunho autobiográfico (narrativa da narrativa) surge implicada em As parceiras pela construção textual – assumindo a forma de um registo diarístico (de Domingo a Sábado), a novela concatena o tempo da escrita e o tempo da diegese com a própria dimensão onírica (metáfora da criação, os 7 dias da semana). Esta narrativa singular será o ponto de partida para um inventário romanesco que se debruça sobre um universo familiar conflituante: As parceiras, publicado em 1980, dá início a uma série de romances que podem ser defini-

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dos como um dramático inventário de perdas, que o ser humano (principalmente as mulheres) vai sofrendo, do nascimento à morte. […]. A trilogia As parceiras, A asa esquerda do Anjo e Reunião de Família – densos romances, expressos em linguagem contida, concisa e aparentemente indiferente ao que é narrado – nos oferece uma dorida radiografia do universo familiar, patriarcal, cristão-burguês, na qual se denuncia o desencontro profundo entre o que é vivido nas exterioridades das relações humanas, e aquilo que se oculta nas almas.3

2. Espelhos quebrados: os jogos femininos (des)velados em As Parceiras, A asa esquerda do anjo e Reunião de família O entrosamento de um espaço simbólico com a dimensão onírica ressalta incontornável da leitura de As parceiras, obra de maturação que revela e desvela o discurso feminino em diálogo com o universo dos conflitos humanos. O núcleo familiar constitui a rede primária de conflitos e (des)afetos que impulsiona a convivência – árdua e apaixonada – entre a dimensão simbólica e as suas representações. Tal como em Clarice ou Nélida, também Lya Luft convoca a língua como polo de atração, quer numa vertente linguístico-discursiva quer como elemento potenciador de desejo e, por isso mesmo, de cariz erótico-sexual. A narrativa de Luft conduz ao conceito de genealogia – cartografia da estirpe e, também, descrição e superação desse mapa geracional. Este jogo familiar ressalta da objetividade do elemento individual, na figura-protagonista de Anelise, para o confronto com o coletivo e os dramas relacionais. A abertura do texto coloca à cabeça Catarina – a matriarca da família – para que esta se desdobre, primeiro em Norma, a filha, e, depois, em Anelise, a neta. Mais do que diferenças, o texto constrói uma teia de aproximações e imbricações entre Catarina e Anelise, unidas não só pela força da paixão, dos afetos e da fantasia, mas também pela dor, pelo fragmento interior e pelo medo da loucura. No decorrer da narrativa, a repetição ou variação das expressões “uma família de doidas” e “bando de mulheres” é uma forma de contágio e contaminação que conjuga os tópicos constitutivos de uma (des)ordem familiar vivida por mulheres: «Uma família triste e patética, todo mundo querendo sobrenadar – mas, e as águas? Teatro de sombras,

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incógnito. O sótão.»4 Entre jogos de sombra e azar, este teatro de mulheres tem como cenário espelhos estilhaçados que deformam e descosem os laços de família (título homónimo do livro de Clarice Lispector) cujo novelo é um contínuo de pontas soltas. O espelho funciona como vórtice de uma identidade construída entre um código normativo e o desejo de transgredi-lo, como acontece com a “loucura” de Catarina de quem Anelise será um alter-ego atualizado – o fim da narrativa irmana avó e neta no percurso que fundamenta a união de duas mulheres que vai muito além do mero vínculo geracional. O mundo feminino traçado por Lya Luft – oscilando entre um realismo dramático e o maravilhoso dos contos de fadas – desmascara tabus e desmonta raciocínios falaciosos e capciosos atribuídos às mulheres. Na obra A asa esquerda do anjo (1982) surge, de novo, uma relação umbilical entre neta e avó, Gisela e Frau Wölf, porém, é um foco relacional primado pela negatividade: Lya Luft extrema e agudiza as noções de identidade e língua, num universo familiar cadenciado pelo matriarcado austero, rígido e implacável, no qual a revolta, o inconformismo e a diferença germinam na figura central de Guísela ou Gisela – a neta que sofre a ambivalência nominal (ascendência germânica e brasileira) e espelha a sua condição de mulher insubmissa ao paradigma da avó: Nenhum deles, excepto talvez a minha mãe, suspeitava da extensão da minha dor, e do meu medo de nunca vir a pertencer a nada ou a ninguém. Nem um nome certo eu tinha. E as coisas, as que pensava e sentia, em que língua deveria expressá-las: em alemão ou em português?5 Todavia, as restrições e a clausura imputadas pelo regime familiar vão promover não a libertação de Gisela, mas a sua castração erótica e intelectual – a incapacidade de amar o seu próprio corpo e de se entregar ao prazer de uma relação a dois, neste caso, com Leo, ao qual amou, mas nunca se entregou. A culpabilidade pelo fracasso da não afirmação da sua personalidade feminina será um vetor punitivo que acompanhará Gisela até ao momento derradeiro da sua aniquilação. O peso da tradição e os dogmas e/ou tabus imputados pela sombra da 4 LUFT, Lya, As parceiras, São Paulo: Siciliano, 1999, p. 141.

3 COLEHO, Nelly Novaes, Dicionário crítico de escritoras brasileiras, São Paulo: Escrituras, 2002, p. 385.

5 LUFT, Lya, A asa esquerda do anjo, Lisboa: Pergaminho, 2008, p. 25.

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grande matriarca Wolf terão consequências irreversíveis nas atitudes e comportamentos de Gisela, nomeadamente a carência afetiva e o silenciamento de um desejo imaterializado, ao ponto de questionar a sua própria identidade: «A minha identidade – qual é a minha identidade? […] Sem identidade, como eu – qual é o meu nome?»6 As narrativas de Lya Luft denunciam as inibições e interdições que acossaram a mulher em pleno séc. XX – dividida entre uma mundividência doméstica (a típica fada do lar) e uma assunção erótico-sexual (a mulher independente e emancipada). O drama da identidade estilhaçada de Gisela é o mote que será extremado na obra seguinte, Reunião de família: o jogo de espelhos será assumido, ironicamente, pela protagonista Alice, num paralelismo com a Alice de Carroll, entre o real e o maravilhoso. Deste modo, em Reunião de família, verificam-se duas particularidades relevantes manifestadas nas obras anteriores – o simbolismo do espelho e a acentuação de um discurso negativo, pelo uso intensivo dos advérbios “não” e “nunca”. Esta obra apresenta, também, um revés no uso da tática discursiva e do enredo face à enunciação de As Parceiras e de A asa esquerda do anjo, já que o conflito não surge da relação avó-neta, mas centra-se num núcleo familiar cujo protagonista é a figura paterna e a ausência da mãe. Trata-se de uma narrativa que agudiza a mulher submissa, dona de casa, como se autocarateriza Alice, e a forma como é vista pelos seus pares femininos: Aretusa (a Medusa, mulher livre, independente, saficamente despudorada, pela menção ao amor lésbico com Corália) e Evelyn, a irmã metódica, regrada, mas enlouquecida pela morte do filho. Então, o jogo do espelho vira-se contra a jogadora e Alice torna-se a impudica, a prevaricadora, a traidora, a perversa, a falsa moralista. As próprias figuras masculinas, inclusive o pai, são joguetes manipulados pelo núcleo feminino, com predominância para revelações (epifanias?) do amor sáfico, com laivos de triangulações lésbicas insinuadas (Aretusa-Corália-Alice?) ou desejos recalcados, como é o caso de Berta, a serviçal, que oculta recortes de mulheres em poses pornográficas e chega a afirmar categoricamente: «os homens para mim são como a peste!»7. Apesar de os enredos remeterem para jogos de sombras num teatro eminentemente feminino, as três obras apresentam momentos de décalage em detrimento do real narrado, pela irrupção do maravilhoso num universo de sujeitos femininos (des) 6 LUFT, Lya, A asa esquerda do anjo, Lisboa: Pergaminho, 2008, p. 113. 7 LUFT, Lya, Reunião de Família, Lisboa: Pergaminho, 2008, p. 82.

encantados. A tónica nesse jogo de criaturas dos contos de fadas (gnomos, duendes, fadas, etc.) surge, desde logo, em As parceiras, como suporte ou alívio de uma realidade demasiado humana, agreste e mortal. Esta dimensão simbólico-onírica é o baluarte que ora faz o contraponto com a realidade (clausura da avó Catarina no seu quarto miniaturizado) ora estimula a “idade da infância” como alento contra a finitude humana (o caso da morte de Cristiano) ou ainda permite o refúgio no mundo dos sonhos quando “olhar” a realidade parece deveras grotesco (o jogo do espelho encenado por Alice). Nesta perspetiva, numa dissertação sobre a infantilização do mundo de Lya Luft, Cintia Barreto retrata a desconstrução do mito da infância, operada pelo simbolismo das personagens dos contos maravilhosos: O imaginário infantil se faz presente através das personagens dos contos de fadas de Hans Christian Andersen e dos irmãos Grimm, como a Rainha da Neve, o Patinho Feio e a Branca de Neve. Alice, protagonista de Aventuras de Alice através do espelho também participa do diálogo com os romances luftianos. Além dessas imagens, surgem figuras míticas que contribuem para a atmosfera simbólica das narrativas.8 Retomando o fio discursivo, umas dessas figuras míticas mais fortes é sem dúvida Aretusa, identificada com Medusa, aquela que petrifica com o olhar. Quando Aretusa entra em cena, em Reunião de Família, há uma sinalética visual que se impõe como referência à sua mitificação. Eis alguns dos traços adjetivantes mais veementes desta personagem – agreste, lasciva, irascível, erótica, insubmissa e inconformada – que, à semelhança de Medusa, também possui o seu ponto fraco: o amor destrutivo de e por Corália, o calcanhar de Aquiles que a transporta para o universo da culpabilidade e da punição. De acordo com Mircea Eliade, as narrativas cumprem um propósito de reatualizar o dimensão cosmogónica do universo, pela interpelação à idade mítica do logos: «Embora as personagens dos mitos seja, geralmente, Deuses e Seres Sobrenaturais, e as dos contos heróis ou animais maravilhosos, todas essas personagens têm uma coisa em

8 BARRETO, Cintia, A representação da infância em Lya Luft, Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 8.

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comum: não pertencem ao mundo vulgar.»9 De facto, Lya Luft recorre ao simbolismo dos mitos e dos contos maravilhosos justamente como contraponto de uma realidade vulgarizada por um quotidiano atroz. A intercalação desses elementos cosmogónicos ou míticos permite suportar ou até mesmo reinventar o mundo dramático das relações humanas. É que apesar de se ancorar na imagem do espelho, o texto luftiano prefere o(s) estilhaço(s), como forma de refração de uma verdade linear e absolutamente tangível. A imagem do espelho torna-se obsessiva na cosmovisão luftiana, atingindo o seu clímax em Reunião de Família, logo na cena de abertura, com Alice a questionar a possibilidade de pendurar um enorme espelho na sala – para colocar em confronto as duas alices, a do “lado de cá” e a do “lado de lá” do espelho. De acordo com Barrère e Roche, como postulado na obra Espelho, Espelho Meu!, é na “fase do espelho” que principia a grande aventura do sujeito:

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Efetivamente, os monólogos e diálogos das personagens das narrativas de Luft acontecem dentro de casa, como uma espécie de macro memória que, através da técnica do déjà vu, operam o reconhecimento de uma infância que não cessa de regressar ao espaço de origem. Uma leitura atenta destas obras destaca, de imediato, a alusão à “casa” como palco onde se encena a morte e o nascimento; espaço que não só gratifica a gestação, mas também opera a destruição do sujeito. E justamente verifica-se que, desde As parceiras até a Reunião de família, existe uma gradação crescente para a claustrofobia e encerramento do espaço “casa”, desde o sótão ao quarto fechado. O sótão aparece sobretudo na obra As Parceiras, já que era o lugar mágico reinventado pela avó Catarina, como fuga ao mundo rude, agreste e brutal que simbolizava o marido mais velho, com as suas “virilhas em fogo”: A criança loura [Catarina] era agora uma adulta precoce: cheia de manias. Uma delas era o sótão. Ali ela construiu uma dimensão em que só cabiam os seus interlocutores invisíveis. […]. Mandou mobilar o sótão como um quarto de menina. Tudo branco. Faltavam só as bonecas, para que a inocência fosse recomposta.12

O estado do espelho é o primeiro momento em que, para retomar a expressão de Lacan, «o eu se precipita numa forma primordial». Primeira identificação, cadinho de todas as identificações ulteriores.10 Desta forma, os jogos femininos (des)velados nestas narrativas de Lya Luft acontecem justamente no espaço mágico que é a casa – a importância física, material e afetiva que reveste a dinâmica destas personagens é a de uma relação umbilical. Na obra A Poética do Espaço, Gaston Bachelard reforça a importância primordial da casa como “primeiro cosmos”: Porque a casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. […]. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. […]. Logicamente, é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas; e quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados.11 9 ELIADE, Mircea, Aspectos do mito, Lisboa: Edições 70, 1986, p. 17. 10 BARRÈRE, Jean-Jacques, ROCHE, Christian, Espelho, Espelho Meu! Mem Martins: Editorial Inquérito, 1997, p. 79. 11 BACHELARD, Gaston, A Poética do Espaço, S. Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 24-27.

Também Anelise, à semelhança da avó, construiu o seu sótão para (res)guardar o corpo que expulsava filhos mortos e albergar a sua infância de luzes e sombras; esse sótão tinha a dimensão de um espaço sonhado que restaurava a unidade de uma identidade estilhaçada: «Fizera um sótão para mim mesma, com traves, madeirames, tijolos tirados das escuridões desde a minha infância. Ali moravam as mulheres da minha família; meus mortos […]»13. O nódulo identitário provoca um enunciado reflexivo, «Meu sótão era eu […]»14, ao ponto de desfazer a perceção entre espaço físico e psicológico. Por outro lado, em Reunião de Família, a casa adquire as dimensões de um palco gigante onde se joga o jogo dos espelhos: «A nossa família era então um espelho sem moldura. Inconsistente: um toque mais brusco, e tudo se estilhaçava»15. Neste sentido, esta reunião de família é um cancro que se alimenta das identidades quebradas pelos reflexos 12 13 14 15

LUFT, Lya, As parceiras, São Paulo: Editora Siciliano, 1999, pp. 14-15. Idem, Ibidem, p. 121. Idem, Ibidem, p. 124. LUFT, Lya, Reunião de Família, Lisboa: Pergaminho, 2008, p. 30.

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dos espelhos, como se todos fossem parasitas em busca de tecidos não imunes para violar. A metáfora traduz precisamente a ideia de uma doença que avança, devastadora, pelo organismo familiar. O espelho é, apenas, o reflexo visível dessa putrefação, em que os familiares são «como bichos prestes a dilacerar-se»16. O posicionamento da mulher nestas relações (familiares) traz, também, a marca inapagável de uma carga erótica e sexual que dinamita as regras rígidas de uma educação feminina dissimuladora do desejo. Se considerarmos que a avó Catarina procurava um afeto sáfico na enfermeira que a tratava, como alívio ao fogo castrador perpetrado por um marido possessivo, se a própria Gisela tinha uma “paixão” cândida pela prima Anemarie, a exemplar, a bela, em oposição à “gata borralheira” que a própria Guísela representava, se Alice tinha uma atração pela libertinagem de Aretusa e esta pelo amor instável de Corália, se a própria serviçal Berta desejava as mulheres que recortava e escondia em poses pornográficas, então, verificamos que em Lya Luft a nudez sexual e a expressão dos mais variados desejos e modelos de paixão trazem à tona os dilemas e conflitos femininos de quem procura abjurar o desejo ditado pela ordem masculina. Nesta perspetiva, na crónica “Canção das mulheres”, Lya Luft apela à condição humana do ser mulher, numa categoria filantrópica que supera espartilhos, dogmas e versões disformes nas relações com o outro: Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa – uma mulher.17 E é justamente essa capacidade de se desnudar e desvelar perante os outros que carateriza o sujeito feminino luftiano, com toda a sua glória ou vulnerabilidade; em suma, com todos os defeitos e virtudes dos seres humanos que vivem a paixão da linguagem.

16 Idem, Ibidem, p. 99. 17 LUFT, Lya, Pensar é transgredir, Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 20.

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Entre Ângela, Bárbara e Beatriz: a visão vergiliana do sensível Daniela Di Pasquale* Centro de Estudos Comparatistas Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Brasil

Resumo: Viditque Deus cuncta quae fecerat et erant valde bona (Génesis, I, 31). Abre-se com esta epígrafe romance Na tua face de Vergílio Ferreira (1993), uma epígrafe que propõe desde o início a conciliação do conflito existencial entre estética e ética. Através da releitura do stilnovismo dantesco nas suas fases primeiro moral e depois espiritual, claramente intertextualizadas no romance, Vergílio Ferreira reconfigura assim a ideia de beleza feminina, transformando a Beatriz de Dante Alighieri numa mulher-resguardo (Ângela) e transportando o conceito de desejo do outro do plano ultraterrestre ao plano antrópico do caricatural, do horrível, do disforme, do doente, do feio e do cadavérico. Acabada a hera da exclusividade da luz, começa então a hera do erro, toda outra ordem de vida. Com a dissolução das fronteiras entre os corpos na experiência sexual e entre o interior e o exterior do corpo que a tecnologia radiográfica permite, rasga-se assim o véu da ficção da estética do belo e, em alucinadas visões de multidões de aleijados, de cegos, de alienados e de desadaptados, reprograma-se a agenda da criação divina e cala-se a ansiedade pela procura das causas. Desta forma, contrastando a Beatriz da última admirável visão de Dante entre Vida Nova e Paraíso, o autor quebra conscientemente toda uma tradição poética (o elogio da mulher-anjo e angélica) que, depois de Dante, encontrará no petrarquismo europeu a sua maior declinação. Trata-se de uma forma de dignificar o visível e o sensível e de fundar uma nova poética da glorificação (que a literatura permite) da natureza que se cumpre e o do nosso olhar sobre ela. Já não, portanto, a mulher no elogio objectivo de todos e intermediária entre terra e céu, mas a persona na subjectividade da nossa percepção e intermediária entre o grotesco e o sublime da criação divina.

Uma aplicação literária da teoria da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty parece encontrar-se numa das últimas obras de ficção de Vergílio Ferreira, Na tua face, um romance publicado em 1993 e no qual o escritor elabora aquela que poderíamos chamar uma filofofia do tudo em-potência, ligada à teoria do filosofo francês no que diz respeito à ideia da multipotencialidade do ser e do mundo, da reversibilidade da visão, da atitude probabilístico-descriptiva e não explicativa do mundo e, sobretudo, da experiência perceptiva como ambiguidade e síntese temporal. É ver o outro como uma outra modalidade de mim, uma intersubjectividade que leva a redefinir o concei*Bolseira de pós-doutoramento da FCT (SFRH/BPD/35837/2007).

to de visão, partindo do pressuposto que entre o olhar e o objecto olhado exista uma relação de reciprocidade: o meu corpo é vidente e visto ao mesmo tempo, e todo o visível é só um campo de aparências destinadas a se dissolver e ser substituídas. Assim, a ideia de nos sermos seres-vistos permite uma atitude dialéctica que é o princípio da inclusão constante dos opostos, do multíplice, do provável. É um pôr o limite do horizonte no infinito e considerar que a verdadeira filosofia nunca pode dizer o mundo mas, sem pretender conhecimento ou consciência, é só interrogação muda que deixa o mundo falar e se limita a escutar. Ora, esta posição é evidentemente em contraste com a visão do outro codificada pela literatura medieval e, em particular, com a poesia italiana stilnovista e dan-

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tesca que aspirava a possuir o mundo dando-lhe significado, idealizando-o, duvidando do ser e da percepção do sensível sem nunca interrogá-los e que, sobretudo, considera os objectos do mundo como dato e não como possível. O interlocutor da poesia stilnovista raramente é o outro a quem se dirige, é sempre o eu que fala a si ou a outros espectadores da mesma visão, mas sempre colocados no plano prospectivo do poeta. O poeta nunca se percebe como outra possível dimensão da visão da mulher cantada e, desta forma, o emissor poético nunca se sente perpassado pelo olhar do mundo numa única irradiação carnal, mas configura-se como cultura, como entidade criada e que, só por isso, pretende conhecer e corrigir a natureza significando-a através de uma forma de linguagem. É esta idealização que Ferreira parece contradizer, reconfigurando, através da filosofia de Merleau-Ponty, a imagética do objecto da visão stilnovista que canonizou um discurso prescritivo sobre o outro através da representação da beleza feminina e da conduta a ter na relação de amor eterosexual. A mulher dos stilnovisti é então um ser irreversível, confinado, na ilusão que exista uma percepção subjectiva das coisas, e não intersubjectiva, chegando até a estabelecer intelectualisticamente as modalidades ideais do corpo, a materialidade da carne. A mulher é portanto veículo e não pessoa análoga ao eu do poeta, é uma função, uma metodologia para alcançar o Céu, nem é humana mas, entre zoomorfo e irreal, é uma mulher-anjo1, um ser sobrenatural e desmaterializado, uma visão celeste, uma imagem interiorizada, a garante da ordem moral2, a beatificadora e milagrosa fonte de saúde e salvação do poeta e, por fim, um amor desconectado dos sentidos e pura transcendência espiritual. Toda a caracterização da mulher na poesia italiana stilnovista, em parte derivada da poesia provençal e sículo-toscana, codificou, de facto, uma ideia da visão do outro contrapondo o corpo real ao corpo

1 Derivada da idealização das virtudes femininas no Cântico dos Cânticos, o stilnovo elogia a beleza da mulher como obra perfeita de Deus, sem referências à sexualidade, ela é puro sentimento, aparição, contemplação, sem reciprocidade nem sedução carnal. Persistem alguns detalhes físicos de origem provençal, mas já simbolizados e espiritualizados. A mulher è deusa e semelhante às Inteligências Angélicas. A verdadeira beleza é só uma forma de bondade (Cfr. Marti 1972). Veja-se, por exemplo, Guido Guinizzelli: «tenne d’angel sembianza», Guido Cavalcanti: «angelicata criatura. / Angelica sembranza», Lapo Gianni: «Angelica figura novamente / di ciel venuta a spander tua salute», Cino da Pistoia: «angelica figura mi parete» (Savona, 1973, pp. 142-143). 2 uido Guinizzelli: «Ma voi pur sete quella / che possedete i monti del valore, / unde si spande amore», Guido Cavalcanti: «umile, / saggia e adorna e accorta e sottile / e fatta a modo di soavitate», Lapo Gianni: «lingua di gentil vertute», Dino Frescobaldi:«donna piena di merzede, / in cui ogni vertù bella si fida», Cino da Pistoia: «quella ch’è somma salute», in Ibi, pp. 135-138.

ideal: face de neve corada de vermelho3, cabelo louro, encaracolado ou com tranças,4 o porte airoso e o garbo5 e, sobretudo, a fresca, adornada e luzente face,6 o doce rosto, o lindo sorriso7. Sempre a adjectivação do outro e nunca a sua substantivação. Foi sobretudo o cânone de Policleto, passado depois a Galeno, a fecundar esta imagética do belo feminino baseado na ideia da congruentia, isto é, na harmonia e proporção de todas as partes do corpo8 que muito influenciará o princípio vitruviano da simetria. Além disso, a ideia medieval de beleza que o neo-platonismo de Plotino (séc. III) descodifica e transmite até ao Pseudo-Dionísio Areopagita (sécs. V-VI), a João Escoto Eriúgena (séc. IX) e a Tomás de Aquinas na Summa Theologiae9, acrescentava às condições de proporção e integridade, também a claritas, a luz como atributo de Deus e vindo de Deus, que chega por fim a configurar todo o Paradiso de Dante10. No romance de Ferreira assistimos em vez ao triunfo da ambiguidade e da união do tudo em-potência. Na tua face tenta assim lutar contra esta concepção do amor platónico que colmata a lacuna, a nível tanto sentimental como intelectual, à procura da união originária depois da separação dos corpos pela punição de Júpiter (é o discurso de Aristófanes n’O Banquete de Platão11) e à qual a Idade Média acrescentava a 3 Guido Guinizzelli : «viso de neve colorato in grana»; Guido Cavalcanti: «cera rosata»; Lapo Gianni: «bionda trezza»; Cino da Pistoia: «’l bel color de’ biondi capei crespi», «due belle trecce bionde» in Ibi, p. 127-132. 4 uido Cavalcanti: «Cavelli avea biondetti e ricciutelli» in Ibi, p. 128. 5 Cino da Pistoia: «Li atti vostri leggiadri e ‘l bel diporto» in Ibi, p. 132. 6 Cino da Pistoia:«’l fresco ed adorno / e rilucente viso» in Ibi, p. 133. 7 Cino da Pistoia: «guardando ‘l dolce viso, / lo qual so che v’è pinto il suo bel riso» in Ibi, p.134. 8 Segundo Eco (2000), nos textos de Policleto “o belo surge, pouco a pouco, de muitos requisitos” e para Galeno “a beleza não consiste nos elementos mas na harmoniosa proporção das partes; de um dedo ao outro, de todos os dedos ao resto da mão… de cada parte a outra, como está escrito no Cânone de Policleto (Placita Hippocratis et Platonis V, 3)” (p.44). 9 Tomás de Aquinas na Summa Theologiae (II-II, 145, 2) afirma, de facto, o seguinte: “Como se pode depreender das palavras de Dionísio, o belo é constituido não só pelo esplendor, mas também pelas devidas proporções; de facto, ele afirma que Deus é belo ‘como causa do esplendor e da harmonia de todas as coisas’. Por isso, a beleza do corpo consiste em ter os membros bem proporcionados, com a luminosidade da cor certa” (como citado em Eco, 2009: 100). 10 Aproximando-se da visão de Deus (Par. XX, 61-66), Dante vê “lume in forma di riviera / fulvido di fulgore, intra due rive / dipinte di mirabil primavera. / Di tal fiumana uscia faville vive, / e d’ogne parte si mettea nei fiori, / quasi rubino che oro circoscrive” (Dantis Alagherii, 2001: 542). 11 Segundo a teoria do amor de Aristófanes contada n’O Banquete de Platão, o desejo amoroso deriva de uma antiga punição de Zeus da insolência dos homens que queriam desafiar as divinidades. Assim o rei do Olimpo nos separou para nos tornar mais fracos, dividindo a nossa esfericidade em dois: “de cada vez que cortava um, ordenava a Apolo para lhe voltar a face e o pescoço para o lado do golpe, a fim de que, vendo-o, o homem se tornasse mais humilde; mandava-lhe, além disso, curar as feridas. Apolo assim fazia e, ligando toda a pele na parte que se chama ventre, deixava apenas uma cavidade, que se chama umbigo. Depois, lisava as costuras e arranjava o

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identidade entre luz e beleza, a hostilidade perpétua entre Eros e a disformidade12 e o afastamento da fealdade13. Neste sentido, a visão do sensível de Vergílio Ferreira contrapõe-se também a uma outra tradição medieval pré-stilnovista, a corrente da filosofia Escolástica, em particular da Escola de Chartres, que, retomando as ideias de uma compacta conexão de todos os seres entre si numa perfeita união expressas no Timeu de Platão, exalta a natureza como mediadora da ordem do cosmos criado por Deus, chegando a afirmar (Guillaume de Conches, Glosae super Platonem) que “a beleza do mundo é tudo aquilo que aparece em cada um dos seus elementos” (Eco, 2000: 49), dando ao mal um lugar na ordem divina14. É a ideia que vê no monstro um outro meio divino de moralização, um desígno do projecto providencial, como expresso no De Civitate Dei (XII, 5-6) de Agostinho nos parágrafos do Est ratio gubernandae universitatis (tudo cabe na ordem) e Miseria naturae rationalis fuit ex aversione a Deo (não existe ser essencialmente mau). É a ideia da necessidade do mal como exaltação (por peito com um instrumento semelhante ao que utilizam os correeiros para polir, na fôrma, as rugas do cabedal, mas deixava ficar algumas rugas, como as do ventre e as do umbigo, como recordação deste castigo. Ora, depois de assim ter dividido o corpo, cada uma das partes, lamentando a outra metade, foi à procura dela e, abraçando-se e enlaçando-se umas às outras, no desejo de se fundirem numa só, iam morrendo de fome, por inacção, pois nada queriam fazer, umas sem as outras. […] Zeus, tocado de misericórdia, imaginou um outro expediente: transpos os órgãos da geração para o lado de frente, pois, antes disso, estavam implantados atrás e os homens geravam, não uns nos outros, mas sobre a terra, como as cigarras. Colocou estes órgãos à frente, e fez com que os homens procriassem uns nos outros, isto é, o macho com a fêmea” (Platão, 1986: 60-62). Na poesia da Vida nova, Dante reafirma o príncipio platónico da incompletude dos seres e da procura da metade originária através da ideia de emendar com a morte a dor pela perda da amada: Pobre de mim, que tanto lembro em vão que não poderei mais ver a senhora que me traz doente, tanta pena em redor do coração põe dolorosa a mente, que eu digo: “Alma minha, pois não vais? que os tormentos que levas e são tais no mundo já pra ti tão doloroso, me dão cuidados de receio forte.” E é quando chamo a morte, como suave e doce e meu repouso; e digo “Vem a mim” com tanto amor que invejo a morte alheia por melhor. (Alighieri, 1995: 123-125). 12 É Agatão a pronunciar estas palavras n’O Banquete de Platão: “Eros e a disformidade estão em hostilidade perpétua!” (Platão, 1986: 73). 13 “Eros não se encontra ligado à fealdade!” (Platão, 1986: 75). 14 “Nestas e noutras visões da harmonia cósmica dissolviam-se também as interrogações colocadas pelos aspectos negativos da realidade. As coisas brutas também se conciliam na harmonia do mundo, por via de proporção e contraste. A beleza (e esta será agora a convicção comum a toda a Escolástica) nasce também destes contrastes, e também os monstros têm uma razão e uma dignidade no concerto da criação, também o mal na ordem divina se torna belo e bom porque dele nasce o bem, e ao lado dele o bem resplandece melhor” (Eco, 2000: 50).

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contraste) do bem, expressa também por Alexandre de Hales: o mal enquanto tal é disforme… Contudo, enquanto do mal se desenvolve o bem, diz-se que é bem por aquilo que confere ao belo; assim, na ordem diz-se que é belo. Portanto, não se diz belo de modo absoluto, mas belo em ordem; aliás, seria preferível dizer: “A própria ordem é bela” (como citado em Eco, 2000: 149). Na tua face recusa esta solução, assim como recusa o decadentismo daqueles espíritos mais curiosos e viciados que acorrem aos anfiteatros anatómicos ou às clínicas citados por Baudelaire15. E recusa também a sabedoria socrática da beleza, sobrenatural, essencial, desincarnada, assim como foi descrita por Diótima n’O Banquete de Platão: beleza eterna, que não conhece nem o nascimento nem a morte, que não está sujeita à evolução de crescimento e diminuição, que não é bela por um lado e feia por outro, ou bela a um tempo e feia a outro; bela de um ponto de vista e feia de outro, bela neste lugar e feia naquele; beleza que não se apresentará com um rosto, nem com as mãos, nem com forma corpórea, nem com palavras, nem com sabedoria, nem com outra coisa qualquer que porventura possa existir nalgum lugar, por exemplo, no animal, na terra, no céu, ou em qualquer outra parte; beleza que, em contrapartida, existe nela mesma e por ela mesma, simples e eterna, da qual participam todas as coisas belas, de tal maneira que o nascimento ou a morte destas nâo lhe trazem, nem aumento, nem diminuição, nem alteração de qualquer espécie. (Platão, 1986: 104-105). No romance vergiliano é evidente a contraposição ao conceito stilnovista do desejo do outro, transportado do plano ultraterrestre e subjectivo ao plano antrópico e intersubjectivo do caricatural, do horrível, do disforme, do doente, do feio e do cadavérico16. A ideia da mulher-anjo e angelizada é já contradita se comparamos o episódio do desenho interrompido na Vida nova de Dante com o trabalho caricatural do protagonista do romance português. Enquanto, depois da morte da amada Beatriz, o poeta florentino procede à transfiguração divina e artística da mulher (paradoxalmente) através da sua concretização gráfica: “Naquele dia em que um ano se cumpria que esta senhora se havia tornado habitante da vida eterna, estava eu sentado em

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um lugar em que, dela me recordando, debuxava um anjo numas tabuinhas” (Alighieri, 1995: 125); Daniel, o médico e aspirante pintor protagonista do romance de Ferreira, encontra no gesto caricatural a única forma de sobreposição da imagem ideal à sua verdade real: “Pegar num rosto e devastá-lo de horror e ficar igual ao que estava por fora mas se não via por estar por dentro. Revelar o que se não via e deitar fora o que o não deixava ver” (Ferreira, 1993: 11). Desta forma, Ferreira parece querer apagar o confim entre corpo externo e corpo interno, afirmando a atravessabilidade do limiar que separa a nossa face humana da nossa Verónica, a vera icona do nosso ser que transcende o corpo. O esgar que a caricatura suscita em nós é portanto a percepção pré-lógica da existência do outro visível também na distorção caricatural da visão. O sujeito disforme parece assim reproduzir, ou melhor, gerar de novo, o humano animal (no sentido de dotado de alma e de amor) que é a indiferenciação da carne do mundo e a sua temporalidade parece opor-se à nova religião da ciência que tenta tornar-nos imortais, embora “de vez em quando a Natureza arranj[e] uma doença nova e é uma alegria nela para o equilíbrio da humanidade” (Ferreira, 1993: 106). É por isso que Daniel pode desenhar a caricatura de Bárbara, a mulher que nunca deixará de amar por ela ser o intersujeito da sua perspectiva do mundo, enquanto Ângela, a mulher com a qual acaba por casar, nunca poderá gozar do mesmo privilégio17 por ser ela um sujeito do tipo stilnovista. O verdadeiro amor é agora o amor natural, pré-cultural, barbárico, é o corpo do outro que o meu corpo percebe e que Daniel precisa de respirar no terrível da sua realidade18 e já não o angélico irreal de Ângela que era a encarnação de um certo milagre que a transfigurava no que ela era, mas em transfiguração, qualquer coisa assim, bela e incompreensível. Todo o imaginário e iluminação dos homens pelos milénios, como o sol pela vidraça, a vidraça é a mesma mas é outra, trespassavam-na e deixavam-na intacta (Ferreira, 1993: 16). Ângela, a mulher-vidraça, é morfologicamente a mulher imaginada pelos stilnovisti, mas é uma mulher-resguardo agora, como aquela que o poeta florentino nomeava em certo poemas, fingindo de amar, para disfarçar a verdadeira destinatária do seu elogio. No romance vergiliano “a gloriosa senhora da […] mente” (Alighieri, 1995: 15) é ainda um desejo infinito que acontece no eterno19, mas subvertendo a ideia platónica da procura da completude no outro e mudando a visão da beleza

que provoca o amor e a sua percepção através do corpo que entra pelos olhos. Bárbara é, noutras palavras, a passagem da transcendência do real no espiritual à sublimação da imanência, identificando a condição de humilhação já não com a satisfação do prazer carnal, como nos stilnovisti, mas com a recusa de contacto sexual20. É a angelizada Ângela “baixa loura e um certo ar de beata” (Ferreira, 1993: 14) a mulher que substitui presencialmente a ausência de Bárbara21, porque verdade e vontade22 estão na beleza incompreensível, cuja face existe no impossível23. Este belo impossível (ou em-potência) tem então a sua extensão artística na fotografia24, cuja aura nos revela, cuja bidimensionalidade de papel parece mais real, tocável, na perfeição da única arte verdadeiramente referencial e memorial que nos sobrevive, enquanto o movimento dos corpos é sempre efémero e fugitivo, como será o corpo de Bárbara desde o início da sua partida para a Inglaterra até ao último encontro onde ela desaparece. Assim, uma percepção é substituída por outra. Ângela, pelo contrário, não permite esta substituição, ela é sempre presente, tornando o seu amor um amor morto que sufoca25, pois ela é “de mármore, coisa maciça, por dentro só tinha pedra também” (Ferreira, 1993: 32), não tem pessoa por dentro26 e é ela própria a dizer “Nunca sinto calor nem frio […] seria humana? Talvez de louça, pensei. Estaria fora do tempo como uma boneca de porcelana incorruptível, só se lhe dermos com um martelo” (Ferreira, 1993: 50). Ela é a mulher indesejável, correcta, fria, classificada, geométrica (Ferreira, 1993: 112), certa, precisa, perfeita, metalizada, tenra, asséptica, inconspurcável (Ferreira, 1993: 169), imóvel, silenciosa, absorta, beleza inútil (Ferreira, 1993: 245), uma regra de sintaxe (Ferreira, 1993: 252). Ainda a adjectivação que define, pura anti-filosofia, rumor de fundo contra o silêncio do sujeito que só escuta. Por isso, o desejo vergiliano se configura pela oposição a tudo o que é ideal e, por conseguinte, entrega-se ao fascínio pelo disforme, pelo desfigurado, pela doença, pela anatomia dos corpos mortos na mesa de pedra do curso de Medicina, com os quais Daniel quer falar, como com o cadáver de Angélica Serafina, nome dos mais altos guardas do trono de Deus e rapariga dos primeiros encontros sexuais do protagonista, agora com “o cabelo rapado, uma etiqueta dependurada do pé direito” (Ferreira, 1993: 65), o corpo conhecido por ter sido coscuvilhado por dentro e agora objectivado e maquinizado “aberto até aos seus interiores [enquanto] o professor apartava para os lados as tampas desses interiores como quem levanta o capot de um motor e ia indicando todas as peças” (Ferreira, 1993: 67).

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Como já Foucault escreveu no seu ensaio sobre O Nascimento da Clínica (1963), é mesmo a partir da prática da autópsia que se conseguiu descobrir o invisível do corpo, aumenta o domínio da visibilidade e da própria morte como explicação da vida: “o que oculta e envolve, o véu da noite sobre a verdade, é paradoxalmente a vida; a morte, ao contrário, abre à luz do dia o negro cofre dos corpos: vida obscura, morte límpida” (Foucault, 1977: 190). O ideal de uma beleza feminina intacta é constantemente recusado e revisto, como Daniel nos explica ao contar a história de um individuo muito parecido com o Dante da Vida nova, embora tenha um desfecho diferente, vergilianamente mais grotesco: Houve um tipo que foi a santo assim. Tinha ele uma amada que era uma flor de beleza e ele apanhou uma tremenda paixão subsequente. E um dia a amada morreu e a paixão cresceu-lhe ainda mais porque já não tinha objecto onde pousar e vinha toda para cima dele. Mas tempos depois abriram a sepultura e ele viu a restolhada da ossaria com uma caveira a rir-se dele de uma maneira indecente. E ele disse meu Deus. E deixou lá a paixão toda e o coveiro enterrou-a com os restos da lixarada. Agora é santo e deve ser advogado das paixões mal encaminhadas. Mas eu não quero ser santo nem tenho paixão nenhuma a acalmar. O meu projecto é mais simples e digamos mais reflexivo, sem Deus nenhum à espera da sua oportunidade (Ferreira, 1993: 66-67). A verdade do amor tornou-se para Daniel o prazer do corpo, do simples existir hic et nunc, da natureza que se cumpre, da indistinção entre beleza e fealdade, numa fenomenologia da percepção do sensível percebido como vital para a construção da história das nossas ideias, por ser, como a fotografia, revelável e imprimível na memória individual. Os dois polos desta filosofia da dialéctica dos opostos “desde o mais alto que se chama a beleza virtude perfeição, até ao mais baixo que se chama ordinaríssimo e excrementício” (Ferreira, 1993: 69) permitem portanto uma filosofia do tudo em-potência onde carne, respiração, faces intocáveis mas verdadeiras, início e fim do desejo como acção em contínuo devir são dominados tanto por Eros como por Tânatos, pois “o horror da morte é anti-natural e mais próprio das civilizações atrasadas” (Ferreira, 1993: 180). Não se trata de um mundo às avessas, mas de um mundo onde acabou o império da luz e começou a era do erro que problematiza o horrível, na tentativa de perceber porquê o baixo e o imundo têm um sinal de libertação27 e não de exclusão do mundo como a beleza medieval comportava.

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O feio, então, é só aquilo que não se conforma à contingencia do social e ideologicamente construído, enquanto na filosofia do tudo em-potência o disforme encontra a sua própria possibilidade e valoriza-se o fenomenológico, o intersubjetivo, o anormativo, encontrando a transcendência na imanência e positivando as oposições. É por isso que Daniel pode imaginar uma corrida entre Ajax, Ulisses, Antíloco e o aleijado Serpa sapo, ou pressupor que o pedinte que encontra na rua com a bossa angiomatosa no pescoço possa “ter a [sua] beleza numa humanidade com sacos caídos do queixo” (Ferreira, 1993: 80). Tudo isto nos lembra um conto de Italo Calvino, O dia de um escrutinador (obra original publicada em 1963), sobre a votação num sanatório para aleijados, onde Amerigo, o protagonista, perante a disformidade dos internados no hospital do Cottolengo, inquieta-se pelas mesmas interrogações vergilianas: De repente deu consigo a pensar num mundo em que já não houvesse beleza. E era na beleza feminina que pensava. […] O que é esta necessidade de beleza? […] Uma característica adquirida, um reflexo condicionado, uma convenção linguística? E o que é, em si, a beleza física? Um sinal, um privilégio, um dado irracional da sorte, como – entre estas – a fealdade, a deformidade, o defeito? Ou é um modelo cada vez mais diferente que nós imaginamos, mais histórico que natural, uma projecção dos nossos valores de cultura? […] Mas pôr a beleza demasiado no alto da escala de valores, não é já o primeiro passo para uma civilização desumana, que condenará os disformes a serem lançados do precipício? […] Um mundo, o “Cottolengo” […] que poderia ser o único mundo no mundo se a evolução da espécie humana tivesse reagido diferentemente a qualquer cataclismo pré-histórico ou a qualquer peste… E hoje, quem poderia falar de defeituosos, de idiotas, de disformes, num mundo inteiramente disforme? (Calvino, 1997: 47-50). No oitavo capítulo do romance de Ferreira, a visão alegórica de um desfile de corpos mudados e mutantes, fluídos e multíplices em contínuo transformar-se pela idade, pela doença e pela natureza demonstra que o corpo visível é, no fundo e como afirma Merleau-Ponty, enraizado na ambiguidade do tempo, pois as coisas são reais em si só porque são reais para mim28. Nesta concepção encontra-se também o amor pelo horror do orgánico interior, pela memória do animal no nosso rosto, até pelo esqueleto que a tecnologia radiográfica consegue desvendar. Assim, a percepção ultrapassa o visível, os limites impostos pela pele, passan-

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do do valor medieval da virtuosidade para o valor de virtualidade do mundo e do ser em-potência. Se para Merleau-Ponty a invisibilidade do mundo é a sua possibilidade interna e externa e o invisível e o visível são tais um para o outro, como o dentro e o fora da mesma luva, para Ferreira a película radiográfica do esqueleto de Ângela é a prova da existência dessa dupla dimensão e uma forma de tranquilizar a ideia da finitude humana29: Que é que se ama numa mulher? Porque se ama só a pele e um pouco da pele mais para dentro. O resto, que é afinal o que mais se ama, não existe. […] Vou decidir a sério que és também a ossaria das radiografias do teu corpo. Vou tê-la em conta para também a amar. Vou saber que existes nela para não seres beleza para um lado e horror para o outro (Ferreira, 1993: 98-99).

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Na ideia de amor de Daniel não se pode emendar o erro de ter o ser as suas facetas biológica e fisiológica e perspectivas determinísticas, mas é preciso empatizar com ele, entrar em contacto para assimilar tanto a face (máscara do duplo que há em nós) como o focinho, a nossa marca-de-água primordial. A fealdade é também nossa essência30, a caricatura o nosso retrato, a fotografia a nossa alma, aquela que se revela também na hora da morte, no último momento de luz, pelo que Luzia, a filha de Daniel, não tira fotografias aos vivos. A descrição do quadro de Picasso, Le damoiselles d’Avignon31, torna-se então, para o protagonista do romance, só a representação de uma perspectiva do sujeito artístico, entrelaçada com cuncta, todas as coisas, como reza o versículo do Génesis que é a epígrafe do romance: “Viditque Deus cuncta quae fecerat et erant valde bona” (Ferreira, 1993: 7). Assim, neste tudo já não faz sentido falar de beleza e de fealdade, mas só daquilo que continua a existir apesar de tudo, apesar da atribuição da qualidade de horrível ao horror, quando, de facto, Ferreira tenta só “provar que o feio não existe e a morte também não” (Gordo, 2004: 110). A beleza clássica, pelo contrário, gera impotência32 e não visão do em-potência de todas as coisas, que são, no fundo, uma só. Um tudo em que entram também as últimas fronteiras da ciência, com a multiplicação das células cerebrais, o novo invisível revelado, chegando a reconfigurar o projecto divino até pensar que um cão possa tornar-se “deputado da assembleia ou ministro” (Ferreira, 1993: 123) ou que possa existir uma sociedade zoomorfa com animais elegantes a passear pelo Chiado e um Daniel-Deus a reinventar uma humanidade que recupera as oposições da Natureza e reprograma

a funcionalidade ambiental dos corpos animais no habitat pós-humano de um mundo em-potência: “uma cauda para sacudir a mosca e não ter de inventar os insecticidas. O sistema eléctrico da tremelga para não ter de inventar a electricidade. […] O olho do lince para não ter de usar óculos” (Ferreira, 1993: 137)33. É assim que se passa da ilusão da beleza ideal ao verdadeiro provável, questionando constantemente o nosso ser bidimensional, pré-lógico e intersubjectivo que se, por um lado, tem os dentes para lhe recordar a sua origem animal, carnívora, aggressíva, os dentes como metonímia do nosso instinto de mastigar e fagocitar o outro (Ferreira, 1993: 158-159), por outro lado, tem também o sorriso, a sua ficção. É aquilo que está por dentro mas que se vê por fora, os dentes, a boca, a língua, a garganta que possibilita tanto o grito primordial do nascimento como o suspiro final da morte (Ferreira, 1993: 241). Por tudo isso, o horror já não é horrível, o horrível não é, passados cinquenta anos, reencontrar Bárbara e ver-lhe o rosto envelhecido, o horrível é o Daniel sobrepor-lhe ainda a face lisa da juventude, confessando assim não a derrota da sua filosofia de uma outra ordem de vida, mas a aceitação do egocentrismo34 que faz parte desta filosofia do sensível e perceber, por fim, que só na precariedade da beleza ideal o homem consegue desassossegar (Ferreira, 1993: 284). Daniel reprograma a agenda da criação divina interpretada pelos stilnovisti e cala assim a ansiedade pela procura das causas. Contrastando a morfologia da Beatriz da última admirável visão de Dante entre Vida Nova e Paradiso (Alighieri, 1995: 147-149), o autor quebra conscientemente toda uma tradição poética (o elogio da mulher-anjo e angelizada) que, depois de Dante, encontrará no petrarquismo europeu a sua maior declinação. Trata-se de uma forma de dignificar o visível e o invisível e de fundar uma nova poética da glorificação da natureza que se cumpre e do nosso olhar e sermos olhados. Já não, portanto, a mulher no elogio objectivo de todos e intermediária entre terra e Céu, mas a persona na intersubjectividade da recíproca percepção, pela qual, segundo a filosofia de Merleau-Ponty, mundo e ser fazem parte da mesma paisagem. Em tudo isso, as diferenças de género relativizam-se e tanto o barbárico como o angélico, o natural e o cultural, o silêncio e a palavra, como qualquer definição do mundo, nos mostram que a verdade última é só a reversibilidade (Merleau-Ponty, 2007: 150).

Referências bibliográficas: Alighieri, D. (1995) Vida Nova (V. Graça Moura,

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Trad.). Lisboa. Bertrand (Obra original 1294) Baudelaire, C. (1975) Œuvres complètes (Vol. 1). Paris: Gallimard. Calvino, I. (1997). O dia de um escrutinador (J. Colaço Barreiros, Trad.). Lisboa: Teorema (Obra original publicada 1963). Eco, U. (2000) Arte e beleza na estética medieval (A. Guerreiro, Trad.). Lisboa: Presença. (Obra original publicada 1987) Eco, U. (2009) História da beleza (A. Maia da Rocha, Trad.). Lisboa: Círculo de Leitores (Obra original publicada 2004) Ferreira, V. (1994) Conta Corrente 3 (nova série). Venda Nova: Bertrand. Ferreira, V. (1993) Na tua face. Venda Nova: Bertrand. Foucault, M. (1977). O Nascimento da Clínica (R. Machado, Trad.). Rio de Janeiro: Forense-Universitária (Obra original publicada 1963). Gordo, A. (2004). A arte do texto romanesco em Virgílio Ferreira. Coimbra: Luz da Vida. Marti, M. (1972). Storia dello stil nuovo (Vol. 1). Lecce: Milella. Merleau-Ponty, M. (1999). Fenomenologia da percepção (C. A. Ribeiro de Moura, Trad.). São Paulo: Livraria Martins Fontes (Obra original publicada 1945). Merleau-Ponty, M. (2007). O visível e o invisível (J. A. Gianotti e A. Mora d’Oliveira, Trad.). São Paulo: Perspectiva (Obra original publicada 1964). Mourão, L. (2002). Manchas – uma leitura de Cântico Final e Na tua face. In M. J. Nobre Júlio (Ed.), In Memoriam de Vergílio Ferreira. Lisboa: Bertrand. Platão. (1986). O Banquete (O Simpósio ou do Amor) (A. Pinharanda Gomes, Trad.). Lisboa: Guimarães. Sanguineti, F. (Ed.). (2001). Dantis Alagherii Comedia. Firenze: Edizioni del Galluzzo. Savona, E. (1973). Repertorio tematico del dolce stil nuovo. Bari: Adriatica Editrice.

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Submissão e resistência: o feminino em Germano Almeida Maria do Carmo Pinheiro e Silva Cardoso Mendes Universidade do Minho (Portugal)

Resumo: Uma análise comparativa de dois romances do escritor cabo-verdiano Germano Almeida – O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo (1991) e Eva (2006) – permite identificar distintos papéis confiados às mulheres e, por consequência, variadas e contrastantes perceções sobre o lugar do universo feminino na mundividência do arquipélago e nas suas relações (coloniais e pós-coloniais) com Portugal. O artigo tem assim como propósitos principais: 1) identificar as funções de três mulheres no primeiro romance e daquela que protagoniza o segundo; 2) observar que em O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo (romance diegeticamente localizado em período colonial) as mulheres desempenham papéis familiares e sociais impostos pela colonização, enquanto em Eva (narrativa pós-colonial) a protagonista constitui um símbolo da indiferença pelo Outro (colonizador branco), uma figuração pós-moderna e irónica da viagem do colonizador e uma paródia da tese Luso-tropicalista; 3) demonstrar que Eva constitui uma desconstrução de estereótipos tradicionalmente associados ao género feminino; 4) problematizar outras questões de género suscitadas pelos dois romances; 4) evidenciar, pela leitura de obras de um dos mais influentes escritores de expressão portuguesa na actualidade, a evolução histórica, cultural e simbólica do feminino e articular tal evolução com a que é apresentada em obras literárias cabo-verdianas de autoria feminina (e.g. Orlanda Amarílis e Dina Salústio).

1. Introdução Nascido em 1945, o escritor cabo-verdiano Germano Almeida é uma das figuras destacadas do atual panorama literário do arquipélago. A sua vasta produção narrativa inclui textos como O dia das calças roladas (1982), O Meu Poeta (1989), O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo (1991), adaptado ao cinema, A Família Trago (1998), O Mar na Lajinha (2004), Eva (2006) e A Morte do Ouvidor (2010). Nas suas obras podem encontrar-se duas temáticas privilegiadas: aquelas que, na senda de Claridade, se reportam a vicissitudes da História de Cabo Verde – a fome e a indigência impostas por longos períodos de seca, a insularidade determinada pela condição geográfica do arquipélago e os problemas gerados pela colonização – e aquelas que dizem respeito a problemáticas pós-coloniais – a crítica ao regime do partido único e a análise da

evolução social, política, económica e cultural de Cabo Verde depois de 1975. O universo feminino ocupa um lugar muito significativo na ficção narrativa do autor. Sem pretender esgotar a abordagem desta temática, fixarei a minha reflexão numa análise comparativa de dois romances: O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo (1991) e Eva (2006). Tal exercício permitirá não só detetar os diferentes papéis que são confiados às mulheres em contexto colonial e pós-colonial, como também identificar as perceções autorais sobre o lugar do feminino na mundividência do arquipélago e nas suas relações com Portugal. Para a consecução destes dois objetivos, farei um percurso em três momentos: em primeiro lugar, procurarei demonstrar que as funções familiares e sociais das três mulheres do romance de 1991 são condicionadas pelos preconceitos da colonização,

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construindo uma imagem submissa da mulher, mas constituem já uma forma de insubmissão e de resistência; em segundo lugar, intentarei provar que na narrativa pós-colonial Eva a protagonista constitui um símbolo de indiferença pelo Outro – o colonizador branco –, uma figuração pós-moderna da imagem do colonizador, um questionamento do luso-tropicalismo e, por consequência, uma desconstrução de estereótipos associados ao feminino – a sujeição, a obediência, o silêncio e o conformismo; em terceiro lugar, procurarei mostrar que a representação das mulheres na ficção narrativa de Germano Almeida é um contributo determinante para analisar a evolução histórica, cultural e simbólica de Cabo Verde.

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2. Submissão A longa vida do senhor Napumoceno da Silva Araújo – que vizinhos e amigos só conhecem através da leitura do seu longo testamento – na ilha cabo-verdiana de São Vicente, evidencia uma clivagem profunda entre a vida pública e a vida privada, em particular no que concerne ao envolvimento com o universo feminino. Socialmente respeitado em vida, este negociante oferece no testamento – mais precisamente, “livro de memórias” – uma imagem que contrasta com uma reputação firmada ao longo de quase 80 anos de vida. Lacrado pelo próprio em 30 de novembro de 1974, o testamento continha “387 laudas de papal almaço pautado, sento das primeiras 379 laudas à máquina e as restantes manuscritas com caneta de tinta permanente” (Almeida, 1991, p. 27). O número sugere revelações extensas (não limitadas à indicação dos herdeiros de um considerável património) e revelará informações que, no seu todo, contrariam o que era conhecido pela comunidade e pelos mais próximos: os qualificativos honesto, discreto, honrado e virtuoso revelar-se-ão, após a leitura do testamento, de muito frágil sustentação. Com efeito, o “livro de memórias” escrito pelo protagonista ilumina zonas menos claras da sua existência e oferece um conjunto de informações inéditas que diferem totalmente da imagem que, por razões de respeitabilidade e reputação social, se empenhou em ocultar durante a vida. É sobretudo no campo das relações amorosas que o testamento se mostra surpreendente: Quem na verdade alguma vez sonhou que Napumoceno da Silva Araújo poderia ser capaz de aproveitar das suas da sua mulher de limpeza ao

escritório e entrar de amor com ela pelos cantos da divisão e por cima da secretária, a ponto de chegar ao preciosismo de lhe fazer um filho, melhor dizendo uma filha, em cima do tampo de vidro!” (…). Nunca se lhe conheceu um único caso amoroso em toda a sua longa vida de quase 80 anos (pp. 11 e 13-14). Na vida amorosa do senhor Napumoceno ocuparam lugar preponderante três mulheres: Maria Francisca (Chica), a mulher de limpezas do seu escritório, Maria da Graça, a filha que só descobre sê-lo aquando da leitura do testamento, e Adélia, presumível amante, que surge pela primeira vez no testamento como herdeira. Porque jamais será encontrada, esta mulher levanta a forte suspeita de não ter sido senão uma narrativa imaginária do senhor Napumoceno e uma projeção fantasiada da sua ânsia de viver um amor de traços romanticamente ultra-sentimentais. Os comportamentos do protagonista com cada uma destas mulheres mostram uma personalidade complexa: com D. Chica, manteve relações fortuitas movidas pelo ímpeto sexual e pela ascendência do patrão sobre a empregada; com Maria da Graça, alimentou um profundo sentimento de culpa pela incapacidade de a reconhecer como filha – sentimento que o levará a tentar compensá-la com presentes e visitas periódicas durante a infância e a juventude; com Adélia, viveu a devoção absoluta e um amor que, todavia, não ilude a objetualização da mulher. Estas variações comportamentais refletem, em primeiro lugar, as múltiplas mutações sofridas pelo senhor Napumoceno durante a sua vida; mas demonstram também que o testamento não é suficiente para que o leitor aceda à totalidade existencial e emocional do protagonista. De facto, a sua imagem torna-se ainda mais intrincada diante das versões discrepantes produzidas por duas mulheres: D. Chica tem consciência que é sexualmente objetualizada; Maria da Graça sente dificuldade em entender as motivações de um homem para acautelar o seu bem-estar económico; só as compreenderá quando aparece como herdeira e tem acesso ao conteúdo do “livro de memórias”. Deste modo, as mulheres adquirem um valor cultural e simbólico, pois cada uma delas possibilita uma reflexão sobre a situação do feminino no arquipélago cabo-verdiano. É possível dizer, a respeito de Chica e de Adélia, que são um símbolo e uma metonímia das cabo-verdianas: a mulher-objeto corresponde a uma sociedade colonial, ou, como afirma Maria da Conceição Gordon (2009),

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Chica “represents the older, pre-independence generation of women” (p. 67). A primeira relação sexual de Araújo com a empregada corresponde a um ato de violação, cujo estímulo – a saia verde, prolongando a paixão obsessiva de Napumoceno por uma equipa de futebol portuguesa – evidencia a instrumentalização pura da mulher1: Agarrou-a e dobrou-a sobre a secretária, ela lutou, disse larga-me senão eu grito!, e ao mesmo tempo sentia-o a esforçar-se para lhe levantar as saias que ela conseguira prender entre as pernas (…) ele aproveitou e conseguiu abrir-lhe as pernas e levantar-lhe as saias enquanto ela lhe dava socos na cabeça (…) estava cego e surdo. [Ela] não sabia se devia zangar-se ou ir-se embora (p. 74). A tentativa de resistência de Chica corresponde à impossibilidade humana de aceitar a violação; mas poderá ler-se na sua indecisão final o conformismo de uma mulher que, como outras no seu tempo, conhecia bem os maus-tratos exercidos sobre o género feminino. Apesar da submissão e da compaixão perante o comportamento masculino, a ousadia de Francisca em não cumprir a exigência de aborto imposta por Napumoceno revela uma personalidade orientada por princípios sólidos. De resto, Chica sabe que educará sozinha Maria da Graça e que será socialmente censurada. O envolvimento de Napumoceno com a empregada de limpeza não reflete preconceitos raciais – ambos são mestiços cabo-verdianos –, mas sim preconceitos de género e de classe social. Embora educada por uma mãe submissa e resignada, Graça tem uma instrução e um sistema de valores substancialmente diferente: simbolicamente, ela corresponde a um país mais reflexivo, que faz o seu caminho para a libertação. A presumível amante de Araújo exemplifica, tal como acontece com Francisca, a condição epocal da mulher, discriminada em função do sexo, do estatuto social e da beleza. No seu corpo, depreciativamente descrito pelo senhor Araújo – “seco de pernas compridas” –, há um elemento profundamente fascinante – “aqueles olhos eternamente assustados ou espantados” (p. 96). Nos primeiros tempos da relação, Araújo não “a via como uma mulher”, encarando-a como “santa e imaculada” (p. 97)2. A mulher que o fascina não é a Adélia “lasciva e voluptuosa” que se dá a conhecer na primeira relação sexual, mas aquela que “já se perdera, a criança que vira nela, pura de inocência” (p. 102). Quando se sente “dono e senhor daquele corpo, proprietário daquela carne que escondia a gazela

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brava” (p. 104), Araújo é confrontado com a notícia de que a relação tem de terminar, porque Adélia espera um namorado emigrado. Por isso, Araújo conclui que foi apenas “um proprietário desapossado, defraudado, ultrajado” (p. 104). Em registo proudhoniano, nunca chega a ser um possuidor do corpo feminino3. A presença destas três mulheres na vida do senhor Napumoceno concorre ainda para pôr em causa a autoridade enunciativa do protagonista. A noção de verdade absoluta é substituída por uma pluralidade de pontos de vista que, em última análise, representam uma marca pós-moderna do romance: “These three women (…) form a symbolic (un) holy trinity of interaction with the male protagonist that, while illuminating his portrayal (for both Graça and the reader), equally decentralizes his position in the narrative, and substantiates the novel’s postmodernist quality” (Gordon, 2009, p. 74). 3. Resistência Tendo como pano de fundo os derradeiros anos da descolonização portuguesa do arquipélago cabo-verdiano, o romance Eva apresenta um turbulento triângulo amoroso protagonizado por uma mulher branca portuguesa que seduz dois mestiços cabo-verdianos. Procede também a uma revisão irónica do mito lusotropicalista, sobre o qual me deterei de seguida. Formulado pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre a partir da obra de 1933, Casa Grande & Senzala, o Lusotropicalismo construiu uma imagem de exaltação da influência do colonizador português, tido como o mais amável e recetivo nos seus contactos com “as raças ditas inferiores”. Depois de um período em que o Estado Novo o encarou com desconfiança, passou a ser assimilado como mecanismo de legitimação internacional da manutenção do império colonial português. Se já no romance fundador da cabo-verdianidade, Chiquinho (1947), de Baltasar Lopes, era possível observar, nas escassas e disfóricas referências ao país colonizador, um claro afastamento de tese lusotropicalista, em Eva, romance pós-colonial, tal distanciamento torna-se ainda mais evidente. Atendendo à simbologia do nome próprio – evocador da sedutora figura do Génesis – e ao papel da protagonista que ao longo da narrativa mantém um casamento, duas relações extra-conjugais que duram três décadas e alguns envolvimentos casuais, deverá concluir-se que é graças a Eva que o narrador subverte um dos fundamentos do lusotropicalismo: aquele que sustentava que o colonizador branco seduzia – ou simplesmente violava – a mulher negra

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ou mestiça africana. Os seduzidos são agora dois homens cabo-verdianos, perante os quais Eva vem a ser também um símbolo de indiferença pelo Outro – o marido, os amantes que espicaça e acaba por converter em adversários que disputam o seu afeto e se sentem inferiorizados sempre que ouvem narrativas acerca do outro, mas que acabam por concluir que o que dela podem esperar é apenas a inalterabilidade do triângulo amoroso: “nossa Eva pelos dois amada e por ela amados com igual intensidade” (p. 85). O posicionamento da protagonista diante do lusotropicalismo mostra-se consistente com a tese sustentada por Gilberto Freyre, mas não sintonizado com o dos seus dois amantes: tal como o sociólogo havia defendido que o português foi o colonizador europeu que “melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores”, assim Eva declara: “se os portugueses tinham agido em África de forma diferente dos outros colonizadores tinha sido para melhor, e mostrava-lhe como exemplos os espanhóis na América Latina ou os belgas no Congo, os ingleses na África do Sul…” (p. 235; meus itálicos). Em registo paródico, Luís Henriques contrapõe corrosivamente: “Vendo bem as coisas, havia importantes heranças de Portugal que os novos países independentes deveriam guardar com carinho. E citou três: a língua portuguesa, as mulheres portuguesas e o vinho português!” (p. 336) A instrução – vedada a mulheres em período colonial – permite a Eva tornar-se não só uma empresária de sucesso em Cabo Verde – subvertendo simbolicamente o poder do colonizador – mas também uma ativista política: são várias as manifestações em que participa – a revolução de abril de 1974; a independência de Timor Leste; a oposição ao capitalismo – sendo que, paradoxalmente, ela se transformará numa distribuidora de bens de luxo em Cabo Verde. A sua adesão à revolução dos cravos é justificada como um mecanismo de emancipação não só coletiva, mas sobretudo individual: “o 25 de Abril foi para a Eva muito mais que a libertação do seu povo da ditadura fascista. Foi sobretudo uma espécie de um repentino desabrochar para uma nova vida, a descoberta de um sentido útil para a sua existência de menina de família que recusa a domesticidade que viu a mãe aceitar com mais resignação que vocação” (p. 213). Com a independência de Cabo Verde, Eva cumpre o desejo de contribuir para o crescimento cultural e económico do arquipélago: por isso se torna cooperante, “comprometendo-se de alma e

coração na construção do país” e professora de liceu, fazendo parte do “grupo de alfabetizadores de adultos ministrando cursos nocturnos nos lugares mais esconsos dos arredores da cidade” (pp. 223-224). A postura de Eva sobre a influência nefasta do colonialismo é ambígua, mas acaba por matizar posições radicais: por um lado, ela participa “em todas as manifestações a favor das independências das ex-colónias” (p. 92), por outro, encara o colonialismo como justificação infundada dos próprios cabo-verdianos para o subdesenvolvimento do arquipélago: “o colonialismo, a eterna desculpa para tudo de mal que continua acontecendo neste país, ainda que por desleixo exclusivo dos caboverdianos” (pp. 67-68). Acusada de falta de escrúpulos nos negócios, reage exclamando: “quando lhe digo que são negociatas de enganar preto em nada diferentes das que os portugueses fizeram há 500 anos atrás ela zanga-se comigo e deixa de me falar durante dias” (p. 86). De algum modo, Eva acaba por assumir uma função simbólica relevante como nova colonizadora de Cabo Verde. Os processos de auto e de hetero-caraterização confirmam a singularidade desta mulher e o seu afastamento das expectativas de submissão impostas ao género feminino em período colonial. No primeiro caso, Eva assume a rebelião e o desafio ostensivo a convenções sócio-morais: “Eu não sou uma mulher fiel! (…) Sou apenas uma mulher casada que engana o marido com pelo menos mais dois homens, e que tem como única desculpa o facto de os amar a todos, ainda que a cada um à sua maneira” (pp. 68 e 183) Caraterizada como “uma gueixa portuguesa”, a própria se encarrega se exprimir o seu fascínio pelo sexo e pelo erotismo como forma de se libertar de uma educação castradora. Por meio de uma “perversa doutrinação que diabolizava o sexo como uma prática horrorosa”, a mãe dedicara-se a destruir nela “toda a pulsão de natureza erótica como nefando crime contra a moral e os bons costumes”. Como reação a esta catequização materna, Eva tornar-se-á “uma messalina moderna, sem qualquer freio ou pudor” (p. 161). Ao mesmo tempo, define-se como uma figuração feminina do donjuanismo: ora porque tece promessas “sempre adiadas para um dia qualquer de um futuro incerto” (p. 70); ora porque coleciona amantes e entende a sedução como um jogo em que cada homem tem um lugar importante, embora breve: “amo a todos porque é presente, porque cada um tem um lugar marcado, um lugar próprio e insubstituível, nenhum tomou o lugar do outro,

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nenhum de vocês substituiu um qualquer outro” (p. 231); ora ainda porque decide, na segunda metade da década de 1970, viver “abertamente” com Luís Henriques, “sem qualquer espécie de constrangimento como marido e mulher, e perspectivavam vir juntos para Cabo Verde após o dia 5 de Julho” (p. 232). Eva rege a sua existência por uma pauta de valores pessoal, na qual se destacam a provocação a princípios familiares (em particular à autoridade paterna); o incumprimento dos votos do casamento católico; o fascínio por Don Juan, que procura imitar no seu empenho em multiplicar amantes e abandoná-los sem sequer conhecer as suas identidades. No que respeita à hetero-caraterização, tanto Reinaldo como Luís Henriques – os amigos que dialogam sobre as relações vividas com Eva e que tentam sistematicamente suplantar-se – concordam na identificação de uma figuração contemporânea do mito da beleza e do amor: uma Vénus que se deixa admirar, mas que impede a estabilidade dos afetos: “saindo do meio daqueles panos como uma deusa desprendendo-se das nuvens que a escondem. (…) Conservava-se hirta como uma deusa esfíngica, o vestido branco tapando-lhe os pés” (pp. 84 e 89). Também neste romance se assiste a uma fragmentação do discurso omnisciente do narrador e à presença de uma poifonia vocal que, em leitura pós-moderna, relativiza a noção de verdade, pois diversas vozes se contrariam ou se complementam. 4. Conclusão O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo e Eva traçam o retrato da sociedade cabo-verdiana em dois momentos bem diferentes da sua História. No primeiro romance, maioritariamente localizado nos últimos anos da colonização portuguesa de Cabo Verde, o relacionamento de um cabo-verdiano bem posicionado económica e socialmente revela um comportamento opressivo que, não acentuando questões de natureza racial, aponta para a prepotência dos mais poderosos e para a dominação da mulher sem instrução formal e moldada por regime patriarcal que a transforma em ser alienado e resignado. Todavia, a presença da personagem de Graça permite antecipar simbolicamente o caminho de Cabo Verde para a emancipação. Permanecem duas mulheres que correspondem a estereótipos sociais e a expectativas masculinas epocais.

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Em Eva, assiste-se a uma significativa mudança de contexto histórico e social. A época colonial dá lugar ao período pós-colonial e tal alteração permite, desde logo, observar uma manifesta modificação de comportamentos e de visões do arquipélago. A transformação do contexto histórico tem também consequências na abordagem da temática amorosa: assim, no romance de 1991, conhecemos, através da leitura de um extenso testamento, os relacionamentos amorosos do protagonista com duas mulheres: são relacionamentos pautados pela dominação masculina – social e economicamente mais forte – e pela alienação feminina – subjugada e reprimida. Já no romance de 2006, a dominação económica e também erótica é exercida por uma mulher branca. Nos dois romances, mais relevantes do que preconceitos raciais de tempos coloniais, são as problemáticas de dominação em função do género e do domínio económico. Com Eva, deparamo-nos com uma subversão de um fundamento do lusotropicalismo: a sedução e a conquista deixam de ser protagonizadas por homens brancos e passam a ser desempenhadas por uma mulher. Tratando-se de um romance pós-colonial, Eva permite ainda uma reflexão sobre a condição dos cabo-verdianos de segunda e terceira gerações que vivem em Portugal: emigrantes de “precária situação” a quem o país “não reconhecia a condição de portugueses” (p. 128). O protagonismo feminino no romance Eva mostra as capacidades de uma mulher instruída, civicamente responsável e comprometida com os valores da liberdade e da fraternidade. Revela ainda, numa visão comparativa de duas obras literárias inscritas em contextos históricos acentuadamente diferentes, que o arquipélago cabo-verdiano conheceu, no seu percurso mental, uma transformação muito significativa: o papel das mulheres em Cabo Verde desvela um caminho que, não assimilando inteiramente expectativas de submissão, foi marcado pela resistência e pela conquista da emancipação e do reconhecimento. Referências bibliográficas Almeida, G. (1991). O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo. Lisboa: Caminho. Almeida, G. (2006). Eva. Lisboa: Caminho. Gordon, Maria da Conceição Lopes (2009) “The (Un) Holy Trinity: Women’s Protagonism in O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”, Portuguese Studies, 25, 1, 65-79.

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Eugénio de Andrade, Solano Trindade e Viriato da Cruz REVISITANDO A FÉ MENINA NO FEMININO António Quino Angola

Resumo: Com o presente artigo, pretendemos demonstrar como três poetas lusófonos, recorrendo às suas realidades e contextos, constroem estereótipos para definir a mulher amada, além de se socorrerem dos elementos naturais e dos sensitivos para exibir a fé depositada no feminino. Há, em cada um dos poetas, um certo desligamento no modo de pensar e de falar, particularizado pela Angola rural, pelo Brasil multicultural e pelo Portugal racional, mas a unidade ergue-se no amor expresso em português e ligados pelo oceano atlântico. E, daí, o pensar e o falar de cada um dos poetas se fazem universal e os traços estereotipados da mulher ganha um contorno colectivo. Deixa de ser a voz dos poetas a gritar por amor e passa a ser o homem que se comunga no silêncio que a ausência da mulher provoca. Três poemas vão servir para o presente estudo, sendo um de cada poeta, e neles procuramos o conjunto de metáforas de aproximação e de afastamento que não só representam a fé que o homem procura na mulher, mas que também traçam as linhas do desenho estereotipado da mulher. Viriato da Cruz (poema Namoro), Solano Trindade (poema Canto à amada) e Eugénio de Andrade (poema Procuro-te) representam um triângulo intercontinental de como a mulher pode ser representada e pensada de forma tão diferente, mas sempre muito semelhante.

REVISITANDO A FÉ MENINA NO FEMININO Quando nos predispusemos a fazer uma visita guiada à fé menina no feminino, estávamos, antes de mais, a olhar para um campo comparativo, em que três poetas dialogam em português pelo oceano atlântico. Refiro-me a Eugénio de Andrade (1923-2005), Solano Trindade (1908-1974) e Viriato da Cruz (1928-1973), nomeadamente um poeta português, um brasileiro e um angolano. Para cada um dos autores elegemos um poema que julgamos corresponder aos objectivos do estudo, nomeadamente “Procuro-te” (Andrade, 1951), “Canto à amada” (Trindade, 2008a, p. 101) e “Namoro” (Jacinto, 1976, p.p 140-141). Portanto, o comparatismo literário não é visitado como simples acto de “comparar”, mas por ser o método por excelência. No nosso caso, o comparatismo reflectirá uma visão voltada não apenas para o individual, mas para o universal, tendo em apreciação os ambientes culturais que cada um dos autores representa, designadamente Europa, América (do Sul) e África. A comprovar isso estão os primeiros versos dos

poemas seleccionados dos autores também seleccionados: “Procuro a ternura súbita,” [Eugénio de Andrade]“Eu tenho uns versos bonitos” [Solando Trindade]“Mandei-lhe uma carta em papel perfumado” [Viriato da Cruz] Na análise aos três poemas, é notório que a recorrência à primeira pessoa do singular, logo a partida, faz do individual um colectivo a partir da leitura que cada leitor universal vier a fazer. O “Eu” individual passa a ser “nós” universal. Ou seja, somos nós que procuramos, os versos bonitos são nossos e a carta em papel perfumado é enviada por nós. 1. O poema “Procuro-te” abre com um conjunto de versos a estabelecer os contrastes entre o possível e o não possível, segue por uma estrofe mais poética e menos lógica, em que o emocional se destaca, copula com uma outra estrofe mais

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real e lógica, com a razão muito presente simbolizada pelo mês de Maio, período quente, de calor e ardência no amor. Numa outra estrofe, o eu-lírico privilegia a sensatez, a busca do equilíbrio, da compreensão e da manifestação de afecto, demonstrando a seguir, no grupo de versos seguintes, a sua incapacidade natural de doar-se totalmente para o amor. Nesse caso, a expressão “Ter só dedos e dentes é muito triste” pode simbolizar a ideia de que os dentes, enquanto guardiães do interior, e os dedos, como indício de responsabilidade natural do ser, estabelecem a relação entre a razão e a emoção perante “o verão [que] pinta de azul o céu/ e o mar é devassado pelas estrelas”, uma alusão a ideia de dias longos. Finalmente, o “Antes que a morte se aproxime, procuro-te.” anuncia o princípio de continuidade da vida para fins confessos “Nas ruas, nos barcos, na cama,/ com amor, com ódio, ao sol, à chuva,/ de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.”, testemunha a essência da vida conjugal segundo a qual deve-se persistir em busca da costela oferecida para se tornar completo.

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2. Com “Canto à amada”, o poeta entoa a voz do real para descrever a visão masculina da mulher amada que está “sempre sempre desdobrada/ em beleza e formosura”. Como apaixonado, o eu-lírico demonstra a obstinação ao encontrar em cada rosto ou objecto, o rosto da amada, “dentro da cara da Lua/ numa garota da rua/ no palhaço da folia”. Na verdade, vê a amada no meio da imensidão, do universal, e na voz e ouvido de outrem, preenchendo todo o seu-eu, porque “sempre está no meu amor”. Na última quadra do poema, o autor enclausura o conteúdo que, tal como no “Procuro-te”, cria a sensação de um campo magnético que chama a si todo o sentido de beleza da mulher amada, “sempre sempre desdobrada/ em beleza e formosura”. 3. O poema “Namoro” é bem mais directo na abordagem da temática, embora parecido ao “Procuro-te” na irregularidade da estrutura estrófica e mesmo na métrica. Há uma história de declaração de amor, de conquista, de pedido de namoro, em que o sujeito se socorre de várias estratagemas para atingir um fim que nos dois poemas anteriores não foram alcançados, principalmente porque o platonismo do amor estava mais próximo de uma lírica provençal. Sem pretendermos forçar uma analogia com a criação do mundo, a conquista se reparte em sete estrofes – para tal contagem excluímos o refrão –, em que cada uma poderá corresponder a um dia da semana.

Logo no primeiro agrupamento de versos, primeiro dia portanto, há a revelação do romantismo, do galanteio masculino a descrever a beleza feminina “como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas/ espalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas.” A estratégia de conquista continua numa investida indirecta na segunda estrofe ganhando o pendor religioso, com um sujeito “pedindo rogando de joelhos no chão/ pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,/ me desse a ventura do seu namoro...”, uma investida que se revela infrutífera porque “(…) ela disse que não.” O desespero do sujeito vai aumentando e, na terceira estrofe, o obscuro e a tradição africana são chamadas na pele da “avó Chica, quimbanda de fama”, esperando que ela fosse capaz de fazer “um feitiço forte e seguro/ que nela nascesse um amor como o meu...”. Ainda assim, “(…) o feitiço falhou.”. No quinto dia, ou quinta estrofe, o sujeito inicia a investida directa. Prepara-se para abordar a mulher amada “à porta da fábrica,”, procurando conquistá-la através de bens materiais, pelo romantismo, “e ela disse que não.” O sexto dia é o do desespero total; da descrença. O sujeito anda sujo e descalço. O seu caso não passa despercebido na comunidade. As pessoas envolvem-se, levam-no ao baile, um momento e local de convívio comunitário. E chega o sétimo dia, ou sétima estrofe, a da gloria: Tocaram uma rumba dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu! E a malta gritou: “Aí Benjamim! “Olhei-a nos olhos -sorriu para mim pedi-lhe um beijo -e ela disse que sim. Poder-se-á questionar sobre se realmente não terá sido a pressa a não permitir que as estratégias utilizadas tivessem sucesso, ou se tudo antes tenha sido um fracasso. Entendido como uma instituição que valoriza o sentimento recíproco entre duas pessoas, o pedido de namoro só acabou correspondido quando houve a envolvência e apoio da comunidade. Poema: a razão tensiva de ser Essa relação vista logo na ponta de iceberg dos poemas, tem a sua razão de ser. Foi, no fundo, o que me animou a fazer a leitura, que a seguir

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proponho, estando exactamente na relação que os três poemas dos autores referenciados convocam no seu conteúdo. Refiro-me à “Procuro-te” (Eugénio de Andrade), “Canto à amada” (Solano Trindade) e “Namoro” (Viriato da cruz). Na relação entre as temáticas desses três poemas, há como que uma cadeia que inicia na procura da mulher ideal, passa pelo encontrar e na dedicação de um canto em sua honra e culmina com um sôfrego pedido de namoro. No entanto, há aqui uma certeza nessa cadeia: o ser amado, embora identificado, é simbólico e imaginário, e a sua fisionomia é comparada a elementos naturais que servem para visualizar e visionar a grandeza da mulher. Daí a ideia de “fé menina” simbolizar uma inocente crença por um ser eminentemente ideal. No curso do natural, em “Procuro-te”, Eugénio de Andrade propõe uma viagem de busca que se inicia no mar e emerge para o ar; Solano Trindade convoca, no “Canto à amada”, um passeio do cosmo ao cultural e, em “Namoro”, Viriato da Cruz emigra do individual para o comunitário. Em essência, vemos os três textos a enclausurar paixões entre o natural e o social; entre o utópico e o realizável. É nesse prisma que a mulher é representada; numa sentimental convicção inocente para homens que se mostram aparentemente racionais. Dissemos aparentemente racionais porque “a racionalidade própria ao universo da paixão é aquela do acontecimento: o acontecimento não é acabado, ele advém e afecta aquilo que está diante dele, para quem ou em quem ele advém” (Fontanille, 2008, p. 188). A distância entre a mulher ideal e a real na poesia sinonimiza a relação virtual entre o material e o incorporal. E a razão poética tem noção dessa realidade artística. No poema “A musa e a poesia”, Solano Trindade (2008b, p. 100) confessa-se: É necessário criar muitas musas para que a poesia não pare… (…) A função do poeta é construir a musa é material de construção que o poeta transforma em monumento… Está claro que a lírica precisa de musas, que em muitos casos é um ser definidamente indeterminado, como se observa no poema “Namoro”, de Viriato da Cruz. Neste, o sujeito tem nome (Benjamin),

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mas a amada, tal como em Solano trindade e em Eugénio de Andrade, é propositadamente anónima. Porém, os tais materiais de construção recuperados do poema “A musa e a poesia” trazem em comum o facto de terem sido transformados em monumento. Apoiando este excerto, Umberto Eco (2011) relata que “a matéria é, assim, uma espécie de obstáculo sobre o qual se exerce a actividade inventiva, que transforma as necessidades do obstáculo em leis da obra” (p. 16). Nos poemas que seleccionamos, a mulher não é tão matéria quanto aquela que Eugénio de Andrade nos apresenta em “Algumas reflexões sobre a mulher”1, em que o material de construção poética é mãe, animal sonâmbulo, fabricante do mel, que também sabe romper o inferno, esconder o latir lancinante dos seus cães, beber o silêncio nas próprias mãos, voar mais fundo que as aves e mergulhar nas águas da sombra. Pelos três poemas, um de cada autor, a mulher é grafada num quadro estereotipado, em que a lógica masculinizada endeusa e presta vassalagem à menina que inspira e oxigena a vida do poeta. Daí, quanto menos humanizada ela for retratada, mais o poeta terá oxigénio para a idolatrar. http://www.astormentas.com/PT/poema/9852/ Algumas%20Reflex%C3%B5es%20Sobre%20 a%20Mulher acedido a 31.05.2012 Mas isso não é nenhuma novidade pois, ao longo dos tempos, a literatura tem revelado o seu mecanismo aparentemente desarticulado, apresentado como um espaço privilegiado para se humanizar o inexistente e explorar o inalcançável. Nesses advérbios artísticos de lugar, o feminino se eleva como uma deusa da criatividade, até porque “o acto criador é apenas um momento incompleto e abstracto da produção de uma obra” (SARTRE, 2006, p. 37). Umberto Eco acrescentaria que “o artista procede por tentativas, mas a sua tentativa é guiada pela obra tal como esta deverá ser, algo que, na forma de um apelo e de uma exigência intrínseca à formação, orienta o processo produtivo” (p.17). Tudo isso, essas impressões e imprecisões sobre o fazer poético, vem desde muito antes do lirismo trovadoresco, período em que a mulher tinha já para si um lugar devidamente descriminado nas cantigas. Portanto, não nasceu na época contemporânea a manifestação artística na qual o homem procura demonstrar um platonismo masoquista, criando uma realidade abstracta onde se presta vassalagem à mulher. Se Benedetto Croce (1967) se tenha referido

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à poesia como “sopro sagrado” (p. 6), Roland Barthes (1987) procura estar em sintonia sobre o poder da poesia ao afirmar que “escrever é abalar o sentido do mundo” (p. 6-7). Nessa perspectiva, ambos parecem encarar o texto poético como uma lufada que traz consigo senhas de impulso perante um mundo que se deixou consumir por imensos abalos que não são necessariamente sagrados e, por arrasto, não poéticos. A mulher, nos poemas que constituem o nosso corpus, afirmada pelo sujeito lírico, é fonte inspiradora e criadora de paixões que o eu-poético necessita para se autoflagelar e, assim, posicionar melhor a sua criatividade libertadora. Esse mundo, criado por si para a sua própria evasão, é ao mesmo tempo o da sua orgástica paixão. Citado por Pierre Bourdieu (1996), Flaubert faz a seguinte declaração: “Eis porque amo eu a arte. É que aí, pelo menos, tudo é liberdade, nesse mundo de ficções. Tudo se sacia nele, nele tudo se faz, somos ao mesmo tempo o nosso rei e o nosso povo, activo e passivo, vítima e sacerdote. Nada de limites; a humanidade é para nós um fantoche de guizos que fazemos tocar na ponta de uma frase como um saltibanco na ponta do pé” (p. 48). E nesse espaço lírico que é o aludido mundo do poeta, a incompletude permanece para gáudio da criatividade. E, concomitantemente, da sua liberdade, que permite a Eugénio de Andrade achar que “Um pássaro e um navio são a mesma coisa/ quando te procuro de rosto cravado na luz”, que permite a Solano Trindade andar alucinado e ver a sua amada “dentro da cara da Lua”e“nas águas do grande mar”, e que permite a Viriato da Cruz atingir a euforia perante o consumar de um desejo: Tocaram uma rumba dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu! Flaubert e Madame Bovary (1971) querem ver o homem mais comprometido com o acto poético e, talvez por isso, se questionam sobre uma provável pirâmide de prioridades do homem-poeta: “Um homem não devia (…) primar por múltiplas actividades, sem primeiro saber iniciar uma mulher nos embates da paixão, nos requintes da vida, enfim em todos os seus mistérios?” (p. 31) Pode-se depreender que, na relação poeta-criação-mulher, há um código de ética, em que o eu-lírico compreende e assume paixões e (des) ilusões. Fontanille (2008) sintetiza esse pressuposto

afirmando que “a paixão poderia ser considerada como o princípio da coerência (ou da incoerência) interna do sujeito: ela dissocia ou mobiliza, ela selecciona um papel e suspende todos os outros, ela agrupa os papeis em torno de um só, etc” (p. 214). Para concretizar este proposito poético, como refere Jerôme Roger (2002), “o poeta propõe símbolos; imagens que vão levar o leitor a recriar figuras também simbólicas” (p. 166). Essa estratégia poética masculinizada nos três textos em análise, leva o leitor a desconcertar-se com o texto num primeiro contacto, mas depois “a leitura se dedica a desfazer o «tecido» do texto para mostrar como nele se superpõem aos diversos «códigos» constitutivos de todos os seus sentidos possíveis ou secundários subjacentes” (idem). Aos olhos do leitor, tais símbolos carregam-se de feminilidade e alimentam a paixão “como se a imagem pudesse nascer som, cor, sem um exercício concreto da fisicidade a formar que fosse para ela [imagem] uma contínua referência, um suporte, uma sugestão” (ECO, 2011, p. 15). É a tal ideia de se afastar do concreto e procurar descrever o inexistente ou inalcançável a partir do existente. Sobre esse fenómeno, Francisco Soares (2007) dá uma explicação pertinente: “A importância de uma imagem de conjunto no processo criativo deriva de a visão da totalidade se tornar o projecto da obra e de ser sempre necessário termos um projecto – ainda que não tenhamos sempre o mesmo” (p. 88). O processo criativo pode ser condicionado ou condicionar uma imagem poética, que pode vir depois a resultar num todo estrutural para que a obra, na vã busca da perfeição, tente comunicar o projecto, que nem sempre existe objectivamente. Aliás, Jean-Paul Sartre (2006) refere que “essa aparência de finalidade que descubro na variedade das cores, na harmonia das formas, nos movimentos provocados pelo vento, sei bem que não posso explicá-la” (p. 43). No entanto, a reprodução da imagem feminina no texto, na perseguição de paixões e (des)ilusões, traça uma linha que foge do horizonte do poeta, mas que sem ele a linha jamais será definida. Jean-Paul Sartre (2006) explica isso buscando a sua própria experiência: “Quando me encanto com uma paisagem, sei muito bem que não sou eu que a estou criando, mas sei também que, sem mim, as relações que se estabelecem diante dos meus olhos entre as árvores, a folhagem, a terra, a relva, em absoluto não existiriam” (p. 43). No presente trabalho, Gaston Bachelard (1990) vem ajudar a sintetizar os nossos objectivos peran-

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te a transformação da paisagem pela visão criadora do poeta. Conforme refere, “para bem sentir o papel imaginante da linguagem, é preciso procurar pacientemente, a propósito de todas as palavras, os desejos de alteridade, os desejos de duplo sentido, os desejos de metáfora” (p. 3). Na nossa perspectiva, vamos revisitar três matrizes em função de uma metáfora-mãe (paixão), encarada como um universal temático. Como nos lembram Brunel e Chevrel (2004), “os problemas relativos à construção de conjunto colocam-se evidentemente com acuidade quando se pretende demonstrar a existência de analogias fundamentais entre alguns autores ou entre algumas obras, não tanto no quadro preestabelecido de um qualquer universal temático ou tipológico, mas segundo o ângulo de um conceito-chave que terá de ser seguido nas suas diferentes encarnações e cuja pertinência para o estudo do corpus escolhido será precisamente o que se pretende demonstrar” (p. 177). Essa paixão, o poeta direcciona-a à mulher. Depois de lermos os textos seleccionados, somos invadidos pela curiosidade de conhecer as indeterminadas mulheres por trás dos poemas e saber de Eugénio de Andrade, Solano Trindade e Viriato da Cruz a razão do escrever. Na impossibilidade de ouvir deles tal resposta, podemos recorrer à resposta de Jean-Paul Sartre (2006) disse: “Cada um tem suas razões: para este, a arte é uma fuga; para aquele, uma maneira de conquistar. Mas pode-se fugir para um claustro, para a loucura, para a morte; pode-se conquistar pelas armas” (p. 33), e no entanto está aí o poeta, de caneta na mão, em busca da conquista ou a tentar empreender uma fuga. Ainda assim, a dúvida sobre tal posição pode permanecer. Porquê tal opção? Voltamos a um escrito de Jean-Paul Sartre (2006): “(…) existe, por trás dos diversos desígnios dos autores, uma escolha mais profunda e mais imediata, que é comum a todos” (p. 33). Na realidade, e após análise dos textos poéticos do nosso corpus, não se trata de uma visão do macho para a fêmea, mas antes uma visão de dependência consciente do poeta que reconhece a sua natureza masculina, não tanto apelando a uma relação sexual carnal, mas a uma relação sexual mais espiritual à boa maneira das cantigas de amor ou do lirismo provençal. O que o poeta busca nas palavras não será explicável pela lógica dos géneros. Guacira Louro (1997) reconhe-

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ce que “enquanto a identidade de género se liga a identificação histórica e social dos sujeitos que se reconhecem como femininos e masculinos, a identidade sexual está relacionada directamente à maneira como os indivíduos experenciam os seus desejos corporais” (p. 33). Aliás, Jean-Paul Sartre (2006) é peremptório na sua análise: “Todas as relações que estabelecemos permanecem hipóteses” (p. 43). Ou seja, o poeta busca e buscará sempre o inalcançável, mesmo na impressão que vai construir sobre as paixões. É um desígnio ingrato, pois, como nos lembram Deleuze e Guatarri (1992), “o objectivo da arte (…) é arrancar o percepto das percepções do objecto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro” (p. 217). Portanto, não é uma tarefa fácil, não fosse ela também um novilho perdido num labirinto fictício, que existe para ser desflorado pelo poeta e existirá para o consumo do futuro leitor. Voltando ao título da presente comunicação, para situarmos e espelharmos melhor a nossa proposta de leitura, torna-se pertinente visitar o conceito do monema fé. Para Roquete e Fonseca (1974), fé é um pressuposto de persuasão que se tem na verdade de uma coisa. “A fé é uma crença fundada unicamente na autoridade do que fala. Neste sentido é que se diz, ter fé em alguém, que vale o mesmo que estar persuadido na verdade do que diz” (p. 262). A aparente verdade do poeta alimenta o seu anseio no fazer poético. Assim, em cada um dos três poemas do nosso corpus há um princípio de anseio, de desejo, de exaltação, de entusiasmo, de êxtase, palavras que equivalem a paixão (Porto Editora, 2009, p. 510). Nos três poemas, os autores destacam o belo como enfoque de abordagem e justificativa da intensidade afectiva. Por exemplo, Viriato da Cruz descreve o sorriso luminoso: (…)tão quente e gaiato como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas espalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas. sua pele macia - era sumaúma... Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas tão rijo e tão doce - como o maboque... Seu seios laranjas - laranjas do Loge seus dentes... – marfim.

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do tamanho do mundo Eugénio de Andrade, por seu lado, chama a mulher amada e vê o nome dela ecoar pelo seu infinito horizonte: Chamo por ti, e o teu nome ilumina as coisas mais simples: o pão e a água, a cama e a mesa, os pequenos e dóceis animais, onde também quero que chegue o meu canto e a manhã de maio. Mais pragmático, Solano Trindade sintetiza a beleza da vulgar mulher amada: (…) sempre sempre desdobrada em beleza e formosura

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É claro que deverá haver outros traços da mulher idealizada. Mas, tal como refere Jacques Fontanille, “se o amor é «cego», por exemplo, não é porque o sujeito não vê mais o seu objecto, mas, exactamente pelo contrário, é porque ele focalizou alguns de seus aspectos e ocultou outros, concentrando toda a sua atenção nas partes seleccionadas” (p. 210). Pelo sentimento arrebatador, o poeta oferece a sua identidade ao magnetismo do ser exaltado. Tal como aconselha Jacques Fontanille nessas situações, perseguimos assim um princípio conceitual em que a paixão é vista na óptica do discurso semiótico. Dito doutro modo, na perspectiva de organizar a sintaxe de um objecto semiótico, Fontanille elege “três grandes dimensões da nossa actividade de linguagem ou do discurso, nomeadamente a Acção (lógica das transformações, que é tomado retrospectivamente); a Paixão (dimensão da lógica tensiva imposta ao corpo sensível) e a Cognição (manipulação do saber no discurso)” (p. 190). Por agora, concentremo-nos na dimensão lógica tensiva imposta ao corpo sensível. No presente estudo, “o regime da paixão baseia-se nas modulações contínuas da intensidade semântica e na sua relação com a quantidade (seja a quantidade actancial ou a extensão espaço-temporal)” (Fontanille, 2008, p. 204). Por exemplo, o sujeito lírico de Eugénio de Andrade deixa a paixão transbordar logo na primeira estrofe do poema: Procuro a ternura súbita, os olhos ou o sol por nascer

Não menos arrebatador, Viriato da Cruz hiperboliza também no primeiro conjunto de versos: Mandei-lhe uma carta em papel perfumado e com a letra bonita eu disse ela tinha um sorrir luminoso tão quente e gaiato como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas espalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas. Se pretendermos testemunhar os indícios de paixão, diremos que em ambos os momentos a presença da foria é marcante. Ou seja, e citando Fontanille, “a foria é mais ou menos intensa (é essa a definição de afecto) e ela é polarizada em disforia e em euforia pelo julgamento axiológico (é essa a definição de valor)” (p. 206). Compreendemos que foria é um princípio que regula a relação tensiva do homem com o mundo e com os seus semelhantes. Através desse princípio, o próprio homem cria as suas balizas com pólos de análise dual. A euforia e a disforia são exemplos desses pólos. Eugénio de Andrade, Solano Trindade e Viriato da cruz dão-nos exemplos evidentes disso. Oh, a carícia da terra, a juventude suspensa, a fugidia voz da água entre o azul do prado e de um corpo estendido. [Eugénio de Andrade] ou Ontem minha amada estava dentro da cara da Lua numa garota da rua no palhaço da folia [Solano Trindade] Ou ainda Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas tão rijo e tão doce - como o maboque... Seu seios laranjas - laranjas do Loge seus dentes... - marfim... Mandei-lhe uma carta e ela disse que não. [Viriato da Cruz] Nessas três estrofes, o eu-lírico deixa fluir o

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seu estado emocional de excitação plena, sendo possível “sentir” a carga emocional que as palavras trazem da euforia contagiante. Por outro lado, a disforia testemunha a tensão do eu-lírico masculino na descrição da fé menina. Entendida como uma mudança repentina e transitória do estado de ânimo, tais como sentimentos de tristeza, pena ou angústia, o eu-lírico dos três poemas deixa-se vencer por um mal estar psíquico acompanhado por sentimentos de tristeza e/ou melancolia: Ter só dedos e dentes é muito triste: dedos para amortalhar crianças, dentes para roer a solidão, enquanto o verão pinta de azul o céu e o mar é devassado pelas estrelas. [Eugénio de Andrade] ou Ontem minha amada estava dentro da cara da Lua (…) Um dia vi minha amada nas águas do grande mar [Solano Trindade] Ou ainda Mandei-lhe uma carta e ela disse que não. (…) Andei barbado, sujo, e descalço, como um mona-ngamba. [Viriato da Cruz] Na paixão pela mulher idealizada, traduzida pelos três poetas, há uma intensidade afectiva e de valor que regula a relação tensiva do homem. Continuando a citar J. Fontanille, “o percurso passional só segue um programa na medida em que ele é altamente estereotipado. (…) Consequentemente, o discurso apaixonado é regido por uma racionalidade bem diferente (…): a racionalidade do advir, que é aquela irrupção dos afectos e do devir das tensões afectivas” (p. 188). E, isso, os três poetas conseguiram. Ora, nos seus poemas permitem que a água jorre sobre os seus afectos alforriados, com a intensidade das suas torrentes. O português abre o discurso de tensões afectivas logo com uma interjeição, em que o seu azul é de liberdade: Oh, a carícia da terra, a juventude suspensa,

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a fugidia voz da água entre o azul do prado e de um corpo estendido. Solano Trindade projecta a paixão do mar da desgraça para o da alegria: Um dia vi minha amada nas águas do grande mar outra vez a encontrei num belo maracatu Chegado em África, o angolano Viriato da Cruz resgata o mar para o fazer brilhar através de um sorriso quente e gaiato: espalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas. Consideramos pertinente abrir um parêntese para lembrar uma outra das três dimensões da actividade de linguagem ou do discurso na perspectiva de Fonanille (2008). Referimo-nos à Acção que, como vimos, faz alusão à lógica das transformações, que é tomado retrospectivamente. Ora, o eu-lírico de Viriato da Cruz dá sentido prático a essa dimensão tensiva: Andei barbado, sujo, e descalço, como um mona-ngamba. (…) Tocaram uma rumba dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu! E a malta gritou: “Aí Benjamim!” O que aqui se percebe é que o sujeito lírico vive um momento de crise; de sacrifícios, compensado posteriormente com a bonança afectiva. Fontanille refere que “o regime da acção baseia-se na transformação descontínua das conjunturas. Uma acção liga duas situações, a inicial e a final, cujos conteúdos são invertidos: antes da acção, o ambicioso é pobre e desconhecido; depois da acção, ele é rico e (talvez) estimado” (p. 191). A pretensa crise vivenciada pelo sujeito poético permite-nos rebuscar um poema de Solano Trindade (2008b) intitulado “A mensagem do poeta” (p. 95), que apresenta alguns versos chaves na perspectiva de resumir a nossa comunicação: (…)A mensagem do poeta Fala do corpo da mulher, Dos seus seios Da sua boca Das suas mãos,

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Porque na mulher Está a vida do poeta Porque a mensagem do poeta Vem do ventre da mulher. Então, depreendendo de tudo que foi aqui dito, os traços estereotipados da mulher ganha um contorno colectivo nos versos dos poemas do nosso corpus. Deixa de ser a voz dos poetas a gritar por amor e passa a ser a do homem que se comunga no silêncio que a ausência ou falta da mulher amada provoca. Esse momento tensivo é alimentado por uma fé instrumentalizada por uma inocente crença assente na configuração de uma mulher eminentemente ideal. Bibliografia Activa ANDRADE, E. (1951). As Palavras Interditas. Lisboa: Centro Bibliográfico. JACINTO, A. (1976). Poesia de Angola. Luanda: Nova Editorial Angolana. TRINDADE, S. (2008a). O poeta do povo. São Paulo: Ediouro _____________. (2008b). Poemas antológicos. São Paulo: Nova Alexandria. 162 Bibliografia BACHELARD, G. (1990). O ar e os sonhos – ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes. BARTHES, R. (1987). Sobre Racine. Porto Alegre: L&PM. BOSI, A. (2000). O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras. BOURDIEU, P. (1996). As regras da arte: Génese e estrutura do campo literário. Lisboa: Editorial Presença. BRUNEL, P. e CHEVREL, Y. (2004). Compêndio de literatura comparada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. CROCE, B. (1967). Poesia, Porto Alegre: UFRGS. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. (1992). O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34. Porto Editora. (2009). Dicionário de Sinónimos e Antónimos, Porto: Autor. ECO, U. (2011). A definição da arte. Lisboa: Edições 70. FONTANILLE, J. (2008). Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto. Flaubert, G. e Madame B. (1971). São Paulo: Abril Cultural. ROGER, J. (2002). A crítica literária. Rio de Janeiro: Difel. ROQUETE, J. I. e FONSECA, J. (1974). Dicionário dos sinónimos poéticos e de epítetos da língua portuguesa. Porto: Lello & Irmão. SARTRE, J. (2006). Que é a literatura?. São Paulo: Ática. SOARES, F. (2007). Teoria da Literatura: criatividade e estrutura. Luanda: Kilombelombe.

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DA MITIFICAÇÃO À PROSCRINAÇÃO: Maria Monforte e o magnífico poder da ausência Ana Luísa Vilela Universidade de Évora Portugal

Resumo: N’Os Maias, o maior romance de Eça de Queirós e um dos maiores da literatura europeia, as ideias sobre o amor e a mulher são absolutamente axiais, revelando características estéticas, estilísticas, ideológicas da obra. A tematização do amor e da mulher constitui um eixo determinante de diferenciação dos dois paradigmas (o positivo e o negativo) representados no romance. Desse modo, um dos objectivos desta comunicação é o da sistematização dos aspectos gerais de que pode revestir-se a representação feminina no romance. Assim, identificaremos aqui os aspectos ideológicos, sobretudo de influência positivista, presentes na estruturação do ideário queirosiano a respeito da mulher – mas estaremos sobretudo atentos à operação subtil de relativização e desconstrução de tal vulgata ideológica, levada simultaneamente a cabo no interior do próprio romance. Na verdade, observaremos o modo como aí permanecem em aberto as questões que a ideologia, os discursos culturais e até os códigos estéticos disponíveis não podiam, em 1888, resolver. Nessa perspectiva, a figura esplêndida de Maria Monforte pode servir de emblema para a falência do estereótipo misógino tradicionalmente atribuído a Eça – deixando perturbadoramente intocadas questões virtualmente irresolúveis como a da identidade feminina, o enigma da sua sedução e a perturbação que ela lança sobre a estrutura familiar estabelecida.

Algumas Considerações Gerais N’Os Maias1, as representações do feminino podem relacionar-se ideologicamente com a misoginia positivista, de inspiração proudhoniana, bastamente apontada em Eça. No caso da representação de Maria Monforte, o modelo romântico (Dantas,1999, p. 248) é claramente identificável – mas pelo seu avesso. Na realidade, este modelo romântico é, no romance, o contra-modelo, o modelo execrando e ironizado. Todavia, a excepcionalidade romântica e, sobretudo, a aproximação bovarística entre o real e o ficcional caracterizam efectivamente a Monforte e os seus parceiros, como Pedro, Alencar, ou mais ainda, Tancredo, a quem Alencar atribui (como Ega a Craft, aliás), um temperamento byroniano. N’Os Maias, a referência romanesca integra a 1 Todas as citações aqui feitas de Os Maias são indicadas através de: (OM, nº de página). Conf. Referências.

tendência para a inscrição da representação em dois níveis, para a representação duplamente ficcionalizante, actuando a alusão estética como um eco ou um contraponto da caracterização ficcional; neste caso específico, a referência romântica pode reforçar igualmente uma classificação tipológica, uma catalogação simplista da personagem, tributária de um modelo romanesco banalizado. É Alencar quem, mais tarde, tecerá a Maria o epitáfio que caberia a uma Dama das Camélias (Maria preferia as túlipas para emblema); e Guimarães, outro foragido romântico que privou com ela em Paris, realça a sua “generosidade” e o seu “feitio extraordinário”. Ega considerá-la-á “uma inspirada”. Mas será preciso notar que esta aura magnífica se desvanece, ou se degrada sensivelmente, quando confrontada com a imagem real da Monforte, fornecida pelas confidências retrospectivas de sua filha. Tipicamente, a excepção romântica descobre-se na verdade desvario, alienação,

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promiscuidade, ociosidade, desonestidade e, finalmente, patologia e degradação. Entre a prostituta e a deusa, Maria Monforte congrega, portanto, uma rede de referências imaginárias que podemos aproximar do sistema finissecular de imagens femininas, estudado por Eléonore Roy-Reverzy e Mireille Dottin-Orsini (1997, 1993). Tal sistema tendencialmente configura - por proscrição e degradação - a adopção de um registo mitificante do feminino. Trata-se de um registo sucedâneo, que inverte, mas ainda reproduz, o dualismo sexual romântico, nos seus diabolismo e angelismo, no seu fascínio aterrorizado pela mulher (cujos aspectos são magistralmente explorados e desenvolvidos por Mario Praz, 1988). Sistematiza Roy-Reverzy as consequências de tal regime realista da representação feminina, em que a proscrição da espiritualidade na mulher se traduzirá na proscrição do romanesco:

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(...) la bipolarité, qui structurait notamment la vision hugolienne, se trouve rompue: le réalisme ruine l’équilibre en sapant l’élément sublime, en le traitant sur le mode de la pure dérision. (...) Car la condamnation de la femme et de la forme romanesque se corroborent nécessairement: (...) Ne pouvant éliminer totalement la femme ni bâtir autre chose, les romanciers de la fin du siècle se complairont à supprimer en elle toute dimension métaphysique et lui refuseront délibérément l’absolu (...) celle qui avait présidé aux destinées romantiques est ravalée à une physiologie grotesque, réduite à un corps dont la beauté masque mal le travail des pulsions. (...) elle dominera toujours, mais dans l’avilissement, elle sera reine, mais d’un royaume grotesque dont les sujets seront des hommes lâches, malades d’idéalisme. (Roy-Reverzy, 1997, pp. 11/13, comas do autor) Já Natália Correia refere a “ausência de Eurídice em Eça”, diagnosticando-lhe um “receio de sedução”, “uma reserva defensiva perante os atractivos femininos”, um “visível retraimento em face do cosmo feminino”, nos quais a autora adivinha “a prevenção de um espírito receoso de enfrentar a esfinge do amor”; e acaba por sintetizar: “Eça não tem Eurídice: é um homem classicamente embebido no aqui e agora.” (cf. Correia 1971). Notemos, no entanto, que a representação física e caracterial de Maria Monforte pode ainda apresentar resíduos estéticos - talvez intencionais - da

metafísica imagem feminina do romantismo. Contudo, certamente o mais importante será observarmos, nas próximas páginas, o modo como a sua caracterização reflecte literalmente a preponderância exclusiva do olhar masculino, construtor de imagens míticas, e talvez doente de idealismo. Por outro lado, interessará perceber que tal caracterização evoluirá para uma espécie de duelo entre os valores de Eros e os da família. Complementarmente, consideraremos aqui a forma como tal olhar masculino, aliado ao apagamento feminino no romance, vai consignar, através dessa ausência, uma mutilação identitária irreversível. Construção e desconstrução de um corpo mítico. A Maria Monforte - contemplada por Pedro, Alencar e por uma multidão lisboeta deslumbrada cabem atributos divinizantes, próprios de “alguma coisa de imortal e superior à terra” (OM, p. 22). A caracterização inicial da sua presença é explicitamente fornecida pelas visões alternadas de Alencar e Pedro, que se dedicam a observá-la, ambos significativamente encostados às duas ombreiras da mesma porta do Marrare, olhando para a porta em frente, da modista Madame Levaillant, ou no teatro. Destas visões ressalta sobretudo aquilo que podemos designar pelo efeito estético-erótico da “auréola”, que emana tanto do seu “passo de deusa”, da “claridade loira” potenciada pelo brilho das suas jóias, como da “impressão” que magnetiza nos espectadores. A “impressão” que causa Maria vive, portanto, dos efeitos visuais, mais ou menos cenográficos, do contraste cromático e óptico, assim como de aspectos contextuais, decorrentes da topografia da contemplação. Tais aspectos tendem a conferir amplificação, iluminação e elevação à figura contemplada. Referências estéticas, comparações estatuárias, marmóreas, picturais - reforçam, simultaneamente, o efeito de sacralização da imagem feminina, o carácter intensamente icónico da sua representação, assim como o seu pendor teatral. As associações a Ceres são subtilmente desconstruídas pela pequena frase: “Ela conservou durante algum tempo a sua atitude de deusa insensível” (OM, p. 26), que explicita o desígnio sedutor da pose. Mais tarde, já em Arroios e casada, a aliança à túlipa real carnaliza-a um pouco mais: evocação frívola de um motivo romanesco, este emblema floral retoma as sugestões sensuais e férteis da figura feminina excessiva, com o esplendor copioso e rico

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de Ceres ou Juno. Em Maria, o corpo é o elemento que mais intrinsecamente tematiza a personagem. O espaço em que se move (sobretudo o de Arroios), é verdadeiramente a materialização determinista (cf. Mitterand, 1987, p. 121) dos seus atributos físicos. O corpo polposo, a intencionalidade capitosa, a exuberância teatral dos adornos adquirem um vivo contraste com a obscuridade e a penumbra do pai e, depois, de todos os outros que a rodeiam. A imagem de Maria Monforte é sempre invasiva: folhos, decotes, jóias, guardas-sóis, acessórios e extensões literalmente cobrem e ofuscam os admiradores. O seu é, por definição, um corpo focal - cuja imagem é apoteoticamente reflectida nos espelhos, nos estofos, nas grinaldas, nos brilhos, nos “quadros vivos” que literalmente encena, como nos olhos dos outros figurantes reduzidos ao eclipse. Exuberantemente icónica, a representação do corpo de Maria Monforte corresponde, com singular precisão, ao típico corpo-imagem, fixado nos jogos mundanos de salão, ou teatralizado nas suas atitudes e nos seus movimentos pelos rituais estereotipados da vida social. Philippe Hamon refere-se a este tipo de representação como a de um corpo “saisi comme tableau par un tiers voyeur” (Hamon, 2001, 194). Ou seja, o seu é um corpo enquadrado textualmente por um dispositivo cénico e por um indispensável observador ou conjunto de observadores, que o transformam em espectáculo. A sua é, de facto, uma imagem-espectáculo, com a vocação da luz e do palco. Não admira, portanto, que Pedro a namore também ostensivamente, “publicamente, à antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janela dela, pálido e em êxtase.” (OM, p. 26). Azuis e profundos são os seus olhos, e também a caleche, e o “ninho todo azul-ferrete” em que devora romances em Lisboa, e igualmente o outro “ninho” parisiense, sobre os Campos Elísios, todo de veludo azul, assim como o seu futuro e precioso boudoir azul. Volumes de novelas e cartões de modista juncam esses espaços, numa discreta denúncia de frivolidade, que a sua preferência por Paris e por lojas de modas vai reforçar. Ao azul junta-se a cor complementar, o amarelo ou dourado - atributo de Ceres e de Eros, cor dos seus cabelos, mas também da riqueza ominosa do pai. Outro contemplador silencioso, Afonso, vê-a passar, de cor-de-rosa e escarlate, como uma mancha de sangue sobre Pedro. Assim totaliza Maria Monforte o espectro das três cores primárias. A nitidez das conotações é, digamo-lo, também

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excessivamente óbvia. A tematização sacralizante do corpo feminino é, entretanto, permanentemente acompanhada pela sua desconstrução tipicamente realista. Na caracterização da Monforte representa-se, com bastante clareza, a dissonância entre a sumptuosa imagem física e a indigência moral. Logo no capítulo II d’Os Maias, sublinha-se o ambiente de “festança” de Arroios, em que reina uma esposa decotada e gastadora. Já antes se tinha denunciado a duplicidade de Maria, a sua dissimulação afectiva, a sua insensibilidade artística (a Itália enfastia-a), o seu calculismo egoísta, as suas volubilidade, futilidade, inautenticidade, vaidade, irascibilidade. A desacreditação do discurso de Maria consuma-se pela exacerbação sentimental e colérica dos seus “delírios” devotos pela filha e do seu ódio a Afonso - ódio desabrido (“D. Fuas”, “Barbatanas”) ou dissimulado (“diz-lhe que eu já o adoro”/”odiou o velho”). Nestes transportes da ira, os seus olhos parecem negros. Avoluma-se o teor temperamentalista da representação da Monforte - sintoma de um fatal destino narrativo. Por outro lado, o corpo temático da mulher, entre a deusa e a Fúria, configura-a como digna oponente ao corpo temático da virilidade. Da mesma forma se adensa, na penumbra, a ameaça da história familiar de Maria, materializada nesse pai velhote, desajeitado e tímido. Reduzido a um discurso intermitente, truncado e incaracterístico (o seu “francês de embarcadiço”), atrás da sua alta gravata, na obscuridade do seu recanto, no seu leve coxear, o papá Monforte reproduz fisicamente a “claudicação” da sua biografia sombria e do seu nome retocado. Como muitas das histórias do romance, esta “história obscura e mal provada” nunca se esclarecerá factualmente. Os desenvolvimentos aventureiros da vida de Maria, igualmente claudicantes e conjecturais, constituirão a continuação deste registo mais ou menos elíptico. No capítulo II do romance, traça-se com exemplar precisão a antítese Eros/ Família. De um lado, o dos Monfortes, alinham-se os signos da sedução romântica, feminizante e sensual, “os braços nus” da mulher e o esplendor visual dos espaços; do outro, remetido à ausência temática e ao silêncio ressentido, está Afonso, retirado em Santa Olávia. O domínio de Eros, baseado no triunfo da mulher e dos seus adereços, reduz os elementos masculinos à condição de “cortesãos” a fingir, mediadores do seu fascínio, admiradores do seu espectáculo, basicamente desvirilizados. Alencar é o seu “cavaleiro e poeta”, “inofensivo”, especializado na estetização romanesca do ambiente; outros,

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mais ou menos anónimos, constituem a massa da “corte”; Pedro, às vezes pelos cantos como o sogro, despeitado, morde o seu charuto apagado. Só Tancredo, “indolente e belo”, como ela “uma imagem”(OM, p. 42), “uma pintura” (OM, p. 40), e a pequenina Maria, adorada pela mãe e por Tancredo, podem concorrer com Maria na polarização óptica do desejo. A propósito de Maria, de Tancredo e da menina são, neste mesmo capítulo, enunciadas mais de 30 formas lexicais relacionadas com amor, desejo e exibição. Provavelmente, a cena mais expressiva da condição simultaneamente sensualista e voyeurista do desejo é protagonizada pelo velho Monforte admirando Tancredo:

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Todos ali o adoravam; mas ninguém mais que o velho Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata, contemplando o príncipe com enternecimento. Depois, de repente, erguia-se, atravessava a sala, ia-se debruçar sobre ele, palpá-lo, senti-lo, respirá-lo, murmurando no seu francês de embarcadiço: - Ça aller bien... Hein? Beaucoup bien... Ora estimo... (OM, p. 43) Este grupo polarizante do desejo, composto por uma rede de referências figurativas sacrais - Judith, Helena, Beatriz, Madona, Apolo, Cristo, princesa, Bambino Sagrado - tenderá, portanto, a autonomizar-se da família institucional, normal, e dos critérios biológicos de representação. As figuras operadoras da verosimilhança pessoal (figuras estruturantes da personagem, tais como a representação da identidade carnal e a atribuição onomástica) tenderão, neste grupo, a ceder lugar à vigência do fantasma. Em suma: a fantasia idealizante é colectivamente investida sobre a identidade; esta torna-se uma identidade erotizada e espectacularizada, provida de uma multiplicidade de designações, epítetos, títulos, próteses, emblemas, acessórios intensificadores (perfumes, laços, rendas, jóias, grandes sedas) e convertida em objecto de representação estética (quadros vivos, retratos, pinturas). A identidade feminina e as suas aporias. A representação da Monforte e do seu trajecto narrativo adapta-se, assim, com singular rigor, aos contornos arquetípicos de que se reveste, para os psicanalistas, o complexo processo da identidade feminina (cf. Pommier, 1992). Em Maria Monforte, a dissociação quase absoluta entre corpo e nome -

curiosamente análoga à dissociação entre presença e representação - é agravada culturalmente pelo regime anómico que parece generalizadamente presidir à atribuição do patronímico às mulheres. Como G. Pommier sublinha, a substituição, pelo casamento, do nome do pai pelo do marido, consagra, na mulher, o advento do reconhecimento da sua identidade sexual; a característica exclusiva do patronímico feminino é, então, a de dever ser perdido (Pommier, 1992, pp. 19/24). Desta forma, é justamente a carência ou o apagamento da função paterna que permite o acesso a uma identidade autónoma da mulher. O primeiro nome das mulheres - o nome próprio - é, pois, o sinal mais estável do feminino, ainda assim reconhecendo-lhes um género, mais que uma individualidade. No caso da Monforte, o seu nome, Maria, é o signo de uma identidade totalmente genérica, permitindo qualificar uma margem ampla, indiferenciada, de feminilidade. De qualquer forma, à mulher, mais ainda do que ao homem, parece cometida, como meio único de afirmação autónoma da identidade, a tarefa da anulação simbólica do pai, cuja certidão de óbito seria justamente assinada pela mudança de nome, através do casamento ou de outra forma de afirmação identitária. Notemos a forma como o papá Monforte favorece, com o seu apagamento físico, a desejabilidade ostensiva da filha. Compreendamos, igualmente, o modo como a identidade formal de Maria Monforte parece incompatível com a sua valência erótica. No período de vigência do esplendor físico de Maria - e do pleno reconhecimento social da sua identidade sexual - outras formas desviantes de desacreditação ficcional do nome paterno podem ainda consistir nas agressões verbais a Afonso, na ocultação do nome específico da filha, na atribuição de um nome de inspiração romanesca a Carlos, na assunção de Alencar enquanto seu padrinho fictício. Parece-nos possível concluir, assim, que Maria Monforte materializa, de facto, a básica incompatibilidade entre o Eros e o regime instituído da procriação regulamentar, da herança patronímica e da formalização identitária. A anulação drástica da presença temática de Maria e o abandono dos seus espaços coincidirão, por sua vez, com o regresso da presença de Afonso, com a morte temática de Pedro em Benfica, e também com o nascimento narrativo de Carlos, traduzido pela sua reintegração no espaço original da família e no seu correspondente lugar dinástico. Aliás, tal nascimento é consagrado por uma espécie de segundo baptismo pelo avô, à luz normali-

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zadora da raça familiar personificada por Afonso. Restará lembrar que Carlos da Maia, tal como a irmã, desempenhará junto de Afonso idênticas funções de Menino Sagrado, num registo erotizante significativamente mais discreto do que o dela (manifestado nas menções ao seu viço, vigor, frescura, alegria, etc., aos seus aparatos de rendas, franjas e guizos de prata, mas ainda assim explicitando a alusão sacral: “No vasto leito o pequeno dormia como um Menino Jesus cansado” - OM, p. 51). E Carlos, como se sabe, é claramente identificado com a função redentora do herdeiro. Literalmente, vigorará no romance em nome do pai. Na ausência da Monforte, alude-se ao desenvolvimento estranhamente inconclusivo de actividades detectivescas de investigação, através da influência das legações, através da polícia secreta “regiamente paga” por Afonso, através de delegados pessoais. Por um lado, e por suposição de Afonso e Vilaça, atribui-se aos fugitivos, “naturezas boémias”, a errância exótica por regiões longínquas. Por outro lado, justamente se supõe que tenham mudado de nome. De facto, sabe-se depois, por uma florida carta de Alencar, que o exotismo da fuga se limita a Viena, ao Mónaco, a Londres, Paris e Alemanha; e realmente sucedem-se na Monforte as adopções sucessivas de nomes ilegítimos. Morta uma filha e morto Tancredo - outras duas histórias embrionárias e digressivas - Maria chamar-se-á de l’Estorade, talvez Cattani. Este último nome, ao que parece de um acrobata de circo (o que não deixa de poder constituir uma alusão ao único marido de Sarah Bernhardt) é uma versão degradada do apolíneo Tancredo: um “Apolo de feira”. Todas estas “torpezas” enojam o digno Afonso, e mais ainda o fazem os lirismos relambidos do estilo da em que Alencar lhe conta tudo isto. A carta do poeta romântico integra, de facto, a montagem de um dispositivo dialógico intertextual: por um lado, como texto citado, permite que os citantes-leitores (Afonso, Vilaça) tomem as suas características posições em relação a ele: desde o “repelão” de Afonso, à “recolha religiosa” de Vilaça. Por outro lado, a carta de Alencar permite devolver à história de Maria o registo idealizante, meta-ficcionalizante e meta-romanesco, que é o seu n’Os Maias. Do corpo esplêndido da Monforte, não restará, agora, por ordem de Pedro, nenhum contorno ou retrato. A memória de Maria será activada apenas retrospectivamente, discursivamente: pelo bilhete que deixa ao marido, pela carta de Alencar, pelos testemunhos deste, de Guimarães e de Maria

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Eduarda, e depois pelo seu depoimento póstumo. O destino dessas mulheres “que muito amaram”, liricamente deplorado na prosa de Alencar, consagra então Maria Monforte como uma espécie de grande alegoria intratextual do feminino, em relação à qual todas as distâncias são tomadas: distâncias enunciativas (Maria é sempre vista ou mencionada do exterior, pelos olhos fascinados ou horrorizados dos admiradores, ouvintes ou leitores - mesmo retrospectivos ou indirectos); distâncias representacionais (Maria é sempre descrita como um corpo especulativo e em pose, frequentemente sob o enquadramento teatral ou protésico conferido pelos contrastes ópticos e cromáticos, pelo dispositivo reflexivo dos espelhos e luzes, jóias, espaços e adornos). Bem ao gosto de Dumas, a sua declaração final sobre a identidade do pai de Maria surge finalmente, ante os olhos de Manuel Vilaça e de Ega, envolta num enquadramento cénico pitoresco: um documento inverosímil, entregue por um velho com barbas de profeta, num embrulho misterioso, lacrado, atado com fitas como um corpete feminino, que contém uma caixa de charutos onde, por sua vez, a grave declaração se mistura com provas frívolas de uma vida pouco respeitável. Tal cenografia mimetiza ainda, caricaturizando-a, essa multiplicação de acessórios metonímicos, típicos da representação física da Monforte, os quais, em camadas sobrepostas, lhe disfarçam o vazio e a irrisão. Uma proscrição naturalista? Concluindo: segundo pensamos, a representação de Maria Monforte (uma representação apesar de tudo temperamentalista e evidenciando a doença de idealismo de que padece toda a sociedade adoradora de Maria) cumpre os desígnios naturalistas de contra-sacralização da mulher. Todavia, esses desígnios são singularmente relativizados. É que a carnalidade da mulher (ser toscamente instintivo, em que a animalidade das pulsões traiçoeiramente se mascara de beleza) será sempre curiosamente elidida, mediatizada, obscura e mal provada como a sua identidade biológica. A ênfase é colocada no efeito maléfico da sedução - e não na causa ou no objecto. O poder de Maria é construído do exterior, é-lhe atribuído por via contextual (no sentido mais lato do termo). Maria é exactamente representada como um objecto de desejo - um objecto cujas inércia e intrínseca vacuidade disponibilizam para reflectir o desejo e o sentido, sempre investidos de fora para dentro. Com razão, Baudrillard fala na supremacia da sedução metafórica do objecto: “O sujeito pode

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desejar, só o objecto pode seduzir” (Baudrillard, 1990, 95). Ou seja: cremos que acabam por se não cumprir, na representação da Monforte, importantes preceitos da fórmula misógina da proscrição feminina pelo realismo racionalista. Por um lado, tal proscrição não se consuma jamais, permanecendo na narrativa constantes alusões ao fascínio contextual e extrínseco de um corpo-espectáculo que, em si próprio, não é nunca representado. Por outro lado, é certo que tal objectiva proscrição, exercida no romance por intermédio do complexo ético, virilizante e patriarcal representado por Afonso, salientará, por muitas formas, os poderes desviantes e maléficos da proscrita. Mas, na economia semântica do romance, é justamente a sua apressada proscrição que exponencialmente potenciará a produtividade e a tematicidade desta mulher fatal. Representam-se, de muitos modos, os efeitos falsificadores e destruidores de tal proscrição: o romance de origens de Carlos será outra história obscura e mal provada, e disso derivará toda a tragédia. O Eros defectivo, tributário da ausência, as sugestões constantes de inconsequência, incompletude, falha, dissociação e lacuna identitária, as permanentes clivagens entre o ser e o parecer - mascaram-se, no romance, por meio de cópias, simulacros, acessórios, prolongamentos e reflexos, fúteis como os da Monforte: tal como, na fachada do Ramalhete, o vazio do escudo heráldico dos Maias é ocultado pelo painel de azulejos que frivolamente lhe confere um nome substitutivo. A presença fugitiva de Maria Monforte deixará, na economia simbólica do romance, um sulco profundo de latência e ameaça. Mesmo fisicamente ausente, a sua evocação continuará a ser profundamente icónica e alegórica, materializando, no plano propriamente figurativo, a persistência surda e as metamorfoses do feminino. Alberto Machado da Rosa sublinha justamente a importância do simbolismo “quase disfarçado” da estátua do quintal do Ramalhete, que considera incluir a “primeira estátua”, Maria Monforte, cuja figura permanecerá, habitando a Vénus Citereia, como “uma vaga premonição de tragédia”; a estátua renovar-se-á depois, com a remodelação do palacete e a aparição de Maria Eduarda em Lisboa, para, acompanhando a saciedade e a repugnância de Carlos, se transformar enfim na imagem de grossos membros sob a ferrugem verde, do Ramalhete final (cf. Rosa, pp. 351/355). O jogo entre a presença e a ausência da Monforte, em alternância com as de Afonso, estrutura todo o II capítulo d’Os Maias. Por extrapolação, este

jogo tende a estruturar, no romance, a representação familiar de um duelo entre os princípios proudhonianos - masculino-razão e feminino-sedução - traduzidos no antagonismo entre a honra familiar e o Eros desviante, ou entre realismo e romantismo. A evocação da grande ausente pontua os lances fulcrais da intriga; em limite, os seus efeitos implacáveis e transcendentes identificam-na com o destino. A inscrição da ausência feminina atinge, efectivamente, um estatuto meta-narrativo. Não se pode talvez render melhor preito a uma força proscrita. Referências Bibliográficas Correia, Natália (1971). “A ausência de Eurídice em Eça”. Diário de Notícias - Artes e Letras (26 de Agosto). Lisboa. Dantas, Francisco J. C. (1999). A Mulher no Romance de Eça de Queiroz. Sergipe: Universidade Federal de Sergipe. Dottin-Orsini, Mireille (1993). Cette femme qu’ils disent fatale. Textes et images de la mysoginie fin-de-siècle. Paris: Bernard Grasset. Hamon, Philippe (2001). Imageries. Littérature et image au XIXe siècle. Paris: José Corti. Mitterand, Henri (1987). “Le corps féminin et ses clôtures: L’Education Sentimentale. – Thérèse Raquin”. Le regard et le signe. Paris: PUF, 107/127. Pommier, Gérard (1992). A ordem sexual. Perversão, desejo e gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Praz, Mario (1988). La chair, la mort et le diable. Le romantisme noir. Paris: Denoël. Queirós, Eça de (s./d.). Os Maias. Episódios da Vida Romântica. Lisboa: Livros do Brasil. Rosa, Alberto Machado da (s./d.). Eça, discípulo de Machado? (Formação de Eça de DATAueirós: 1875-1880) (ed. revista e actualizada). Lisboa: Presença. Roy-Reverzy, Eléonore (1997). La mort d’Eros la mésalliance dans le roman du second XIXème siècle. Liège: Sedes.

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Olhares sobre a singularidade da mulher na literatura dos séculos XIX e XX Ana Cláudia Salgueiro da Silva Doutoranda em Literatura na Universidade de Évora Portugal

Resumo: Sendo certo que as sociedades não podem viver sem literatura, a representação da mulher, na produção literária dos séculos XIX e XX, atinge particular singularidade nas obras de dois autores portugueses: o romance A Morgadinha dos Canaviais de Júlio Dinis (18391871) e o conto A Mulher do Chapéu de Palha de Graça Pina de Morais (1929-1992). Tais produções enfatizam a figura feminina, cuja relevância se concretiza na função que a mulher desempenha como um dos principais pilares da sociedade. Estas obras, embora separadas longamente no tempo, identificam-se, porque visam, na representação da mulher, a sua dignificação e uma interpretação singularizada, que proporciona o desmontar de consciências preconceituosas e porque, numa expressão literária marcante, analisam, não só a problemática interior das protagonistas, as quais se afirmam no seio da sociedade contemporânea dos autores, mas também as circunstâncias peculiares destas personagens à procura de uma justificação para a vida.

Uma das áreas de investigação que merece ser objeto de análise é a literatura, cuja difusão é motivada pelo aparecimento e pela divulgação de uma multiplicidade de obras literárias conducentes a uma diversidade de estudos relativos a esta matéria. Na verdade, as sociedades não podem viver sem literatura, pois este domínio constitui um dos fundamentos que integra o património da humanidade, o qual requer estudo e posicionamento crítico, estabelecendo-se, por conseguinte, uma relação entre as obras literárias e o mundo onde as mesmas surgem, a fim de se poder verificar que aquela área é capaz de responder às exigências dos indivíduos de uma sociedade, sem perder a sua identidade e a sua independência. Com o intuito de garantir a exequibilidade e a atualidade dos estudos literários, centraremos a nossa atenção na temática da representação da mulher na literatura, nomeadamente na produção datada dos séculos XIX e XX, porquanto a figura feminina foi desde sempre representada pelos escritores e respetivas obras, surgindo como motivo de interesse ao longo dos tempos. A escolha da representação da mulher resulta do estudo particular de dois autores e de duas obras específicas: Júlio Dinis (1839-1871) com o romance A Morgadinha dos Canaviais e Graça Pina de Morais (1929-1992) com o conto A Mulher do Chapéu

de Palha. Este interesse decorre do gosto e da admiração suscitados pelas produções literárias destes escritores, consideradas menores e que se encontram bastante esquecidas no panorama literário português. Por tais factos, pretendemos demonstrar que as obras de Júlio Dinis e as obras de Graça Pina de Morais devem ser revalorizadas, visto que estas produções revelam personalidades originais que são capazes de enfatizar a figura feminina através do elogio que nelas está presente, concedendo-lhe uma relevância concretizada na função que a mulher desempenha como um dos principais pilares da sociedade. Por coincidência, além de escritores, nascidos na cidade do Porto, revelando ambos uma expressividade marcante, que põe em destaque a figura feminina, estas duas personalidades portuguesas identificam-se também pela profissão que lhes é comum – são médicos e esta vertente revela-se fundamental para a representação da mulher, porque, por um lado, confere uma sensibilidade conducente a um tratamento em consonância com a realidade relativamente à figura em estudo e, por outro lado, conduz a uma interpretação singularizada, que proporciona o desmontar de consciências preconceituosas e a expressão literária da interioridade das personagens. A estruturação das suas produções literárias

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está, assim, construída num tom que analisa as circunstâncias peculiares do indivíduo à procura de uma justificação para a vida e para o sofrimento, que envolve a evolução dessa existência através de personagens que se afirmam no seio da sociedade contemporânea dos autores.

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1.1. Contextualização das obras literárias Enquadrando as obras de Júlio Dinis1 e as obras de Graça Pina de Morais na sua época, referimos que as primeiras são publicadas nas décadas de 60 e 70 do século XIX, um período marcado por conquistas, por transformações e pelo progresso – fatores que, conjugados, proporcionam estabilidade, reproduzida nas criações dinisianas, na tentativa de regeneração de costumes e de melhoria da sociedade portuguesa. O período oitocentista vê nascer diferentes correntes estético-literárias – o romantismo, o ultrarromantismo, o realismo e o naturalismo –, as quais, preconizando uma pluralidade de fundamentos, contribuem para a divulgação de novas ideias, conceitos e formas de representar a realidade, recorrendo principalmente ao género literário de prestígio que se difunde neste século e que privilegia a representação do indivíduo na sociedade – o romance. Estas mudanças refletir-se-ão no século XX, época em que os escritores assumem um posicionamento caracterizado por uma verdadeira febre de produção no que respeita à prosa literária. Escreve-se, visando a dignificação do ser humano através de temas contemporâneos que se centram no sujeito individual e na exploração da sua problemática interior, abrindo-se caminhos que resultam de uma atitude essencialmente crítica e mesmo de autocrítica, na tentativa de sintetizar o que de mais relevante ocorreu no passado para melhor projetar as experiências no futuro. É nos anos 50 de Novecentos que se desenvolve a novelística portuguesa contemporânea, surgindo muitas obras produzidas por penas femininas ágeis e sensíveis. As autoras colocamse ao nível dos escritores masculinos e, apoiadas numa dura experiência, analisam e questionam a tradicional condição da mulher, sujeita ao homem durante séculos numa obediência silenciosa e resignada, sendo a partir desta década que Graça Pina de Morais2 1 Obras do autor: As Pupilas do Senhor Reitor (1867); A Morgadinha dos Canaviais (1868); Uma Família Inglesa (1868); Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871); Serões da Província (1870, 1947); Poesia (1874); Inéditos e Esparsos (1910); Teatro (1946-1947). 2 Obras da autora: Sala de Aula e Semideuses (1953); O Pobre de Santiago (1955); A Origem (1958); Na Luz do Fim (1961); O Medo e Raquel (1964);

começa a publicar as suas obras. Durante muito tempo, “as mulheres foram […] deixadas na sombra da história” (Duby e Perrot, 1991: 7), situação que vai sendo alterada com a enfatização dada à família e, por conseguinte, ao papel da mulher, particularizada na sua vivência quotidiana e na sua experiência individual, conquistando direitos concretizados na sua emancipação. A mulher ganha, deste modo, um novo estatuto, progredindo à medida que as mentalidades se alteram, sendo concedido à figura feminina um maior protagonismo, obtido no âmbito de diversas vertentes da sociedade, que conduzem a uma afirmação da sua identidade: “O século XX é […] o século em que mulheres, […], tomam a palavra e o controlo das suas identidades visuais; sublinhando o desafio político da representação, elas tentam quebrar os estereótipos e propõem múltiplas vias de realização pessoal” (Thébaud, in Duby e Perrot, 1991: 11), pelo que se afirmam, por exemplo, no panorama literário, construindo ou representando a sua própria história. 1.2. Análise do romance A Morgadinha dos Canaviais Voltando ao século XIX, começamos por destacar o romance A Morgadinha dos Canaviais, uma obra representativa das transformações que ocorrem em Portugal no período da Regeneração, quer a nível político, por exemplo, com a construção de estradas, quer a nível social, através da participação da mulher na solução dos problemas da comunidade. Neste romance, publicado em 1868, em folhetins e em volume, são descritas algumas conquistas que vão ocorrendo no país, nomeadamente a extinção dos morgadios, pelo que o título atribuído aponta para uma situação de elevação social que, no entanto, é extemporânea, dado que advém do facto de Madalena, a morgadinha dos Canaviais, o ter herdado da madrinha e de, naquele momento, já ter ocorrido a referida extinção3. Aliás, Júlio Dinis destaca esta situação, atribuindo à protagonista uma atitude de recusa face ao tratamento cerimonioso de Excelência que Henrique de Souselas, o jovem citadino, que se desloca para o campo a fim de recuperar dos vícios da cidade, lhe concede: “Não me soa bem o impertinente tratamento de excelência que me dá. Essa excelência está a pedir-me uma senhoria, pelo meJerónimo e Eulália (1969); A Mulher do Chapéu de Palha (2000). 3 A extinção dos morgadios é datada de 1860, ocorrendo a abolição definitiva em 1863.

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nos, e confesso-lhe ingenuamente que me custaria a voltar na língua uma palavra tão comprida” (Dinis, s./d.: 276). A atribuição deste título resulta, como já referimos, de uma herança, mas não se enquadra no rumo das mutações que ocorrem no país, porquanto a sociedade portuguesa vive um período em que a burguesia, a nova classe social, começa a ascender e a afirmar-se em detrimento da aristocracia. Dadas essas transformações e a singeleza da vida no campo, o título de morgadinha surge desajustado desta nova ambiência. Porém, o escritor pretende ressaltar, não só as alterações na vida social em Portugal, mas também valorizar o ambiente campesino com as suas experiências, costumes e relações, evidenciados na personagem principal que demonstra uma personalidade pouco comum para a época, traduzida na simplicidade e na determinação decorrentes da rejeição do tratamento cerimonioso utilizado na cidade, fator que indicia o princípio da desconstrução dos modelos instituídos ao longo dos séculos. Devido aos efeitos regeneradores, representados na ação benéfica que o meio rural tem sobre a personagem que vive aborrecida e deprimida pela rotina da vida urbana, Henrique começa a descobrir uma nova vida, caracterizada pela serenidade e pelo delicioso bemestar, sentindo prazer em viver na aldeia, onde conhece a morgadinha, uma rapariga solteira, de vinte e três anos de idade, de trato afável e insinuante, meiga, inteligente, sensata e de esmerada educação, revelando-se uma personagem bastante forte pelas qualidades morais e que defende sempre os bons princípios, sendo apaixonada por tudo o que é justo e lhe desperta generosidade. Com efeito, Madalena é filha de um conselheiro e apresenta um caráter determinado e virtuoso, agindo em conformidade com os bons costumes e com os nobres sentimentos, sendo descrita como protetora da aldeia e destacando-se o seu sentido de responsabilidade e de solidariedade para com as famílias mais pobres – características que são apontadas logo no início do romance, conduzindo os leitores a uma perceção positiva da personagem. Após uma das visitas inspiradas pela generosidade, Madalena surge num episódio peculiar. Trata-se da chegada do correio, momento ansiado por todos os habitantes da aldeia: Um grupo de crianças e de mulheres do povo escutavam em pleno ar e com religiosa aten-

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ção, a leitura que uma senhora jovem e elegante lhes fazia das cartas, que elas para esse fim lhe davam. A senhora estava montada, não como romântica amazona, […] mas modesta e simplesmente […] em uma possante e bem aparelhada jumenta […]. Lia com voz agradável e sonora (Dinis, s./d.: 266). A descrição enuncia algumas qualidades da jovem morgadinha, destacada como uma mulher diferente no seio daquele grupo, mas que não se impõe pela superioridade; pelo contrário, a protagonista distingue-se naquele ambiente modesto pela singeleza, antecipando a função que a mulher pode desempenhar a favor de uma comunidade, intervindo e colaborando e não se confinando ao papel de esposa e de mãe, o que indicia o início da emancipação da figura feminina moderna. Madalena assume-se, igualmente, como gestora do lar e como educadora, vetores que revelam a prática do dever familiar; a sua educação e preparação revelam, ainda, a função que, mais tarde, pode vir a exercer; demonstra em todas as suas atitudes bons sentimentos e, apesar de ser jovem, possui maturidade e responsabilidade social, que contribuem para a conceção da protagonista como uma mulher determinada e moralmente bem formada. De facto, a morgadinha é apresentada como o anjo da família e da aldeia pelos atos que pratica e pela presença de espírito com que age, sendo descrita da seguinte forma: Era uma mulher muito nova ainda. Uma graciosa figura de mulher, suave, elegante, distinta, um desses tipos que insensivelmente desenha uma mão de artista, quando movida ao grado da livre fantasia; a cor, essa cor inimitável, onde nunca dominam as rosas, mas que não é bem o desmaiado das pálidas, encarnação surpreendente, a que ainda não ouvi dar nome apropriado […]. A estatura esbelta, sem ser alta; o corpo flexível, sem ser lânguido; um vulto de fada, enfim, com a majestade, com a graça que deviam ter estas criações da poesia popular (Dinis, s./d.: 267). O retrato apresentado é, assim, o de uma figura delicada, mas que se revela segura das suas decisões e que está presente em todos os momentos oportunos para poder intervir. Ainda que apresente traços românticos, que poderiam tornar frágil a personagem, caracterizada pela pureza e pela elegân-

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cia, Madalena é uma mulher forte, que luta pela sua felicidade e pela felicidade dos outros, revelando-se pragmática, ativa e decidida, qualidades que a distanciam da simples idealização da mulher-anjo, tornando-a concreta e, como tal, autêntica. Já não se trata de representar a mulher como figura ideal ou como alvo de contemplação ou desejo do homem, mas a figura feminina surge, agora, como representação de si própria, na sua psicologia individual e no seu comportamento social, “pondo a sua condição privilegiada ao serviço dos seus semelhantes” (Lopes, in Buescu, 1997: 326), como sucede com a protagonista deste romance que, apesar de ser caracterizada pela doçura angelical, aparece como um anjo “com os pés assentes na Terra” (Lopes, in Buescu, 1997: 326). A morgadinha é, deste modo, um modelo de virtudes que evidencia marcas de participação na comunidade e que se destaca ainda como promotora da instrução de Augusto, o mestreescola da aldeia, que lhe devota forte gratidão, além de profunda afeição. Este sentimento é retribuído por Madalena que confessa o seu amor ao jovem professor, sabendo, contudo, que a diferença de categorias sociais de um e de outro pode dificultar a sua união. Efetivamente, o conselheiro não aceita a ideia do casamento da filha com o professor, expressando algum preconceito relativamente a Augusto, porque é pobre, não tem família, nem posição social elevada. Gera-se, pois, uma discussão entre a morgadinha e o pai, que, entretanto, cede à decisão da jovem. Entre lágrimas e risos, Madalena e Augusto anunciam o seu casamento, realizado com base no sentimento puro do amor. Esta resolução define a personalidade vincada de Madalena, que afirma a sua identidade ao quebrar o estereótipo das jovens que se casam por conveniência ou por indicação paternal; ao pôr em causa a autoridade do pai, declarando-se a Augusto, assume uma atitude pioneira para a época por anular determinadas convenções limitadoras da condição feminina. Esta atitude acresce, assim, positivamente na caracterização da morgadinha, tornando-a diferente das jovens suas contemporâneas e, como tal, singular. A imagem da mulher, submissa e resignada, é, com efeito, substituída pelo estatuto de emancipação da figura feminina, que, deste modo, altera a sua condição no contexto de um universo marcadamente masculino, fazendo da literatura e da imprensa periódica a forma de exprimir ideias e opiniões, levantando questões e apresentando soluções, querendo a mulher, enfim, assumir-se como

um ser livre e independente. Prova desta voz livre é o facto de o jornal semanal A Voz Feminina ser publicado entre 1868 (coincidentemente, o ano da publicação do romance A Morgadinha dos Canaviais) e 1869, sob a direção de Francisca Martins Wood, que se propõe “lutar pela emancipação [das mulheres em Portugal], pondo ao serviço do jornal uma inteligência determinada, uma frontalidade corajosa e uma temível capacidade argumentativa” (Ildefonso, in Joaquim e Galhardo, 2003: 16), procurando “alargar os conhecimentos das leitoras, apontar erros, aconselhar novos comportamentos” (Ildefonso, in Joaquim e Galhardo, 2003: 17), atitudes que são consubstanciadas na figura de Madalena, individualizada pelo seu valor e pela afirmação da sua identidade. 1.3. Análise do conto A Mulher do Chapéu de Palha Também a protagonista apresentada no conto A Mulher do Chapéu de Palha constrói a sua singularidade, expressa na sensibilidade de uma mulher de meia-idade, sem apresentar, inicialmente, características que a distingam da vulgaridade. Certo dia, a mulher sai de casa e, ao tirar do saco de praia um feio chapéu de palha, torna-se diferente, porque se distingue dos outros seres humanos que a rodeiam, questionando-se: “O que poderá ter para mim ainda um sentido?” (Morais, 2000: 17). Apesar de só, a mulher não se sente solitária: Deus em que ela não acredita, acompanha-a. E pensa que, quando se é só, inventa-se a companhia de alguém sem defeito, que não fala, não ouve e nem sequer se vê. À tarde, o tempo altera-se e o vento do norte começa a soprar, fatigando e perturbando a mulher que se detém em divagações que resultam na inegável certeza de que os seres humanos não se diferenciam uns dos outros nem pela sua capacidade económica, nem pelo que fizeram os seus antecessores, o que demonstra a homogeneização da humanidade, pois os bens e o viver dos antepassados não influenciam a distinção dos seres humanos: os indivíduos caracterizam-se pelo meio em que vivem, pelos seus atos e pelas suas atitudes. Devido ao vento que se levanta, a mulher recolhe-se num abrigo, fixando o mercado à sua frente, que se afigura como um imenso e sujo barracão, características que denotam um valor pejorativo e que remetem para o indefinível e para a destruição, diretamente refletidos na protagonista.

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Por influir sobre o estado de espírito da personagem, alterando a sua visão do mundo e por marcar pontos de viragem no desenrolar da ação, o tempo, em complementaridade com o espaço, traduz as vivências desta mulher, exprimindo a sua problemática interior: O que é que na realidade poderia ainda interessá-la e ter sentido para ela? Cumprir uma missão importante […]. Levar a uma pessoa eminente e que residisse do outro lado da terra uma carta necessária […] [pois não compreende] qual o motivo por que numa vida tão curta, irrisória e cruel, os seres humanos ainda conseguiam energias para se brutalizarem uns aos outros (Morais, 2000: 30, 31, 35). Levando a mão aos cabelos, verifica que já não possui o chapéu, o qual é restituído por duas mulheres idosas que aparecem. Com afabilidade, a mulher pergunta-lhes como a conhecem, ao que as duas mulheres respondem que a veem passar todos os dias e que a reconhecem devido ao seu chapéu. A mulher sente-se vaidosa, porque se distingue dos outros seres humanos. Apesar de ser anónima e vulgar, “indistinguível de qualquer outro ser humano no meio duma multidão, [esta é uma mulher diferente por causa do] seu feio e insólito chapéu de palha” (Morais, 2000: 45-46). A sua caracterização é escassa, cingindo-se aos cabelos castanhos, curtos, abundantes e “desgrenhados pelo vento”, “olhos brilhantes e sonhadores” (Morais, 2000: 36, 17), parecendo distraídos, mas estando atentos a tudo. A sua voz é terna, “doce, tranquila e baixa, voz que se mantinha fosse qual fosse o seu estado de espírito” (Morais, 2000: 40), estado traduzido em nostalgia, simpatia, gentileza e sonho. 1.4. Estudo comparativo entre as obras de Júlio Dinis e de Graça Pina de Morais Verificamos, assim, que, à semelhança do que ocorre com o romance dinisiano, a narrativa deste conto é construída com base na história de uma mulher – neste caso, a mulher do chapéu de palha –, concebida na sua singularidade por possuir aquele chapéu. O título das produções literárias em análise pretende focalizar o interesse e chamar a atenção do leitor para as vivências de uma personagem feminina, pelo que podemos considerar ambas as obras epónimas, porquanto a designação atribuída às protagonistas intitula estas produções.

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De caráter autobiográfico, o conto de Graça Pina de Morais, escrito em 1986, apresenta como temática principal a condição de uma mulher, cuja liberdade existe em função de uma negação – a de não acreditar num Ser Superior – mas que, afinal, encobre o apego aos valores religiosos. A religiosidade constitui uma característica genuína do povo português, devoto e cristão, que se rege pelos valores éticomorais que a esta condição estão subjacentes; tais valores são igualmente salientados no romance de Júlio Dinis, que elogia estas particularidades e evidencia a reciprocidade existente entre religião, moralidade e bons costumes. É na descoberta de um sentido para a vida que se estrutura a ação narrada no conto, cuja procura aflige e tortura a mulher: a dilaceração do sujeito, refletida no ambiente em que a personagem se movimenta, numa expressão de emoções recíprocas com a natureza, dando especial relevo ao mar, símbolo de nostalgia, mas também de fronteira que condiciona a expressão livre de um indivíduo. Sendo o mar ainda associado à ideia de liberdade, o leitor compreende que a mulher procura um sentido para a sua existência – a procura da sua condição de existência feminina. Comparando as duas obras, verificamos que os sentimentos e os estados de alma se refletem na natureza, que se transforma, configurando-se numa alteração do estado do tempo, que provoca uma mudança nas sequências narrativas: Madalena perde a mantilha num passeio feito à ermida e a mulher do chapéu de palha perde o chapéu aquando da sua movimentação pela cidade. No caso do romance de Júlio Dinis, o ambiente representado é surpreendentemente associado a elementos sensoriais e pictóricos que impressionam os seus observadores, causando uma sensação de entusiasmo que comove todos os corações, até o do jovem Henrique que se rende à beleza daquele espaço. Todavia, o bom tempo dissipa-se e a preocupação reina em todos os intervenientes do passeio, pois aproximase uma tempestade, que lhes dificulta o caminho e que faz cair a mantilha de Madalena para um local de difícil acesso. Paralelamente, a mulher perde o seu chapéu quando se levanta o vento do norte. Estes momentos diegéticos permitem reconhecer o valor e a autenticidade das atitudes praticadas pelos indivíduos que intervêm na ação, o que é ressaltado pelo facto de a perda de um elemento, que constitui a identidade de um indivíduo, modificar, muitas vezes, o próprio sujeito, podendo conduzir igualmente à realização de determinados atos por

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parte de outros. No caso de Madalena, a recuperação da mantilha é feita por Henrique, que, por imprudência, desce uma ribanceira, arriscando a própria vida apenas para se mostrar vitorioso perante Augusto e para impressionar a protagonista, a qual considera insignificante o extravio da mantilha. Já a perda do chapéu, tido como símbolo de identidade daquela figura feminina, surge como uma ausência na personalidade da mulher que cristaliza as vivências interiores de todas as mulheres que procuram um sentido para a sua vida, representado pelos diferentes estados de espírito da mulher do chapéu de palha: de manhã, sente-se tranquila, parecendo-lhe tudo belo, enquanto, de tarde, todos os elementos se conjugam para a incomodar, reencontrando apenas o equilíbrio na ideia de cumprir uma missão. É de salientar que, contrariamente ao que acontece no romance de Júlio Dinis, esta mulher não possui um nome próprio, mas é-lhe apenas atribuída uma designação que concede importância a um objeto que a caracteriza, o qual constitui a diferenciação da condição desta mulher entre todas as mulheres que, sendo iguais entre si, se revelam, porém, diferentes. A mulher do chapéu de palha representa, por conseguinte, a mulher anónima que pretende ser identificada e que procura afirmar a sua identidade, enquanto Madalena antecipa essa afirmação ao representar as mulheres que começam a distinguir-se no seio da sociedade, sendo reconhecidas pelas suas qualidades e pelas suas especificidades. A convivência com as classes simples surge também em ambas as obras, sendo, aliás, esta característica uma das mais relevantes na narrativa dinisiana – as vivências e as relações estabelecidas no espaço rural, o ambiente privilegiado dessas classes, dada a sua espontaneidade e autenticidade, constituem qualidades que se repercutem na personalidade da morgadinha, individualizada pela sua singeleza. Do mesmo modo, a mulher do chapéu de palha revela gosto pela simplicidade, concretizada na simpatia que nutre pela gente modesta que a rodeia e a quem ela se dirige afavelmente quando lhe entregam o chapéu perdido, um objeto que concede a esta mulher a possibilidade de se distinguir dos outros indivíduos, apresentando-se como um ser livre e com personalidade própria. 1.5. Considerações finais Representando as transformações que se geram

na sociedade do século XIX, Júlio Dinis atribui à mulher um papel mais ativo e determinado, que se coaduna com as exigências preconizadas pela sociedade oitocentista: a família surge como um dos valores principais na manutenção e na evolução da sociedade, pelo que a mulher é educada para ser mãe e esposa; todavia, é também atribuída à mulher uma maior participação na sociedade que resulta de um protagonismo feminino que começa a ser concretizado através da conquista de direitos advenientes da alteração de mentalidades que projeta uma maior relevância das mulheres expressa, por exemplo, na execução de um cargo profissional. Efetivamente, o século XIX assinala o nascimento do feminismo, palavra emblemática que tanto designa importantes mudanças estruturais (trabalho assalariado, autonomia do indivíduo civil, direito à instrução) como o aparecimento colectivo das mulheres na cena política […] [surgindo como] o momento histórico em que a perspectiva das mulheres se altera, ou mais exactamente o momento em que a perspectiva de vida das mulheres se altera: tempo da modernidade (Fraisse e Perrot, in Duby e Perrot, 1991: 9). Esta modernidade repercutir-se-á no decurso do século XX, assinalando-se o favorecimento da afirmação da condição da mulher, pelo que a mulher anónima de Graça Pina de Morais se enquadra na sociedade da época, ao procurar a sua identidade através da descoberta de um sentido para a vida, temendo envelhecer sem o ter alcançado. Na verdade, ambas as protagonistas das obras em estudo vivem o seu tempo, modificando, porém, determinados parâmetros condicionadores da afirmação feminina, destacando-se pela peculiaridade da sua condição no sentido em que representam estruturas de sentido muito semelhantes, direcionadas para a consciencialização do público leitor, não só para a necessidade de criar um mundo mais justo e equilibrado, mas também para os diferentes olhares que a mulher pode provocar com a sua singularidade. Esta individualização consiste na afirmação da sua interioridade e da sua identidade, construídas pelas palavras e pelos gestos, pois “às «maneiras de dizer» a natureza feminina devemos associar as suas «maneiras de fazer»” (Almeida, 1986: 494), numa inter-relação entre representações e respetivas práticas. A ideia subjacente nas obras em destaque cen-

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as mulheres são sobretudo criadas na interioridade do círculo familiar [como é o caso da morgadinha, que, todavia, é capaz de se afirmar], por outro, […] sentem mais fortemente a necessidade, tão vital para a identidade como difícil de realizar, de se diferenciarem da pessoa de referência (Heinich, 1998: 376),

A um conjunto de padrões de comportamento, de relações sociais e de ideais que impõem um modelo feminino obediente e passivo, representado por imagens de mulher estereotipadas segundo o protótipo da sociedade patriarcal, sucede-se um interesse pela feminilidade nas suas coordenadas sociais, psicológicas e morais, refletindo as perspetivas da sociedade em mudança. A mulher passa, assim, a questionar o seu modo de estar no mundo, a reinventar o feminino, a descobrir-se, a repensar condições e a discutir diferenças, refletindo criticamente sobre as dissemelhanças e sobre a necessidade da construção identitária feminina, atitudes expressas num percurso intimista, traduzido por um discurso introspetivo tendente para o autoconhecimento e para a autoafirmação da figura feminina. Desconstruir preconceitos e estereótipos no que se refere à figura feminina é o objetivo primordial destes escritores, sob cujo olhar observador, perpassado de sensibilidade e de delicadeza, a mulher é representada através das suas intervenções, expostas através de formas advenientes de uma inteligência dominante e de uma afetividade nobre, resultando numa simplicidade apenas compreendida pela cumplicidade do leitor. Estas mulheres são simples e verdadeiras, consubstanciando mudança e cujas vivências e atos são representados na literatura de cada época, contribuindo para a rutura de padrões condicionadores, bem como para a quebra de barreiras no universo feminino, permitindo a construção de um espaço que ultrapassa os limites impostos pela sociedade no sentido do início do respeito pelos valores femininos. São estas especificidades que encontramos na ficção dos dois autores: um retrato feminino ao redor do qual se desenrolam dramas e alegrias, que contêm, na sua essência, o real valor da vida, a real condição da mulher.

como sucede com a mulher do chapéu de palha, cuja construção de identidade lhe confere demarcação relativamente aos outros, possibilitando-lhe a legitimação da sua identidade enquanto sujeito de atuação. As normas instauradas pela sociedade de cada época prefiguram, deste modo, um modelo de mulher que, no início, surge como parte integrante de um grupo social uniformizado, mas cuja representação se reconstrói progressivamente ao emergirem identidades femininas representativas da sua condição.

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tra-se, por conseguinte, na necessidade de pautar a existência individual em conformidade com as regras morais, tendo sempre em consideração a personalidade dos outros, para que seja possível criar laços duradouros, consolidados através de concessões recíprocas, da nobreza de sentimentos, da inteligência posta ao serviço de uma justa causa e da possibilidade de poder ser útil, o que torna os indivíduos distintos entre si, permitindo simultaneamente uma vivência harmoniosa consigo e com os outros. Podemos, deste modo, afirmar que a singularidade da mulher é representada de forma idêntica nas obras de Júlio Dinis e de Graça Pina de Morais, que, não obstante o facto de serem produzidas por autores diferentes, de séculos também distintos, concebem a mulher como um ser que desconstrói o estereótipo criado ao longo do tempo, ao diferenciar-se dos seus pares, afirmando a sua identidade entre as vivências comuns e vulgares existentes em função dos valores de cada época. Ultrapassando obstáculos de origem social e económica, demonstrando determinação e quebrando os preconceitos vigentes, a morgadinha dos Canaviais antecipa a liberdade ocorrida “no curso do século XX, [no qual se verifica] o acesso das mulheres a uma identidade própria, sem ser já a do seu pai ou a do seu marido” (Heinich, 1998: 363), concretizada numa força original, resultante da independência de observação e de juízo que se instaura na sociedade contemporânea. Se, por um lado,

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e a posse de terra no alto Minho. Análise Social. Volume XX (80). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Pp. 97112. Dinis, J. (s./d.). Obras de Júlio Dinis. Volume 1. Porto: Lello e Irmão Editores. Duby, G. e Perrot, M. (dir.) (1991). História das Mulheres no Ocidente. Volume 5: O Século XX. Porto: Edições Afrontamento. Edfeldt, C. (2006). Uma História na História – Representações da Autoria Feminina na História da Literatura Portuguesa do Século XX. Montijo: Câmara Municipal do Montijo. Fraisse, G e Perrot, M. (1991). Introdução: Ordens e Liberdades. In Duby, G. e Perrot, M. (dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 4: O Século XIX. Porto: Edições Afrontamento. Heinich, N. (1998). Estados da Mulher – A Identidade Feminina na Ficção Ocidental. Lisboa: Editorial Estampa. Ildefonso, I. (2003). As mulheres na imprensa periódica do século XIX – o jornal A Voz Feminina (18681869). In Joaquim, T. e Galhardo, A. (org.). Novos Olhares – Passado e Presente nos Estudos sobre Mulheres em Portugal. Oeiras: Celta Editora. Pp. 15-21. Lopes, G. V. (1997). (A) Mulher (e a Literatura do Século XIX). In Buescu, H. (coord). Dicionário do Romantismo Literário Português. Lisboa: Caminho. Morais, G. P. de (2000). A Mulher do Chapéu de Palha. Lisboa: Edições Antígona. Rector, M. (1999). Mulher – Objecto e Sujeito da Literatura Portuguesa. Porto: Universidade Fernando Pessoa. Rodrigues, D. (1994). Retratos de Mulher. Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Saraiva, A. J. e Lopes, O. (2005). História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora. Thébaud, F. (1991). Introdução. In Duby, G. e Perrot, M. (dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 5: O Século XX. Porto: Edições Afrontamento.

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Meninas em jogos de meninos – um estudo de caso na Literatura Infantil brasileira1 Letícia Fonseca Richthofen de Freitas Mestra e Doutora em Educação. Professora do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas – RS, Brasil

Rosa Maria Hessel Silveira Mestra em Letras e Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – RS, Brasil, e pesquisadora do CNPq. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - IBILCE/UNESP São José do Rio Preto – SP (Brasil)

Resumo: O trabalho está situado na conexão entre os estudos de gênero e os estudos sobre a literatura infantil contemporânea. Para tanto, toma-se o conceito de gênero como marca identitária construída no âmbito social e cultural (SCOTT,1995; LOURO, 1997; 1999) e considera-se, na literatura infantil, a busca de abordagem de novas temáticas advindas de lutas sociais específicas. Seu objetivo é analisar, em livros de literatura infantil, o potencial de subversão das representações de gênero masculino e feminino, no que diz respeito à prática de um esporte tido tradicionalmente como definidor da masculinidade no Brasil: o futebol, e de uma brincadeira também tipicamente masculina: o jogo de bolitas. Tal intenção subversiva se concretiza em tramas que apresentam protagonistas meninas jogadoras de futebol ou de bola de gude, em que o conflito narrativo se constrói justamente na luta por espaços femininos em tais práticas. A análise se debruça sobre três obras infantis em circulação no Brasil: “Nariz em pé” (Élcio Schueller), “Joana Banana” (Cristina Porto) e “Menina não entra” (Telma Guimarães Castro Andrade), as quais apresentam personagens meninas que reivindicam o direito a participarem dos jogos dos meninos, tornam tal reivindicação um fato e, graças ao seu sucesso, abrem passagem para a permanência dessa inclusão, problematizando-se, assim, a pretensa “naturalidade” das diferenças entre meninos e meninas. De alguma forma, entretanto, contaminadas por uma intenção programática subjacente, algumas passagens das obras se ressentem de uma marcada intenção formativa, em que se explica ao leitor o aspecto convencional de tais construções. No trabalho, discute-se a relação estereotípica entre masculinidade-prática de futebol, as mudanças que tal binômio vem sofrendo recentemente, para verificar de que forma as obras analisadas logram se filiar ao que Colomer (2003) aponta como tendência da literatura infantil a partir dos anos 70: a aproximação das características atribuídas aos dois sexos. Duas palavras sobre gênero, esporte e futebol Ainda que, no espaço acadêmico contemporâneo, estejamos habituados com trabalhos que incorporam a categoria de gênero e, mesmo no espaço social mais amplo, este seja um termo que já adquiriu uma relativa circulação, não podemos esquecer que “a preocupação teórica com o gênero como uma categoria analítica só emergiu no final do século XX” (SCOTT, 1995: 85) E foi a partir de então que o gênero, como marca identitária, construída no âmbito social e cultural para mar-

car a diferença dos sexos masculino e feminino, se tornou uma fecunda ferramenta analítica, cuja utilização provocou a contestação das concepções essencialistas e biológicas de ser homem e ser mulher. Nesse sentido, numerosos estudos já apontaram, conforme Louro observa, que “as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem” (LOURO, 1997: 23). Ou seja: diferentes

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maneiras de ser homem e de ser mulher, em suas funções sociais, atribuições, prerrogativas, direitos, “aptidões” e “vocações”, formas prescritas de vestir, agir, falar, se comportar... são encontradas em diferentes contextos, mostrando o relativismo e o caráter construído dessa identidade genérica. Tal é o caso, em parte do mundo ocidental contemporâneo e, de maneira que especialmente nos interessa, no Brasil, da associação estereotipada entre masculinidade e prática de futebol. Como é amplamente sabido, “o esporte (no caso brasileiro, o futebol), usualmente [é] agregado como um interesse masculino ‘obrigatório’” (LOURO, 1999: 23). Não apenas ele é entendido como marca de masculinidade, como também a prática do esporte só recentemente (poucas décadas) vem se abrindo – e de maneira assaz tímida – à participação feminina, continuando a ser majoritariamente masculina. Afinal, parece que, em se tratando de futebol, o lugar preferencial das mulheres continua sendo a torcida. Alguns trabalhos empíricos no campo acadêmico corroboram a circulação desse estereótipo em diferentes contextos sociais. Silveira e Amaral (2004), por exemplo, analisaram um acervo de textos narrativos produzidos por crianças de 4ª série de 70 diferentes cidades do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, as quais tinham sido solicitadas a desenvolver o seguinte tema: Foi num domingo ensolarado que tudo aconteceu. A turma toda, acompanhada da professora, saiu para visitar... Ainda que a proposta não tivesse qualquer conotação de gênero, as narrativas produzidas pelas crianças, certamente inspiradas por suas experiências cotidianas, mostraram clara distinção entre as ações atribuídas a meninas e meninos. Assim, ao relatar o que as meninas faziam nos passeios narrados, as crianças citaram “tomar banho de sol, dançar, jogar vôlei e basquete, brincar de roda, de casinha, de pegar, andar em balanços e gangorras, pular corda e passear” (SILVEIRA E AMARAL, 2004: 270), além de auxiliarem a professora a preparar lanches e refeições para o grupo. Já para os meninos, descreve-se que eles “jogam bola, futebol, tênis, futsal e vôlei, andam de prancha, brincam de correr e pescar, fazem travessuras” (id. Ibid.) Ou seja: a naturalização da divisão genérica das ações – e a generificação do futebol  emerge em simples relatos de atividades cotidianas, relatos esses feitos por crianças presumivelmente na faixa etária dos nove aos onze anos. Já Tenroller (2009), em sua dissertação de mestrado, realizou trabalho de maior fôlego, dedicando-se a analisar os discursos que circulam, no Brasil, sobre a presença-ausência de mulheres/

meninas na prática de futsal1. Debruçando-se, por um lado, sobre textos e imagens de jornais e revistas e sobre capas de livros didáticos de futsal, e, por outro, aplicando questionários e entrevistando alunos do ensino fundamental sobre a presença de meninas no citado esporte, o autor identificou a circulação de discursos – tanto nos artefatos culturais quanto nas falas de alunos – que “reforçam o privilégio do acesso e da prática do futsal ao gênero masculino”(Tenroller, 2009:7) Explicando melhor, o autor informa que “foi recorrente, e aceito como natural por ambos os gêneros, o entendimento de que as meninas são mais fracas e frágeis, não gostam e não sabem jogar futsal, embora, na resposta ao roteiro escrito as meninas manifestassem vontade de praticá-lo” (id.ibid.) Essas são rápidas contribuições que esboçam o pano de fundo de nosso trabalho, qual seja a associação entre futebol (e outro jogo também típico de meninos brasileiros – o jogo de bolitas) e gênero masculino. Já o tipo de material de análise, a literatura infantil, passamos a discutir agora. A narrativa infantil no contexto contemporâneo Em relação à literatura para crianças, cabe lembrar inicialmente a afirmação de Hunt (2010: 177) no sentido de que a maioria dos livros para crianças priorizam a narrativa, “de certo modo, eles são sobre a narrativa”; nesse sentido, eles constituem terreno fértil para análise de representações predominantes em certas épocas e contextos. Já Colomer (2003), em abrangente pesquisa envolvendo 201 narrativas incluídas em 150 obras publicadas em língua espanhola ou catalã a partir da década de 1970, observou que a literatura infantil e juvenil tem apresentado, desde então, um “enorme impulso inovador” para atender um novo perfil de leitor. Tal perfil se configura com base em mudanças ocorridas nas sociedades pós-industriais e democráticas, mudanças essas que, segundo a autora, possibilitaram transformações nos temas e nos critérios dos autores em relação àquilo que seria adequado abordar, na maneira de descrever o mundo e nos valores que são propostos e discutidos nas obras. Com base nesses - e também em outros – pressupostos, a pesquisadora aponta para uma diversidade de gêneros e de temas dos livros analisados, além das mudanças ocorridas em 1 O futsal pode ser caracterizado como o futebol adaptado para prática em uma quadra esportiva, com times de cinco jogadores e outras modificações em regras, decorrentes de tal adaptação. Devido a menores exigências quanto às condições de praticá-lo – times com menos jogadores e espaço menor requerido – o futsal se popularizou largamente no Brasil, mas sua origem – do futebol – parece ter trazido consigo também o estereótipo de gênero.

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relação às personagens, ao cenário e à estrutura narrativa, e ao desfecho das obras em questão. Quanto ao contexto editorial do Brasil e a obras de autores brasileiros, nas três últimas décadas também houve modificações no mesmo sentido do abordado em Colomer, considerando que cada vez mais há uma permeabilidade entre a produção cultural de diferentes países do mundo, principalmente em função da mídia e, em especial, dos contatos via internet. Uma gama muito mais ampla de temáticas, incluindo assuntos anteriormente tidos como tabu na literatura, como descasamentos, novas configurações familiares, suicídio, alcoolismo, desemprego, perseguições políticas, deficiência, racismo e preconceito, violência, passou a integrar os livros, num movimento que também serviu de caixa de ressonância às mudanças sociais mais amplas e às modificações legais em relação à educação brasileira, como a introdução curricular dos chamados Temas Transversais2 Por outro lado, a crescente preocupação com a “crise da leitura” e a indicação consensual de que, para fomentar o gosto pela leitura, é necessário oferecer à criança, desde tenra idade, abundante material de literatura infantil, redundaram não só no aumento exponencial dos títulos e tiragens para esse segmento de mercado, como também na implementação de programas governamentais de largo espectro e em diversos âmbitos (federal, estadual, municipal, privado), que empreenderam aquisição e distribuição de números elevados de títulos e volumes. Pode-se dizer, pois, que, ao menos no Brasil, o segmento da literatura infantil é um segmento em expansão e diversificação (também temática), desconsiderando-se neste momento questões de qualidade literária e editorial. Nesse contexto é que se situa o presente trabalho, cujo objetivo é analisar, em livros de literatura infantil de autores brasileiros (duas autoras e um autor), o potencial de subversão das representações de gênero masculino e feminino, no que diz respeito à prática do esporte mais definidor da masculinidade no Brasil: o futebol, e de uma brincadeira também tipicamente masculina: o jogo de bolitas. Os três livros escolhidos para o presente trabalho foram Nariz em pé, de Élcio Schueller, publicado em 1989; Joana Banana, de Cristina Porto, publicado em 2002 e Menina não entra, de Telma Guimarães Castro Andrade, publicado em 2007. As referidas obras têm em comum o fato de trazerem narrativas que tratam da questão de gênero, 2 De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, que constituem diretrizes para a educação brasileira, os Temas Transversais para o ensino fundamental são: Ética, Meio Ambiente, Saúde, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual.

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apresentando personagens femininas crianças que lutam por espaço e por reconhecimento em jogos de futebol – em Joana Banana e Menina não entra – e no jogo de bolas de gude – em Nariz em pé. Vale relembrar, neste momento, Colomer (2003), no que diz respeito aos temas que podem ser considerados como inovação no corpus por ela analisado, o qual pode ser aproximado ao panorama editorial brasileiro; a autora neles identifica os assim chamados temas sociais, que se referem a problemas surgidos ou difundidos recentemente em nossa sociedade, tais como a ecologia, a defesa das minorias, a não discriminação em função de sexo ou raça, o problema da droga, a alienação das sociedades modernas, o pacifismo, etc. (p. 198-199). Nesse sentido, pode-se considerar que as três narrativas abordam um tema inovador, uma vez que tratam, de maneira geral, da não discriminação em função de sexo – ou melhor, de gênero. Com base em tramas e temas semelhantes, as narrativas se desenvolvem a partir de um esquema canônico tradicional, ou seja, todas apresentam uma situação inicial, uma mudança nessa situação inicial envolvendo uma transformação e uma resolução que marque uma mudança significativa (CULLER, 1999). De acordo com Reuter (2002), essa transformação é constituída de: “um elemento (complicação) que permite movimentar a história e fazê-la sair de um estado que poderia durar; encadeamento das ações (dinâmica); outro elemento (resolução), que conclui o processo das ações, instaurando um novo estado, que vai perdurar até a ocorrência de uma nova complicação” (p. 36). No caso de Joana Banana e Menina não entra3, a situação inicial envolve a necessidade de se encontrar jogadores para montar um time de futebol – em Joana Banana faltava apenas um jogador para completar o time e substituir um garoto que havia se mudado da cidade, e em Menina não entra a personagem Miguel inicia a trama em busca de mais dez meninos para formar um time de futebol. Já em Nariz em pé, temos a chegada da menina Claudinha à rua das Palmeiras e sua busca por amigos compondo a situação inicial da narrativa. Logo a seguir, as narrativas se desenvolvem, abrindo espaço para a complicação, que emerge, nas duas primeiras histórias, justamente quando, 3 Ressaltamos que as obras Menina não entra e Nariz em pé se aproximam no sentido de possuírem pouco texto e se direcionarem a leitores iniciantes; já o livro Joana Banana apresenta predomínio de texto escrito, com uma narrativa verbal bem mais longa, direcionando-se a leitores proficientes; também apresenta uma trama narrativa mais complexa, conforme será analisado na próxima seção.

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para completar o time, surge uma menina – trata-se de Joana, apelidada de Joana Banana pelos meninos do bairro onde ela passa a morar (no livro Joana Banana), e de Fernanda, nova vizinha e irmã de dois meninos que também jogariam no time do bairro, cujo nome é “Meninos Futebol Clube” (no livro Menina não entra). Em Nariz em pé, a força perturbadora dos fatos iniciais vem da tentativa de Claudinha de participar do jogo de bolinhas de gude, disputado somente por meninos. A partir desse elemento complicador comum – uma menina em jogos considerados de meninos – se desenvolvem as histórias, cujo enfoque e cujas tramas giram em torno dessas personagens e de suas ações e atitudes no sentido de conquistar, por assim dizer, um espaço feminino nesse lugar masculino, provando a capacidade e o talento de cada menina e problematizando, assim, a pretensa “naturalidade” das diferenças entre meninos e meninas. Vejamos como se desenvolvem as tramas e qual o papel das protagonistas nelas.

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Menina em jogos de menino: as personagens femininas ocupando espaços masculinos Ao tratarmos, então, do desenvolvimento dos enredos dos livros em questão, gostaríamos de ressaltar a importância das personagens na construção narrativa, uma vez que elas têm um papel primordial na organização do enredo. Reuter (2002) afirma que as personagens “permitem as ações, assumem-nas, vivem-nas, ligam-nas entre si e lhes dão sentido. De certa forma, toda história é história de personagens” (p. 41). Também é necessário, conforme escrevem Adam e Revaz (1997), “construir um mundo”, ou seja, situar os fatos e as personagens em um espaço e atribuir-lhes características. Na esteira de tal argumento, Colomer (2003) também deu especial atenção às personagens na sua pesquisa. Ainda ancorada nos estudos de Reuter, a autora explicita que as personagens “são um dos grandes pilares da ilusão realista de qualquer obra”, determinando, no leitor, a verossimilhança, a coerência e a aceitabilidade do texto (p. 201). Um dos primeiros pontos que merecem destaque diz respeito à descrição física das personagens: em dois dos livros é descrita a maneira como as meninas se vestem (e relembremos como a questão da vestimenta é um crucial marcador de diferença de gêneros, em diversos contextos e épocas históricas), sendo que em Nariz em pé o modo de se vestir de Claudinha, a protagonista da história, é usado como argumento pelos meninos para não aceitá-la no jogo de bolinhas de gude.

Já no início do texto, quando a menina se aproxima dos meninos que estão jogando, sua roupa é descrita: “Claudinha apareceu como quem queria nada, de saia vermelha, blusa da mesma cor e, na cabeça, um laço de fita4”. Na mesma página, a ilustração traz Claudinha em pé, com a vestimenta descrita, enquanto três meninos aparecem agachados, jogando bolinhas de gude, dois deles de calças compridas, um de bermudas, e todos de tênis; um deles está com um boné na cabeça. É importante ressaltar que somente Claudinha, a menina, tem a sua roupa descrita, mas a ilustração já marca uma diferença entre o modo como a menina e os meninos se vestem. Ainda no que tange à maneira de se vestir, na obra Joana Banana é dado destaque ao fato de a menina não usar roupas consideradas típicas de menina. Tal fato é sublinhado em um diálogo entre os pais de Joana, cujo excerto merece destaque, até porque a passagem encena os embates sobre marcadores de gênero feminino na infância, de certa forma dando corpo a uma certa voz pedagógica (que se insinua com frequência na literatura para crianças, como sabemos): - Você sabe que sempre sonhei em ter uma menina só pra poder enfeitar, vestir com aqueles vestidinhos cheios de babados, bem engomadinhos, laço de fita combinando, meias brancas e sapatos de verniz pretos... Ah, não sei a quem ela puxou! - Foi a criação, Teresa, quero dizer, foi por ter sido criada praticamente no meio de homens. Nenhuma prima, só primos. - E dos dois lados, Meu Deus, que falta de sorte! Até pra bonecas ela nunca ligou muito! Não me conformo! E as roupas, então? Sempre folgadas, não gostava de nada que apertasse, que incomodasse... (...) - É, você nunca me apoiou na tentativa de deixá-la mais feminina, mais delicada... - Deixe de história, mulher! O importante é que Joana é uma boa filha, geniosa, tá certo, mas obediente, nunca deu trabalho na escola e tem um coração de ouro! Deixe que ela se vista como quiser! E que seja feliz assim, do jeito que é. - É, no fundo acho que você tem razão... (p. 24)

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No caso de Joana, além da vestimenta, a mãe ainda lamenta o fato de a menina não gostar de bonecas, uma preferência de brinquedo geralmente atribuída ao gênero feminino e que sugere a naturalidade do “espírito maternal” nas mulheres. O pai, entretanto, ressalta que o caráter da filha é mais importante do que seu jeito “não tão feminino de ser”. Como já mencionamos antes, a vestimenta de Claudinha, na obra Nariz em pé, é utilizada pelos meninos como um argumento para que ela não seja aceita no jogo, o que faz com que ela tire, uma a uma, cada peça de roupa e seu laço de fita e as substitua por uma calça comprida, blusão e tênis. Um trecho do diálogo entre Claudinha e os garotos exemplifica tais exigências, quando ela inicia perguntando: - Posso jogar agora? - Poderia se você não usasse saia – falou Dudu com uma enorme cara de deboche. Claudinha virou as costas e rumou para casa. Os meninos pensaram, então, que finalmente a tinham vencido. Mas enganavam-se redondamente. Minutos depois ela voltou usando sabe o quê?... Calças compridas! Quando, enfim, Claudinha atende às exigências dos meninos quanto ao vestuário marcadamente feminino, eles são compelidos a expressar a razão “de fundo” por que não a deixam participar do jogo: - Não pode jogar, porque você é MENINA! Já na história de Fernanda, em Menina não entra, a narrativa logo é conduzida para o ponto central que gera a complicação e que é motivo para que ela, em um primeiro momento, não seja aceita no time “Meninos Futebol Clube”: o fato de ela ser menina, pois, segundo os dez garotos “Menina não entra!”. Apesar de não haver descrição física específica de Fernanda, como de Joana e de Claudinha, nas duas páginas em que os meninos argumentam que ela não pode jogar por ser menina, as ilustrações mostram a garota em roupas de balé, ora dançando junto com uma bola de futebol, ora caída no chão e machucada, numa clara referência às justificativas dadas pelos meninos e que giram em torno dos clichês de feminilidade, daquilo que é considerado “coisas de menina”, segundo transcrevemos abaixo: “- Futebol é coisa de menino. - Meninas fazem balé! - Vai sair machucada... - Garotas não sabem de nada!” Observe-se como se reeditam aqui os argumentos que Tenroller (2008) encontrou nas entrevistas com meninas

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e meninos “de carne e osso”, quando questionados sobre a presença de meninas na prática de futsal, que dizem respeito à fragilidade e à ignorância das meninas em relação ao esporte. Entretanto, Fernanda insiste, argumenta e acaba por ser admitida no time. Em relação ao livro Joana Banana, sua estrutura narrativa é mais complexa, já que apresenta mais de uma complicação. Em um primeiro momento, é apresentada ao leitor a situação inicial, em que um grupo de garotos de uma cidade pequena espera com ansiedade o caminhão de mudança de uma família que vai ocupar uma casa vazia, anteriormente habitada por uma família que foi embora da cidade e cujo filho era membro do “Espelunca Futebol Clube”. A ansiedade dos meninos é fruto da expectativa de que chegue um substituto para Zito, que se mudou e que deixou o time desfalcado. Entretanto, há surpresa e decepção ao se darem conta de que uma menina, Joana, logo apelidada pelos meninos de Joana Banana, é que veio com seus pais para a casa onde morava Zito. Assim como nos outros dois livros analisados, o conflito inicial se dá justamente pelas personagens femininas quererem ocupar um espaço em jogos considerados masculinos. No caso de Joana, essa vontade de ocupar um espaço no time de futebol surge também para provar a quem lhe atribuiu o apelido de “Joana Banana”, que ela não era “nenhuma banana”. No trecho abaixo, destacamos o momento em que Joana conhece Maneco e Duda, dois dos meninos moradores do bairro, entende o porquê do apelido e decide que quer jogar no time: - Bem, o negócio é o seguinte: a gente está com o time desfalcado faz um tempão, desde que o Zito foi embora. O Zito morava na casa onde você está morando, não é, Maneco? - É. É isso aí que o Duda falou. A casa ficou desocupada um tempão e a gente esperando que chegasse um menino pra ser nosso ponta-esquerda. - Isso mesmo. E, depois de esperar todo esse tempão, chega você uma Joana e não um João, né, Maneco? - É, é isso aí que o Duda falou. Será que dá pra entender agora por que a gente só podia chamar você de Joana Banana? - Ah, então a história é essa? Pois vou mostrar pra vocês que não sou nenhuma banana, ouviram bem? (p. 13)

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Frente à insistência de Joana, o grupo se reúne, discute e decide então aceitá-la no “Espelunca Futebol Clube”, decisão que foi tomada entre discussões e divergências, mas “a vontade de participar do Campeonato Varzeano, mesmo correndo o risco de se tornar alvo de gozação, foi mais forte do que qualquer preconceito. Pelo menos em sete das dez cabeças que tiveram que optar” (p. 16). O “Espelunca Futebol Clube” disputa então o campeonato e Joana vai conquistando seu espaço no time, movida, em grande parte, pela raiva que sentiu ao ter sua habilidade colocada à prova, pelo fato de ser menina, justamente no momento em que seu time perdia, como podemos observar no excerto abaixo: De cabeça quente, o já esquentado Noel não aguentou: chegou bem perto de Joana e disparou: - Não falei que isso não ia dar certo, sua Banana Nanica Podre de Madura?

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Quem estava longe não entendeu nada, mas percebeu, pela reação da menina, que algo muito grave tinha acontecido ou estava para acontecer. Joana ficou vermelha, parecia até inchada de tanta raiva, prestes a explodir em cima de Noel, mas conseguiu desviar o sentimento para a bola que lhe caiu, de presente, no pé esquerdo. (p. 26) A partir de então, sua habilidade em jogar começa a ser reconhecida, inclusive porque a torcida gritava seu nome no final da partida, e Joana “se sentiu segura e tranquila para enfrentar a semana de preparação para a partida decisiva do domingo seguinte” (p. 29). Esse conflito inicial é solucionado com o reconhecimento de Joana como boa jogadora na partida final do campeonato, que consagrou o “Espelunca Futebol Clube” campeão. Contudo, de maneira diferente do que ocorre nas duas outras obras, o fato de a menina ser reconhecida como talentosa não soluciona ou finaliza a narrativa, uma vez que outro conflito surge no momento em que Joana, apesar do talento, é substituída por outro jogador, um menino. Ao ser substituída, Joana fica furiosa e indignada com o preconceito, o machismo e a ingratidão do grupo. Tal fato desencadeia a reação de Joana – formar um time de futebol só de meninas, o Vitória Futebol Clube, para enfrentar o Espelunca – e dá sequência à narrativa. Paralelamente a isso, uma outra situação vai mo-

bilizar e transformar Joana (e trazer novo ingrediente ao enredo): ela conhece, na escola, Geninho, e se apaixona por ele. O livro narra, além da mobilização da menina para criar o “Vitória Futebol Clube” e treiná-lo, sua aproximação de Geninho – que se descobre, depois, ser o menino que substituiu Joana no “Espelunca Futebol Clube”. Quando Geninho sinaliza que quer namorar Joana, ela responde que prefere esperar pelo menos até a partida de futebol contra o Espelunca passar. Pode-se especular se a opção da autora em inserir na trama o interesse de Joana por um colega não pode ser lida como uma busca de afugentar qualquer “leitura” de homossexualidade da protagonista, que inclusive poderia ter sido alimentada pelas suas preferências de vestimento e por suas atitudes.. Afinal, se as questões de contestação de estereótipos de gênero só mais recentemente chegaram à literatura infantil, a temática da orientação sexual que foge à heteronormatividade é, ainda, muito mais rara e difícil de ser abordada em tal literatura. De qualquer forma, é interessante ressaltar a busca de complexificação da protagonista da história, ou seja, apesar da tentativa de aproximar Joana do universo feminino a partir do sentimento despertado por Geninho (e ela pede para a mãe comprar “vestidos” e os traja em várias ocasiões, como se se “rendesse” aos marcadores de feminilidade para “conquistar” o seu objeto de amor) , ela simplesmente não desiste de seu objetivo principal – o time de futebol -, como as heroínas românticas, mas persiste em seus objetivos prévios. Como as outras protagonistas das outras obras, Claudinha e Fernanda, Joana também é uma personagem forte e determinada, mas é construída de forma mais complexa e multifacetada do que as outras. Como se resolvem, então, os conflitos trazidos pelas obras? A resolução dos conflitos O desfecho das obras é crucial para analisarmos de que maneira são apresentadas as soluções para a atitude das três protagonistas e quais lições são, de certa forma, trazidas pelas obras, mesmo que elas não possuam um cunho pedagógico explícito. Aliás, cabe sublinhar aqui a importância do desfecho, sobretudo para os livros que se destinam a crianças mais jovens. Nesse sentido, Hunt (2010) resssalta que durante as primeiras fases de desenvolvimento, as crianças preferem histórias com um elemento de “desfecho” – isto é, (n)aquelas que permitem a “sensação de um final”. Mais

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que isso, elas preferem que algo seja resolvido, que a normalidade seja restabelecida, que a segurança seja enfatizada (p. 187). Embora Colomer (2003) aponte a adoção de outros tipos de final em um terço das obras por ela analisadas, a autora reconhece que “o desenlace tradicional da narrativa infantil e juvenil é o desaparecimento positivo do problema proposto” (p. 286). As três obras analisadas obedecem a essa premissa mais tradicional do desenlace das histórias, mesmo que apresentem algumas especificidades. Em Menina não entra, restabelece-se e “sela-se a paz” entre meninos e meninas – a ilustração final do livro apresenta Fernanda em um círculo, de mãos dadas com os meninos do time. Nessa obra, aliás, o reconhecimento feminino e a mudança de atitudes dos meninos aparecem de forma mais explícita e marcada, sendo que Fernanda recebeu, inclusive, um convite do time adversário, a que Miguel respondeu: - Nem pensar! Agora ela é capitã! Além disso, o “Meninos Futebol Clube” resolve “abrir vagas para meninas e mudar o nome do time: Todo Mundo Futebol Clube”, numa solução apressadamente pacificadora e quase celebratória. Em Joana Banana, o conflito é resolvido com a vitória do time feminino. Mesmo que na hora da derrota, o time do Espelunca tenha relutado um pouco em reconhecer a superioridade das adversárias, o livro apresenta um tom de conciliação – com a vitória do Brasil na Copa do Mundo – com uma clara lição de aceitação das diferenças: Depois da comemoração no restaurante, o pessoal foi continuar a festa na rua. E aí, sim, a confraternização foi geral! As diferenças foram esquecidas, as rivalidades deixaram de existir. Não havia vitorianos nem espelunquenses: ali eram todos brasileiros, comemorando uma vitória maior, a do próprio país, cuja equipe tinha honrado a camisa! Não havia espaço para sentimentos menores, mesquinhos. (p. 126) Cabe lembrar que Joana e Geninho formam um par no final feliz do livro. Por fim, a obra Nariz em pé se diferencia um pouco das outras, uma vez que Claudinha vence o jogo de bolas de gude, mas não há menção ao reconhecimento dos meninos e nem a uma certa conciliação entre os gêneros. Depois de ter trocado suas vestes “femininas” por “masculinas”, para ver se era aceita pelos meninos, a menina, novamente trajada com saia e laço de fita, aparece repentina-

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mente, se intromete na partida, a vence e simplesmente vai embora, “de nariz em pé”: Era a Claudinha que, com saia, laço de fita e tudo, ajoelhou-se no chão e, com gudes e mais gudes, ganhou feliz da vida todas as bolinhas do jogo. Os meninos ficaram com cara de tacho, sem saber o que fazer. E lá foi Claudinha pela rua das Palmeiras. Ia toda rebolando, exibindo satisfeita a sacola e os bolsos da saia cheia de bolinhas: tlinc, tlinc, tlinc. Uma possibilidade de leitura do final é a trazida por Silveira e Santos (2007), em análise do mesmo livro, que propõem que: o fato de que Claudinha volte a vestir seu vestido vermelho e colocar sua fita, e volte a “parecer menina”, mas ganhe “com gudes e mais gudes”todas as bolinhas do jogo (...) aponta para um entendimento do tipo “não preciso deixar de ser menina, para jogar “jogo de meninos” e “vencer”. 183 Considerações finais A partir desse breve percurso sobre três obras de literatura infantil de autores (duas autoras e um autor) brasileiros que tematizam a questão de gênero, através da contestação de uma relação estereotípica futebol/jogo de bolitas – gênero masculino, podemos fazer algumas observações mais gerais. Vimos como elas concretizam tal contestação, através de enredos em que avultam protagonistas meninas que reivindicam o direito a participarem dos jogos dos meninos, tornam tal reivindicação um fato e, graças ao seu sucesso, abrem passagem para a permanência dessa inclusão, problematizando-se, assim, a pretensa “naturalidade” das diferenças entre meninos e meninas neste campo. De alguma forma, entretanto, contaminadas por uma intenção programática subjacente, algumas passagens das obras se ressentem de uma marca formativa, em que se explica ao leitor o aspecto convencional de tais construções. Assim, em Menina não entra, a protagonista menina rebate as reações dos meninos à sua intenção de entrar no time com uma fala que soa quase adulta e bastante inverossímil: – Coisas de menino, coisas de menina... Quanto preconceito! Por outro lado, podemos ver nesse livro uma tendência recorrente em outros livros que tematizam diferenças como a deficiência, por exemplo: o “diferente” (no caso, a menina) deve compensar tal “diferença” com uma

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virtude em grau excepcional. Ou seja: Fernanda não apenas joga bola, mas é excelente jogadora, faz gols e chega a ter seu passe disputado... Aliás, o texto da quarta capa não deixa muitas dúvidas sobre a intenção formativa do livro; nele se lê que o livro pertence a uma coleção formada por “histórias marcadas pela imaginação e pela fantasia, que, de maneira envolvente, mostram ser sempre possível aprender com as diferenças”. Pode-se articular a análise dos livros que realizamos com achados da pesquisa realizada por Colomer, (2003: 296), quando observa, em relação à abordagem do gênero na literatura infantil, que “os valores ideológicos difundidos durante os anos setenta propiciaram uma intervenção decididamente feminista nos livros dirigidos às crianças”. A autora, entretanto, ainda aponta debilidades em tais intervenções, embora aponte como positivos “o aumento do protagonismo feminino entre os personagens infantis e adolescentes”, a “aproximação das características atribuídas aos dois sexos, apresentando meninas com iniciativa e meninos sensíveis” e, por último, a “denúncia (...) da agressividade e competitividade masculina”. De certa maneira, as três características – ao menos em parte - foram encontradas nas tramas examinadas, ainda que, em certas passagens os autores pareçam ser compelidos a confirmar outros estereótipos de gênero. Joana, por exemplo, ao se apaixonar por Geninho, quase automaticamente deve se vestir de forma mais feminina e usar sapatos adequados, enquanto a personagem feminina adulta mais importante na trama, sua mãe, em quase tudo reforça o estereótipo da mulher cuidadora, prendada, amorosa e preocupada com a “feminilidade” da filha. Mas, enfim, as protagonistas das três histórias, embora de maneira diferente, podem ser encaixadas nesse nicho de protagonistas meninas com iniciativa, subvertendo uma imagem mais doce e submissa ligada à condição feminina, e que se inserem neste reduto ainda tão marcadamente masculino. Ainda que se possa questionar, do ponto de vista literário, o prejuízo que um certo compromisso programático em questionar clichês e estereótipos de gênero pode trazer (e traz em proporção variada ..) a livros de literatura infantil sobre o tema, é forçoso reconhecer que a literatura para crianças, como caixa de ressonâncias das mudanças, reconfigurações e transformações da sociedade, incluindo o desmonte dos preconceitos de gênero, tem efeitos nas almas infantis que o simples folhear de suas folhas não permite a nós, leitores adultos, estimar com exatidão.

Referências bibliográficas: ADAM, Jean-Michel; REVAZ, Françoise. (1997) A análise da narrativa. Lisboa: Gradiva. COLOMER, Teresa. (2003) A formação do leitor literário. São Paulo: Global. CULLER, Jonathan (1999). Teoria Literária. São Paulo: Beca. HUNT, Peter. (2010) Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Cosac Naify. LOURO, Guacira Lopes. (1997) Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista, 3ª. ed., Petrópolis: Vozes. _______. (1999). Pedagogias da sexualidade. In LOURO, Guacira (org.) O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, p. 9-33.. REUTER, Yves. (2002) A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: DIFEL. SCOTT, Joan. (1995). “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” in Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99. SILVEIRA, Rosa Maria; SANTOS, Cláudia Amaral dos. (2003) Gênero e diferença em textos escolares infantis. In CARVALHO, Marie Jane Soares; ROCHA, Cristianne Maria Famer (orgs.). Produzindo gênero. Porto Alegre: Sulina. p. 267-278. _______ (2007). A problematização do gênero na literatura infantil: um estudo de caso no contexto brasileiro. In: AZEVEDO, Fernando; ARAÚJO, Joaquim Machado de; PEREIRA, Cláudia Sousa; ARAÚJO, Alberto Filipe (orgs.). Imaginário, identidades e margens – estudos em torno da Literatura Infanto-juvenil. Porto: Edições Gailivro. p. 287-297. TENROLLER, Carlos Alberto (2009). Meninas e futsal: um estudo sobre questões de gênero da Educação Física na escola e para além de seus muros. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Luterana do Brasil. Canoas – RS. Livros analisados ANDRADE, Telma Guimarães Castro. (2006) Menina não entra. Ilustrações Ellen Pestili. São Paulo: Editora do Brasil. PORTO, Cristina (2002). Joana Banana. Ilustrações de Alcy Linares. São Paulo: Ática. SCHUELLER, Élcio. (1989) Nariz em pé. Ilustrações Rosa Schettino. Belo Horizonte: Editora LÊ.

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A Gata Borralheira no espelho: a desconstrução do conto de fadas em Sophia de Mello Breyner Andresen Fabiana Miraz de Freitas Grecco UNESP/Assis – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Brasil)

Resumo: Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu na cidade do Porto, a 6 de novembro de 1919, vindo a falecer no ano de 2004. Estreou como poeta em 1944, integrando a geração dos Cadernos de Poesia. A partir de então, ficou sendo mais conhecida por sua obra poética. No entanto, Sophia dedicou-se também às narrativas curtas, reunidas em três livros de contos: “Contos Exemplares”, 1962 e “Histórias da Terra e do Mar”, 1984 e “Quatro contos dispersos”, 2008, publicado postumamente, resultado da reunião de contos dispersos em jornais e revistas literárias. Dentre os seus 17 contos publicados, deter-nos-emos, nesta comunicação, sobre a “História da Gata Borralheira” (Histórias da Terra e do Mar, 1984) com o propósito de explorar a desconstrução do conto de fadas por Sophia, realizada por meio de um contínuo jogo de espelhos.

A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen publicou cerca de 23 livros de poemas, que dentre eles destacam-se “Dual”, 1972; “Livro sexto”, 1962 e “O nome das coisas”, 1977, tendo esse último recebido o prêmio Teixeira de Pascoais no mesmo ano da sua publicação. No campo da ficção, publicou dois livros de contos, intitulados “Contos Exemplares”, 1962 e “Histórias da Terra e do Mar”, 1984, além de narrativas infantis, tais como “A menina do mar”, 1958 e “O cavaleiro da Dinamarca”, 1964. Escreveu, ainda, o ensaio “Cecília Meireles”, 1956, expressando a sua grande admiração pela poeta brasileira e traduções de Dante, Shakespeare e Paul Claudel. Os contos de Sophia nos encantam pela relação que estabelecem com o real, embora sem quebrar a “imaginária linha” (ANDRESEN, 2004, p. 105). Geralmente situada na fase do neorrealismo português, Sophia acreditava que através da literatura é possível delinear o real, mas não representá-lo, e sim libertar-se dele. Dessa maneira seus escritos são marcados pela relação estreita com o real, mas de forma “que as imagens se organizam segundo as suas próprias forças de coesão, sem argamassa de uma retórica analisável” (SARAIVA & LOPES, 1973, p. 1133). De acordo com Maria Alzira Seixo, na Revista

Colóquio Letras do ano 1984, os contos de Sophia, (12 ao todo: 5 pertencentes ao livro “Histórias da Terra e do Mar” e 7 pertencentes ao livro “Contos Exemplares) denotam a grande capacidade da autora também ao escrever narrativas. O prestígio de Sophia como contista está na “escrita linear, de sintagmática narrativa aparentemente simples” (Ibidem). Todavia, segundo a estudiosa, a linearidade e a simplicidade complexificam-se com a “leitura consciente e informada, em múltiplos e divergentes eixos da vectorização semântica do texto; e as breves páginas de um conto de Sophia convertem-se (...) numa espécie de programações discursivas densas e despojadas” (Ibidem). Em entrevista a Eduardo do Prado Coelho (In: ICALP – Revista, nº6, 1986, p. 60-77), Sophia revela temer o que possa vir a surgir de seus contos: E.P.C.- E quanto aos seus personagens, aos personagens dos seus contos, por exemplo, os que lhe fazem medo, o que é que lhes acontece? S. M. B. – Bem, eu liberto-me como posso (...) E há um conto que se eu o acabar, talvez me liberte de muitas coisas, mas tenho tanto medo... Até porque... é tudo muito esquisito! Começam a aparecer coisas terríveis, sabe?,

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nos contos. Há um conto em que há um homem condenado à morte e as coisas que começam a aparecer à roda desse homem condenado à morte são assustadoras... São coisas que eu sabia mas que talvez não tenha consciencializado ou enfrentado. Vêm dos... sabe que em Delphos o Python ficou a apodrecer – o Apolo não o enterrou... O Mal não está enterrado. Sophia, em entrevista a Miguel Serras Pereira, 1985, publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 135, intitulada “Sou uma mistura de Norte e Sul”, reforça a idéia de que escrever contos a amedrontava e fala novamente da diferença entre escrever poesia e prosa:

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_Estou a escrever outro livro de contos para adultos, ainda sem título. Mas há certos contos onde surgem coisas que me fazem medo – e eu paro, porque começo a ter medo das coisas que aparece enquanto escrevo. Às vezes consigo continuar a escrever o conto até o fim, como aconteceu com “A viagem” dos Contos Exemplares. Mas fez-me um medo terrível escrever essa história. Foi qualquer coisa que se impôs. Antes, eu não sabia o que ia escrever (...) Há uma noção de abismo que é imanente a toda a experiência humana (...) E eu sei que há abismo também na poesia. Mas esta muitas vezes funciona como esconjuro do mal e da sombra e tem uma dimensão catártica que talvez não seja o que faz com que o medo não me assalte do mesmo modo. Com a prosa, surge uma dúvida dentro de nós. Não sabemos nunca se estamos a esconjurar, se a convocar. É uma espécie de jogo muito estranho. Porque há esta diferença, não sei bem. Mas é o que passa comigo. A poesia e a prosa são duas navegações diferentes (AMADO, 2010, pp.192, 193). Na mesma entrevista a Eduardo Prado Coelho, 1986, Sophia fala de como era o processo de escrita de seus contos infantis, partindo da necessidade de contar história aos filhos e insatisfeita com as histórias que lia, irritada com a linguagem sentimental, partia em busca das histórias que ouvia de sua mãe e, às quais, os próprios filhos adicionavam suas sugestões, interagindo e ajudando a compor: S.M.B._ Acho que eles influenciavam talvez a lógica da própria história. E depois, como eu estava com crianças, eu própria era influenciada, por exemplo nisto: nunca usar palavras

abstractas nem construções complicadas. E a atenção dos outros guia-nos sempre. Apesar de o conto “História da Gata Borralheira” de Sophia, integrante das Histórias da Terra e do Mar, 1984 (1ª ed.), não pertencer ao rol de suas narrativas para crianças, podemos considerá-lo uma releitura do conto de fadas tradicional, da Cinderela e tomaremos como base para esta comparação a versão de Charles Perrault, Cedrillon, de 1697, do qual Sophia realiza uma total subversão, e atua, como uma “contadora de histórias” à moda dos contadores do século XVII, ao reler um conto que foi gradativamente destinando-se ao público infantil, trazendo-o de volta ao ouvido dos adultos, nas palavras de Marie-Luise von Franz,: Na sua origem, e até por volta do século XVII, os contos de fadas se destinavam menos às crianças que à população adulta. Essa situação prolongou-se nos meios rurais onde, até uma época relativamente recente, contadores e contadoras de histórias animavam as tradicionais vigílias (FRANZ, 2010, p. 07). Assim, apesar de remontar, à história da Gata Borralheira que teve, com o passar do tempo a finalidade de moralizar as crianças, o conto de Sophia é destinado ao público adulto, numa abordagem que questiona o sexismo e problematiza o autoconhecimento da mulher. O que nessa narrativa podemos traçar em comum com seus contos para crianças é a presença de um “ritual iniciático”, nas palavras de Maria Luisa Sarmento de Matos: (...) pretende-se realçar o modo como Sophia em cada uma de suas histórias reactualiza um ritual iniciático: os protagonistas dos seus contos partilham de um estado de rêverie, no sentido que lhe dá Bachelard (Quel être comique qu’un enfant rêveur”), que lhes proporciona realizarem uma aprendizagem, transmutando-se para um novo modo de ser (MATOS, 1993, p. 12). De acordo com Luís Ricardo Pereira (1993), a poesia de Sophia é marcada pela polaridade, ou seja, há nela a existência de dois polos, que se repelem, mas que ao mesmo tempo se complementam, na explicação do estudioso da obra de Sophia, é essa a característica Dual de sua obra e também a reunião do mítico e do simbólico: Por isso, a dimensão lexical é, antes de mais, essencial, podendo ser subdividida, de acordo

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com as coordenadas que manifesta, em dois espaços semânticos, que se cruzam e penetram entre si como duas forças vitalizadoras do princípio da criação (PEREIRA, 2003, p. 107). Assim, nos valeremos dessa polaridade para analisar, neste artigo, a desconstrução da História da Gata Borralheira de Sophia. Apesar de ter deixado claro em entrevistas anteriormente mencionadas, que a escrita de prosa e poesia para ela são ações totalmente distintas, levaremos em conta as dimensões lexicais de sugestividades eufórica e disfórica, que estarão presentes também na narrativa, pois como afirma Maria Luísa Sarmento Matos, em seus contos “verificam-se algumas variações próprias das texturas poéticas de Sophia, já delineadas em outras narrativas” (1993, p. 82). Desse modo, podemos notar que, apesar da poeta assinalar a diferença de construção e subjetivação no momento da escrita de poesia e prosa, seus contos também partilham os topoi de sua poesia, como a casa e o jardim, por exemplo. Outra repetição, que como ela mesma dizia “eu sou muito repetitiva de natureza” (2010, p. 171) são a noite, o espelho e as introjeções da mitologia grega. O conto de fadas mais conhecido e reescrito por diversos autores, comumente intitulado A gata borralheira ou Cinderela, que “vem sendo narrado há mais de mil anos”, passou a sua forma canônica com Charles Perrault, Cendrillon de 1697 (WARNER, 1999, p. 234). A Cinderela de Perrault de 1697 (tradução do original para o português realizado por Maria Luiza X. de A. Borges, que utilizamos neste trabalho) era paciente, obediente, bela e extremamente boa, que suporta os mandos e desmandos das irmãs e madrastas, reforçando e instaurando, assim, o estereótipo da heroína sofredora, que passa por “uma longa provação antes de sua redenção e triunfo” (WERNER, 1999, p. 234). Percebemos que a Gata borralheira de Sophia opõe-se à de Perrault logo no início da narrativa, no momento em que nos é apresentada uma moça sem traços definidos de personalidade, sem a constante marcação do binômio bom e mau. A gata borralheira de Sophia é indecisa quanto a si mesma e aos poucos sua psique vai sendo desvelada, deixando entrever a fragilidade da personagem frente a sua própria imagem refletida no espelho. O conto é dividido em duas partes, na primeira consta a apresentação da situação de Lúcia (nome dado à gata borralheira de Sophia) e as razões pelas quais ela teria se decidido pelo caminho

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que é explorado na segunda parte do conto. Essa divisão, portanto, marca a decisão de Lúcia pelo caminho que norteará a sua vida daquele momento em diante. Podemos pensar também, que a primeira parte refere-se ao primeiro baile da gata borralheira, como podemos verificar na comparação com a história de Perrault. No primeiro baile, Lúcia, acompanhada de sua tia, que também era sua madrinha, conhece uma moça um tanto “aérea” e moço muito bonito e moreno, com os quais ela tem conversas um tanto estranhas, e que nos revela respectivamente, a relação de Lúcia com o espelho e com a noite. São duas repetições lexicais muito presentes no texto, e que, de acordo com Maria Luísa Sarmento de Matos, marca a presença do maravilhoso em suas narrativas. Na primeira conversa a moça aérea de vestido cor-de-rosa, tenta convencer Lúcia a não se olhar no grande espelho de moldura dourada dos anfitriões do baile: “Não se veja nesse espelho, faz muito má cara (...) A sua pele é linda e branca (...) e, ali, parece cinzenta. É melhor não olhar para lá” e ainda complementa “Sabe (..) não sabemos ao certo o que querem os maus reflexos, os maus olhares, as más palavras. Talvez a perdição da nossa alma. E temos que manter a nossa alma livre” (ANDRESEN, 2006, p. 22). A imagem refletida de Lúcia na abertura do conto é feita pela luz da lua sobre o tanque redondo, da qual ela não tirava os olhos: “mirava extasiadamente o reflexo do seu rosto” (ANDRESEN, 2006, p. 09). A aura que rodeava Lúcia nos primeiros parágrafos do conto era de magia, a noite fora da casa era uma noite mágica, tão cheia de mistérios que a noite é comparada com uma rapariga descalça: “como uma rapariga descalça a noite caminha leve e lenta sobre a relva do jardim” (Idem). A noite e o jardim, assim representados, reforçam a ideia de “território selvagem” de que fala Elaine Showalter (1994) ao examinar o modelo de Ardener, quando trata-se da escrita de autoria feminina: Os grupos de Ardener são representados por círculos intersecutivos. Muito do círculo silenciado Y recai nas divisas do círculo dominante X; existe também uma parte de Y crescendo por fora do limite dominante e é, portanto, (na terminologia de Ardener), “selvagem” (...) Espacialmente ela significa uma área só de mulheres (...) Neste sentido o “selvagem” é sempre o imaginário; do ponto de vista masculino, ele pode ser simplesmente a projeção do inconsciente (...) para algumas críticas feministas, a zona selvagem, ou o “espaço

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feminino”, deve ser o lugar de uma crítica, uma teoria e uma arte centradas na mulher, cujo projeto em comum seja trazer o peso simbólico da consciência feminina para o ser, tornar visível o invisível, fazer o silêncio falar (SHOWALTER, 1994, pp. 48-49).

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A importância do modelo de Ardener é justamente tentar traduzir esse espaço estritamente feminino que, no conto de Sophia, se dá pela presença do maravilhoso. A noite, que figura sempre como uma rapariga (num momento é descrita descalça e em outro pousa sua mão no rosto de Lúcia) vem sempre acompanhada das palavras “feéricas”, “irreais” e “mágica”, formam, dessa maneira, um campo semântico que traz à superfície do texto o território imaginário, o mundo maravilhoso das fadas. Em relação à importância determinante do espaço no conto, notamos que desde o início é estabelecida uma diferença entre o espaço aberto (jardim) e espaço fechado (casa). De acordo com Maria Luísa Sarmento de Matos, a casa representaria o espaço acolhedor nos contos para as crianças, e é justamente nesse ponto que está a diferença da História da Gata Borralheira. Aí se encontra uma subversão, tanto do conto de fadas, como da ideia de acalento e segurança que a casa representa na obra de Sophia: a casa do baile representa o caos, a perturbação de Lúcia: os espelhos que estão dentro da casa fazem “má cara” a ela, ao passo que o reflexo de seu rosto na água do “tanque redondo” do jardim é admirado “extasiadamente”, indicando a liberdade do espaço aberto em comparação aos grilhões de uma sociedade da qual Lúcia não fazia parte. Remetendo à mitologia grega, fortemente presente em toda obra de Sophia, podemos ver a presença da noite, já desde o início metamorfomizada em uma rapariga descalça, representando a liberdade de Lúcia. O vocábulo noite, de acordo com José Ricardo Pereira, faz parte do espaço apolíneo ou, ainda, da dimensão lexical eufórica, da qual também faz parte o advérbio “extasiadamente”, tendo significado positivo. No espaço fechado da casa onde se passa o baile, todas as imagens refletidas de Lúcia são distorcidas para uma imagem negativa de si mesma: ela estava envergonhada de ir ao baile com o vestido emprestado de sua madrinha e com o sapato achado num sótão de sua casa, velho, roto, enfim, miserável. A dimensão lexical que pertence à descrição do baile é disfórica: “alheio”, “indiferente”, “incompreensíveis”, “entrecortadas”, “temor”,

“troça”, “dúvida”, “duvidosa”, “inexistentes”, dentre outros. No entanto, há menção à casa familiar, onde moram os irmãos e o pai, na qual nada é austero. A casa em que Lúcia mora com sua família é o lar amoroso, repleto de vida, calor e liberdade. Sobre o tema da casa como topoi de felicidade, Maria Luísa Sarmento de Matos a associa à “imagem repousante” de Gilbert Durant (1969). Essa representação da casa familiar defere-se da casa da madrinha, em que tudo é rígido e repleto de prudência e cálculo. Além da noite, o espelho também atua como intervenção mágica, bem como simboliza uma passagem. O reflexo de Lúcia é diferenciado nos dois espaços em que se passa a narrativa. O espaço aberto e edênico do jardim, com suas significações de liberdade e descoberta de si, é ignorado por Lúcia, mesmo ela sendo alertada pela moça de cor-de-rosa e pelo moço moreno e bonito. A presença desse moço no conto também é marcada pela aura fantástica. A fala dele revela a intenção de advertir a gata borralheira de sua escolha pela vida corrompida da madrinha rica. O moço moreno e bonito revela a Lúcia o temor de noites mágicas como aquela, que pretendem nos desviar de nossa verdadeira vida: _ Tudo parece tão misterioso: o brilho do luar entre as sombras e as folhas das árvores, o reflexo da lua no lago. O lago parece um espelho. É uma noite mágica (...) Tanto azul, tantos brilhos, brisas, perfumes, parecem a promessa de uma vida deslumbrada que é a nossa verdadeira vida. Mas, ao mesmo tempo, há nestas noites uma angústia especial - há no ar o pressentimento de que nos vamos despistar, nos vamos distrair, nos vamos enganar e não vamos nunca ser capazes de reconhecer e agarrar essa vida que é a nossa verdadeira vida (ANDRESEN, 2006, p. 29). O espelho, de acordo com o Dicionário de Símbolos, é um símbolo feminino e lunar, como também pode significar o auto-conhecimento, reflete a alma: El espejo no tiene solamente por función reflejar uma imagen; el alma, convirtiéndose em um perfecto espejo, participa de la imagem e por esta participación sufre um transformación. Existe pues una configuración entre el sujeto contemplado y el espejo que lo contempla (CHEVALIER, 1986, pp. 474-477).

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Lúcia não compreendia as palavras da moça de cor-de-rosa, nem as do moço bonito, pois o achava “tonto” e “lunático” e, após ter dançado com ele, e deixado no meio do salão o sapatinho esfarrapado com que tinha ido ao baile, sucumbiu aos enganosos brilhos, às más palavras e aos maus reflexos. Lúcia escolheu morar com a madrinha e obter tudo aquilo que a protegeria do desdém dos outros. No segundo baile, Lúcia, já gloriosa e protegida pelo poder financeiro que adquiriu indo morar com a madrinha, aparece com sapatos bordados de brilhantes. Nesse instante, há uma comparação a outro conto de fadas, pois Lúcia foi comparada à madrasta da Branca Flor: era preciso que ela, como a madrasta da branca flor, pudesse naquela noite perguntar a todos os espelhos da casa: _ Dize-me espelhos, qual é a mais bela, a mais perfeita, a mais rica de triunfo, aquela que está em seu reino mais segura? (ANDRESEN, 2006, pp. 43-44). Todavia, ao final do conto, ela retorna à sala dos espelhos, segura de que veria a sua imagem esplendorosa e triunfante, mas o que ela revê, são os mesmos sapatos rotos do primeiro baile, a mesma imagem que recusara enxergar naquela noite. Nesse momento, surge um homem de ar exato e brilhante e a convida a ir à varanda: Pareceu à Lúcia que ele não tinha entrado pela porta mas que tinha antes surgido do próprio espelho. Era um homem de bela aparência e de ar exacto e brilhante. Tudo nele mostrava inteligência, poder, posse, domínio (ANDRESEN, 2006, p. 48). O homem então revela a Lúcia que já se conheciam e que estiveram juntos na varanda há vinte anos. Ele revela a Lúcia que ela tinha escolhido o outro caminho, e que agora estava ali para pedir o sapato de seu pé esquerdo. Lúcia recusa, mas o homem tira-lhe o sapato de brilhantes do pé esquerdo e calça em seu lugar o mesmo sapato de forro azul e todo roto do primeiro baile. Lúcia morre após o ter calçado. A desconstrução do conto de Perrault da “Gata Borralheira” se faz, na narrativa de Sophia, mediante um jogo de espelhos que distrai a personagem de sua “verdadeira vida”. No entanto, a desconstrução se dá por inteiro, nada do conto de Perrault

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fica em pé após a releitura de Sophia: a madrinha não é quem a salva, mas quem a leva ao caminho da infelicidade e morte. O sapatinho com o qual o príncipe declara Cinderela a sua esposa e rainha, é substituído pelo momento da morte de Lúcia. De acordo com Marina Warner (1999, p. 239), o significado de borralho, do título do conto da “gata borralheira”, que no decorrer do tempo foi sendo suavizado e transformado em “Cinderela”, está relacionado ao luto pela mãe: No entanto, Cinderela é uma criança em luto pela mãe, como seu nome nos diz; suas vestes penitenciais são as cinzas, sujas e inferiores como a pele de um jumento ou um casaco de capim, porém mais particularmente um sinal da perda, o símbolo da mortalidade (WERNER, 1999, p. 239). De acordo com Maria Luísa Sarmento de Matos, baseada na visão psicanalítica de Marie Luise von Franz , há a perpetuação da imagem refletida no espelho ao longo do tempo, o espelho reflete a memória, a saudade e o luto pela mãe: O espelho maravilhoso, guardado num mágico continente, “a caixa de charão”, torna-se, assim, um fruto da memória que suaviza a saudade provocada pela morte. Pela “rememoração” reconstitui-se um cenário primeiro e exemplar, eternamente guardado num secreto continente. Através deste “retrato vivo” eterniza-se uma memória (MATOS, 1993, p. 84). O secreto continente de que fala Maria Luísa Sarmento de Matos é a sala de espelhos em que Lúcia tenta se esconder da humilhação das pessoas presentes no baile e cai no olhar do espelho, ele eterniza a sua imagem. O espelho, como afirma José Ricardo Pereira, é de natureza dual da obra de Sophia, e marca a fronteira entre o eufórico e o disfórico: Neste sentido, a imagem do espelho, recorrente na obra de Sophia Andresen, “obstinação magritteana”, vem marcar perfeitamente a fronteira ilusória entre esses dois pólos (...) a água, a lua e a noite são, talvez, algumas das imagens poéticas que sugerem superfícies reflectoras para as quais o olhar do sujeito se orienta não para se ver nelas reproduzidos mas para que, nessas superfícies, se veja surpreendentemente outro (PEREIRA, 2003, p. 108). A morte está ao lado de Lúcia o tempo todo, ela aparece representada pelo moço moreno e, posteriormente, pelo homem dotado de poder,

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posse, domínio. Lúcia dança com a própria morte, o príncipe de Cinderela é substituído por Tânatos, que em sua conversa com Lúcia revela a “angústia especial” e o despistar de uma “verdadeira vida” que, de acordo com Junito de Souza Brandão em sua definição da personagem mitológia Tânatos, confirma: É tão-somente uma fonte de angústia (...) Tânatos é o aspecto perecível e destruidor da vida (...) patenteia sua ambivalência, relacionando-se de alguma forma, com os ritos de passagem. Revelação e Introdução, toda e qualquer iniciação passa por uma fase da morte, antes que as portas se abram para uma vida nova (...) Tânatos pode ser a condição de ultrapassagem de um nível para outro nível superior. Libertadora dos sofrimentos e preocupações (...) A morte não é um fim em si; ela pode nos abrir as portas para o reino do espírito, para a verdadeira vida, a morte é a porta para a vida (BRANDÃO, 2000, pp. 399340).

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A “História da gata borralheira” de Sophia de Mello Breyner Andresen, desconstrói o estereótipo da heroína dos contos de fadas, que passa por provações antes de alcançar o triunfo, sendo eternizada por sua beleza e bondade, totalmente despidas de realidade e que viverão felizes para sempre, após serem as esposas dos príncipes mais disputados do reino. Há ausência de um território selvagem nessa heroína dos contos de fadas tradicionais e é justamente o que Sophia explora ao mostrar que a melhor escolha é aquela que liberta a mulher das imposições, limitações e castrações que a sociedade impõe ao transformá-las em belas esposas, que vivem de seu mundo de vestidos, diamantes e festas. A lição que Sophia nos deixa, ao final do conto, além da discussão sobre o poder material e a libertação espiritual, é a escolha de que a sexualidade feminina pode se vivida “como uma rapariga descalça que caminha leve e lenta sobre a relva do jardim”. Referências Bibliográficas AMADO, Teresa & Morão, Paula. Sophia de Mello Breyner Andresen. Uma Vida de Poeta. Alfragide: Editorial Caminho, 2010. ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Histórias da Terra e do Mar. Porto: Figueirinhas, 2006. BACHELARD, Gaston. A água e a sombra. Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Vol. II. 3ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 399. CHEVALIER, Jean. Diccionário de los Símbolos. Barcelona: Editorial Herder, 1986, p. 474-477. FRANZ, Marie-Louise von. O feminino no conto de fadas. Petrópolis, Vozes, 2010. _______________________. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulus, 2008. LAMAS, E. P. R. Sophia de Mello Breyner Andresen da Escrita ao Texto. Lisboa: Editorial Caminho, 1998. MACHADO, Ana Maria. Contos de fadas de Perrault, Grimm, Adersen e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. MATOS, Maria Luísa Sarmento de. Os Itinerários do Maravilhoso – Uma leitura dos contos para crianças de Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Porto Editora, 1993. PEREIRA, Luís Ricardo. Sophia de Mello Breyner Andresen – Inscrição da Terra. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. SEIXO, Maria Alzira. Sophia de Mello Breyner Andresen “Histórias da Terra e do Mar”. In: Colóquio Letras: SHOWALTER, Elaine. A crítica Feminista no Território Selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e Impasses – O Feminino como Crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, pp. 23-57. WERNER, Marina. Da fera à loira. Sobre contos de fadas e seus narradores. Trad. Médici Nóbrega. Cia das Letras: São Paulo, 1999.

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João do Rio, a mulher e os espelhos Juliana Bulgarelli CREPAL (Centre de Recherches sur les Pays Lusophones), Universidade de Paris 3 – Sorbonne Nouvelle ,(França)

Resumo: Durante o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, a cidade do Rio de Janeiro viveu um período de profundas transformações socioeconômicas associadas ao processo de implantação da modernidade e ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A patir de uma observação atenta de vida na cidade em todas as suas esferas e situações do cotidiano de seus habitantes, o escritor e jornalista Paulo Barreto escreveu inúmeros de seus textos e construiu importantes interpretações sobre as mudanças da cidade, prestando uma atenção especial às transformações que esse processo provocava na população, seus costumes e sua sociabilidade. Entre os diferentes assuntos tratados por Paulo Barreto no conjunto de sua obra a temática sobre a mulher e seu papel na sociedade carioca do começo do século ganhou destaque, tanto que em 1919 ele publica o livro A mulher e os espelhos assiando pelo pesudônimo João do Rio. Segundo o próprio autor, as narrações presentes no volume seriam simples exposições de fatos verdadeiros que contam o eterno drama da mulher diante do espelho - o homem - que reflete apenas a imagem que ele quer fazer dela. Assim, nos seus contos o literato carioca rememora dramas e conflitos colocando a figura da mulher como “o outro” diante da figura do homem estabalecendo entre ambos uma clara relação de alteridade. Dessa maneira, o artigo proposto analisará, a partir dos contos de João do Rio, a imagem da mulher na sociedade carioca das primeiras décadas do século XX dentro do contexto de intensas transformações impostas pelo capitalismo e pela modernidade.

“Ora, entre as divindades que o homem teme por não compreender ou enaltece pelo mesmo amargo motivo, está desde o começo da reflexão, a Mulher. Sim. A Mulher!” (João do Rio)

Fora, chovia e num imenso e deserto salão do mais elegante e detestável hotel do centro da cidade do Rio de Janeiro, André de Belfort, Godofredo de Alencar, Hortêncio Gomes e Alexandre acabavam de jantar. Hortêncio Gomes parecia estar entre o pesar e uma vaga e tênue alegria. André de Belfort sorria. A atitude de Godofredo de Alencar era impossível de ser definida. Enquanto isso, o pobre Alexandre sofria, estava abatidíssimo, parecia um trapo de paixão. Questionado sobre o motivo de tamanha tristeza Alexandre relata aos colegas a sua última e infeliz história de amor. História que começara com um telefonema de Créssida, uma menina de dezesseis anos, aparentemente ingênua, que pertencia a alta sociedade carioca, e que

se dizia encantada pelas qualidades do jovem rapaz. Entretanto, depois de um ano de relação com Alexandre, a menina aparece no teatro noiva de um outro homem. Este drama de amor vivido por Alexandre foi narrado no conto “Créssida” publicado pelo escritor e jornalista Paulo Barreto, sob o pesudônimo de João do Rio, em 1915 no jornal carioca Gazeta de Notícias. Em 1919, o literato reproduziu esse texto no livro A mulher e os espelhos, junto com mais dezessete outros contos. De uma maneira geral, as narrativas dessa série de textos convergem sempre para a discussão em torno da figura da mulher que, segundo o próprio autor, seria a causa

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inicial de todos os males e de todo os bens1. No texto indrodutório do livro, João do Rio afirma que os homens não entendem as mulheres, pois eles tentam explicá-las somente através da imagem que eles querem fazer delas, imagens que geralmente deformam ou enfeitam os gestos de sua alma. Assim, para ele, as narrações presentes no volume seriam simples exposições de fatos verdadeiros que contam o eterno drama da mulher diante do espelho - o homem - que mostra apenas a imagem que ele deseja refletir2. Uma análise atenta desses textos nos permite, porém, entender como João do Rio representava o papel da mulher na sociedade brasileira durante o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX e como o comportamento feminino era definido por uma série de premissas ligadas ao contexto de intensas mudanças vividas pelo Brasil naquele momento. A partir da segunda metade do século XIX a cidade do Rio de Janeiro, capital da nova República, passou por um período de profundas transformações socioeconômicas associadas ao processo de implantação da modernidade e ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Tendo como pretexto uma política de planejamento urbano que visava o “saneamento” e o “embelezamento” da cidade, as autoridades cariocas, associadas à elite, coordenaram o processo de urbanização que tinha como objetivo orientar a ocupação do espaço urbano do Rio de Janeiro de acordo com as premissas do capitalismo3. Essas reformas significavam, para as classes dominantes, um desejo de progresso e civilização e pretendiam acabar com as características coloniais da cidade. Ao mesmo tempo, elas correspondiam a uma tentativa do Brasil de se alinhar aos modelos e ritmos de desenvolvimento das economias européias, assim como ao seus desenvolvimentos culturais e sociais. Entretanto, as consequências políticas e sociais dessa reforma foram importantes, pois uma grande parte da população foi deixada às margens dessas mudanças, sem que o poder público tivesse uma real preocupação com o efeito que essas transformações pudessem causar na vida dos trabalhadores pobres, negros e mestiços. As autoridades impuseram também uma transformação dos costumes e dos hábitos da população, sempre com o objetivo de acabar com as antigas tradições coloniais e com os elementos da cultura popular consideradas como marcas do primitivismo e da barbárie. Assim, foram proibídas 1 RIO, João do. A mulher e os espelhos. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Edições, 1995, p. 15. 2 Id. Ibid. p.16. 3 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. Campinas, Editora da Unicamp, 2001, p.135.

a venda ambulante de alimentos, o ato de cuspir no chão de dentro dos bondes, o comércio de leite em que as vacas eram levadas de porta em porta, a criação de porcos dentro dos limites urbanos, a exposição de carne nos açougues, a perambulação de cães vadios e o descuido com a pintura das fachadas4. Além disso, houve uma forte intolerância com a realização do entrudo e dos cordões, durante o carnaval, com as festas e reuniões organizadas pelas classes trabalhadoras, com a prática da capoeira e com as manifestações religiosas ligadas ao candomblé e às religiões afros-brasileiras. No entanto, para a elite carioca, esse anos marcaram um tempo de euforia, na medida em que, segundo eles, as transformações da cidade do Rio de Janeiro e da vida de sua população eram fundamentais para o processo de civilização e para o desenvolvimento do país. Para esse grupo, era indispensável transformar o cotidiano em um grande espetáculo de moda com um sistema de manifestações impressionantes, de fachadas brilhantes e de espetaculares triunfos de decoração e estilo5. Levar a vida em grande pompa era o mais importante em todas as cidades civilizadas inclusive no Rio de Janeiro. Nesse contexto, as autoridades e as classes dominantes cariocas também impuseram mudanças no comportamento feminino estabelecendo o modelo de mulher idéal que era legitimado pela Igreja e amplamente divulgado pelos orgãos de imprensa da época. Para Maria Maluf e Maria Lúcia Mott, em História da Vida Privada no Brasil, a representação do comportamento feminino idéal limitava o horizonte da mulher ao interior do lar, reduzindo, assim, suas atividades e aspirações até encaixá-la no tríplice papel de mãe, esposa e dona de casa. A mulher seria, então, responsável pela honra familiar devendo se distinguir socialmente através do respeito às regras da moral e dos bons costumes6. As relações entre homens e mulheres também foram modificadas, sempre na tentativa de normatizar e disciplinar hábitos e costumes da população. O casamento passou a ser visto como algo indispensável, pois era ele a instituição social capaz de garantir a ordem da família e dar suporte ao Estado, que buscava se afirmar nesse contexto de profundas mudanças. No interior da sociedade matrimonial cada cônjuge deveria desempenhar seu respectivo papel. Cabia ao marido prover a 4 NEEDELLl, Jeffrey. Belle Époque Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.57. 5 BERMAN, Marshel. Tudo que é solido se desmancha no ar. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. 6 MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do Mundo Feminino. In SEVCENKO, Nicolau e NOVAIS, Fernando A. A história da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1998, v.3, pp. 367-421.

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manutenção da família e a identidade pública, enquanto que à mulher cabia a identidade social de esposa e mãe. A mulher seria dependente e subordinada ao homem, e este senhor da ação7. A honra do homem dependia da conduta feminina, que lhe deveria ser absolutamente fiel, o que também legitimava a dependência da mulher e o poder do homem sobre ela8. Segundo Sidney Chalhoub, em Trabalho, Lar e Botequin, durante o período colonial, no qual a idéologia do senhor era determinada pela lógica de dominação e perpetuação da dependência, o patriarca ostentava seu poder sobre todo o grupo familiar e demais dependentes da propriedade. Com a advento da modernidade esse modelo foi substituído pelas relações moldadas por normas econômicas e de mercado compatíveis com a nova organização capitalista da sociedade. Assim, o antigo patriarca, desprovido de terras e escravos, teve como compensação a propriedade privada da mulher.9 Retomando a leitura do conto “Créssida” vimos que para os personagens André de Belfort, Godofredo de Alencar e Hortêncio Gomes, Alexandre foi o único responsável pelo fracasso da sua relação com a jovem Créssida. Isso porque, segundo eles, Alexandre demorou muito tempo para se decidir e pedir a mão da menina em casamento, como podemos ver no diálogo a seguir:

“ – A culpa é aliás dele!...setenciou Godofredo. - Por quê? - Porque levou tempo sem se decidir. O ideal da menina é casar. Qual o casamento por amor? Em, geral os casamentos por amor nunca se realizam. As meninas foram educadas para aceitar um marido, quando o marido aparece é possível que tenham simpatias, inclinações. Mas, flutuantes, vagas.”10 Na discussão entre os personagens percebemos o importante papel social do casamento, visto como algo indispensável para a manutenção de uma conduta considerada descente e civilizada. Assim como o casamento, o amor também era normatizado e enquadrado nos padrões morais da ordem burgueza que se impunham no período, uma vez que as mulheres, educadas desde sua in7 Id. Ibid. pp. 367-421. 8 CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p.180. 9 CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p.179. 10 RIO, João do. Op. Cit., p.18

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fância para serem esposas, mães e donas de casa, deveriam renunciar às grandes paixões em favor da serenidade do amor conjugal. Independentemente dos seus sentimentos, elas deveriam receber com grado o marido que se aprensentasse, respeitá-lo e honrá-lo. No conto “A honestidade de Etelvina, amante” João do Rio de uma forma irônica excede os limites dessas regras de conduta social. Nesse texto, Gastão da Fonsceca conta para um amigo a história do seu namoro com a atriz Etelvina Santos. Quando os dois personagens se conheceram a jovem moça era casada com outro homem, o que não impediu Gastão de cortejá-la. Entretanto, segundo Gastão, Etelvina era muito fiel e honesta como vemos, no trecho a baixo, no qual o presonagem narra o começo da sua relação com a atriz : “Eltelvina estava com o ensaiador, um sujeito de nome Eusébio, que também escrevia peças. As informações davam-na sempre fiel aos amantes. Era tão fiel, tão honesta, que não só ninguém se lembrava dos motivos por que mudava várias vezes de cavalheiro como até creio bem ninguém mais se lembrava desses homens. Etelvina era fiel, era honesta perante os amantes, que de secundário passavam a ser apenas o amante, o mesmo, o geral.”11 Para não transgredir as regras sociais que exigiam da mulher fidelidade e honestidade Etelvina mudava de companheiro cada vez que se apaixonava por um outro homem. Desse modo, o novo casamento respeitaria os padrões de comportamento impostos a tal ponto que, assim como no caso de Créssida, o importante deixa de ser a figura do marido em si, mas a instituição que ele representa. O fundamental, nesse caso, não é quem é o amante, mas sim estar casado com alguém e se inserir no modelo feminimo idealizado da época. Nesse caso, tanto Etelvina como Créssida, são representadas por João do Rio como personagens contraditórias que vivem de maneira intensa as mudanças e os paradoxos da modenidade brasileira. Entretanto, se analisarmos outros contos presentes no livro A mulher e os espelhos, percebemos que, muitas vezes, os padrões de comportamento e os valores impostos pelas classes dominates estavam longe de coincidir com as práticas cotidianas da população. No conto “A amante ideal”, por exemplo, João do Rio narra a história de Júlio Bento, excelente rapaz de trinta e cinco anos, lindo, membro da alta sociedade, casado, pai de 11 RIO, João do. Op. Cit., p. 99.

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cinco filhos, mas que possuia uma enorme lista de amantes. Um dia Júlio conhece Adelina Roxo, uma mulher muito bonita, alta, magra, olhos verdes e uma longa cabeleira de ébano. Separada do marido Adelina vivia mantida por um velho diretor de banco que lhe dava uma vida financeiramente muito confortável. Rapidamente os dois personagens tornam-se amantes. A relação entre Júlio e Adelina durou muitos anos até que a jovem dama morresse durante uma operação de apendicite. Nesse texto, percebemos uma evidente transgressão das regras sociais uma vez que, ao viverem um relação fora do contrato matrimonial, os personagens deixam de lado os valores atribuídos ao casamento, à fidelidade e até mesmo ao amor impostos pelas classes dominantes cariocas. Isso mostra quanto era difícil para a própria elite ajustar seu comportamento às regras de conduta moral consideradas como legítimas. Contudo, para as mulheres as consequências dessa transgressão eram mais significativas do que para os homens, pois eram elas as responsáveis pela manutenção do lar e do casamento. No caso de Adelina a pena paga por viver uma relação ilegítima foi morrer sozinha, sem a presença do amante. Em muitos casos, porém, os homens recorriam à violência para afirmar sua dominação e a coerção física das mulheres se tornava frequente. Segundo Maluf e Mott, a violência contra as mulheres se dava sob a proteção de regras do costume, assim ela só era vista como selvageria quando exercida diante de pessoas consideradas pelas classes médias e altas como seus iguais, ou daqueles que privavam com o casal. Dessa categoria estariam excluídos, por exemplo, os empregados domésticos, tratados como inferiores. Diante detes, a coersão física não era vista como humilhante12. Se considerarmos os padrões de comportamento dos trabalhadores pobres, negros e mestiços percebemos que também nesse grupo a assimilação ou a negação dos papéis e dos valores impostos pelas elites sugerem limites à eficácia dos mecanismos de controle e repressão do periodo13. Como foi anteriormente dito, com o advento da modernidade e o desenvolvimento do capitalismo, o papel do homem e da mulher dentro da sociedade matrimonial foram redefinidos. Enquanto cabia à mulher a conservação do lar, o homem era considerado como único provedor da familia. Assim, cabia ao homem o sustento da casa através do trabalho. Segundo o Código Civil de 1916, a mulher só poderia trabalhar fora do lar mediante autorização prévia do seu marido14. Entretanto, nas classes 12 MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Op. Cit., p. pp. 367-421. 13 CHALHOUB, Sidney. Op Cit., p.173. 14 MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Op. Cit., p. pp. 367-421.

trabalhadoras a luta pela sobrevivência obrigava as mulheres a transgredirem as regras sociais e a entrarem no mundo do trabalho15. Na maioria das vezes essas mulheres exerciam atividades relacionadas ao serviço dosméstico, como por exemplo a costura ou a lavagem de roupa. Nesse caso, percebemos como o modelo idealizado pelas classes dominantes, no qual a mulher é frágil, passiva e dependente de seu marido, não dá conta da realidade das classes trabalhadoras cariocas. A mulher obrigada a trabalhar para garantir seu sustento acabava por adquirir uma certa idêntidade social que era independente da identidade do homem. Assim, a experiência de vida dessas pessoas não oferecia bases concretas que justificassem a dominação do homem no relacionamento do casal16. Entretanto, essas mulheres ainda eram vítimas da violência de seus amantes ou companheiros. No conto “As aventuras de Rosendo Moura”, por exemplo, a personagem Corina Gomes, uma menina magra, lívida que tomava cocaína e frequentava os clubs da cidade, descreve as violências que sofria do seu companheiro e a tentativa deste último de controlá-la: “- Há três anos suporto as torturas de um monstro. Tudo quanto ganho é dele. Quando vou ao club toma-me o dinheiro. Depois fecha o quarto todo, abre vários frascos de éter, põe-me inteiramente nua, prende-me os cabelos à gaveta da cômoda, e goza naquela atmosfera desvairante, gotejando sobre mim éter. [...] Cada gota que cai dá-me um arrepio. Ao cabo de certo tempo é uma sensação de queimadura, queimadura de gelo até à insensibilidade...”17 Segundo Chalhoub, os modelos do homem e da mulher ideais divulgados pelas classes dominantes eram parcialmente interiorizados pelos casais das classes trabalhadoras. Esses modelos, ao incidirem sobre um meio social que não tinha as condições materiais nem as motivações necessárias para praticá-los, criavam situações de ambiguidade e insegurança que contribuiam para a violência. O homem aprendia que a mulher era sua subordinada, sua propriedade privada, o que o tornava mais frustado ao perceber que a prática da vida não autorizava que ele exercesse seu poder sobre a mulher18. Assim, na história de Corina, seu amante usava a coersão física e até mesmo a humilhação 15 16 17 18

CHALHOUB, Sidney. Op Cit., p. 202 Id. Ibid., p. 228 RIO, João do. Op. Cit., p. 58 Id. Ibid. p. 228

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para tentar controlar a mulher que independentemente dele ganhava seu próprio dinheiro e era dona da sua vida. Nas classes trabalhadoras muitas vezes a prostituição era a única solução possível para as mulheres que precisavam garantir sua sobrevivência ou até mesmo sustentar os filhos. Em alguns dos seus textos João do Rio coloca como tema central da narrativa as experiências das mulheres que foram obrigadas a entrar para a prostituição. Dois desses textos merecem nossa atenção: “D. Joaquina” e “Encontro”. No primeiro conto o narrador sai às ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro acompanhado pelo amigo Augusto Guimarães a fim de observar a vida das “mulheres perdidas”. Uma noite os dois personagens se depararam com uma mulher, muito mais velha do que as outras, que com seu andar curvado de idosa e seus cabelos grisalhos causava repugnância. No entanto, nas noites seguintes o narrador não consegue controlar seus impulsos e a sua vontade de voltar ao centro da cidade, curioso em descobrir os motivos que levavam aquela velha senhora a se prostituir. Depois de algumas madrugadas de observação os personagens descobrem que na verdade a velha se chamava D. Joaquina. Ela era uma respeitavel senhora de sociedade que fora obrigada a se prostituir para dar dinheiro aos dois filhos que mimados pela mãe, que os queria estudantes, cresceram mal educados e cairam na “pândega”. Cada vez mais vagabundos, mais exploradores os dois garotos exigiam que a mãe lhes desse dinheiro, e por amor D. Joaquina preferia se prostituir a negar-lhes qualquer coisa. O segundo conto, narra a história do encontro de Teodureto Gomes com Argemira, uma antiga namorado dos tempos de juventude que agora se prostituia para sobreviver. Teodureto era apaixonado pela moça, mais não casou-se com ela, pois a menina não pertencia à alta sociedade como ele. Quando jovens o namoro dos dois personagens se resumia a trocas de carícias inocentes e beijos apaixonados. Quinze anos depois o desejo dos dois renasce, mas Argemira se recusa a ter relações sexuais com Teodureto. Ela prefere guardar as lembranças da relação inocente que eles tinham a ver seu antigo amor se transformar em mais um dos homens com quem ela se deitava. A partir desses textos podemos pensar a normatização das relações sexuais nesse contexto de intensas mudanças vividas na cidade do Rio de Janeiro. Com a implatação da modernidade e o desenvolvimento do capitalismo no Brasil os ideais higienistas ganharam amplitude19 e vieram corro19 PEREIRA, Leonardo. As barricadas da saúde: vacina e protesto popular

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borar o dicurso das elites cariocas que viam nas transformações dos hábitos e costumes da população a solução para civilizar o país. No discurso das classes dominantes as relações sexuais só eram classificadas como desejadas e legítimas quando ocorriam no seio da família. Era preciso controlar os desejos e impulsos considerados bárbaros e não civilizados e favorecer as relações sexuais decentes e higiênicas do casamento, o que seria fundamental para manter a família e garantir a salubridade da sociedade20. Nesse contexto, tanto D. Joaquina quanto Argemira são vistas como ameaças à ordem e à saúde pública o que explicaria porque o narrador do conto “D. Joaquina” olha para a velha senhora com repugnância e chega até mesmo a se irritar com seu comportamento diante dos jovens rapazes que buscavam seus serviços. Enquanto que, Argemira causa em Teodureto Gomes um certo desconforto, pois a jovem menina bonita de autrora era agora uma pobre mulher que perdera a beleza e a saúde vítima das desgraças da vida e da miséria humana representadas pela prostituição. A aversão sentida pelo narrador do texto “D. Joaquina”, assim como o incômodo sentido pelo personagem de “Encontro”, se reproduzem na maioria dos contos presentes no livro A mulher e os espelhos. Isso porque, todas as narrativas de João do Rio são contruídas a partir de diálogos entre seres considerados socialmente diferentes. Os narradores, homens, sempre aparecem inseridos no contexto histórico, no qual a ideologia da sustentação do poder estaria baseada na posição de superioridade do homem em relação à mulher. As personagens femininas são contruídas a partir do olhar masculino e das expectativas que eles projetam sobre elas. Assim, os comportamentos femininos que fogem às normas e às regras sociais previstas e aceitas ora causam estranhamento nos personagens ora são passíveis de punição. Desta maneira, nessa série de textos, ao mostrar comportamentos femininos que transgridem as regras impostas, o literato carioca questiona a construção do modelo ideal feminimo e a redefinição dos papéis sociais do homem e da mulher, ao mesmo tempo que ele constrói uma crítica à normatização, à disciplinarização e a tentativa das classes dominantes de civilizar os hábitos e comportamentos dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro do final do século XIX e começo do XX.

no Rio de Janeiro da Primeira República. São Paulo: Editora Fundação Perceu Abramo, 2002. 20 MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Op. Cit., p. pp. 367-421.

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DE RISO, LAÇOS E FITAS OU “À MODA” DE BERNARDO GUIMARÃES Keila Vieira de Sousa Fundação Calouste Gulbenkian - Universidade de Coimbra (Portugal)

RESUMO: Bernardo Guimarães (1825-1884) inclui-se, dando à periodização literária um caráter meramente cronológico, no Romantismo brasileiro e acompanhou como crítico o surgimento do Realismo. A obra do autor é analisada, principalmente pelo meio acadêmico, com reservas, dada a irregularidade de suas escolhas estilísticas e temáticas. Destarte, propomos a leitura de “À saia-balão” e “À moda”, poemas satírico-sociais em que Bernardo Guimarães critica o modismo feminino e sua tendência ao ridículo e ao riso.

1 O CRIADOR, AS INSPIRAÇÕES E OS RISOS “Procuro moldar minhas fracas produções pelos melhores tipos de arte quer antiga, quer moderna.” (Guimarães, B. Folhas do Outono)

1.1 Croquis: Bernardo Guimarães e as inspirações Bernardo Guimarães nasceu na cidade de Ouro Preto (MG) em 15/08/1825 e veio a falecer na mesma cidade no ano de 1884. Portanto, dando à periodização literária um caráter meramente cronológico, pode-se dizer que o autor acompanhou o Romantismo e as bases que sedimentaram o Realismo no Brasil, já que em 1881 se dá a publicação de O Mulato, de Aluízio Azevedo, e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. O poeta ingressou na Faculdade de Direito, em São Paulo em 1847, onde se tornou amigo de Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa. Muitas “lendas” vão nortear a vida desses três amigos, dentre elas destaca-se o fato deles terem fundado, com outros estudantes, a “Sociedade Epicuréia”.1 Segundo José Armelim Bernardo Guimarães, em E assim nasceu a Escrava Isaura (Guimarães, 1985), a casa onde os estudantes fundaram a Sociedade 1 Epicuro, filósofo grego (341-270 a.C.), cuja teoria designada Teoria de Epicuro, foi muito difundida no Brasil, principalmente no Romantismo. A teoria substitui o bem pelo prazer e o mal pela dor, ou seja, a felicidade consiste em assegurar-se um máximum de prazeres com um mininum de dores.

Epicuréia, em 1849, existiu e era conhecida como Chácara dos Ingleses, porque seu primeiro morador foi o inglês John Rademacker. A casa tornou-se famosa por conta das orgias e maluquices celebradas. A Sociedade Epicuréia inspirava-se no romantismo do poeta Lord Byron (1788-1824) que cultivava a beleza do horror, do repulsivo, do monstruoso, do satânico. Os poemas “A orgia dos duendes” e “Elixir do Pajé”, de Bernardo Guimarães, mesmo não tendo indicativos de quando foram escritos, lembram esse culto ao horror e ao repulsivo. Faz parte ainda desse período academicista de Bernardo Guimarães o escravo Ambrósio. Ambrósio acompanhou o estudante na sua mudança de Ouro Preto (MG) para São Paulo (SP), quando da morte do escravo, em 1851, o poeta homenageia-o com o poema “À Sepultura de um Escravo”. O poema em questão expressa mais questões sentimentais que uma defesa pela condição do negro. Dessa forma, não se pode pensar que com o referido poema tenha feito o autor qualquer alusão à defesa dos negros, como o fez Castro Alves, por exemplo, dentro do aspecto social do Romantismo Brasileiro. A verdade é que Bernardo Guimarães não se prendeu ao estilo Romântico, mas ao seu próprio estilo. Portanto, sua obra é composta tanto por poemas com forte carga lírica e emotiva, como por poemas satíricos e bestialógicos. “Se eu de ti me esquecer”, que foi musicada à época, mostra bem o lirismo do poeta:

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SE EU DE TI ME ESQUECER Se eu de ti me esquecer, nem mais um riso Possam meus tristes lábios desprender; Para sempre abandone-me a esperança, Se eu de ti me esquecer. Neguem-me auras o ar, neguem-me os bosques Sombra amiga, em que possa adormecer, Não tenham para mim murmúrio as águas, Se eu de ti me esquecer. Em minhas mãos em áspide se mude No mesmo instante a flor, que eu for colhêr; Em fel a fonte, a que chegar meus lábios, Se eu de ti me esquecer. Em meu peregrinar jamais encontre Pobre albergue, onde possa me acolher; De plaga em plaga, foragido vague, Se eu de ti me esquecer.

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Qual sombra de precito entre os viventes Passe os míseros dias a gemer. E em meus martírios me escarneça o mundo, Se eu de ti me esquecer. Se eu de ti me esquecer, nem uma lágrima Caia sobre o sepulcro, em que eu jazer; Por todos esquecido viva e morra, Se eu de ti me esquecer. (Guimarães, 1959:294-295) Note-se que Bernardo Guimarães consegue atingir a musicalidade através da repetição da palavra esquecer, variando apenas o primeiro vocábulo: desprender/ esquecer; adormecer/ esquecer; côlher/ esquecer; acolher/ esquecer; gemer/ esquecer; jazer/ esquecer. Interessante que nesse caso as palavras apresentam o início de um sofrimento que chega ao fim apenas com a morte (“Caia sobre o sepulcro, em que eu jazer;/ Por todos esquecido viva e morra,/ Se eu de ti me esquecer”). Para a crítica literária, a obra de Bernardo Guimarães gera muitas polêmicas. Segundo Antônio Soares Amora, “a irregularidade” (Amora, 1967, p.294) é a marca principal do poeta, pois Bernardo Guimarães não se empenhou em construir uma obra vinculada ao período em que viveu. Já José Veríssimo diz, em relação à poesia, que “ele é

original, por ser diferente; e o ter conservado a sua independência e se haver isolado do seu meio e escapado às suas influências, (...) poderia mostrar nele uma personalidade estimável, se não pudesse também atribuir a sua isenção talvez à incapacidade de compreender e seguir aquela corrente.” (Verísssimo, 1997, p.142) Controvérsias à parte, o fato é que Bernardo Guimarães manteve suas características estilísticas, independente dos padrões da época. No prólogo do seu último livro de poemas, Folhas de Outono (1883), revela que: ... o poeta verdadeiramente inspirado, aquele que tem imaginação brilhante e fecunda, alma sensível e apaixonada pelo belo, e que dispondo de uma inteligência robusta possui idéias suas adquiridas e firmadas pelo estudo e reflexão, não deve escravizar-se a classe alguma de Aristarcos; abandone-se à sua própria inspiração, se não quiser desencarrilhar-se desastradamente. (grifo nosso) (Guimarães, 1959, p.328)

O termo Aristarcos, em destaque, refere-se a críticos. Note-se que o autor não admite a interferência dos críticos, uma vez que coloca a “inspiração”, ou melhor, o transbordamento2 como instrumento inicial para o processo de criação poética. Ao mesmo tempo, exerce, como no poema “O êrmo”,3 uma espécie de premunição, pois “Aristarco” será personagem do livro O Ateneu, de Raul Pompéia, publicado em 1888, período do Realismo brasileiro, estética criticada por Bernardo Guimarães no mesmo prólogo. Para Elizabeth Dias Martins, (...) o que ocorre com a literatura é o fato de haver lacunas (...) na história contada por alguns autores. A existência de lacunas, não só na história da literatura, mas também na história dos povos, deve-se a duas perspectivas no modo de narrar os acontecimentos: a dos vencedores e a dos vencidos. No caso da literatura brasileira, esses vazios 2 Segundo Pedro Lyra, a poesia na sua concepção existencial (enquanto poema), parte da observação do sujeito sobre o objeto. A transitividade presente neste objeto pode causar o transbordamento no indivíduo. O poema é a concretização desse transbordamento. In: Lyra, 1986. 3 O poema refere-se ao surgimento de uma cidade no deserto central, isto é, onde se localiza Brasília. O poeta faz alusão à destruição da mata, desaparecimento de nativos e ao aparecimento de “Torres, palácios, coruchéus brilhantes/ Zimbórios majestosos, e castelos/(...) – Ó virgem,/ Serás então princesa, - forte e grande,/ Temida pelos príncipes da terra; (...)”. In: Guimarães, 1959, pp.33-40.

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foram deixados por grande parte dos historiadores que viram a história apenas pelo viés dos vencedores. (Martins, 1995, pp.4-5) Nesse caso, merece a obra de Bernardo Guimarães estudos voltados, principalmente para a sua produção poética, rica em temas que, a princípio, soam destoantes ao seu tempo. Ou, como esclarece Antonio Candido, “Como artista era irregular, não raro descuidado e impaciente,(...). Mas como possuía sensibilidade plástica excepcional e musicalidade espontânea, obtém versos admiráveis, sobretudo na segunda fase de sua evolução”. (Candido, 1964, p.169) 1.2 Sfumatos de riso “À moda” configura-se como um poema satírico-social e, no conjunto da obra poética de Bernardo Guimarães, pode ser visto como um desmembramento do poema “À saia-balão” (18/07/1859), publicado no livro Poesias Diversas (1865). “À saia-balão” descreve uma mudança significativa no vestuário feminino. No início do século XIX, as mulheres são influenciadas pela Revolução Francesa que sugere um retorno ao estilo neoclássico, abandonando os saiotes e saltos para adotar vestidos simples, semitransparentes, que valorizam o corpo. Eram vestidos geralmente de cores suaves, com cintura marcada sob os seios4. Pudesse eu ver-te das belezas gregas, Quais as figuram mármores divinos, Na túnica gentil, não farta em pregas, Envolver teus contornos peregrinos; E ver dessa figura, que me encanta, O altivo porte desdobrando a aragem De Diana, de Hero, ou de Atalanta A clássica roupagem!...5 (Guimarães, 1979) Essa releitura do classicismo não dura muito tempo e logo começam a ressurgir as mangas bufantes, as saias começam a inflar, principalmente depois de 1855, quando surge a crinolina.6 De que serve enfeitar da vasta roda Os estufados flancos ilusórios Com esses infinitos acessórios, 4 Para melhor entendimento dos versos, v. anexo I. 5 Os fragmentos a serem inseridos aqui foram retirados de: Guimarães, 1979, pelo que não iremos nos reportar continuadamente. 6 Invenção da Imperatriz Eugênia, a crinolina era uma armação à base de anéis metálicos flexíveis que substituía com vantagem as anáguas.

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Que vai criando a inesgotável moda, De babados, de gregas, fitas, rendas, De franjas, de vidrilhos, E outros mil badulaques e fazendas, Que os olhos enchem de importunos brilhos, Se no seio de tão tofuda mouta Mal se pode saber que ente se acouta?! É, num plano inicial, a crítica a essa mudança no vestuário feminino que Bernardo Guimarães se refere no poema “À saia-balão” e sobre a qual pretende cantar: Balão, balão, balão! cúpula errante, Atrevido cometa de ampla roda, Que invades triunfante Os horizontes frívolos da moda; Tenho afinado já para cantar-te Meu rude rabecão; Vou teu nome espalhar por toda parte, Balão, balão, balão! Como a moda sugere frivolidade e importação, tem-se, na França, depois de 1860, a diminuição da roda de crinolina e o volume do vestido se aloja na parte posterior, revivendo o século XVIII7. A mulher passa a ter a forma de um triângulo, auxiliada pelos xales e pelo espartilho (artifício para tornar o corpo mais atraente; é através dele que a curva do quadril se torna mais acentuda). Além disso, com a invenção da máquina de costura em 1870, os vestidos ganham cada vez mais detalhes. O poema “À moda” critica o modismo feminino que leva ao ridículo: “Ah! modista cruel, que por chacota/ Te pôs assim com cara de idiota”. (Guimarães, 1979, p.396). Segundo Wladimir Propp, “o riso ocorre em presença de duas grandezas: de um objeto ridículo e de um sujeito que ri.” (Propp, 1992, p.31). Dessa forma, o objeto ridículo é desencadeado pela roupa que o homem usa, provocando no outro (sujeito) o riso. O poema “À moda” é composto de quinze estrofes, cada uma com seis versos (sexteto), com rimas ababcc, exceção apenas na quinta estrofe, em que encontramos rimas abbacc. O poema pode ser dividido em quatro subtemas. O primeiro retoma a crítica desenvolvida no poema “À saia-balão”, e o autor dá ao objeto a conotação não mais de coisa, mas de ser. Para Henri Bergson, “um objeto inanimado consegue fazer rir, devido a marca que o homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá”(Bergson, 2001, p.3); seguindo o mesmo raciocínio, segundo Wladimir Propp, “o objeto se torna ridículo quando ele é capaz de refletir o homem” 7 V. anexo I, as imagens a partir de 1860.

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(Propp, 1992, p.39). Balão, balão, balão, perdão te imploro, Se outrora te maldisse, Se contra ti em verso mal sonoro Soltei tanta sandice. Tu sucumbiste, mas de tua tumba Ouço uma gargalhada, que retumba. “Atrás de mim virá inda algum dia, Quem bom me há de fazer!” Tal foi o grito , que da campa fria Soltaste com satânico prazer. Ouviu o inferno tua praga horrenda, E pior que o soneto veio a emenda. O autor utiliza-se da prosopopeia para dar ênfase aos argumentos de que irá dispor, visto que é a própria saia quem joga a maldição do seu retorno, isto é, do perdão do poeta “Atrás de mim virá inda algum dia,/ Quem bom me há de fazer!”. No segundo momento, tem-se a descrição do objeto, motivo da ridicularização:

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Formidável triângulo desenha-se Com base igual à altura, De cujo vértice despenha-se Catadupa, que atrás se dependura, De fofos e babados Com trezentos mil nós empantufados. A linha vertical pura e correta Eleva-se na frente; Atrás a curva , a linha do poeta Em fofos ondulando molemente Nos apresenta na suave escarpa A figura perfeita de uma harpa. Pela esguia fachada nua e lisa, Qual maciço pilar, Se brincar co’a roupagem tenta a brisa, Não acha em que pegar; E só o sopro de um tufão valente Pode abalar da cauda o peso ingente. Percebe-se que a roupa transforma as mulheres em objetos geométricos (triângulo, agudo vértice, linha vertical, curva), dando-lhes uma aparência de rigidez como se fossem construções (catadupa, trezentos mil nós, eleva-se, maciço pilar). A mulher torna-se ridícula também perante a natureza: “Se brincar co’a roupagem tenta a brisa,/ Não acha em que pegar;/ E só o sopro de um tufão valente/ Pode abalar da cauda o peso ingente”, fato explorado em todo o terceiro subtema: Trazes-me à idéia a ovelha timorata,

Que trêmula e ofegante Do tosquiador se esquiva à mão ingrata, E em marcha vacilante Vai arrastando a lã despedaçada Atrás em rotos velos pendurada. Assim também a corça malfadada, Que às garras do jaguar A custo escapa toda lacerada, Co’as vísceras ao ar, De rojo pela senda das montanhas Pendentes leva as tépidas entranhas. O ridículo ao qual a mulher se submeteu fê-la perder a graciosidade, o encanto, características tão bem exploradas no Romantismo, como demonstra a última parte: Onde estão os meneios graciosos De teu porte gentil? O nobre andar, e os gestos majestosos De garbo senhoril?... Abafados morreram nessa trouxa, Que assim te faz andar cambeta e coxa. E a fronte, a bela fronte, espelho d’alma, Trono do pensamento, Que com viva expressão, turvada e calma Traduz o sentimento, A fronte, em que realça-se a beleza De que pródiga ornou-te a natureza, Tua fronte onde está?... Teus lindos olhos Brilhar eu vejo apenas Na sombra por debaixo de uns abrolhos De aparadas melenas... Ah! modista cruel, que por chacota Te pôs assim com cara de idiota. A moda ofuscou da mulher sua beleza natural, “De que pródiga ornou-te a natureza”, tornando-a antes um objeto merecedor de escárnio, provocador de riso. Henri Bergon observa que “toda a moda é risível por algum motivo. Mas quando se trata da moda atual, estamos tão habituados a ela que o traje nos parece formar um corpo só com os corpos que o vestem.” (Bergson, 2001, p.28) Wladimir Propp, esclarece que As mudanças devem ser consideradas como transgressões de um comportamento comum e provocam o riso. Esta é a razão pela qual suscitam o riso as modas vistosas e insólitas. É muito fácil apresentar a história da moda de maneira satírica. Assim, é cômica não só a última moda, mas em

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geral qualquer roupa extravagante que destaque o homem de seu meio. Assim, a “moda piramidal” destacada por Bernardo Guimarães se torna risível para ele e para o leitor porque não existe o reconhecimento, não existe o hábito da vestimenta. 2 Os laços finais Ao realizar esses poemas satírico-sociais, especificamente “À Saia-Balão” e “À Moda”, Bernardo Guimarães não se volta exclusivamente para os padrões do vestuário feminino, uma vez que a preocupação do poeta é o modismo que invade todas as artes, como bem esclarece no prólogo de Folhas de Outono: “A moda, não contente de exercer império absoluto no vestuário da espécie humana, pretende também invadir a região das artes, da poesia e da literatura” (Guimarães, 1959, p.330). Portanto, a obra poética de Bernardo Guimarães apresenta-se muito mais como um retrato da capacidade do autor em criticar as estéticas de seu tempo (Romantismo e Realismo) e em inovar no âmbito da criação poética, do que como uma iniciativa isolada. Bernardo Guimarães merece, sempre que possível, um olhar mais atento, tanto de seus leitores como de seus críticos ou futuros críticos, pois seu talento poético foi ofuscado pelas normas de periodização adotadas na Literatura Brasileira que visam apenas enquadrar os autores dentro do modismo vigente à época de suas produções. Referências Bibliográficas Amora, A. S. (1967). O Romantismo (18331838/1878-1881). Vol. II. São Paulo: Cultrix. Bergson, H. (2001). O riso: comicidade sobre a significação do cômico. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes. Candido, A. (1964). Formação da Literatura Brasileira. Momentos Decisivos. 2º vol. (1836-1880). Rio de Janeiro: Liv. Martins. Guimarães, B. (1959). Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: INL. Guimarães, J. A. B. (1985). E assim nasceu a Escrava Isaura. Brasília: Editora Imprensa do Senado Federal. Lyra, P. (1986). Conceito de poesia. São Paulo: Editora Ática. Martins, E. D. (1995) A Poesia Satírica de Bernar-

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do Guimarães. Fortaleza. (Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Letras – UFC) Propp, V. (1992). Comicidade e riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática. Veríssimo, J. (1977). Estudos de Literatura Brasileira. 2ª Série. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUS

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Personagem feminina e feminismo em “Esses Lopes” de Guimarães Rosa Hellen Viviane Rodrigues e Maria Célia de Moraes Leonel Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, Brasil

Resumo: No conto “Esses Lopes”, publicado no livro Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa, deparamo-nos com uma narradora-personagem chamada Flausina. Esta, valendo-se da sedução e do domínio da linguagem, conta-nos as suas artimanhas para se livrar de uma vida de submissão e opressão ao lado dos Lopes. Enquadrando-a na vasta galeria de personagens femininas do autor mineiro, na qual encontramos fadas, donzelas-guerreiras, feiticeiras, matriarcas, prostitutas, mulheres santificadas (PASSOS, 2000), podemos dizer que a personagem desse conto destaca-se pela ousadia e transgressão das regras ditadas pelo poder masculino. Desse modo, pretendemos: a) investigar a construção da personagem feminina que, furiosa e vingativa, afasta-se dos estereótipos de passividade, e b) de que maneira essa voz feminina manifesta-se no texto rosiano, com o intuito de observar e discutir a posição ocupada pela mulher na cultura e na sociedade patriarcal presente no conto. Com isso, e na medida em que se trata de uma produção de autoria masculina com elementos do “texto feminino”, buscamos questionar essa diferenciação advinda da teoria feminista francesa (que tem como uma das representantes, Helène Cixous), baseando-nos na análise e crítica de Showalter (1994) na proposição de sua ginocrítica. Como apoio teórico, além da bibliografia relativa ao corpus - Guimarães Rosa: do feminino e suas estórias (2000) de Cleusa Passos -, contamos com as propostas de Genette sobre narrador e focalização em O discurso da narrativa ([197-]), de Beauvoir em O segundo sexo: a experiência vivida (1967), de Millet em Política Sexual (1969), de Woolf em Um teto todo seu (1928), de Dueñas em Literatura y feminismo: uma revisión de las teorias literárias feministas en el ocaso del siglo XX (2009) e de Showalter em “A crítica feminista no território selvagem”(1994) “Esses Lopes” é um dos quarenta contos que compõem o livro Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa publicado em 1967. No conto, deparamo-nos com a história de Flausina. Esta, narradora-personagem, conta-nos a sua vida passada, mostrando-se como uma mulher que, após vivenciar a submissão, reconhece sua condição marginal e passa a agir em busca da liberdade e da realização de seus desejos. Sendo assim, buscamos analisar o modo como essa voz feminina manifesta-se no texto do escritor mineiro, com o intuito de observar e discutir a posição ocupada pela mulher na cultura e na sociedade patriarcal que transparece no texto, levando em conta a questão do estereótipo. Ainda, como a presença do corpo, o silêncio e a linguagem reinventada são

abordados no conto. Com a análise desses elementos, confrontamos duas teorias feministas: a francesa, tendo como representante Hélène Cixous, e a ginocrítica de Elaine Showalter. Para atingirmos tal objetivo, partimos de três direções teóricas: a) bibliografia relativa ao autor e ao corpus, como Guimarães Rosa: do feminino e suas estórias de Cleusa Passos, b) propostas de Genette sobre narrador e focalização presentes em O discurso da narrativa e c) estudos da crítica feminista sobre o feminismo e a escritura feminina, como de Beauvoir em O segundo sexo: a experiência vivida, de Millet em Política Sexual, de Woolf em Um teto todo seu, de Sánches Dueñas em Literatura y feminismo: una revisión de las teorías literarias feministas en el ocaso del siglo XX, de Showalter

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em “A crítica feminista no território selvagem” e de Cixous, La risa de la Medusa: ensayos sobre la escritura. Assim sendo, Guimarães Rosa, em relação ao conteúdo, expressa em seu texto um posicionamento feminista diante do regime patriarcal, que pode ser apreendido pela caracterização e ação da personagem feminina na narrativa. Não só o tema, mas também no que diz respeito à forma, alguns elementos tocam os princípios da ginocrítica de Showalter e contrariam os das teóricas francesas, pois encontramos elementos do “texto feminino” no texto do escritor mineiro, como a linguagem velada e reinventada, a qual deixa entrever as relações com o corpo, geradoras do erotismo. A escrita feminina: divergências teóricas Toma-se como princípio das análises, a definição de Blas Sánches Dueñas (2009, p.12) para feminismo:

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[...] teoria articulada em torno a la crítica de la situación marginal y de inferioridade de la mujer en la vida social, como “movimento que exige para las mujeres iguales derechos que para los hombres” o como “doctrina social favorable a la mujer, a quien concede capacidade y derechos reservados antes a los hombres”. Ainda, “[...] un tipo de pensamento antropológico, moral y político que tiene como referente la idea recionalista e ilustrada de igualdad entre sexos.” (SÁNCHES, DUEÑAS, 2009, p.31). O autor (SÁNCHES DUEÑAS, 2009, p.12) faz um panorama das críticas femininas e das maneiras como o feminismo tem sido visto nas últimas décadas quando relacionado ao texto literário, o que é aqui, de nosso interesse. Por meio desse levantamento, conclui (SÁNCHES DUEÑAS, 2009, p.12) que não há feminismo, mas feminismos, devido à pluralidade de visões pelas quais é abordado, que dependem de diferentes momentos históricos e ideologias. Pode-se aliar feminismo e literatura pelo viés da sociologia, da filosofia ou da psicanálise, por exemplo. No entanto, há um ponto comum: todas essas perspectivas saem em defesa da mulher. Assim, este “amalgama de estudos”, segundo o autor (SÁNCHES DUEÑAS, 2009, p.13), enriquece os estudos feministas mantendo o objetivo claro de: “[...] transgredir el orden simbólico patriarcal cuya

asfixiante red de relaciones e interconexiones han conformado uma tela de araña androcéntrica imposible de traspassar.”; em que a escritura das mulheres seria “[...] la materialización textual de uma experiência social, económica y cultura específica pero común”. (SÁNCHES DUEÑAS, 2009, p.19). No que diz respeito a essas nomenclaturas surgidas para a relação entre literatura e feminismo - “literatura feminina, feminista ou da mulher”, “estudos literários feministas”, “literatura de gênero” ou ainda “estudos literários sobre gênero”-, Elaine Showalter (1994) propõe a teoria denominada ginocrítica. Esta define o texto feminino por meio do estudo da mulher como escritora, partindo da história, dos estilos, dos temas, dos gêneros e da estrutura dos escritos das mulheres para elaborar seus fundamentos. Conforme a autora (SHOWALTER, 1994, p.29) a ginocrítica oferece muitas oportunidades teóricas, pois toma os “escritos femininos” como assunto principal, deixando de lado o “dilema ideológico de reconciliar pluralismos revisionistas” para atentar-se à questão essencial da diferença, tendo como base a relação da mulher com a cultura literária. A autora (SHOWALTER, 1994, p.32), no embasamento de sua teoria, critica alguns aspectos das teóricas francesas - dentre elas, Hélène Cixous (2001); (CIXOUS apud BRANCO; BRANDÃO, 2004) - sobre os quais iremos nos deter. A teoria feminista francesa acredita que a relação entre o corpo e a palavra é que gera o texto feminino, donde advém o erotismo, elemento comum na écriture feminine. Porém, “A diferença da prática literária das mulheres, portanto, deve ser baseada [...] no corpo de sua escrita e não na escrita de seu corpo.”, é o que defende Showalter (1994, p.35). Na visão fisiologista, o homem representa força, completude e a mulher, a debilidade, a “manque”; enquanto o homem está relacionado à alma – ao domínio -, a mulher está ligada ao corpo, à exclusão. Sob essa perspectiva, as teóricas francesas defendem a existência de uma “linguagem feminina”, vista como reprimida porque utiliza da “linguagem do opressor”; assim, produz um discurso caracterizado como um pré-discurso (pré-mítico, pré-caótico, numa perspectiva falocêntrica) em que se destacam alguns temas comuns como a cozinha, a infância, entre outros, além da presença da tradição oral, do segredo – a linguagem velada -, do silêncio, do eufemismo e do circunlóquio. Esses elementos caracterizam um discurso marcado pela falta – a “manque”. Com isso, para as francesas, as mulheres se comunicam, escrevem, por intermédio da língua do grupo dominante – dos

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homens. No entanto, para Showalter (1994, p.37), as mulheres valem-se da reinvenção e da dessimbolização da linguagem, e os elementos indicados pelas francesas, não passam de recursos que demonstram um problema social: o de ter-lhes sido negado a totalidade dos recursos da língua para elaborarem um discurso que fuja aos padrões masculinos. Desse modo, a defesa de uma linguagem das mulheres, como proposto pelas francesas, é um gesto político e a diferença dos discursos (de entonação e uso da língua dos homens e mulheres) não pode ser explicada em termos de “duas linguagens sexualmente específicas separadas”, mas precisam ser consideradas em termos de estilos, estratégias e contextos de desempenho linguístico (SHOWALTER, 1994, p.38), uma vez que a língua também é resultado dos processos sociais, econômicos e políticos pelos quais ambos – homens e mulheresenfrentaram de maneiras diferentes. Nesse sentido, Woolf (1928, p.8) afirma que a mulher, para escrever ficção, precisaria ter dinheiro e um teto todo seu, uma vez que às do século XVI não era permitido outro papel senão o de trabalhadoras domésticas, escravas ou animais de estimação. Assim, a conquista do espaço na sociedade só foi possível devido à luta do movimento feminista no século XIX pelo acesso à educação – o que caracterizou a primeira onda feminista -, por direitos políticos - o voto, o divórcio, etc, que marcaram a luta da segunda onda feminista – e pelo fim da prostituição e da violência contra as mulheres (VALCÁRCEL, 2000). Desse modo, as escritoras surgem quando esses direitos lhes são concedidos, possibilitando que a mulher afirme-se como sujeito de sua história. Porém, Showalter (1994, p.50) diz ser impossível desenvolver algo totalmente independente das pressões econômicas e políticas da sociedade dominada pelos homens. Isso se deve, em grande parte, ao regime do patriarcado que pela estratégia de dominação utilizada – não pela força, mas pela educação, valores sociais e morais – adentra às raízes da sociedade, desenvolve-se com base de sustentação na família, permitindo a naturalização da superioridade masculina e submissão feminina para tornar-se a base de nossa civilização: “A sociedade patriarcal está de tal forma enraizada que o tipo de estrutura que ela determina em ambos os sexos é talvez mais um hábito do espírito e um tipo de vida do que um sistema político determinado.” (MILLET, 1970, p.12). Dessa maneira, também no “texto feminino”, as

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duas perspectivas – poder masculino e passividade feminina - estão presentes, pois fazem parte da realidade em que estão inseridas: O conceito do texto da mulher na zona selvagem é um jogo de abstração: na realidade à qual devemos nos dirigir como críticos, a escrita das mulheres é um “discurso de duas vozes” que personifica sempre as heranças social, literária e cultural tanto do silenciado quanto do dominante. (SHOWALTER, 1994, p.50) Isto posto, observamos que em “Esses Lopes” de Guimarães Rosa, temos um posicionamento feminista diante do regime patriarcal e alguns elementos que tocam na ginocrítica de Showalter e contrariam os princípios da teoria feminista francesa, pois encontramos elementos do “texto feminino” no texto, se visto por esse viés, “masculino”. Contradições: “Esses Lopes” de Guimarães Rosa, texto feminino? “Esses Lopes” é um dos quarenta contos que compõem o livro Tutaméia: terceiras estórias de Guimarães Rosa, publicado em 1967. Neste, o escritor mineiro atinge o grau máximo de condensação da forma e do conteúdo, sendo o “mais minimalista”, segundo Walnice Nogueira Galvão (2000, p.62). Assim, o conto de quatro páginas escolhido como corpus está dentre os considerados, pela classificação de Galvão (apud CESAR, 2007, p.12), “casos de crimes, verdadeira ou falsamente atribuídos”. O conto inicia com a seguinte declaração: Má gente, de má paz; deles, quero distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou, idade é a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. Quero falar alto. Lopes nenhum me venha, que às dentadas escorraço. [...] A maior prenda, que há, é ser virgem. (ROSA, 1969, p.45, grifo nosso). Neste primeiro contato, é possível identificarmos o narrador-personagem: a voz feminina – de Flausina- que narra a sua própria história, apresentando sua condição no presente da narrativa: uma velha que ama, deseja a felicidade e sente-se capaz de espantar quem, por ventura, possa atrapalhar

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o seu destino. Destaca-se o fato da rejeição da maternidade e a vontade de se manifestar, impor a sua voz. Por meio da frase “Quero falar alto” vê-se que a personagem toma posse da linguagem e por isso pode fazê-lo. Desse modo, Flausina, nessa primeira apresentação, mostra-se como uma personagem fora dos padrões maternais femininos e de submissão do século XVI, por exemplo, comportando-se como uma mulher do século XX, após as conquistas dos movimentos feministas. No entanto, ainda sente-se presa aos valores morais impostos pela sociedade e pela religião, o de que a virgindade valoriza a mulher. Para Passos (2000, p.213), a perda da virgindade marca profundamente a vida da protagonista, porque ser virgem é manter os princípios de integridade e inocência, estabelecer elos entre pudor e sexualidade, a dissimulação e as normas sociais – aspectos essenciais para a caracterização de Flausina, uma vez que a violação de sua virgindade pelos Lopes constitui um dos motivos pelo qual ela trama a sua vingança. Nos parágrafos que se seguem, ela retorna ao passado para explicar o motivo de suas ações e estado no presente. Para isso, ela se vale de diversas analepses – “[...] toda a ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em que se está.” (GENETTE, [197-], p.38) – para informar o leitor sobre esse tempo passado: Eu era menina, me via vestida de flores. Só que o que mais cedo reponta é a pobreza. Me valia ter pai e mãe sendo órfã de dinheiro? Mocinha fiquei, sem da inocência me destruir, tirava junto cantigas de roda e modinhas de sentimento. Eu queria me chamar Maria Miss, reprovo meu nome, de Flausina. (ROSA, 1969, p.45). A inocência do vestido de flores é mesclada à ganância e ao desejo de riqueza, beleza e status. Segundo Passos (2000, p.213), a reprovação do nome e a preferência por “Maria Miss” acentuam a questão narcísica e a necessidade de reconhecimento da própria beleza. De família pobre, ela culpa os pais por não impedirem o casamento com Zé, homem forte e rico, o primeiro Lopes: “chapéu grandão, aba desabada”, “rompente sedutor”: “A gente tem é de ser miúda, mansa, feito botão de flor. Mãe e pai não deram para punir por mim.”. (ROSA, 1969, p.45, grifo nosso). Por essa declaração, depreendemos a consciência da personagem em relação ao comportamento feminino de passividade e submissão, colocando-se em uma posição inferior aos ho-

mens. Segundo Beauvoir (1967, p.21), a passividade feminina é marca adquirida já na infância, com as brincadeiras e brinquedos destinados às mulheres – as bonecas, por exemplo, permitem que elas se vejam já, em criança, como mães, um dos destinos delegados a elas pelos educadores e pela sociedade -, de modo que são condicionadas a pensar que esse é o único destino que lhes cabem. Porém, no trecho destacado acima, a expressão “botão de flor” condensa os dois aspectos da caracterização da personagem protagonista: “bela e feminina e, ao mesmo tempo, contida em seus planos – mas pronta para a desforra”. (PASSOS, 2000, p.217). “Aos pedacinhos”, Flausina vai se “alembrando”, em uma espécie de narrativa de memórias, dos desejos que lhe foram negados: enxoval, cortesias e igreja (desejos também tipicamente femininos), restando-lhe a violência e submissão do casamento (BEAUVOIR, 1967, p.7): “O homem me pegou, com quentes mãos e curtos braços, me levou para uma casa, para a cama dele.[...] Calei muitos prantos.” (ROSA, 1969, p.45). Nesse “caso corporal”, como ela define seu casamento, sofre e tem de suportar a violência calada: “Deitada é que eu achava o somenos do mundo, camisolas do demônio”, Ninguém põe ideia nesses casos: de se estar noite inteira em canto de catre, com o volume do outro cercando a gente, rombudo, o cheiro, o ressonar, qualquer um é alheios abusos. [...]Daninhagem. Aquilo tange as canduras de noiva, pega feito doença, para a gente em espírito se traspassa. [...] Eu ficava espremida mais pequena, na parede minha unha riscava rezas, o querer outras larguras. (ROSA, 1969, p.46, grifo nosso). Transparece, na citação acima, as condições femininas impostas pelo regime patriarcal (MILLET, 1970, p.12), dentre as quais, a mulher tem de se calar e aceitar a dominação do poderio masculino, no caso, a opressão física. Nota-se a presença do corpo na escrita – e não a escrita do corpo, como diz a teoria francesa - para descrever as situações de pavor e a utilização sutil da linguagem que faz surgir um erotismo, mas que é repulsivo, o que podemos observar no neologismo “daninhagem”. O termo refere-se ao ato sexual da maneira como é visto pela narradora-personagem : unindo o adjetivo “daninha” (que produz dano, nocivo, prejudicial) com o sufixo “agem”, que segundo Bechara (2005, p.358) é formador de substantivo, o ato sexual é definido como ato nocivo e prejudicial. Assim, de acordo com Cleusa Passos, “[...] a

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memória da narradora seleciona impressões sugestivas do intolerável toque físico por meio dessa contiguidade metonímica cuja função é, ainda, sustentar as metáforas encobridoras do pudor.” (PASSOS, 2000, p.211). Nota-se, portanto, os recursos utilizados na escrita feminina, delimitados pelas teóricas francesas (BRANCO; BRANDÃO, 2004) no texto de Guimarães Rosa: o segredo e o circunlóquio, presente na utilização de metáforas, e a presença do corpo e do erotismo relacionados, no entanto, à reinvenção e dessimbolização da linguagem- princípio defendido pro Showalter (1994). Em relação ao casamento de Flausina, vale as propostas de Millet (1970, p.16). A autora (MILLET, 1970, p.16) diz que com essa união, a mulher morria aos olhos da lei, perdendo seus (poucos ou nenhum) direitos. De tal modo, o marido possuía tanto a esposa como seus serviços, sendo esta, um verdadeiro objeto por toda a vida – maneira como Flausina se sente e é tratada. Conforme Passos (2000, p.209), ofendida e calada, a personagem dissimula angústia e revolta, amealha o que pode e aprende a ler para livrar-se do(s) agressor(es). Descobrindo o poder da palavra, “sacou malinas lábias” – a linguagem que também por ora havia-lhe sido vetada - para manipular as situações a seu favor. Agindo dessa maneira, “fez que quis” e, às escondidas, estuda e prepara a vingança: “Falei, quando dinheiro me deu, afetando ser bondoso [...] Contentado ele ficou, não sabia que eu estava abrindo e medindo.” (ROSA, 1969, p.46); “Para me vigiar, botou uma preta magra em casa, Si-Ana. Entendi: a que eu tinha que engambelar, por arte de contas; e à qual chamei de madrinha e comadre. Regi de analisar por fora a vida.” (ROSA, 1969, p.46). Como as mulheres do século XIX, Flausina percebe a necessidade do estudo e da educação para libertar-se das amarras masculinas, o que constituiu o objetivo da primeira onda do movimento feminista (VACÁRCEL, 2000, p.23). Assim, a personagem busca maneiras de aprender a ler e a escrever -“Tracei as letras. Carecia de ter o bem ler e escrever, conforme escondida. Isso principiei – minha ajuda em jornais de embrulhar e mais com as crianças de escola.” (ROSA, 1969, p.46) - para alcançar seus objetivos, reconhecer seus direitos, de forma a tomar conta de suas posses - “O que podendo, dele tudo eu para mim regrava. Mealhava. Fazia portar escrituras. Sem acautelar, ele me enriquecia” (ROSA, 1969, p.46). Após preparar-se para a independência e liberdade, despede Si-Ana, tem um filho com Zé Lopes, para que ele pudesse ter ainda mais confiança

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nela, e dá início ao plano de vingança, virando “cria de cobra”. Tudo engenhosamente arquitetado, Flausina envenena o marido, desapercebidamente, com “cabaceira-preta”, “cipó-timbó” e “saia-branca”. Ele, então, morre “sem muito custo”: “Só para arrefecer aquela desatada vontade, nem confirmo que seja crime.” (ROSA, 1969, p.46). Porém, o destino da personagem-protagonista parece traçado pela presença dos Lopes: “Dois deles, tesos, me requerendo, o primo e o irmão do falecido. [...] Mexi em vão por me soltar, dessas minhas pintadas feras.” (ROSA, 1969, p.47). Sertório, mal esperou o sétimo dia: “[...] já entrava por mim a dentro em casa. Padeci com jeito. E o governo da vida? Anos, que me foram, de gentil sujeição, custoso que nem guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve.” (ROSA, 1969, p.47, grifo nosso). Mais uma vez, destaca-se a presença do corpo conferindo eroticidade ao texto: “[...] entrava por mim a dentro em casa.”, a que se sucede a declaração da dificuldade da personagem protagonista em suportar por mais alguns anos a submissão. Para demonstrar esse sentimento, o autor (ROSA, 1969, p.47) faz uma comparação entre a dificuldade dela tomar as rédeas de sua vida com o ato de “guardar chuva em cabaça” e “picar fininho a couve.”, ações que, pelo sistema patriarcal, são destinadas às mulheres. Uma vez que elas são privadas do conhecimento de mundo, veem a vida por meio dos elementos que compõem a realidade, a sociedade, em que estão inseridas. Assim, com o segundo marido, Flausina obtém mais dinheiro, dá-lhe dois filhos, experimenta “finuras novas” e sente-se “mais donzela”. E aproveitando o ciúmes que Sertório tinha de Nicão, usa do fato para elaborar seu argumento e tramar a briga da qual ambos saem mortos, como ela, ironicamente, relata: “Inconsolável chorei, conforme os costumes certos, por a piedade de todos: pobre, duas e meio três vezes viúva.” (ROSA, 1969, p.47) Todavia, mais um Lopes participa de sua trajetória. Dessa vez, Sorocabano Lopes, “o das fortes propriedades”, o que faltava para aumentar sua riqueza. O “velhôco”- velho e oco- , “aflitinho dos consolos”, aceita a condição de Flausina de se casar. Porém, com este, a personagem muda de estratégia, tratando-o bem e enchendo-lhe de “gordas, temperadas comidas, e sem descanso, agradadas horas” (ROSA, 1969,p.47). Desse modo, ele não perceberia – uma vez que estava “chupado de amores”- que ela, na verdade, ardilosamente, tramava a morte dele : “Tudo o que é bom faz mal e bem. Quem morreu mais foi ele. Daí tudo tanto herdei, até que com nenhum enjôo.” (ROSA, 1969,

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p.48). Pela terceira vez, “o prazer encobre e prepara a morte” (PASSOS, 2000, p.218). Estando, assim, “desforrada”, Flausina, após realizar o caminho justo e calculado da busca de seu passado (PASSOS, 2000, p.218), envia os filhos da primeira e segunda relação para longe de modo a usufruir da liberdade e de seu corpo (PASSOS, 2000, p.210), situando-nos no presente da história: “Deixo de porfias, com o amor eu achei. Duvido, discordo de quem não goste. Amo, mesmo. Que podia ser mãe dele, menos me falem, soou de me constar em folhinhas e datas?” (ROSA, 1969, p.48). Alfabetizada, “com dinheiro e um teto todo seu”, Flausina constitui-se como sujeito de desejos, dona dos próprios desejos, destino e corpo: “Que em meu corpo ele não mexa fácil. Mas que, por bem de mim, me venham filhos, outros, modernos e acomodados. Quero o bom-bocado que não fiz, quero gente sensível.” (ROSA, 1969, p.48). A personagem, assim, quer recuperar o tempo perdido e para a realização plena, acredita ser preciso ter um filho, agora, desejado e verdadeiramente seu. Desse modo, conclui Passos (2000, p.209): “[...] a moça não se submete visceralmente; ela age, às ocultas, contra o poder econômico que dispõe de seus sonhos e sexualidade, acabando por inverter a ordem vigente e restabelecendo-se como ‘mulher’ desejante”. Observa-se, assim, que a subversão é parcial porque reafirma o papel milenar destinado à mulher, contudo, Flausina o incorpora como um desejo próprio. Vemos que, embora seja um texto de autoria masculina, temos uma narradora autodiegética, de acordo com as proposições de Genette ([197-], p.244) – “[...] o narrador é o herói da sua narrativa [...].”. Portanto, a perspectiva pertence à voz que relata e o interessante é que, diferente de outras narrativas rosianas, essa conduta do narrador não se altera ao longo da história, fazendo com que tenhamos uma visão unilateral dos fatos a qual é condicionada pela capacidade argumentativa adquirida com o domínio da linguagem. Dessa forma, a história, contada e trilhada por ela mesma, só é possível pelo acesso aos recursos da língua, ao contrário, “os outros obrariam a sua história”. Fato que transmite a condição de todas as mulheres até meados do século XIX: se não fosse pela conquista de “um teto todo seu”, continuariam a ser descritas e escritas pelos homens, como objetos da própria história. Considerações finais

Com essa exposição, podemos elencar alguns elementos presentes no conto que nos permitem dizer que, embora seja de autoria masculina, “Esses Lopes” é um texto que poderíamos rotular de feminino, contrariando os princípios da teoria francesa - que afirma que o texto feminino só pode se sustentar em outros textos femininos e ser produzidos apenas por mulheres-, que são criticados por Showalter (1994). Primeiramente, por se tratar de uma voz feminina que conta sua história, adotando a própria perspectiva. Dessa maneira, permite ao leitor reconhecer o passado de submissão e violência sofrida, ao mesmo tempo, o presente oposto – de conquistas, amor e planos futuros. Além disso, os temas abordados são caros aos “escritos femininos”: o poder masculino ao qual a mulher tem de se submeter, o silenciamento dos desejos, as tarefas impostas pelo regime patriarcal – mulher como esposa, mãe e dona de casa -, a privação à educação e à passividade diante da sexualidade – vista como objeto, fonte de prazer. Junto aos temas, observamos a utilização de uma linguagem em que se evidencia a presença do corpo na escrita, referindo-se à opressão física, que gera uma espécie erotismo repulsor, como observamos; vimos também que o escritor mineiro vale-se da reinvenção da linguagem (demos como exemplo o termo “daninhagem”) e do silêncio (entrevisto nas ações das personagens, uma vez que ela age às escondidas para atingir seus objetivos, e na utilização de metáforas que caracterizam a linguagem utilizada por ela), para construir um discurso que se afasta dos moldes masculinos – objetivo da “escriture féminine”. A violência sofrida, assim, é combatida da mesma forma, com reações ardilosas da personagem. Isso é o que sustenta o relato da história e denuncia o “domínio de um mundo, onde o poderio econômico permite aos homens arrogar-se direitos de ‘posse’ sobre a mulher desejada’.” (PASSOS, 2000, p.220). De tal modo, os mesmos motivos que impulsionam o movimento feminista, são a causa da busca, da luta, de Flausina. A personagem mantém-se presa ao poder patriarcal, cultiva hábitos impostos por essa sociedade – vontade de se casar por amor, ter enxoval e filhos –, mas, ao tomar consciência da sua condição inferior e diante da sua infelicidade, articula as suas ações para subverter essa ordem, ainda que ela seja parcial. A estrutura do conto, como aponta Passos (2000, p.219), acompanha o conteúdo e as transformações sofridas na personagem: há um lúdico pacto textual em que se evidenciam duas vozes:

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uma direcionada aos Lopes – mais agressiva, portanto – e outra, ao leitor – mais branda, em tom de explicação -, de modo que a escrita reproduz a vivência de Flausina. Observa-se, por meio desse aspecto, que a simulação e o desejo estruturam o conto: “[...] em nome do desejo os Lopes a violam, agora ela viola leis também em nome do desejo.” (PASSOS, 2000, p.222). E a representação de Flausina, constitui-se como elemento básico do seu relato: “Habituada à sedução e ao logro, ela encontra na ficção o veículo adequado para resgatar historicamente o passado e falar alto.” (PASSOS, 2000, p.222). Logo, Guimarães Rosa parte de um estereótipo feminino - jovem moça, inocente, pobre, que se casa, por interesse da família, com um homem mais velho e rico, ficando restrita ao ambiente doméstico e vista como objeto de prazer –, para transgredi-lo, deixando transparecer o caráter híbrido do texto: uma escrita supostamente feminina que parte de ideias ancoradas no patriarcado, como definido por Beauvoir (1967), Woolf (1928), Millet (1970) e Sánches Dueñas (2009). Assim, contrariando os postulados das francesas, conclui-se que o texto de Guimarães Rosa poderia localizar-se na “zona selvagem” definida por Showalter (1994), ao lado dos textos de autoria feminina, pois o autor mineiro se vale do estilo da escrita destes para compor o seu texto e a personagem feminina, levando em conta a questão cultural e ideológica e as diferenças que envolvem esse universo. Referências bibliográficas BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução: Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1967. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. BRANCO, L. C.; BRANDÃO, R. S. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2004. CEZAR. A.C. Tutaméia: terceiras estórias: derradeira obra de João Guimarães Rosa. Disponível em: http://200.201.827/index.php/trama/article/viewArticle/920, acesso em 28 de agosto de 2011. CIXOUS, H. La risa de la Medusa: ensayos sobre la esritura. Rubí: Anthropos Editorial, 2001. GALVÃO, W. N. Guimarães Rosa. São Paulo:

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JORGE AMADO E A HORA DA GUERRA: A mulher, o nazifascimo e possibilidades de representação Benedito Veiga Universidade Estadual de Feira de Santana – Bahia, Brasil

Resumo: Jorge Amado, em suas crônicas da Hora da Guerra, escritas entre 1942 e 1944, além de indicar os mais perseguidos ou atingidos pelo nazifascismo, como: os judeus, os ciganos, os doentes, as crianças, os refugiados políticos, os homossexuais, mostra também a situação da mulher prejudicada nas sociedades nazifascistas – Alemanha e Itália –, retirada de exercer qualquer conquista feminina, como o trabalho fora do lar, e afastada de concorrências com o homem, inclusive com o ingresso limitado às Universidades. Nestas comunidades, havia o predomínio de uma visão retrógada – tradicional e conservadora – do feminino, o que bem se adaptava aos moldes antiurbano e anticomunista do Império Nazifascista: enquanto casadas, eram estimuladas a serem dedicadas ao lar e principalmente responsáveis por prole numerosa, enquanto solteiras, desestimuladas e chamadas ao serviço público. As possibilidades de representações da mulher, mesmo literárias, estavam limitadas ao ponto de vista pseudo medieval: camponesas, domésticas, mães de muitos filhos; quando das piores ocasiões da guerra, as próprias solteiras, com filhos de arianos para preencher vagas nos campos de luta. 1 DAS PRELIMINARES A presente comunicação resulta da leitura cuidadosa das colunas da Hora da Guerra, mostradas em O Imparcial, de Salvador – Bahia, escritas por Jorge Amado, entre 1942 e 1943. São inúmeros os seres humanos perseguidos ou atingidos pelo nazifascismo. É muito difícil se questionar o que foi feito com intenção de prejudicar qualquer pessoa. Às vezes, quem escreve ou age nem imagina o quanto de intencional contém um discurso ou atos, mesmo computando toda uma série de recursos da análise e da performance. Para se ter uma dimensão da crueldade usada pelo Império Nazista, são convenientes parte das palavras emocionadas, mas lúcidas, do escritor Thomas Mann, pronunciadas em agosto de 1941, pela British Broadcasting Corporation – BBC, transmitidas a convite, para buscar influenciar ou estimular seus concidadãos sobre a tragicidade e injustiça do conflito desencadeado: Ouvintes alemães! Há uma polêmica no mundo sobre se é realmente possível diferenciar o povo alemão das forças que hoje o dominam e sobre se a

Alemanha é mesmo capaz de se integrar de forma honesta a uma ordem das nações nova e socialmente desenvolvida, baseada na paz e na justiça, ordem que deverá resultar dessa guerra. Se me perguntassem, eu responderia assim:

Admito que isso se chama de nacional-socialismo tem raízes profundas na vida alemã. É a forma virulenta de degeneração de idéias que sempre trouxeram em si o germe da corrupção assassina, idéias de modo algum alheias à boa e velha Alemanha da cultura e da formação. Aí elas viviam nobremente, chamavam-se “romantismo” e deixaram o mundo fascinado. Pode-se muito bem dizer que elas decaíram, que estavam destinadas a decair, visto que foram desembocar num Hitler. [...] (MANN, 2009, p.48-49).

É um intelectual consciente falando para sua terra natal, depois de a ter deixado, em 1933, e se fixado nos Estados Unidos da América do Norte. Seu discurso inicia-se com provocação, ques-

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tionando sobre o futuro da Alemanha, sobre um questionamento do mundo civilizado: seria ela “mesmo capaz de se integrar de forma honesta a uma ordem das nações nova e socialmente desenvolvida, baseada na paz e na justiça”? Como se segue observando, Mann não perde o fio do seu raciocínio, nem mesmo poderia fazê-lo. Em breve comentário, traça um perfil, histórico e não esquecido, da sua “boa e velha Alemanha da cultura e da formação”, sem encobrir certa vaidade que caracterizava o seu “nacionalismo”. E responde, a seu interrogatório – “otimista e patriota o suficiente” –, para apostar na permanência e duração da pátria germânica de “Dürer e Bach e Goethe e Beethoven”, e não na de picadeiro passada por Hitler – “confundir seu bufar atual com um fôlego poderoso”! Dos grupos ou etnias considerados pelos ditos de Hitler inferiores e, como tais, objetos de extermínio do nazismo – sem querer esgotar o assunto –, avultam os judeus, os ciganos, os doentes, as crianças, os refugiados políticos, os homossexuais e as mulheres. Os primeiros, em número bem maior, facilmente identificados, como um dos responsáveis pela Civilização ocidental, marcada pelos traços greco-romano-judaico-cristãos; os ciganos, pela vida livre a que se acostumaram, considerados pelos ditos hitleristas, erroneamente, de braços desocupados e bocas vazias; os doentes, congenitamente insanos ou deficientes, incluídos entre os “associais” marginalizados; as crianças, nenhum grupo se compara ao dos jovens atingidos; os refugiados políticos, um grupo grande de pessoas está incluído entre aqueles que tiveram que sair dos países dominados ou atingidos, sob pena de correrem o risco de vida ou de confinamento nos campos de concentração; os homossexuais, perseguidos cruelmente pelo movimento e as mulheres, objeto específico deste ensaio. 2 DAS MULHERES Outros dos atingidos pelo nazismo foram as mulheres, como aparece no texto “E o Arianismo?”, de 5 de março de 1944. Amado dá sua visão do tratamento das mulheres pelo nazifascismo, destacando a marcante diferença sexual estabelecida no regime e comprovada na norma nazista em vigor, como: O nazismo foi antes de tudo contra as mulheres. Degradou a mulher alemã, transformando-a em simples máquina de procriar. Quando Hitler subiu ao poder o problema dos desem-

pregados era dos mais graves da Alemanha. O nazismo honra-se muito de havê-lo resolvido. Mas como o resolveu? Proibindo o trabalho feminino numa série de ofícios, mandando as mulheres para casa e colocando nos seus lugares os homens desempregados. É claro que isso levou à miséria a milhares e milhares de famílias, onde o salário da mulher era muitas vezes a principal base de vida. O nazismo tirou à mulher alemã a possibilidade de competir livremente com o homem nas diversas profissões. Lançando mão de um preceito feudal de que a mulher nasceu exclusivamente para procriar e para os afazeres caseiros, o nazismo retirou a mulher da vida pública, das universidades, das profissões técnicas e liberais. (AMADO. Hora da Guerra: 5 mar. 1944). Evidente que o texto amadiano comporta sua dimensão em relação a um sistema que se opõe diametralmente ao marxismo. Alexander De Grand, em Itália fascista e Alemanha nazista, depõe sobre o assunto: A posição fascista sempre fora a de que distinções de classe eram artificiais e superficiais, enquanto os papéis biologicamente determinados pelo gênero sexual eram imutáveis. Logo, os regimes fascista e nazista procuravam transcender as distinções de classe dentro da comunidade nacional ou racial, enquanto dividiam firmemente a sociedade ao longo de linhas do gênero sexual. (DE GRAND, 2005, p.117). Portanto, é bom se entender as palavras de Amado, dentro de uma referência a linhas partidárias. Claro que não se quer contestar a ocorrência da aplicação prática: “isso levou à miséria a milhares e milhares de famílias, onde o salário da mulher era muitas vezes a principal base de vida”. Mas é conveniente observar que a manutenção da aplicação de leis, como mostra De Grand, desempenhou um papel decisivo: A política sobre o gênero sexual foi em parte fruto da composição esmagadoramente masculina dos movimentos. Após 1920, o Fascismo italiano respondeu à pressão dos veteranos para eliminar a competição feminina do mercado de trabalho. De 1929 a 1933, os nazistas beneficiaram menos os veteranos do

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que os desempregados masculinos atingidos pela Grande Depressão. Quando tomaram o poder, bastou-lhes continuar a legislação existente, aprovada em maio de 1932, que permitia dispensar as servidoras públicas casadas e economicamente seguras, as chamadas double dippers [recebem salário mais aposentadoria]. Os nazistas limitaram o direito a recurso da sentença, aumentaram a idade mínima para conseguir a garantia de permanência no emprego público e reduziram a importância da indenização rescisória. (DE GRAND, 2005, p.117-118). Muita coisa já se encontrava no espírito tradicional e conservador, que os movimentos já tinham sobre as mulheres, como a premiação das mães de vários filhos, tudo condizente com certa valorização das famílias numerosas, e uma atitude de subserviência feminina. Na segunda questão do descrédito das mulheres, é conveniente indiciar o momento da Guerra em que isso aumenta: Deveria ser em meados de 1942, quando as tropas alemãs passaram a experimentar revezes: E, quando os homens partiram para a guerra, o nazismo chegou ao máximo de humilhação às mulheres, apelando para que dessem filhos ao Estado, sem levar em conta o amor que deve ser o laço natural de qualquer ligação entre homem e mulher. Dar filhos ao Estado, filhos de soldados arianos que fossem amanhã carne para canhão, eis a tarefa que o Reich entregava às mulheres alemãs. (AMADO. Hora da Guerra: 5 mar. 1944). É por demais degradante para se chegar a uma situação de desvalorização tão grande do ser humano. Até que ponto poderia caminhar a inventiva amadiana? 3 DAS POSSIBILIDADES DE REPRESENTAÇÕES A partir dos escritos das crônicas amadianas e de pronunciamentos teóricos sobre o momento, pode-se encaminhar que as representações reservadas à mulher estavam encaminhadas em situações femininas nas sociedades fascistas, tradicionais, conservadoras e contra qualquer conquista mais moderna. Em princípio, as mulheres passaram a ser consideradas na perspectiva fascista de mando, acei-

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tando esta a mais rasa concepção medieval: [...] De forma mais evidente, a mulher moderna, isenta de obrigações familiares e trabalhando fora, simbolizava tudo que havia de errado na perspectiva “egoísta” da classe média. Por meio de textos escolares, revistas e filmes, eles exaltavam a família camponesa, os regimes podiam fazer um apelo seguro, não-subversivo e populista ao popolo ou Volk, em geral. Portanto, a batalha contra o feminismo e a igualdade sexual se ajustava ao lado antiurbano, anticomunista e reacionário de ambos os movimentos. (DE GRAND, 2005, p. 119). Portanto, eis os caminhos propostos: valorização da sociedade camponesa, a mulher renunciaria ao trabalho fora do lar; contrários às conquistas, sobretudo citadinas, de igualdade sexual. Tudo servindo ao embate, dentro das inclinações nazifascistas: do antifeminismo, do antiurbano, do anticomunismo. Em sua relação com o homem – o ariano, em destaque – eram identificadas em seu status: 3.1 Enquanto casadas: não apenas como donas laboriosas dos seus lares, mas, principalmente, responsáveis por prole numerosa, como ajunta DE GRAND, em Itália Fascista e Alemanha Nazista, ao discorrer sobre a mulher na chamada “nova comunidade”: As famílias grandes perpetuavam os mais antigos modelos de subserviência e dependência da classe baixa. Durante os anos de 1930, em regimes que desencorajavam o consumo doméstico, o populismo fascista e nazista atacavam o estilo de vida da burguesia por seu hedonismo, decadência e individualismo. [...] (DE GRAND, 2005, p. 119). Amado, na sua crônica “E o Arianismo”, de 5 de maço de1944, corrobora o assunto: [...] Lançando mão de um preceito feudal de que a mulher nasceu exclusivamente para procriar e para os afazeres caseiros, o nazismo retirou a mulher da vida pública, das universidades, das profissões técnicas e liberais. E, quando os homens partiram para a guerra, o nazismo chegou ao máximo de humilhação às mulheres, apelando para que dessem filhos ao Estado, sem levar em conta o amor que deve

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ser o laço natural de qualquer ligação entre homem e mulher. Dar filhos ao Estado, filhos de soldados arianos que fossem amanhã carne para canhão, eis a tarefa que o Reich entregava às mulheres alemãs. [...] (AMADO. Hora da Guerra: 5 mar. 1944). 3.2 Enquanto solteiras: eram estimuladas ao casamento ou à construção de uma prole numerosa, em sua grande maioria de homens para servir aos interesses do Estado, ou ao Duce ou ao Führer. Não se trata, porém, da procriação de qualquer criança, como escreve AMADO, em Amor e Nazismo:

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Nenhuma jovem ariana poderia dar seu coração a um moço de outra pátria, a um americano ou a um grego, a um holandês ou a um argentino. Teria que reservar seus carinhos para os homens da SS e da SA, e estes podem tomar delas como de uma propriedade, sem nenhum requisito legal, sequer o casamento. O essencial são os filhos, carne para canhão que Hitler necessita, louros jovens para levar adiante a bandeira degenerada da suástica. Graves castigos pesam sobre aqueles e aquelas que rompam essas leis nascidas de cérebros onde só o ódio vive. (AMADO. Hora da Guerra: 21 set. 1943). Amado, ao lado dessas discussões, mostra com que afronta o regime produtor de semelhantes idéias observava os desgostos femininos: [...] Falta de patriotismo, crime contra o Führer, era u´a mulher negar-se a saciar os desejos de qualquer soldado alemão, fosse ele quem fosse. Era a prostituição oficializada, uma prostituição geral, completa, que atingia velhas, moças, solteiras e casadas, viúvas e mães. Nunca nenhum regime degradou de tal maneira a mulher, nunca nenhuma teoria humilhou de tal maneira o sexo feminino. (AMADO. Hora da Guerra: 5 mar. 1944). A opção individual da mulher estava, de um só golpe, prejudicada: não havia escolha para quem desejasse outros rumos. O casamento poderia, em último recurso, acontecer para acobertá-la legalmente de trabalhos públicos, como sugere DE GRAND:

As organizações de trabalho nazistas e a prestação de trabalho obrigatório não conseguiram vencer a relutância de Hitler ao envolvimento de mais mulheres. Na verdade, ele fez de tudo para manter as mulheres dos soldados em casa, de modo a não perturbar o moral das tropas. O regime liberal democrata americano e o inglês foram muito mais eficientes para mobilizar mulheres para a guerra do que o nazista e o fascista. A lei nazista de prestação de serviço compulsório parece ter meramente forçado as jovens a casar-se, já que o serviço não era obrigatório para as casadas. (DE GRAND, 2005, p. 121). É o governo rígido, impermeável ao diálogo. Contudo, convém registrar, como anota Amado em diversos textos da Hora da Guerra, as mulheres também tiveram sua reação, seu contra-ataque, embora sob o cunho algoz dos “donos do poder”: O tiro, porém, está saindo pela culatra. Narram os telegramas que os nazistas estão alarmados com as mulheres alemãs. Acontece que na Alemanha existem dezenas de milhares de trabalhadores estrangeiros, levados à força para as fábricas alemãs, e de prisioneiros de guerra. Homens de todos os países ocupados da Europa que estão substituindo os trabalhadores alemães convocados. E ingleses, russos, norte-americanos, franceses, prisioneiros da guerra, estão nas cidades e nos campos germânicos. Tudo indica que as mulheres alemãs, muito mais inteligentes (é claro) que os nazistas, não topam o “arianismo”. Cansadas da brutalidade dos soldados nazis, do desprezo a Rosemberg que eles mantém para com as mulheres, horrorizadas com a geral inversão sexual que campeia entre os nazis, elas voltam-se para os estrangeiros escravizados ou prisioneiros. Dizem que os casos de amor entre os estrangeiros, principalmente de guerra e trabalhadores, e mulheres alemãs sucedem-se com tamanha frequência que os tribunais nazis resolveram tomar providências, aplicando as penas mais severas para beijos, abraços e outras provas de amor. (AMADO. Hora da Guerra: 5 mar. 1944). E dessa forma também se extingue o arianismo com o nascimento de crianças mestiças, filhas de diversos povos, tornados prisioneiros de guerra pelo nazifascismo.

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Como ironicamente conclui Amado: “Os beijos se sucederão, apesar de custarem a vida daqueles que se beijam”. (AMADO. Hora da Guerra: 5 mar. 1944). As representações femininas eram, desta forma, as mais tradicionais e conservadoras possíveis: as mulheres, retiradas da concorrência com os homens, mostravam, pelo menos nos desejos dos mandos nazifascistas – incrivelmente reacionários –, submissas e dependentes dos seus cônjuges. Referências Bibliográficas AMADO, Jorge. Hora da Guerra (Amor e Nazismo). O Imparcial, Salvador, p. 3, 21 set. 1943. AMADO, Jorge. Hora da Guerra (E o Arianismo?). O Imparcial, Salvador, p. 3, 5 mar. 1944. DE GRAND, Alexander J. Itália Fascista e Alemanha Nazista. Tradução Carlos David Soares. São Paulo: Madras, 2005. MANN, Thomas. Ouvintes alemães!: discursos contra Hitler (1940-1945). Tradução Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 215

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Eva Foedata - abjeção e sublime na representação feminina a partir da poesia de valter hugo mãe Francisco Saraiva Fino Universidade de Évora – CEL (Portugal)

Resumo: O presente artigo tem como objetivo o estudo e problematização da representação feminina no âmbito da poesia portuguesa contemporânea tomando como corpus preferencial a leitura de duas obras poéticas de valter hugo mãe, “a cobrição das filhas” (2002) e “útero” (2003). Este trabalho procurará tecer a partir destes textos possíveis relações temáticas em torno de estratégias de revalorização do sublime (cf. Burke, 1757), em detrimento da clássica percepção do belo e sua co-identificação com o feminino, através da desconstrução estética do corpo e das personae femininas na sua dimensão simbólica (as três idades da mulher) pela via da abjeção, do grotesco e da violência. Este estudo terá ainda em consideração outros momentos pertinentes da obra de valter hugo mãe (como o romance “o remorso de baltazar serapião”, 2006) assim como outras representações estéticas contemporâneas. “a escuridão habita nesses lugares e neles encontra o seu repouso” (Is 34, 14)

Antes de Eva havia Adão e antes de Eva teria havido Lilith. Sobre ela, a Bíblia encerra o silêncio prudente reservado aos fantasmas, o menosprezo ético reservado aos demónios, o véu do contingente reservado a todo o empreendimento arquetípico. A sua vinculação ao mal parece acompanhar naturalmente a damnatio da sua nomeação, que constitui um dos hapax legomena mais comentados da literatura bíblica, constando de uma única menção, sombria e pouco esclarecedora, no Livro de Isaías a propósito da terrível desolação do vale de Edon. A tradição suméria da epopeia mitológica, onde já era celebrado o seu poder negativo, constitui apenas um dos substratos mais conhecidos de um mito entre cujos avatares figuram as funestas lâmias, servas da Hécate infernal. Na tradição judaico-cristã, da sua história há que reter as narrativas da tradição oral rabínica, muito diversificadas nas suas variantes, mais tarde registadas em obras cabalísticas como o Talmude Babilónico ou o Zohar, o Livro do Esplendor. O que de Lilith sabemos, ainda assim, não é suficientemente claro mercê da sua substância proto-histórica no seio do Genesis, sobretudo em relação ao mo-

mento em que Deus não teria ainda descansado a contemplar a sua criação, inicialmente considerada muito boa. No pensamento exegético do Livro do Esplendor, por exemplo, o seu nome figura no dia da criação dos peixes como um ser vivo que, a par do monstro Leviatã, se movia pelos quatro cantos do mundo (Zohar, I 34b). Antes de Eva, criada a partir da substância de Adão, outra tradição talmúdica regista a geração de Lilith a partir do mesmo barro de Adão, à noite, através da mão de Deus, surgindo numa primeira imagem terrífica coberta de saliva, lágrimas e sangue. Apenas numa segunda tentativa surgiu uma mulher atraente e sedutora, de longos cabelos, que em breve perturbaria com as suas desavenças a beatitude do Paraíso. Num momento em que Deus não ainda apontara ao casal primitivo a Árvore da Ciência do Bem e do Mal, Lilith interpela Adão quando se trata de fazer valer a sua igualdade perante o poder, legitimada na mesma substância (o barro) e no mesmo criador (contrariamente à futura Eva, eternamente dependente do corpo de Adão, com quem formará uma só carne) e visível no âmbito da sexualidade e das paixões intempestivas

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que despertaria. A perturbação instalada resulta no seu banimento do Éden, o seu exílio no deserto e a sua transformação em demónio sensual e invejoso. Antes da serpente havia Lilith e a arte consagrou-a muitas vezes como a própria serpente tentadora da submissa Eva, um monstro com cabeça feminina a rodear como um súcubo os filhos do casal (Lilith é a inimiga dos recém-nascidos) como no fresco de Filippino Lippi na capela Strozzi em Florença (fig. 1) ou em terrível xilogravura quatrocentista ao jeito de uma tentadora personagem de Bosch (fig. 2). Estamos neste ponto ainda distantes do voluptuoso ressurgimento romântico, após um relativo apagamento da sua presença durante o período pós-tridentino, incarnado pela prostituta Fanny Cornforth posando para Dante Gabriel Rossetti a sua imensa cabeleira rubra e suscitando do poeta pré-rafaelita o soneto “Body’s Beauty”. Já na arte contemporânea, pela mão de HR Giger, Lilith reabraça o monstruoso através da visão fantástica da existência biomecânica da mulher e seu hibridismo corpo-máquina, apesar de não destituída da sua herança hierática (fig. 3). A tentação de ver neste mito genesíaco da mulher-demónio um extremo do par distintivo que poderia formar com a Eva maternal e expiadora, como de resto tem sido acentuado, parece-nos, todavia, apenas mais uma das múltiplas dimensões interpretativas possíveis. A nosso ver, Lilith não se encontra circunscrita ao arco estrito da sua negação dadas as diferenças assinaláveis, apesar de breves pontos em comum. Possível companheira de Leviatã e primeira companheira de Adão, de quem, segundo uma outra tradição de que o Zohar dá eco, se terá separado por instâncias de Deus, seu criador, por não ter dado qualquer auxílio ao homem e o ter submetido ao prazer culpado (ibid.), torna-se o primeiro demónio a vaguear por terras ainda virgem de humanos, aquelas que se encontravam para lá do Éden. O seu processo de singularização identitária encontra-se contido na sua geração não linear (da primeira tentativa monstruosa à modelagem como ser muito belo) e no seu exílio posterior, cuja condenação lhe impõe uma reversão ao estado ignóbil da indefinição entre a força obscura e imaterial do fantasma (o súcubo, mas também a escuridão, o sopro maligno, o vento funesto), a sua figuração teratológica e, ao nível da linguagem, a damnatio que faz com que no texto bíblico não seja diretamente nomeada. Será nestes pontos essenciais – a criação abjeta e seu fundamento estético reportado figurativamente à mulher, a instabilização ambígua do foedus e a reativação de uma perspetiva de sublime reconhecida nas práticas intercomunicantes das perspetivas an-

teriores pela mediação da palavra poética – que teremos em consideração a presença de Lilith e Eva numa certa leitura do feminino em alguns momentos da poesia de valter hugo mãe, nomeadamente nas duas obras que selecionámos como corpus representativo, a cobrição das filhas e útero. Será importante destacar que Lilith, tal como Eva, não assoma textualmente nesta poesia senão na sua representatividade; por se dirigir, como teremos a ocasião de destacar, a um reservatório do imaginário onde a subversão acompanha a formação do cosmos, reabilitando o caos e a abjeção como forças de especial grandeza na composição de futuros empreendimentos estéticos, a evocação de caraterísticas destas duas figurações da mulher tomando as representações próprias do feminino nos livros citados parece-nos revestir-se de especial pertinência. Partindo assim das dimensões apontadas na evocação do mito de Lilith, começaríamos por destacar em que medida o poder (o foedus na sua acepção etimológica enquanto nome, o pacto ou tratado com vista à conciliação, mas selado por um ato sacrificial) estaria no âmago de uma subversão estética conducente à sua realização adjetiva (apesar de etimologicamente discutível), foedus como o que é abjeto, repelente, indigno, imoral, feio, consequentemente numa linha estética clássica consubstancial ao mal. Poder e liberdade, como fez notar Rüdiger Safranski (2010: 13), têm como preço o mal, cuja origem mítica terá ocorrido logo no Paraíso e, mais espantosamente, surgido a partir do poder da divindade, a declaração máxima do Soberano Bem, que o instaurara num momento anterior ao do pecado original com a proibição sobre a Árvore do Conhecimento. O não, a negação de um acesso cuja transgressão acarreta uma mudança de estado, terá, porém, emancipado o arbítrio do humano na sua dimensão eletiva; o mesmo será reconhecer a secundarização da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal a partir do instante de enunciação do tabu por parte da divindade, dado que as suas palavras contêm as proposições distintivas entre duas atitudes éticas. A nomeação da espécie, a sua singularização entre tantas árvores agradáveis à vista, condiciona o pensamento acerca do bem e o do mal, pelo que o conhecimento pré-queda existiria e deveria conformar-se com o arbítrio da inocência humana. Safranski não assinala Lilith, a outra criatura do Deus oleiro que nas versões apócrifas reconhecera por si uma opção de poder, uma liberdade que teve como consequência um regresso à degradação primitiva da criatura nascida do barro e da imundície. A expulsão do Paraíso como pecado da desobediência corresponde

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também a um afastamento desse Soberano Bem que é transformativo e regressivo quando visto esteticamente no âmbito da distanciação; é por esta via que se torna pertinente recordar o tratamento iconográfico de Eva após a sua saída do Éden nos célebres frescos sistinos de Miguel ngelo (fig. 4), bastante próximos de uma evocação do idealismo neoplatónico do afastamento do Uno, donde provém o ser, o bem e o belo, obras que continuam os frescos florentinos de Masaccio, onde o pranto de Eva desfigura as linhas do seu rosto (fig. 5). No trabalho de Miguel ngelo tem sido reconhecida na serpente a presença de Lilith, o que poderia significar a coexistência de duas versões do mal na mesma composição, a da condenação voluntária de Eva, a quem Deus destina viver no sofrimento da maternidade e da mortalidade mas cujos filhos vão expiando a sua transgressão em busca de uma reaproximação à promessa do estado edénico, e a condenação eterna de Lilith, do mal originário num estado de pureza proveniente, de modo paradoxal, do seu estado primitivo, da imundície. Entre Eva e Lilith, como Deus vaticinara amaldiçoando a serpente, surgirá a incompatibilidade de quem se irmanou através do mesmo criador. As implicações mais simbólicas, no âmbito estético, serão diversas mas em alguns pontos coincidentes, por vezes assimilando-se mutuamente na recriação de uma figuração da mulher como a que vemos assomar em alguns versos de valter hugo mãe, como em útero, parodiando na Anunciação a Eva remida, a maldição bíblica da serpente: trarás a cobra entre as pernas, um sexo extremamente aperfeiçoado, alimentando-se longamente, digerindo a anunciação, fodendo o verbo (Ut 33) A existir um direito ao foedus que assentasse na primazia da origem, Lilith ganha uma clara vantagem sobre Eva por proceder diretamente da divindade. A sua esterilidade, contrária à da Eva maternal, não lhe impede o poder tremendo de atemorizar o homem porque a sua condição é a da paridade com ele. Contrariamente a Eva, cópia inteligível do homem que foi inicialmente ideia perfeita de Deus e através da sua substância, a primeira existência de Lilith é moldada a partir de uma matéria abjeta e informe da terra junto das águas, a mesma figurada no segundo versículo bíblico, um barro impuro que prenuncia os futuros

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tabus judaicos sobre o sangue (Kristeva 1980: 86). Há nesta Lilith inicial uma proveniência cosmogónica marcada pela “podridão matricial” em que o útero impuro é a mesma terra que seria estrato do caos anterior ao génesis; é assinalável que José Gil (2006: 85) tenha relembrado essa relação entre o nascimento do monstro com a “sujidade matricial” do útero materno e, por metonímia, da corrupção moral da mãe. A implicação ao nível estético parece-nos ainda mais determinante quando pensamos na precedência do feio (o foedus) como princípio gerativo, ao contrário da dependência há muito estabelecida em relação ao belo, em aceções reiteradas nos alvores dos estudos sobre esta relação e as conclusões da falta de autonomia do feio relativamente ao seu oposto. Na introdução de Estética do Feio (1853), um dos primeiros tratados sistemáticos sobre o tema escritos no Romantismo, Karl Rosenkanz não lhe admite qualquer hipótese de autonomia do conceito de belo, que constitui a sua condição primeira positiva, sendo o feio a sua negação enquanto existência secundária (Rozenkranz 2004: 51). A argumentação não esconde a sua concordância com Hegel sobre a legitimação do feio na sua dependência dissonante ou de desvio do espetro luminoso do Ideal. A expetativa reside na irrevogabilidade da autoanulação do apelidado Belo Negativo, cuja existência apenas se vê útil e legitimada num combate onde a sua derrota por parte do Belo Positivo é a condição necessária de um processo de consolidação e sublimação de um poder irrevogável: “Dans ce processos, le beau apparaît comme la puissance qui reprend le pouvoir après cette rébellion du laid” (idem, 44). Rosenkranz não quer com isto afirmar que o belo necessita exclusivamente do feio para se afirmar enquanto tal, antes que a existência real do feio (e do mal) deve ser entendida como uma dissonância, uma contradição relativa que apenas confirma a não necessidade de dependência que carateriza o belo (o bem) como um absoluto. O pensamento moderno e pós-moderno, essencialmente questionador perante qualquer tentativa de normalização de conceitos estéticos no domínio da representação, admite para o feio uma autonomia que deriva do processo de reconfiguração da consciência de dependência do ato criador e, não menos importante, de sua receção de várias condicionantes presentes no processo artístico. Nelson Goodman (2006: 63) resumiria pouco pacificamente, em célebre enunciado, a natureza como produto da arte e do discurso, no qual pretendia acentuar a experiência da imagem resultante de operações onde as três componentes referidas mutuamente se provocam. O juízo subjetivo do gosto enunciado

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por Kant, ainda que voltado para a universalidade do belo, processa uma libertação e constituição do feio como categoria dinâmica que constitui um momento particular da arte ao lado da categoria do belo, tal como observou Theodor Adorno na Teoria Estética a propósito da arte moderna e do desejo de nela se instaurar algo qualitativamente novo (Adorno 2006: 60); também Nelson Goodman propunha a dissolução do problema da fealdade dado que “o prazer e a beleza não definem nem medem quer a experiência estética quer a obra de arte. O prazer ou desprazer provocado por um símbolo não determina em geral eficácia cognitiva nem o seu mérito especificamente estético” (idem, 272). O que nos parece relevante, por outro lado, será fazer destacar que a ideia de autonomização estética do feio parece já enunciada numa perspetiva de origo ou base do sensível, consequentemente da natureza (o belo natural kantiano e do romantismo alemão incluído) e do homem, algo a que já aludimos na exposição do mito de Lilith e de Eva. Aceitar esta perspetiva será consequentemente redirecionar a atenção para o fundo mais primitivo das diferentes cosmogonias míticas, coincidentes na alegorização do Caos inicial e na crueldade das relações desordenadas entre os deuses primevos (como na Teogonia, a mutilação genital de Úrano pelo seu filho Cronos através de um estratagema da mãe Geia, eternamente prenha) às hipóteses físicas como a de Empédocles de Agrigento da monstruosidade originária (Kirk e Raven 1979: 28-30). Seguindo de perto ideias pré-socráticas, como as de Empédocles, a hipótese abiogenética de Aristóteles em De Generatione Animalium sobre a possibilidade da geração espontânea de alguns seres de matéria putrefata será ainda recuperada no epicurismo de Lucrécio em De Rerum Natura (II: 172) pela observação da geração das larvas a partir das camadas de húmus apodrecidas pelas chuvadas. Há deste modo um momento em que a abjeção se constituiu como princípio gerador do sensível mesmo antes do aprofundamento estético que veio a conceder ao belo o destaque que lhe conhecemos, um instante que se dirige ao corpo originário, na sua natureza impura, ainda não inflada de alma, uma natureza maternal que, como Geia, revolve nas suas entranhas os futuros seres, imagem infernal e centrípeta também presente em útero: incido como um alvo nas almas oferecidas, meu útero sísmico medindo o abalo das matérias vivas, apodreço-as no hálito, já convulsa no estômago a gestão dos

corpos, e o silêncio em busca da memória de como se puseram a gritar (Ut 15) Neste como noutros momentos da poesia de valter hugo mãe, compreendemos até que ponto a sua reflexão se adequa a uma memória simbólica do primitivo que se coloca no ponto de interceção entre as duas abordagens descritas por Julia Kristeva em Pouvoirs de L’horreur acerca do abjeto: por um lado, conforme aos estados próximos do território do animal ou da animalidade, representantes da morte e do sexo, do qual o homem arcaico se pretenderia defender; por outro, numa versão freudiana de que a primeira formulação também é devedora, a busca pessoal de demarcação da entidade materna através da autonomia da linguagem (Kristeva 1980: 20), pelo que o abjeto seria também o objeto do recalcamento originário, entendido este último como “la capacité de l’être parlant, toujours déjà habité par l’Autre, de diviser, rejeter, répeter” (ibid.). Em ambas as circunstâncias, o abjeto integra-se na categoria da instabilidade do sensível enquanto corpo e enquanto linguagem na linha extraordinariamente tensa dos limites entre a vontade de poder e a fronteira do interdito. O foedus é neste campo um pacto que só fará sentido se a perspetiva da sua transgressão for um fim e não uma instauração da ordo, tal como a Árvore da Ciência do Bem e do Mal, como já tivemos a ocasião de enunciar, serviu para assinalar a génese do pecado antes mesmo do primeiro ato. A abjeção e a reinstauração estética do feio podem ser lidas nestas obras a par da rejeição ou resistência através da linguagem da omnipresença e dependência em relação ao belo e ainda do regresso tornado simbolicamente possível à fundação do ato comunicativo e a uma matriz estética primeira que poderá corresponder à instância do sublime. Esse regresso seria estabelecido ao momento da violência indistinta de que fala Maurice Blanchot em A Besta de Lascaux, fundador da comunicação e baseado nos movimentos dissonantes da obra que se faz poder, que se encerra na forma e que deseja a impossibilidade e o ilimitado: “a obra como começo e a origem a partir da qual não há nunca obra, onde reina o «désoeuvrement» eterno” (Blanchot 2003: 37). A instabilidade originária afeta o discurso e abala todos os vocabulários e códigos habituais subvertendo no limite e o próprio limite, oferecido aos textos de valter hugo mãe na observação animalesca das mulheres viúvas e mães - “existimos / como simples emanação / dos

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animais” (CF 21) - e de suas filhas, “instintivas no seu papel / como o estrume que o campo come” (CF 65). Eva, a mãe da Humanidade mas também “a porta do diabo, aquela que tocou a árvore proibida” (Tertuliano 1974: 38) e suas filhas pretendem vingar o direito primevo de Lilith com a exibição em a cobrição das filhas de um excesso procriador e de maternidade como mácula-medalha a ostentar, destituída dos topoi habituais, orientando-se numa relação hereditária do foedus que se desenvolve a partir das viúvas, “poços da imagem”, marcos orientadores da profundidade ou cimos perscrutadores dos espaços mais arcaicos, até às filhas e à sua existência animalesca, enganosamente submissa. A condição das viúvas é a da imobilidade, a da espera silenciosa da Morte e a degradação do corpo-quotidiano que pactua com os crimes e a violação dos tabus da descendência: mijam-nos as filhas, ainda que cresçamos como crostas em redor das suas peles, enterramos os netos no quintal e adiamos-lhes as almas, recebemo-los anos mais tarde, perdoadas e tombadas no chão a partir das filhas desparasitadas (CF 28) O horror impõe-se nestes poemas ao expor os corpos das mães a um tratamento de irremediável mácula a que se acrescenta a alusão ao interdito, presente noutros poemas (cf. CF 71) e servindo de introito à segunda sequência de poemas da obra, dedicada às filhas, por sua vez circularmente apelando à continuidade da abominação quando sobre elas recai o degrau da maternidade. Julia Kristeva (1980: 87) reportaria a este corpo próprio um sentido de autoridade precisamente por constituir uma referência quanto à diferenciação fálica do masculino, mas sobretudo por nele melhor se exercer a topografia das frustrações e dos interditos, o que significará fazer dele, na ótica do duplo, um repositório de linguagem e de simbolização. A violência nele exercida ou a corrupção a que se sujeita adequam-se a atentados contra a superfície e seus limites numa perspetiva de contínua encenação das condições pré-verbais do ato fundacional do humano, o tempo sacro da descontinuidade. Neste díptico, um Éden de lamas simbólico cujas margens se compõem enganadoramente dos índices de domesticidade da mulher, o poder é parte instável da relação agressiva com o homem, ameaçado do “désouvrement” mercê da

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terribilidade do poder feminino, que Julia Kristeva caraterizaria como “asymétrique, irrationelle, rusée, incontrôlable” (idem, 85), o mesmo poder devido a Lilith antes do seu exílio que as filhas pretendem instintivamente retomar: mergulham à proa do beijo, o corpo deles a mutilar o delas como um animal aflito, elas estreitas na cama, apenas um punhado de víveres, o sangue a iluminar os lençóis e as mãos escavadas no peito, elas malignas, cheias de graça (CF 54) Há nestas mulheres uma vocação para o sagrado não apenas no apelo direto a uma versão mítica da existência próxima da irracionalidade ou na subversão da fórmula cristã do mistério da maternidade dos versos finais anteriores, mas sobretudo no ato subversivo em si. A existência aparentemente submissa à vontade não afasta o narcisismo de uma dimensão superior e que, no devir-animal que revelam, estabelecem com o mistério da criação a analogia da Terra corrupta, abjeta, porém geradora de vida, e a da maternidade semelhante à corrupção do húmus, destituída de glorificação, júbilo ou beleza, o mesmo ambiente que abriga a semente mas também a serpente: e eles são larvas alojadas no sexo ocre que elas trazem, a devorar-lhes o miolo para volverem os predadores meticulosamente criados à medida do medo delas (CF 56) ou inundadas de sémen fervido de ódio, uma degeneração que as procura avidamente, como um filho demoníaco que as possa chamar, e se os filhos as chamam a partir do ventre, enlouquecem grandes, já elas pouco discretos ninhos de víboras (CF 68)

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O estatuto das filhas é, em certa medida, semelhante à metamorfose da mulher em cabra do poema de Luiza Neto Jorge e este estatuto reatualiza-a na vontade de pura existência animal e sacrificial, por oferecer a sua carne ao repasto da vida como nos antigos mitos cosmogónicos, mas anunciando em simultâneo a contrapartida violenta que faz parte da sua natureza altamente transgressora e, por conseguinte, sagrada; o seu corpo maternal invadido, devorado, escavado e perfurado guarda atrás de si a torrente de crimes, de atos cortantes e furiosos, de cabeças humanas cortadas em grotesca procissão epifânica como na fantasmagoria onírica do expressionista Alfred Kubin intitulada “A Nossa Mãe Universal, a Terra” (1901-2) (fig. 6). Esta visão aproxima a abjeção do sublime pelo lado mais terrível e sagrado do crime, do homicídio perpetrado durante o sono à maneira de certas heroínas bíblicas: límpidas de dor, velhas deles, matam-nos assim que adormecem, servem-se do machado e não os deixam muito tempo no sono, não vão sonhar que agarram a arma antes que elas o façam, e afirmam que os lamentam, esmagados, elas aos gritos (CF 72) O sublime corresponde nestes versos à exigência de abertura à memória da vingança ou do desencontro das sensações em estado puro que se resumem à vocalização (o grito), a forma-eco do fundo dos poços que reporta à anterioridade da linguagem ou que, reatualizado, sugere a sua coexistência. No transporte pelo poço da memória da linguagem que atinge, como afirmaria Julia Kristeva, a possibilidade de nomear o pré-nominal ou o pré-objetal, estaria um dos fundamentos desta sublimação (idem, 19), de que a linguagem do abjeto surge como sintoma, revestimento ou promessa de abertura ao turbilhão das sensações. Já o tempo do terror evocado na sua dimensão primitiva adequa-se à visão criadora do foedus e do sublime que Edmund Burke em A Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and the Beautiful, quanto à ideia de terror, concebia na dependência de ideias como a dor ou o perigo (Burke 2008: VII, 36) todas as emoções mais fortes que a mente pudesse suportar e geradoras de prazer (delight) e não a gratuitidade de qualquer experiência que visasse a dor apenas por si, dado que o princípio fundamental do sublime residiria

na sua combinação com o espanto ou admiração, um par-mínimo que Burke terá encontrado numa breve análise dos significados do termo em outras línguas (idem, 54). Nos poemas de valter hugo mãe, a associação da abjeção à crueza espantosa de imagens que propõem uma domesticidade simbolicamente codificadas na sua exterioridade (a mesa, o lar, a refeição familiar, a cumplicidade maternal) reenvia para a instabilização destes códigos e do corpo próprio, detendo-se o sublime nos momentos em que é proposta a celebração do resto (o corpo da mulher como resíduo) e o impuro (os interditos relacionados com o sangue): sempre como bichos, os cabelos na sopa coçados de sujos, elas e os filhos à mesa, bocas desprovidas umas das outras, e eles avisam que o tempo virá mais tarde, convictos, elas já restos da refeição, por vezes nem bichos, os filhos tortos do diabo latindo casa fora (CF 61) contam às filhas histórias secretas sobre as suas coninhas, não as ajudam a limpar o sangue do corpo, fumam com papel higiénico na mão (CF 70) Em relação aos tópicos anteriores, Julia Kristeva fazia notar a ambiguidade que percorre os restos, entre a poluição suscitada pela sua incompletude e a potência do ressurgimento, do recomeço, de um novo horizonte cosmogónico, e o valor de tabu do sangue menstrual, que interpreta no sentido da identidade e de um sinal de perigo proveniente do seu interior, significado instabilizado quando concebido na perspetiva de uma atribuição sacrificial do sangue a Deus (a carne sem sangue, biblicamente, é oferecida ao homem) e o derramamento feminino como promessa de fertilidade (idem, 115-116). Na adoção desta ambiguidade confrontamo-nos com o esvaziamento de uma conceção fechada do feminino, a quem é possível atribuir a sacralidade do que é impuro e proibido e a capacidade geradora da linhagem pela linguagem da abjeção. Na perspetiva de Burke, a linguagem é tão capaz de incitar o sublime como os objetos a que se reportam não apenas por ter a capacidade de despertar imagens

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na memória mas ainda emoções ou um estado específico de ânimo, tornando-se mais interventiva e dinâmica e distanciando-se das tentativas anteriores que o reconheciam como um resultado específico de uma articulação estética com codificações retóricas, como em Longino ou Boileau (Heleno 2001: 97). A linguagem age neste sentido como um detonador, objeto de deflagração que aponta nas várias direções da contingência, categoria que faz parte da natureza do sublime, entre a volatilidade dos estados mentais, o prazer e o não-racional (Kirwan 2005: 159). Também o mecanismo explosivo do corpo da fêmea - em útero, elas “parem / os filhos em canhão” (Ut 26), em a cobrição das filhas “expelem os filhos / como fumo em que / sufocam” (CF 67) – coloca-se em alternativa (ou no degrau mais elevado da roda) à ameaça de emudecimento das mães “arremessamos o tempo ao corpo e / ameaçamos emudecer” (CF 21) - e ao progressivo esvaimento da palavra, na contemplação da violência de um mundo que geraram e sobre o qual as filhas vêm exercer o seu direito. Nesta circularidade – “um círculo que se fecha / entre bocas espelhadas, perfeitas, / agressivas com as outras / como se tivéssemos tudo” (CF 23) –, o caminho para o infinito, na sua negatividade essencial ao nível estético, dirige-se retrospetivamente para uma memória utópica que o final de a cobrição das filhas recupera não no sentido de um regresso ao Éden (espaço vazio do humano desde o pecado original, onde ainda se possam manter os animais originalmente criados) mas à fronteira entre os mundos, onde a avidez explosiva da maternidade danada é substituída pela lentidão, pelo espanto: caminham sobre a terra rápida e, quando morrem são anjos em eterna muda de penas, feitas só pássaros sem bico, engolidas por grande morte depois de tão pequena vida, assistem ao céu, pasmadas numa lentidão eterna (CF 73) Esta poetização do regresso, moralmente contraditório quando pensado do ponto de vista do belo platónico ao acentuar uma redenção sem castigo e subversiva quanto à relação idealizada com o bem, não deverá, todavia, ser univocamente entendida do ponto de vista de uma eterização ou

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recompensa do sofrimento terreno do humano, uma purga na saison do Paraíso da herança abominável de Lilith e Eva. Na verdade, a metamorfose da mulher-cabra na instabilidade de um “anjo em eterna muda de penas”, a par das imediatas sugestões simbólicas - os bestiários medievais concordavam que o pássaro era ave inconstante e instável, representando os mesmos estados da mente (cf. Folieto 1999: 95) -, não lhe retira a sua substância animal de pássaro sem bico, definitivamente comprometido com o silêncio numa organização de pura substância em que o aturdimento que suscitaria, segundo Agamben em O Aberto, uma caraterística da animalidade (Agamben 2011, 73). Assim, “parvas, sempre de boca aberta de / onde as moscas se desviam” (CF 74), as filhas metamorfoseadas contemplam uma relação instintiva com o mundo que, porém, não implica uma imediata cessação da sua natureza humana, porque tal como o novo espaço por onde vogam é intermédio, a sua nova substância deve ser situada em parte fora do ser mas ainda nas potencialidades do ser. Poeticamente, o fechamento instintivo como animal não pode ser totalmente conseguido por se encontrar enredado na memória arquetípica de um corpo, do desejo, do desequilíbrio das paixões. O mesmo será dizer que a animalidade destas mulheres não se aparta de um género de conhecimento, tal como os companheiros de Ulisses, quando metamorfoseados em porcos, conservaram o seu entendimento (o nous), que “permaneceu como era” enquanto choravam encurralados nos domínios de Circe (Odisseia, X, 240). Na inocência do Paraíso teriam ficado os animais nomeados por Adão. O regresso foi vedado sucessivamente a Lilith, a Eva, às filhas transformadas em anjos emplumados e a outras figurações presentes na obra de valter hugo mãe, entre a prosa e a poesia. Para estas, não houve outro abrigo suficiente do que a mancha contaminante da palavra poética, criadora de mundos a partir do nada, tal como Deus, cujo espírito inicialmente pairava sobre as águas, terá criado o mundo a partir do nada. Na detonação do sublime a partir do abjeto afigura-se um desses barros regeneradores do mal que para a arte, de acordo com Safranski (idem, 200), vem do seu mistério criador cujo dote é o mesmo nada. Para as filhas como para os leitores ou para esse Deus inicial, o foedus destes poemas persistirá enquanto estas palavras se elevarem “só pulmões cheios, máquinas de pairar, alegres imprecisões ao alto” (Mãe 2006, 28).

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Bibliografia Consultada Bibliografia Ativa Mãe, valter hugo (2002) a cobrição das filhas, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições. -- (2003) útero, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições.

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Rosenkranz, Karl (2004) Esthétique du laid, trad. Sibylle Muller, Paris, Éditions Circé [1853]. Safranski, Rüdiger (2010) El Mal o el drama de la libertad, trad. Raúl Gabás, 2ª ed., Barcelona, Tusquets Editores [1997]. Tertuliano (1974) A Moda Feminina. Os Espectáculos, trad. Fernando Melro e João Maia. Lisboa: Verbo. Zohar (Le Livre de la Splendeur), trad. Jean de Pauly, Paris, Éditions G.P. Maisonneuve et Larose, 1975. OBRAS DE REFERÊNCIA Ernout, A.; Meillet, A. (1967) Dictionnaire Étimologique de la Langue Latine, 4ª ed. Paris, Librairie C. Klincksieck [1932]. Machado, José Pedro (1977) Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 3ª ed., Lisboa, Livros Horizonte [1952]. Sykes, Egerton (1965) (comp.) Everyman’s Dictionary of Non-Classical Mythology, London, J.M. Dent & Sons Ltd. ESTUDOS ONLINE CONSULTADOS Ceia, Carlos, verbete “Hapax Legomenon”, in E-Dicionário de Termos Literários, http:// www.edtl.com.pt/index.php?option=com_ mtree&task=viewlink&link_id=228&Itemid=2, consulta a 12 de maio de 2012. Gomes, Antônio Maspoli de Araújo e Almeida, Vanessa Ponstinnicoff de (2007) “O mito de Lilith e a Integração do Feminino na Sociedade Contemporânea” in ncora – revista digital de estudos em religião, vol. II, http://www.revistaancora.com.br/revista_2/01.pdf , consulta a 11 de maio de 2012. “Hapax Legomena”, in http://www.jewishencyclopedia.com/articles/7236, consulta a 12 de maio de 2012. Miranda, José A. Bragança de (2007) “A segunda metade da arte”, in Jornal de Letras, outubro, http:// www.rae.com.pt/jbm_feio.htm , consulta a 2 de maio de 2012. PROVENIÊNCIA DAS FIGURAS Fig. 1 - http://patricknicholas.files.wordpress. com/2010/11/800px-lilith-filippino_lippi-_adam.jpg Fig. 2 – Cirlot, Juan Eduardo (2000) Dicionário de

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Símbolos, trad. Carlos Brito, Lisboa, Publicações Dom Quixote, p. 229. Fig. 3 – http://24.media.tumblr.com/tumblr_lelcxvwuwj1qc75c4o1_500.jpg Fig. 4 – Néret, Gilles (2000) Miguel ngelo, trad. Fernando Tomás, Colónia, Taschen, pp. 34-35. Fig. 5 – http://www.infopedia.pt/mostra_imagem. jsp?recid=7269 Fig. 6 - http://www.all-art.org/symbolism/5-germany03.htm

FIGURAS

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Figura 1 – “Adão e Lilith”, Filippino Lippi (capela Strozzi, Santa Maria Novella, Florença, 1502)

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Figura 2 – Eva e Lilith, gravura alemã (1470).

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Figura 3 – “Lilith”, HR Giger (1976)

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Figura 6 – “Our Universal Mother, the Earth”, Alfred Kubin (1901-2)

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Figura 5 –“A Expulsão do Paraíso”, Masaccio (capela Brancacci, Florença, séc. XV)

Figura 4 – “O Pecado Original”, Miguel ngelo (capela Sistina, Vaticano, 1509-10)

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Miguel Esteves Cardoso, O Cronista Apaixonado Maria Filomena Barradas IPP/Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Portalegre (Portugal)

Resumo: Conhecido sobretudo como analista perspicaz e acutilante do Portugal contemporâneo, Miguel Esteves Cardoso é também um cronista apaixonado pelas mulheres. Embora os exemplos mais recentes de tal devoção se encontrem nas crónicas dedicadas à sua mulher, Maria João, que vêm sendo publicadas na sua coluna do Público, muitos outros exemplos há desta dedicação à figura feminina. Revisitando algumas crónicas publicadas n’O Independente, bem como outras recolhidas nos volumes A Causa das Coisas, Os Meus Problemas, As Minhas Aventuras na República Portuguesa e Último Volume e tendo ainda em conta os romances O Cemitério de Raparigas, A Vida Inteira e O Amor é Fodido, o presente artigo pretende apresentar uma face pouco evidenciada de Esteves Cardoso: a de autor reverente e sensível para com a figura feminina, num cenário de mudança social e de alteração dos papéis tradicionalmente imputados à mulher portuguesa. 229

Apresentação Em 2009, Miguel Esteves Cardoso começou a escrever com regularidade no Público. Para muitos, tratava-se do regresso do observador atento de Portugal e dos portugueses, que durante as últimas décadas nos cartografara, de forma perspicaz e acutilante, nas suas crónicas publicadas em jornais, como os semanários Expresso e O Independente e que se popularizaram, graças à reunião de boa parte desses textos em livros como A Causa das Coisas, Os Meus Problemas, As Minhas Aventuras na República Portuguesa, Último Volume, Explicações de Português e, mais recentemente, A Minha Andorinha, Com os Copos e Em Portugal não se Come Mal. Também o advento da internet, ao potenciar a circulação alargada de alguns destas crónicas ou seus excertos, permitiu que alguns destes textos se tornassem conhecidos e alvo da estima pública, especialmente junto de leitores mais jovens. Desde logo, as crónicas do Público são (normalmente) bastante mais curtas do que aquelas a que os leitores de Esteves Cardoso se tinham habituado. No entanto, a secção “Ainda ontem” acolhe textos que, com frequência incidem na própria vida privada do cronista: um livro que leu; um prato saboreado num restaurante; aspectos do quotidiano,

na companhia da sua mulher, Maria João, e da luta diária desta contra o cancro. Na verdade, a expressão do afecto em relação à mulher amada constitui, actualmente, a face mais visível da relação de Miguel Esteves Cardoso com o feminino. Porém, o interesse de Esteves Cardoso pela mulher e pelo feminino transcende largamente esse aspecto e, como se verá, é um assunto constantemente presente nas suas crónicas. Tendo como corpus as suas colectâneas de crónicas mais antigas (A Causa das Coisas, Os Meus Problemas, As Minhas Aventuras na República Portuguesa e Último Volume) e as crónicas saídas no Público desde 2009, quando se iniciou a colaboração regular com o diário, até Abril de 2012, veremos como a devoção de Esteves Cardoso à(s) mulher(es) o tornam num cronista apaixonado. 1. Mulheres vs. Homens No decurso dos anos oitenta do século XX, a sociedade portuguesa conhecia, finalmente, a normalização democrática. A entrada na CEE (1986) marcava um ponto de viragem na história nacional, já que a nação tinha deixado para trás o seu passado ultramarino e participava, agora, numa realidade multinacional e continental, forjada no pós- II

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Guerra Mundial. De acordo com Ramos (2009), dois momentos marcam a constituição do Portugal contemporâneo. Em primeiro lugar, o Liberalismo, que pôs fim ao Antigo Regime e permitiu a emergência das estruturas políticas e do Estado tal como as conhecemos hoje. O segundo momento foi o fim da II Guerra Mundial, a que correspondeu uma mudança económica, social e de mentalidades, que em Portugal ocorreram mais tarde e a um ritmo mais rápido do que aquele verificado noutros países. De facto, em menos de um século, Portugal deixou de ser uma sociedade predominantemente rural para dar lugar a uma sociedade de tipo urbano. A população, que outrora se ocupava na agricultura, abandonou os campos e fixou-se na faixa litoral do país, trabalhando maioritariamente no sector dos serviços1. No final do século XX, os portugueses dispunham de recursos a que as gerações anteriores jamais tinham tido acesso, em termos de alimentação, alojamento, saúde, instrução, comércio e lazer, entre outros aspectos. Consequentemente, a população nacional mudou: a esperança média de vida aumentou; a taxa de mortalidade infantil desceu muitíssimo; o número de nascimentos desceu; a escolaridade alargou-se; a estrutura familiar sofreu alterações, devido ao menor número de casamentos, aumento dos divórcios e crescimento das famílias monoparentais. Naturalmente, neste cenário de mudanças, também a situação da mulher se alterou: em 1995, 50% da mão-de-obra activa era feminina e as mulheres excediam já o número de homens na função pública e na frequência do ensino universitário. Ao mesmo tempo, a lei tinha promovido a igualdade de género, estabelecido a paridade entre homem e mulher no casamento, permitido que as mulheres acedessem a carreiras antes exclusivamente masculinas, como a magistratura, e determinado que os partidos políticos reservassem às mulheres uma percentagem de lugares nas suas listas de candidatos. Ora, enquanto cronista de um Portugal em mudança, Miguel Esteves Cardoso não podia deixar de ser sensível aos novos papéis sociais que as mulheres (e também os homens) iam assumindo. Em “Menino/ Menina” (Cardoso, 2009 [1986]:176178), o autor espanta-se perante o mundo moderno que tende a uniformizar tudo, anulando aquelas 1 De acordo com Ramos (2009), em 2001, 58% da população trabalhava no sector dos serviços, 30% na indústria e 12% na agricultura. Um século antes, a agricultura era o primeiro sector de actividade, com 64% da população activa. Neste cenário, convém referir que, em Portugal, a indústria nunca representou o sector com maior número de população activa, ao contrário do que sucedeu noutros países.

que eram as diferenças que organizavam a experiência: “Até os homens e as mulheres se vão assemelhando, encorajados pelos “media”. Primeiro foi a moda “unissexo”, permitindo às mulheres poderem vestir-se com roupa de homem. Aqui nada de mal (…). O pior veio depois. Nos anos 80, graças a Gaultier e outros, os homens começam a usar saias, a “androginia” transforma-se num bem desejável e tudo o que seja confusão intersexual é considerado altamente interessante” (Cardoso, 2009 [1986]:176). Como conservador que é, podia pensar-se que Esteves Cardoso se opunha aos novos papéis assumidos pela mulher; no entanto, ao criticar a crescente androginia, o autor não está a condenar o facto de as mulheres desejarem “ser tão pessoas como os homens”, mas espera que, uma vez alcançado esse objectivo, as mulheres possam “outra vez dar-se ao luxo de ser mulheres”: “É precisamente a igualdade de direitos e de oportunidades de homens e mulheres (quando for alcançada) que permitirá voltar às antigas diferenças (…). A diferença existe e tem de viver. Resistir à uniformidade é lutar pela identidade. Quanto mais diferente, melhor” (Cardoso, 2009 [1986]:178). Em “A libertação dos maridos” (Cardoso, 2001 [1988]:31-38), Esteves Cardoso polemiza sobre o feminismo e os seus efeitos, ao afirmar que: “No fundo, o feminismo é uma espécie superior de ronha que as mulheres aprenderam a fazer para não fazer nenhum (…). A verdade é que estas mulheres tornaram-se feministas só para ocultar aos homens e às outras mulheres o facto de serem péssimas donas de casa” (Cardoso, 2001 [1988]:31). Porém, logo se emenda: afinal tudo não passava de uma brincadeira e as mudanças no papel da mulher são totalmente justificáveis, ainda que comprometam o estilo de vida a que os homens estavam habituados. Ou seja, a libertação feminina e o assumir de novos papéis sociais não têm implicações apenas na vida das mulheres, uma vez que tais mudanças afectam também os homens, corroendo os modelos e normas da existência que, durante séculos, se foram sedimentando. Como as “mulheres têm a razão do lado delas”, os homens são obrigados a adaptar-se às novas circunstân-

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cias, através da “resistência elegante”, que “Consiste em saber que não temos hipótese de manter os privilégios tradicionais e que a igualdade das mulheres tinha de chegar mais tarde ou mais cedo. No fundo, o que é preciso é saber perder (…). Quando as mulheres conquistam o direito de alternar com os homens na lavagem da louça, dizem que é “uma vitória de todos nós”, que “a luta é só uma” e que “venceu, sobretudo, a dignidade humana”. Mas não. Quem tem vencido são as mulheres e quem tem perdido são os homens, que passam a puxar pelo Sonasol às segundas, quartas e sextas” (Cardoso, 2001 [1988]:33). Uma das maneiras mais astutas que os homens encontraram para manter os seus privilégios é fingir que não têm “jeitinho nenhum para as coisas que não apetece fazer”, cultivando a figura de “urso simpático”, que atrapalha ao querer ajudar, sendo que as suas acções disparatadas acabam por divertir e enternecer a(s) mulher(es). Na realidade, ao escolherem esse tipo de comportamento, os homens estão a ir ao encontro de um certo estereótipo existente na mente feminina, porque, como diz Esteves Cardoso: “As mulheres portuguesas olham quase sempre para os homens de que gostam de uma superioridade moral, espiritual e técnica. Os homens são animaizinhos ou filhinhos, um pouco ineptos mas enternecedores, carinhas carentes que apetece beliscar. Em Portugal, o homem é o animal doméstico da mulher” (Cardoso, 2001 [1988]:34). Esta atitude acaba por redundar numa forma (injusta) de manipulação das mulheres, em parte explicável pelas próprias atitudes femininas, já que são elas mesmas que tendem a impor os seus modelos e padrões aos homens, impedindo-os de desenvolverem as suas próprias competências e de se aperfeiçoarem nas áreas que não faziam tradicionalmente parte das suas obrigações domésticas. No fundo, aquilo que Esteves Cardoso defende é que nem a mulher se deve submeter ao homem, nem o homem se deve submeter à mulher. Ora, isso implica “o respeito mútuo, o espírito de colaboração e o saber partilhar as maçadas rotineiras da vida quotidiana” (p. 38). As eventuais discordâncias mais não serão do que um sinal do “debate vivo”, que deve reger as várias situações quotidianas e que é aplicação do princípio de “concordar em discordar”, norma inglesa que em vários momentos Miguel Esteves Cardoso evoca como baliza

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da civilidade dos comportamentos. Em “A aventura das mulheres” (Cardoso, 1995 [1990]:35-38), Miguel Esteves Cardoso faz a apologia da necessidade do feminismo, tendo como ponto de partida a reflexão em torno do fim da revista Mulheres, dirigida pela poetisa Maria Teresa Horta. Embora Esteves Cardoso afirme ter sido “ofendido, enxovalhado e caluniado nas suas páginas, como machista, reaccionário, analfabeto, misógino e outras coisas péssimas”, não deixa de considerar a acção da revista relevante, porque só através do feminismo é possível devolver a dignidade e a humanidade às mulheres, acabando com os maus tratos de que são alvo e que, do ponto de vista do autor, só podem ser explicados porque as mulheres são melhores do que os homens. A existir uma guerra dos sexos, ela só é aceitável no pressuposto da igualdade entre homem e mulher. Assim: “Nós, os supostos machistas portugueses, devíamos ser os maiores lutadores pela emancipação e igualdade da mulher. Só em condições de igualdade é que tem graça fingirmos que somos superiores. De resto, apenas as bestas tiram prazer só do facto de estar por cima de quem está por baixo. O que é o caso. Infelizmente. É que os homens portugueses, cheios de peneiras e meduncho, nem machistas merecem ser” (Cardoso, 1995 [1990]:38). Neste reconhecimento da superioridade feminina, destaquemos, finalmente, a crónica “Antes as mulheres”, publicada justamente no Dia Internacional da Mulher, 8 de Março de 2009, no Público: “Só quando os homens chegam a uma certa idade é que podem dizer com certeza que as mulheres são melhores do que eles em tudo – mesmo na bola, a carregar pianos, a lutar com jacarés, ou nas outras coisas em que ganhávamos quando éramos mais novos e brutos e fortes (…). As mulheres são melhores e estão fartas de sabê-lo. Mas, como os gatos, sabem que ganham mais em esconder a superioridade.”

2. Mulheres apaixonantes Num mundo em que as mulheres se afirmam de forma cada vez mais veemente, também as relações afectivas passam por transformações. À dificuldade de dizer o amor em português2, opõe-se a 2 Na crónica intitulada “Amor” e que pode ser lida em A Causa das Coisas, Miguel Esteves Cardoso dá-nos as suas impressões sobre como é vivido e, sobretudo, expresso o amor em Portugal. Assim, os portugueses evitam

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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

atitude de uma leitora pragmática, por cujo anúncio publicado n’O Independente Miguel Esteves Cardoso se congratulava na crónica “A aventura da mãe solteira” (Cardoso, 1995 [1990]:55-58). Dizia o anúncio: “PROCURO RAPAZ NOVO com emprego, carro, Faro, Olhão, arredores. Queira casar rápido. Sou mãe solteira. Foto recente.” (Cardoso, 1995 [1990]:55) Do ponto de vista do autor, tratava-se da afirmação de uma nova forma de entender o relacionamento amoroso. Através do seu anúncio, a leitora manifestava uma atitude positiva e proactiva, ao estabelecer o claro objectivo de procurar um marido, porque “Um marido procura-se. Não se espera. Um marido não faz parte do mundo natural. É obra da mulher. Os príncipes encantados não estão à espera de si ao virar da esquina. Têm de se desencantar (…). O casamento é um contrato importante e não faz sentido selecionar um marido com menos rigor do que se escolhe um empregado” (Cardoso, 1995 [1990]:56). 232

Esta concepção parece querer contrariar a concepção romântica (e ocidental) do amor, tal como Denis de Rougemont a estudou. Analisando o mito de Tristão e Isolda, Rougemont assinala como esta história medieval prevaleceu no imaginário amoroso ocidental: é a ideia de amor mágico, idealizado, concebido como fatalidade e destino, que é “mais forte e mais verdadeiro do que a felicidade, a sociedade e a moral” (Rougemont, 1999:20). Este ideário, como veremos a seguir, está também presente nos textos de Miguel Esteves Cardoso. Trata-se de um amor que se compraz na sua própria natureza ambígua, entre a perdição e a salvação, que é experiência totalizante e totalitária, capaz de condensar e conciliar opostos. É este amor que encontramos numa das mais famosas crónicas de Miguel Esteves Cardoso, “Em nome do amor puro” (Cardoso, 2001 [1991]:75-77)3: empregar o verbo “amar”, preferindo dizer que “estão apaixonados; a palavra “amante” tem uma conotação negativa; “amoroso” significa “qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro ou giríssimo”; “amável” e “amado” são pouco usados; “um amor” pode “dizer-se indistintamente de escovas de dentes, contínuos que trazem os cafés a horas, ou casinhas de emigrantes”; o termo “amigas” é um eufemismo frequente para “namoradas”. Porém, esta forma de se exprimir tem apenas lugar em público e contrasta fortemente com a expressão sentimental em privado, que é marcada pelo exagero e exacerbamento amoroso. Esteves Cardoso conclui: “A retracção épica a que os portugueses se forçam no uso próprio das palavras do amor, quando o contexto é minimamente público, parece atirá-los ilogicamente, para uma confrangedora catarse de lamechices cada vez que se encontram a sós com quem amam” 3 Inicialmente publicada sob o título “Para Júlia Wolff, em nome do amor

“Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há (…). Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza o medo, o desequilíbrio, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá lá um jeitinho” sentimental (…) Amor é amor. É essa a beleza. É esse o perigo (…). O nosso amor é para nos amar. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição (…). O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade (…). O amor é mais bonito do que a vida. A vida que se lixe.” Este amor intenso, cuja natureza é, por vezes, elusiva e contrária, exige declaração e demonstração. Para o pobre apaixonado, isso nem sempre é tarefa fácil, já que cada vez que alguém se apaixona é como que um regresso àquele primeiro amor que se viveu na adolescência, experienciado como “o único amor, o máximo amor”, o amor “que ocupa o amor todo”4. No entanto, a vivência amorosa não se esgota aqui. Seguem-se “amores maiores, amores melhores, amores mais bem pensados e apaixonadamente vividos. Há amores mais duradouros”5 – há amores mais felizes, poder-se-ia acrescentar. Talvez por isso, Miguel Esteves Cardoso não se envergonhe de convocar para os seus textos as mulheres que amou e que ama. Por exemplo, Susana, a quem é dedicado o texto “Quando estiveres velha e grisalha e cheia de sono”, publicada no Caderno 3 de O Independente, em 16 de Abril puro”, no Caderno 3 de O Independente, de 12 de Outubro de 1990, a crónica mudará de título na passagem para o livro, perdendo a menção dedicatória que incorporava e passando a “Em nome do amor puro”. Uma simples pesquisa na internet demonstrará o elevado número de blogs e sites que reproduzem o texto, dando-o, erradamente, como proveniente do semanário Expresso. 4 Cardoso, 2001 [1988]: 163. 5 Idem

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de 1994. Trata-se de uma tradução do poema de Yeats “When You Are Old”, datado de 1892, e que em nota é identificado como tendo sido “[t]raduzido por Miguel Vicente Esteves Cardoso para a Susana Maria Silva Brás, que faz vinte e seis anos depois de amanhã”. Ora, esta Susana é a mesma a quem são dedicadas as colectâneas de crónicas As Minhas Aventuras na República Portuguesa e Último Volume e os romances O Amor é Fodido, A Vida Inteira e O Cemitério de Raparigas, e que já antes fora homenageada com “Aedh sonha com as sedas do céu” (O Independente, Caderno 3, 18/12/1992), tradução de “Aedh wishes for the Cloths of Heaven”, outro poema de Yeats, extraído de The Wind Among the Reeds (1899). Mas nem sempre os amores felizes duram para sempre. Susana já não é o amor de Miguel Esteves Cardoso; esse amor escreve-se agora Maria João e a sua história tem sido feita no Público. Dando conta do estado de saúde da mulher, da sua luta contra o cancro, das idas ao IPO, dos tratamentos realizados e das melhoras alcançadas, Esteves Cardoso faz a crónica do seu amor e conta, inclusivamente, como os dois se conheceram e apaixonaram: “Apaixonamo-nos em 1996, mal nos conhecemos. Casámos no dia 30 de Setembro de 2000. Já vivíamos um com o outro desde 1 de Janeiro desse ano, logo a seguir à primeira noite em que dormimos juntos (…)”6. Na crónica “Um segredo de um casamento feliz” (Pública, 24/10/2010), o autor exprime a sua ambição de “revelar os segredos de um casamento feliz”. Porém, constata que aquilo que poderia dizer tem um escopo limitado, sendo apenas aplicável ao seu casamento com Maria João. Assim, as suas convicções acabam por ser uma reflexão sobre o seu casamento em particular, podendo não ser universais: “O casamento feliz não é nem um contrato nem uma relação (…). É uma criação. É criado por duas pessoas que se amam. O nosso casamento é um filho (…). Não basta que os casados se amem um ao outro. Têm também de amar o casamento que criaram (…)”. O casamento feliz, no entanto, não é aquele onde impera a total concordância entre parceiros, pois “é preciso haver arenas designadas onde pos-

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samos marrar uns com os outros à vontade”. Trata-se de uma conflitualidade que nasce do próprio facto de marido e mulher serem dois indivíduos autónomos, com ideias e valores próprios, que expressam os seus sentimentos de forma diferenciada. Anular essas diferenças é abrir caminho à indiferença e, consequentemente, à infelicidade. Por isso, não é de estranhar que mesmo nos casamentos felizes, surjam desavenças e diferendos ocasionais. Miguel Esteves Cardoso relata um desses momentos, quando sentindo-se “desamado, sozinho e triste” decidiu sair de casa com o intuito de se isolar, na certeza de que a mulher, apesar das eventuais saudades, ia compreender a sua atitude. No entanto, Maria João afligiu-se com o desaparecimento inusitado do marido – e da “birra secreta, por ser pequena, no meio de um casamento feliz” – saiu reforçado o amor do cronista à sua mulher: “Ficou aflita – a coisa que eu menos queria (e nisso ganhou) – e enquanto eu escondi pindericamente a minha aflição, ela tornou-a pública ao ponto de levantar auto na GNR que, diga-se com espanto de quem já a admira, me apanhou, bem apanhado, na Praia Grande, ontem de manhã. Nunca um alarme foi tão bem alevantado. Tenho ou não razão em amá-la?”7

3. Considerações finais Através da sua rica e vasta produção cronística, Miguel Esteves Cardoso tem sabido dar aos seus leitores uma imagem de Portugal e dos portugueses, matizada pelo humor e mordacidade, verificável nas suas reflexões sobre como as mudanças sociais afectam as relações entre homens e mulheres. Congratulando-se pela libertação feminina e pela crescente igualdade entre homens e mulheres, Esteves Cardoso defende, no entanto, que tal igualdade deve ser (re)conciliada com as diferenças que existem (e que provavelmente existirão sempre) entre homens e mulheres. Porém, as observações acutilantes quase desaparecem quando surpreendemos Miguel Esteves Cardoso teórico da sentimentalidade. Ora reflectindo sobre a natureza do amor, ora partilhado a sua própria experiência amorosa, o cronista oferece-se ao leitor em figura humana: é o sujeito que ama, que sofre, que desabafa e com o qual o leitor se identifica, seduzido por ver na sua escrita a expressão daquilo que (tantas vezes) já experimentou. 7 “Um Adeus às Birras”. Público, 29/06/2011.

6 “Parabéns tristes”. Público, 30/09/2010.

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Referências Bibliográficas Corpus Cardoso, Miguel Esteves. (2009 [1986]). A Causa das Coisas. 18ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim ______ (2001 [1988]). Os Meus Problemas. 12ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim ______ (1994 [1990]). As Minhas Aventuras na República Portuguesa. 5ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim ______(2001 [1991]). Último Volume. 5ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim ______(2010). “Parabéns tristes”. Público, 30 de Setembro ______ (2010). “Um segredo de um casamento feliz”. Pública, 24 de Setembro ______ (2011). “Um adeus às birras”. Público, 29 de Junho.

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Crítica Barradas, Maria Filomena (2010). ““As minhas aventuras na república portuguesa” ou Portugal como ele é”. Disponível em: http://comum.rcaap.pt/ handle/123456789/2072 ______ (2011a). “O Independente perante Portugal: identidades em formação e reavaliação no final do século XX”. Disponível em: http://comum.rcaap. pt/handle/123456789/1496 ______(2011b). “A nação na Europa - a perspectiva d’O Independente”. Disponível em: http://comum.rcaap.pt/handle/123456789/1495 Ramos, Rui (coord). (2009). História de Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros Rougemont, Denis de (1999 [1938]). O Amor e o Ocidente. 2ª ed. Lisboa: Vega Telo, António. (2007). História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Actualidade. Volume I Lisboa: Presença ______. (2008). História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Actualidade. Volume II. Lisboa: Presença Vieira, Joaquim (1999). Portugal Século XX. Crónica em Imagens. Lisboa: Círculo de Leitores

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Musas de Milton Hatoum e Marçal Aquino na Amazônia Helena Bonito Couto Pereira Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, Brasil

Resumo: Discutem-se neste artigo duas personagens femininas escritas sob a ótica de narradores masculinos: Alícia, que mobiliza episódios decisivos na trama de Cinzas do Norte (Hatoum, 2005) e Lavínia, a jovem pouco convencional que protagoniza Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (Aquino, 2003). Ambos os romances afastam-se da vertente predominante na literatura brasileira do século XXI, pela ambientação em uma região longínqua e pouco conhecida dos leitores em geral, hoje concentrados nas metrópoles. Essa literatura caracteriza-se por espaços urbanos de alta densidade populacional, marcados pelas notórias consequências da desigualdade socioeconômica, a que se atrelam perda de identidade, violência e exclusão. Constata-se, com tristeza, que tais problemas não são exclusivos da massificação urbana pós-moderna, pois manifestam-se igualmente em cidades pequenas ou vilarejos. Cinzas do Norte e Eu receberia... particularizam-se, ainda, no conjunto ficcional contemporâneo, pela forma cuidadosa com que constroem personagens femininas densas e sedutoras, capazes de alterar os destinos dos que delas se acercam. Sua proximidade ou seu distanciamento em relação ao estereótipo e ao cânone constituem o foco da reflexão ora proposta.

Apresentam-se neste artigo duas personagens femininas construídas a partir dos olhares de narradores masculinos: Alícia, que mobiliza episódios decisivos na trama de Cinzas do Norte (Hatoum, 2005) e Lavínia, a jovem pouco convencional que protagoniza Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (Aquino, 2003). Ambos os romances ambientam-se na Amazônia, o primeiro na cidade de Manaus e o outro em uma cidadezinha não denominada, no estado do Pará, o que os torna representantes da literatura regionalista. Estão, portanto, distantes da tendência predominante na literatura brasileira do século XXI, situada em grandes centros urbanos. A título de contextualização, faço uma breve retomada do regionalismo literário brasileiro no século XX, ou melhor, a diferentes regionalismos, com destaque para os decênios seguintes a 1930. À explosão criativa do modernismo em sua primeira fase sucederam-se obras de forte viés ideológico que empreenderam a discussão de questões regionais, associadas frequentemente à desigualdade socioeconômica e à precária situação do homem do campo explorado pelo latifúndio. Escritores oriundos do Nordeste brasileiro problematizaram as situações problemáticas que

persistem há séculos na região. Graciliano Ramos talvez seja o maior dentre eles, com a tragédia recorrente da migração em massa provocada pela seca, em Vidas secas e com a crueldade e violência que permeiam as relações de trabalho em São Bernardo. Tangenciando, por enquanto, a questão a ser discutida adiante, ou seja, o papel de personagens femininas no regionalismo, uma figura notável é Madalena, a protagonista de São Bernardo, professora pobre que involuntariamente cativa Paulo Honório, o rico e desonesto proprietário da fazenda que dá o título ao livro. Madalena casa-se com o fazendeiro, porém não consegue adequar-se ao ambiente injusto e opressivo, em que tudo se reifica. Revolta-se contra a situação degradante em que vivem os trabalhadores rurais, torna-se uma voz dissonante em relação ao papel tradicionalmente atribuído a uma esposa de latifundiário, enfim, transgride as convenções e acaba por sucumbir tragicamente. José Lins do Rego, com Fogo morto, focaliza a mesma problemática, sob a perspectiva de uma classe dominante de costumes praticamente feudais que se encontrava em plena decadência, atropelada pela chegada das usinas, o que acabaria por eliminar os grandes engenhos como haviam

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sido implantados desde a colonização. Ainda com o Nordeste em foco, a cearense Raquel de Queirós constituiu-se em voz solitária na criação de protagonistas femininas, como Conceição, em O quinze, ou as personagens de As três Marias, obras hoje praticamente circunscrita aos cultores do regionalismo. Na Bahia, pela pena de Jorge Amado, o regionalismo conquista um enorme público leitor, não só no Brasil como em numerosos países – basta mencionar as mais de setenta línguas para as quais suas obras foram traduzidas. Temas como a posse da terra, a miséria e o êxodo rural revestem-se de intensa “cor local”, com aspectos folclóricos que acabam por minimizar a problemática social. O lançamento de Gabriela, cravo e canela marca uma grande inovação, com o protagonismo que Amado proporciona às figuras femininas. Ao lado de Gabriela, alinham-se Tieta do Agreste e Teresa Batista cansada de guerra, mulheres bonitas e sensuais que, – como tantas personagens na extensa produção de Jorge Amado –nascidas em ambiente de extrema pobreza, desenvolvem estratégias de sobrevivência, e seus atributos físicos as levam a conquistar melhores condições de vida. Aparentemente emancipadas, tais personagens, na verdade, permanecem submissas aos costumes machistas da sociedade patriarcal, posicionam-se à margem da vida pequeno-burguesa, e em plena sujeição ao universo masculino. Migrações internas inflaram a região sudeste do Brasil, no auge da industrialização ocorrida na segunda metade do século passado. Como resultado, verificou-se um célere processo de urbanização, com a explosão populacional que persiste até hoje nos grandes centros urbanos. Como a ficção literária acompanhou o processo, multiplicaram-se obras de temática urbana: a vida nas favelas, nos conjuntos habitacionais de baixa renda ou ainda nos condomínios de luxo, sempre afetada pela desigualdade e violência, temática sempre marcada por diversas formas de violência. Tais problemas agravaram-se com o advento da pós-modernidade, em que indivíduos vagam pelas metrópoles em busca da própria identidade, impossível ante a ausência de vínculos familiares ou sociais. Tais problemas não são exclusivos da massificação urbana pós-moderna, pois manifestam-se igualmente em cidades pequenas ou vilarejos, como se observa em Eu receberia as piores notícias..., em Cinzas do Norte e em tantas outras narrativas. Ao optar pelo regionalismo, abordando, todavia, problemas similares aos dos grandes centros, Aquino e Hatoum criam ficções que permanecem à margem da

literatura “urbanizada” do século XXI. A Amazônia torna-se cenário de situações dramáticas envolvendo, por um lado, relações erótico-afetivas cheias de conflito e, por outro, ambientes sobrecarregados de opressão e violência. Lavínia e Alícia são personagens transgressoras. Seu desafio às normas de convívio que a sociedade habitualmente estipula para mulheres casadas implica um exame do modo de exposição de tais comportamentos em âmbito teórico-crítico. Uma possibilidade para melhor compreensão dessas personagens pode associar-se ao que postula Lélia Almeida (2003) em ensaio sobre as “meninas más”. Embora Almeida se refira especificamente à literatura de autoria feminina, o que, evidentemente, não se aplica a este estudo, vale ressaltar que ambas as figuras apresentam “o questionamento das condutas e comportamentos femininos em relação aos mandatos patriarcais”. São personagens que desafiam e põem em xeque os preceitos de uma ordem social que as precede. Sua atitude remete à pergunta atribuída originalmente a Freud: “o que quer uma mulher?”, mas pode encontrar origens mais remotas na tradição literária como, por exemplo nos Canterbury Tales de Chaucer. Em um dos relatos, um jovem é condenado à pena de morte por ter violentado uma donzela, porém obtém um ano para buscar a resposta à enigmática pergunta sobre o que é que as mulheres mais desejam. Quase ao final do prazo ele encontra na floresta uma megera que oferece a ajuda e sussurra-lhe a resposta em segredo, para que ele apresente aos que o condenam: [...] “Majestade, de modo geral”, disse ele, “o que as mulheres mais ambicionam é mandar no marido, ou dominar o amante, impondo ao homem a sua sujeição. Ainda que me mate, digo que é esse o seu maior desejo. Vossa Majestade agora pode fazer comigo o que quiser: estou a seu dispor” (Chaucer, 1988, p. 153). Assim ele se salva, com uma resposta absolutamente discutível, mas a questão atravessou os séculos e ainda inquieta o mundo masculino. Muitas das personagens femininas contemporâneas vivem suas trajetórias contrapondo-se, consciente ou inconscientemente, às antigas normas da boa educação, segundo as quais as mulheres, acima de tudo, deviam casar-se, ser boas donas-de-casa, mães perfeitas e incansáveis, bondosas, submissas e cordatas. As duas personagens em estudo respondem de maneira ambígua à inesgotável

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pergunta sobre o que querem as mulheres. Almeida refere-se também às “chicas raras” ou “meninas raras”, na esteira das reflexões de Carmen Martín Gaite, ressaltando o comportamento e a trajetória pouco convencionais das protagonistas da literatura de autoria feminina, que podem aplicar-se às protagonistas dos romances em geral. A “chica rara” posiciona-se em franca oposição ao comportamento feminino tradicional, colocando-se deliberadamente à margem do sistema. Essas mulheres estranhas, inadequadas, inconformadas, não se habituam à clausura doméstica, o que as faz buscar o mundo fora do lar. Mesmo o espaço urbano de cidades médias ou pequenas, como a Manaus referida nos anos 60 ou a cidadezinha de garimpo no final do século passado, ainda que acanhado, é um cenário diferente do ambiente doméstico. Assim, convida-as à aventura, possibilita a transgressão e aceita o questionamento de um suposto padrão único para o comportamento feminino. Mas esse comportamento transgressor resulta também de seus sentimentos de estranhamento face às suas condições materiais desde a origem, indiscutivelmente adversas. As estranhas “meninas más” expressam, pela inadequação ou alheamento, seus anseios, culpas, medos, enfim, toda sorte de conflitos. O comportamento pouco convencional traz pesadas consequências a Alicia, a Lavínia e aos que por elas se apaixonam. Cinzas do Norte Terceiro romance do amazonense Milton Hatoum com ambientação em Manaus e adjacências, Cinzas do Norte traz a convivência desde a infância entre Lavo (ou Olavo), o narrador, e Mundo (ou Raimundo), o protagonista, a despeito das desigualdades socioeconômicas entre suas famílias. Mundo sofre a opressão e o ódio de Jano (ou Januário), pai que o vê apenas como herdeiro de sua grande fortuna e futuro administrador de suas propriedades. O ódio do pai para com o filho agrava-se com a tentativa de afirmação deste último, que revela vocação para as artes e, em especial, a pintura. A história dessa família entrelaça-se à da família de Olavo, o narrador que vive em situação de extrema pobreza com os tios, Ramira e Ranulfo, irmãos de sua mãe. Um dos eixos da narrativa é a rivalidade entre Januário e Ranulfo, resultante da paixão de ambos por Alicia, a figura feminina que desequilibra todo o conjunto. Alicia e Ranulfo tiveram um namoro bastante ousado, desde muito jovens, porém Alicia casou-se repentinamente com Januário. Da união resultou o protagonista Raimundo, exposto

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às constantes críticas e ao distanciamento do pai. Em um texto pontuado pela sutileza, o narrador caracteriza Alícia, a mãe, como personagem que, totalmente desinteressada da vida doméstica, teria sucessivos casos extraconjugais e manteria um duradouro romance com o antigo namorado. Para dar conta do desafio de narrar fatos que aos poucos chegariam ao pleno conhecimento do leitor, uma página inicial, escrita por Lavo no presente, explicita que cartas de Mundo ou de Ranulfo diversas vezes assumem a voz narrativa, com episódios ignorados pelo narrador. Em uma dessas cartas, Ranulfo relata como a família de Alícia, de origem indígena e em situação precária, tornou-se vizinha deles Manaus: Ainda eram duas meninas – a mais velha tinha onze anos e a outra oito – quando vieram morar numa casa de madeira caiada, coberta de telhas, bem mais ajeitada e segura que as taperas com teto de palha (...). Um homem alto e magro, o rosto e os braços morenos, chegou num bote grande de alumínio com uma mulher triste e as duas crianças. (...) Levaram para dentro da casa uma trouxa de roupa, redes, um fogareiro, um quadro-negro, uma mesa, três tamboretes e uma geladeira a querosene. (2005, p. 153) Supõe-se que o homem seja o pai das meninas, e que seja chefe de outra família, já que pouco as visita; por outro lado, contrata uma professora para proporcionar-lhes educação formal e social. Adiante, a menina mais nova – que é Alicia – entraria no convívio da família de Ranulfo, e ele assim se refere a ela: Os lábios carnudos e entreabertos formavam um desenho ondulado, e os olhos escuros, da cor do cabelo, pareciam acesos nas feições angulosas. Mas eu ainda não tinha percebido toda a beleza do rosto, do corpo. Percebia mais seu atrevimento (2005, p. 159) O namoro de Ranulfo com Alícia interrompeu-se bruscamente, quando ela conquistou Jano e com ele se casou em seguida. Nesse casamento infeliz, Alicia permaneceu sem nunca se integrar efetivamente ao grupo social do marido. Em jantares e recepções, mostrava-se ousada em trajes e modos, bebia muito e, no jogo de cartas, perdia vultosas quantias. Discussões entre marido e mulher eram públicas. Uma cena presenciada pelo narrador, ainda adolescente, registra como Alicia demonstra afeto apenas em caso de outros interesses. Jano ia embarcar para sua propriedade, a Vila Amazônia, com Lavo e Mundo. Ao se despedirem, ele e a

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esposa: ficaram abraçados, fazendo carícias e cochichando no ouvido um do outro, numa intimidade que surpreendeu até meu amigo [o filho deles]. Saí de perto, pensando que havia amor entre os dois. De repente ele ergueu a cabeça: “Mas já deixei... no mesmo lugar”. “Deixaste uns trocados, temos despesas em casa”, disse a mulher. (2005, p. 60) No tempo presente dos fatos narrados, comprovam-se as infidelidades de Alicia, em diferentes discursos, como o de seu filho, já adulto, em carta ao narrador: Brixton, Londres. 8-18 de outubro de 1977 (...) eu sempre perguntava pela minha mãe e Naiá [a empregada] respondia: “Foi fazer uma visitinha, volta logo”, mas Alicia só chegava pouco antes de meu pai, entrava no banheiro e vinha falar comigo enrolada numa toalha, o rosto de felicidade (...). (2005, p. 242)

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E ainda em uma longa carta de Ranulfo a Mundo, narrando os encontros quinzenais no passado, às terças e quintas-feiras, quando Alícia ia ao salão de beleza e, de lá ela pegava outro táxi, dirigido pelo meu amigo Corel, e descia na calçada de uma porta estreita ao lado do bar Voo da Garça (...) Eu já estava deitado na rede do quartinho, de braços abertos. (...) Depois o táxi do Corel a deixava na porta do salão de beleza, e ela ia com Macau [o motorista da família] para o palacete. Mais de trinta anos com tua mãe, Mundo. (p. 283) Nessa mesma carta, Ranulfo expõe o vício do jogo, que acabaria por levar Alícia à ruína. Em uma ocasião, quando a sorte a favoreceu, foi encontrar o amante: Lembro a primeira vez em que ela anunciou que ia se separar do teu pai e mandá-lo ao diabo. Estava eufórica (...). Sugeriu uma mudança geográfica radical: “Vamos morar no Rio de Janeiro, o [apartamento no edifício] Labourdett está no meu nome”. Concordei sem hesitar (...) três dias depois ela perdeu tudo o que ganhara, para os mesmos jogadores. A morte de Januário não desperta tristeza nem pesar em Alícia, que finalmente alcança seu objetivo de abandonar Manaus e mudar-se como filho para o Rio de Janeiro, a cidade dos seus sonhos. Mundo inicia sua carreira de pintor e viaja para a Europa, onde não consegue sobreviver apenas

com a venda de seus quadros. Alícia não demora a perder toda a fortuna com jogo e bebida. Ranulfo vai ao seu encontro no Rio de Janeiro, ela o despede de imediato, apesar da decadência física e econômica em que se encontra. Mundo adoece gravemente, volta para o Brasil e morre. Em pouco tempo, Alicia também morre. Todo o embate termina melancolicamente. Em um estudo crítico que focaliza o autoritarismo de Jano, em incessante confronto com a rebeldia do filho, Shirley Carreira insere fragmento de uma entrevista em que Milton Hatoum explicita: Trato a família como um ritual autofágico, em que todos se devoram para no fim sobrar apenas a palavra escrita, a memória inventada da tribo. (on line) Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios O fotógrafo Cauby muda-se de São Paulo para uma cidadezinha no Pará, com o objetivo de preparar um livro de fotos, com contrato para publicação já assinado: Meu interesse inicial eram as prostitutas. Eu trabalhava num livro de fotos das profissionais que sobrevivem ao redor dos garimpos. Eram todas muito semelhantes, mulheres maltratadas pela genética e pela vida. (...) Gostei da cidade, senti que o instinto me mandava ficar ali por uns tempos. Havia eletricidade no ar: a tensão entre os garimpeiros e a mineradora tinha chegado ao auge. Alguma coisa estava para acontecer e eu resolvi esperar para ver. Então Lavínia apareceu. (...) Alguns amores levam à ruína. Eu soube disso desde a primeira vez em que Lavínia entrou em minha casa. (2005, p. 24-25) Quase ao final do livro, a mesma cena é retomada: Perguntei por que me escolhera. Gostei do jeito que você me olhou, disse. Parecia que estava pedindo desculpas por me achar tão bonita. Remova a poesia do que ela falou: eu a olhei na loja de Chang com uma fome que nunca senti por nenhuma outra mulher. Um episódio inaugural. E também fui olhado de uma maneira que ainda não tinha acontecido antes. Conhecê-la fez do passado um mero ensaio, um treino antes de ser exposto à incandescência (2005, p. 170).

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Lavínia era casada com um pastor protestante, mas não hesitou em ir à casa de Cauby, desencadeando um re tórrido. Para ele, o primeiro encontro sexual foi igual adentrar um território sabendo que tem dono: com curiosidade e medo. Uma invasão. (2005, p. 38) A narrativa compõe-se de três seções, pela ordem: “O amor é sexualmente transmissível”, “Em carne viva” e “Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo”. Lavínia não gostava de falar de seu passado, afirma mais de uma vez Cauby, que cede a voz a um narrador onisciente, nos três capítulos que formam segunda seção. Isso porque seu passado representa miséria e abandono: uma família totalmente desajustada, com a mãe e o padrasto frequentemente bêbados e briguentos, o assédio sexual deste último assim que a garota cresceu, a fuga para a cidade grande, Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. Nesta, a sobrevivência nas ruas, com drogas leves e pesadas, a vida de garota de programa e finalmente o resgate da dignidade, pelas mãos do pastor Ernani. Tais antecedentes deixariam profundas marcas na personagem, e não demora para o protagonista perceber os comportamentos estranhos de Lavínia: Detalhe: existiam duas mulheres dentro de Lavínia. Uma era casada: casadíssima. Com um homem a quem chamavam de santo. Um homem exatos trinta e oito anos mais velho que ela. A outra Lavínia vinha me visitar: a bela da tarde. (2005, p. 43) Uma pista: Lavínia entrava em minha casa e me agarrava antes mesmo que eu fechasse a porta (...). Falava da outra Lavínia na terceira pessoa. Chamava-a de puritana. E tinha uma espantosa energia sexual (...). Essa era a Lavínia doida. A que eu, de brincadeira, chamava de Shirley. Aquela que a Lavínia mansa, séria, xingava de vadia. Era bem mais que dupla personalidade. Era uma doença. E não tinha cura (p. 46). (...). As tensões aumentavam em torno ao garimpo, no confronto velado entre os dirigentes da mineradora e os trabalhadores. A cidadezinha vivia em um estranho clima de faroeste, a violência pairando no ar, mas o casal protagonista parecia não dar-se conta de nada disso: Ela me visitava sem se preocupar muito com a discrição. Eu tinha consciência de que éramos descuidados, negligentes, principalmente num lugarejo como aquele. Dava para

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adivinhar o que iria acontecer. (p. 51) A intensa paixão interrompe-se com a súbita ausência de Lavínia, que desaparece sem se despedir, embora o pastor continue a residir no mesmo endereço. No decorrer da trama descobre-se que Lavínia estivera internada por motivos psiquiátricos, o que volta a acontecer nos capítulos finais do livro. Desvendar esse mistério só é possível mais adiante, quando a violência passa ao primeiro plano. As tensões que estavam no ar finalmente explodem e ocorrem alguns assassinatos, dentre eles o do pastor Ernani. Lavínia desaparece subitamente, sendo Cauby considerado assassino. Preso, é quase linchado pelos adeptos da igreja, perde um olho, tem ossos quebrados. Sua casa é invadida, depredada e incendiada. Descobre-se depois que o pastor havia sido assassinado por um matador profissional, a mando da mineradora, pois propugnava por direitos humanos e justiça social em seus cultos. Ao recuperar a liberdade, Cauby só está interessado em localizar Lavínia. Finalmente um amigo a descobre, internada em um hospício sob nome falso. Combalida ao extremo, sem memória, sem o viço antigo. Porém a paixão de Cauby permanece inalterada, ele passa a participar da vida dela até que, aos poucos, Lavínia começa a apresentar sinais de recuperação. O tom intencionalmente melodramático que impregna a narrativa não passou despercebido à crítica, como observa a autora do ensaio “Perversos melodramas”: O sucesso de vendas de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, isto é, o fato de que o texto pôde atingir um público amplo, se deve, principalmente, ao uso do melodrama e à incorporação de personagens que se adequam a estereótipos reconhecidos pelo público leitor; mesmo assim, não estamos frente a uma obra meramente comercial, a soma dos elementos internos ao texto e os aspectos extra-textuais – como a adaptação e atualização de referentes políticos e sociais – são os que permitem entender o mecanismo pelo qual este romance é, finalmente, um exemplo literário que reflete as mudanças culturais que vêm ocorrendo desde o boom da literatura latino-americana, presentes na produção, recepção e distribuição do texto literário. (2011)

Considerações finais A Amazônia constituiu cenário inspirador Hatoum, descendente de uma família libanesa radica-

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da de longa data em Manaus, também para Marçal Aquino, que nasceu e vive em São Paulo, a milhares de quilômetros de distância do Estado do Pará. O espaço ficcional, semelhante em sua concretude nos dois romances, difere no registro – tradicional e quase intimista em uma das narrativas, melodramático em outra. Também difere o modo como cada uma das figuras femininas se vincula à cidade grande: Em Cinzas do Norte, Alicia tem o Rio de Janeiro como objeto de desejo, ao passo que Lavínia, em Eu receberia..., não tem a mais remota intenção de retornar à cidade de Vitória, palco de experiências amargas em sua infância e adolescência. No mesmo sentido, violência e erotismo permeiam ambas as narrativas de diferentes maneiras. Em Cinzas do Norte, a escrita regionalista às vezes se reveste de intimismo, com a sobrepsição da vivência psicológica e emocional às contingências do meio. Em Eu receberia..., a violência difusa das primeiras páginas cresce e se materializa, a ponto de desaguar em episódios de extrema gravidade para indivíduos e coletividade. Ambas as obras particularizam-se pela forma cuidadosa com que constroem personagens femininas densas, sedutoras, capazes de alterar os destinos dos homens que por elas se apaixonam. São verdadeiras musas que têm raízes na interface da literatura com outras artes, outras mídias e também com a cultura de massa. Em Cinzas do Norte, Alicia pode ser compreendida como uma das “meninas más” teorizadas anteriormente, ou ainda como sucessora da femme fatale do romance ou do filme noir. Em Eu receberia..., o casal protagonista está indissoluvelmente associado à fotografia, com a música e a literatura inserindo-se em sua convivência, além de alusões a cultura de massa, como observa El-Kadi. Transgressoras, Alícia e Lavínia rejeitam o papel que costumeiramente se atribui às mulheres. De suas transgressões pode resultar a ruína, para Alícia, ou a redenção, para Lavínia.

Referências Bibliográficas ALMEIDA, Lélia. As meninas más na literatura de Margaret Atwood e Lucía Etxebarría. Espéculo. Revista de estudios literarios. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2003. in http://www.ucm. es/info/especulo/numero25/matwood.html ALVES, Ívia. “Imagens da mulher na literatura na modernidade e contemporaneidade”. In FERREIRA, S. L. & NASCIMENTO, E. R. (Org.). Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia, 2002.

AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. CHAUCER, Geoffrey. Os Contos da Cantuária. (The Canterbury Tales). São Paulo: T.A. Queiróz, 1988. EL-KADI, Aileen. “Perversos melodramas. Marçal Aquino, 2005”. In www.brasa.org/portuguese/congressos/brasa_x_portuguese.html (2011) HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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Representações da mulher em obras de Ana de Castro Osório e Maria Archer: a (des)construção do estereótipo Armanda Bouzy Université de Nice Sophia Antipolis, França

“Mulheres não foram feitas para serem compreendidas, apenas para serem amadas” Oscar Wilde “A mulher que escreve é considerada como um monstro visto ter corpo de mulher e cérebro de homem” Maria Graciete Besse Resumo: Nos anos 20 e 30, na grande maioria das capitais europeias, surge um novo modelo feminino. Com efeito, o período que segue a primeira guerra mundial marca uma ruptura no estereótipo feminino. Durante a guerra, as mulheres viram-se na obrigação de efectuar tarefas até então reservadas aos homens; depois da guerra, elas reivindicam um estatuto mais adaptado à sua nova posição na sociedade. Pouco a pouco, tudo muda no comportamento da mulher, ela conquista cada vez mais domínios reservados essencialmente aos homens. Será que em Portugal, país pouco industrializado que viveu a guerra de 14-18 de maneira menos cruel, este novo tipo feminino vai conseguir representar um papel na sociedade? Não esqueçamos que Portugal foi submetido a uma forte restrição das suas liberdades logo em 1926, com a ditadura militar, e a partir de 1933, com o Estado Novo. Apesar de um clima pouco propício ao desenvolvimento da liberdade das mulheres, duas escritoras marcam fortemente esta primeira parte do século XX: Ana de Castro Osório e Maria Archer. Já em 1095, Ana de Castro Osório, uma das principais militantes do primeiro movimento feminista português, exorta as suas congéneres a adquirir a independência pelo trabalho. Por sua vez, a escritora e jornalista, Maria Archer, descreve nos seus romances esta nova mulher que reivindica uma liberdade intelectual, mas também física e sexual. Marietta, personagem da novela «Ida e volta duma caixa de cigarros» de Maria Archer, surge como a incarnação deste desejo de liberdade física, rejeitando primeiramente o carcan do vestuário feminino e assumindo ostentatoriamente uma nova liberdade sexual. Como sublinha Augusto de Castro no seu livro Sexo 33, a mulher não hesitou em talhar as saias pelos joelhos e cortar o cabelo e “nesse momento viu ao espelho que a distância física que a separava do homem, era mais pequena do que ela supunha”*1. Mas será que a flapper ou a garçonne que penetraram na sociedade e na literatura portuguesa com a alcunha de “joãozinho” vão conseguir impor, através da obra de Ana de Castro Osório e de Maria Archer, um novo modo de pensar, de ser e de agir, rejeitando para sempre o estereótipo do eterno feminino?

* Augusto de Castro, Sexo 33 ou a Revolução da Mulher, Lisboa, Editora Empresa Nacional de Publicidade, p. 160.

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No início do século XX, no campo da literatura portuguesa de autoria feminina, destacam-se dois grandes nomes que pouco têm interessado a crítica literária: Ana de Castro Osório e Maria Archer. Ana de Castro Osório (1872-1935), grande figura da vida política, literária e social de Portugal, manifestou muito cedo interesse pelas ideias republicanas participando na fundação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. A sua luta para a defesa dos direitos das mulheres foi manifesta e levou-a a trabalhar com o Dr Afonso Costa, então Ministro da Justiça, sobre “a nova lei do divórcio, que concedia os mesmos direitos ao marido e à mulher, tanto para os motivos de divórcio como nos direitos sobre as crianças” (Tavares da Silva & Vicente, n.d., p. 79)1. Maria Archer (1899-1982), “autodidacta e viajada” (Lopes de Oliveira, 1981, p. 73), viveu em Moçambique, Guiné, Angola e Brasil (Batista, 2007), colaborou em diversas revistas e jornais e escreveu inúmeros romances, novelas e peças de teatro. Toda a sua produção literária e jornalística apresenta conteúdos relacionados com a mulher, a família, a educação, a história portuguesa e colonialista. A posição da mulher na sociedade e na família prima na obra destas duas escritoras. Ana de Castro Osório e Maria Archer, seguindo o conceito de mimesis, expõem nos seus romances e novelas a pintura de uma sociedade em movimento na qual a mulher deseja ocupar o lugar que lhe fora até então recusado. O corpus é composto pelo romance Mundo Novo (1927?) de Ana de Castro Osório, e pela colectânea de novelas que constituem Filosofia duma mulher moderna de Maria Archer (1950), assim como pela novela da mesma autora, “O Inglês”, integrada na coleção Há-de haver uma lei (1949). Mundo Novo é um romance em grande parte epistolar no qual a heroína, Leonor, parte para o Brasil, levando com ela a ideologia da nova mulher num meio social marcadamente português. Nossa proposta é identificar a maneira como estas duas escritoras apresentam a mulher e examinar como Ana de Castro Osório e Maria Archer constroem ou desconstroem o estereótipo da mulher aplicando à própria sociedade uma análise crítica. Para tal, apoiar-nos-emos no ensaio de Pierre Bourdieu A dominação masculina (2002). Este livro não é propriamente fundador da sociologia feminista; antes de Bourdieu numerosas pesquisadoras demonstraram a importância da dominação mas1 Nas citações deste artigo serão respeitadas a ortografia, a pontuação e a acentuação dos textos originais

culina e do papel representado pela sociedade, a família, a Igreja... Daí que muitas feministas o tenham acusado de ter aplicado a sua teoria “a um objeto cujo desenvolvimento teórico já estava muito mais avançado do que o construído por seu campo analítico” (Scavone, p. 182). O fato de Bourdieu não mencionar todo este trabalho efetuado, levou Michelle Perrot a afirmar que algumas pesquisadoras ressentiram isso como uma falta de consideração reveladora da dominação masculina (1998, para. 4). Porém, alguns trabalhos acadêmicos de cunho feminista referem-se aos conceitos de Bourdieu, principalmente àqueles “relacionados a dominação, poder e violência simbólica, a trabalho e a condições de sua reprodução [...] para o entendimento da permanência da dominação masculina.” (Scavone, p. 182). Neste livro, Bourdieu recorre a sua pesquisa etnográfica sobre a sociedade cabila para explicar a dominação que o homem exerce sobre a mulher. A sociedade cabila, ordenada segundo o princípio da superioridade masculina, é assim apresentada como uma espécie de “arqueologia do nosso inconsciente” (Uceda Betti, 2011, p. 1). A partir de um caso específico, Bourdieu elabora uma teoria geral, mas será que essa teoria se aplica a todas as sociedades independentemente do grau de evolução de cada uma delas? Será que o critério histórico e geográfico não é determinante da problemática abordada? No romance e nas novelas objeto deste estudo coabitam dois tipos de mulheres: o primeiro tipo é a mulher tradicional que não somente aceita mas também reproduz o modelo falocrático; o segundo tipo é a mulher em plena mutação, aquela que, consciente de ter recebido uma educação alienadora, decide construir a sua vida de modo diferente. Esta nova mulher, tal como a define Alda Correia, é “associada a uma busca da individualidade, a um desejo de realizar o seu potencial como ser humano em pé de igualdade com o homem.” (2001, p. 1). A mulher dominada é descrita como um ser inferior que o poder masculino conseguiu submeter espiritual e fisicamente. As estruturas de dominação do homem sobre a mulher baseiam-se, segundo Bourdieu, na reconstrução de esquemas profundamente ancorados na nossa sociedade. Estes esquemas são reproduzidos “pelos agentes específicos (entre os quais os homens [...], com suas armas como a violência física e a violência simbólica) e instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado.” (2002, p. 23a). Tanto Ana de Castro Osório como Maria Archer

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sublinham a parte importante da educação que constitui uma espécie de mediação entre o indivíduo e a sociedade. Os dois veículos da educação são a família e a estrutura escolar. As ideias inculcadas por estas duas instituições podem ser ou alienadoras ou produtoras de equilíbrio e estabilidade. Na sociedade portuguesa do início do século XX, a formação das raparigas era feita essencialmente pela mãe; ora esta, enquanto dominada, vai transmitir aquilo que lhe foi transmitido a ela própria, conforme a asserção de Bourdieu: “Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação.” (2002, p. 23a). A filha acaba por ser o duplo da mãe: “o regresso à mãe é um fascinante regresso ao mesmo, ou mais propriamente à mesma” (Didier, 1981, p. 26). A educação conferida pela mãe constrói assim esquemas de ação e de pensamento, chamados por Bourdieu de habitus, que conseguem ser transmitidos de geração em geração de maneira inconsciente. A mulher submissa, incapaz de se aperceber da submissão, seria uma espécie de ser inferior, sem inteligência própria para rejeitar a dependência. Esta fatalidade que pesa sobre o destino das mulheres contrariou fortemente as feministas cujas críticas recaíram sobre o ensaio de Bourdieu (Louis, 1999; Sousa, n.d.). A educação das raparigas encontra-se então legitimada pelas próprias mães que conferem às filhas uma educação tradicional. As meninas pertencentes à boa sociedade estudam “piano e francês” (Archer, 1950, p. 91) e aprendem a ser hábeis donas de casa. Assim, Bia –heroína de “Up do date”, novela de Maria Archer– “Sabia mandar nas criadas, cozinhar, fazer doces, bordar. As senhoras da família gabavam-na.” (1950, p. 91). A mesma temática surge em Mundo Novo quando a heroína, Leonor, confessa à sua amiga: –Com essa custosa educação sem finalidade, que minha mãe proclamava perfeita e completa, adquirira, apenas, o conhecimento superficial das línguas francesa e inglesa, com o bastante de alemão para ler sem compreender [...]. De resto... umas luzes gerais sobre artes e sciências vagas, como é de uso indispensável numa menina de boa condição [...]” (p. 20). A rapariga tradicional –tal como a analisou Pierre Mandousse– é uma espécie de “préfemme” (1928, p. 66) preparada para o seu futuro papel de esposa e de mãe. Este tipo de educação, cujo objetivo é “a conservação e a transmissão da mais alta forma de

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existência” (1928, p. 66)2, mantém a adolescente, e mais tarde a mulher, numa posição de submissão. Esta posição alienadora, imposta à mulher desde os primeiros anos da sua vida, é reforçada pelo fato da educação escolar ser transmitida dentro do círculo familiar, sob a dependência direta da mãe. Na novela de Maria Archer, “Dez raparigas alentejanas”, o narrador comenta: “quanto às filhas era mister acompanhar os tempos e dar-lhes também educação. Prendadas, mas honestas, e mulheres de sua casa mais que tudo. Por isso veio para elas uma mestra de Beja [...]” (Archer, n.d., p. 232). Logo a seguir, a escritora põe habilmente em paralelo a educação dada ao outro sexo: “os rapazes, os irmãos, andavam por Lisboa e Coimbra, nos estudos, e só nas férias apareciam em casa.” (Archer, n.d., p. 232-233). Conforme o sociólogo francês, o rapaz é submetido a um “rito de separação” (2002, p. 17b) que tem por função “emancipar um menino com relação à sua mãe e garantir sua progressiva masculinização, incitando-o e preparando-o para enfrentar o mundo exterior” (2002, p. 17b). O rapaz adquire a independência graças à distância que o separa da mãe, enquanto a rapariga permanece prisioneira duma educação que a impede de se libertar; a mãe, responsável pela sua formação, torna-se a carcereira da própria filha. O psicanalista americano, Erik H. Erickson (1980), constata que, ao contrário do rapaz que vai tomar rapidamente consciência da diferença dos sexos, a rapariga só poderá atingir esse nível de consciência quando cortar o vínculo com aquela que reflete a sua própria imagem, ou seja a mãe. Esta mesma ideia encontramo-la em Psychanalyse et Féminisme; segundo Juliet Mitchell, a família é o lugar “que produz a psicologia inferiorizada da feminilidade, e que legitima a exploração económica e social das mulheres (as esposas e as mães não têm qualquer independência económica ou jurídica).” (1974, p. 18)3 Se Julia Kristeva afirma que existe “uma modelação du psiquismo da menina, depois da mulher, através das noções de passividade, de submissão, para que ela ocupe o segundo lugar” (Rodgers, 1998, p. 200)4, ela não nega a existência, contrariamente a Pierre Bourdieu, “do fator biológico por um lado e por outro lado do insconciente” (Rod2 “la conservation et la transmission de la plus haute forme d’existence”. Com exceção do texto de Bourdieu, todas as traduções são da autora do artigo. 3 “qui produit la psychologie infériorisée de la féminité, et qui légitime l’exploitation économique et sociale des femmes (les épouses et les mères n’y ont aucune indépendance économique ou juridique).” 4 “un modelage du psychisme de la petite fille, puis de la femme, à travers des notions de passivité, de soumission, pour qu’elle occupe le second rôle”.

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gers, 1998, p. 200)5. Desta forma, uma rapariga que recebeu uma educação tradicional pode manifestar o desejo de sair do estado hipnótico no qual a mergulhou a família e a sociedade e aspirar a uma certa liberdade. Apesar da maioria das personagens femininas continuarem a veicular os esquemas tradicionais que lhes foram inculcados, algumas protagonistas tomam consciência da submissão em que vivem. Na novela intitulada “Sujeição”, acerca de Maria da Luz, menina oriunda duma família sem fortuna mas que goza “dum grande prestígio de respeitabilidade, educação, nível social” (Archer, n.d., p. 97), a narradora comenta: “Sujeita à mãe, sujeita à família, sujeita aos preconceitos do seu mundo, menina bem criada em regras antiquadas, nunca, até então, a Maria da Luz percebera que vivia numa espécie de escravidão” (Archer, n.d., p. 101). Mas os habitus que foram incorporados não podem “ser transformados por uma simples tomada de consciência” (Uceda Betti, 2011, p. 4); segundo Bourdieu, só a força simbólica das estruturas da dominação permitiria a libertação. Ora as estruturas de dominação, ou seja neste caso a mãe e a sociedade, continuam a pesar sobre a vida e o pensamento de Maria da Luz que, incapaz de rejeitar o esquema tradicional, vai aceitar o casamento como uma verdadeira fuga. O narrador confia que Maria da Luz “pensou no casamento como numa libertação e namorou sem amor um dos rapazes do escritório” (Archer, 1950, p. 102). A personagem feminina mergulha numa dupla dominação –uma intersecionalidade segundo o conceito de Kimberlé Crenshaw (1991)– conducente a uma espécie de esquizófrenia que só a separação do casal poderá suavizar. Incapaz de cortar definitivamente o vínculo com a mãe, Maria da Luz continua, para salvaguardar as aparências, a representar a comédia do casamento: aos domingos, ela vai com o esposo jantar na casa da mãe para “que a vizinhança os veja sair e entrar, ambos juntos, e assim se desfaçam quaisquer rumores escandalosos.” (Archer, 1950, p. 104). A sociedade portuguesa de então rejeitava o divórcio. Por conseguinte, D. Maria do Resgate, personagem da novela de Maria Archer intitulada “Preconceitos da alta-burguesia portuguesa”, recusa ver os netos oriundos do casamento que seu filho contraiu com uma mulher divorciada (n.d, p. 147). A divorciada é banida não somente pela família, mas também pela sociedade e pela Igreja; a este respeito, Ana de Castro Osório recorda a posição da doxa católica através das palavras de 5 “du facteur biologique d’une part et d’autre part de l’inconscient”.

um bispo: –Não! O Divórcio não podia ser admitido nem discutido, por quanto o casamento é indissolúvel os laços que a igreja santificou só a morte os pode quebrar. Um divorciado que realiza novo casamento, não é mais do que um adúltero vivendo em concubinagem, ainda mais pecaminosa e odiosa do que a outra, porque se estriba nas leis imorais dos homens prevertidos, que querem edificar uma sociedade com leis civis e com uma nova moral, sem dogmas e sem Deus... (p. 94-95) Apesar do casamento constituir por vezes um trauma, continua a ser a única hipótese que é dada às mulheres para saírem da opressão familiar. Nos casos de matrimónio, as mulheres tornam-se uma espécie de mercadoria entre as mãos do pai e do futuro esposo. O futuro dominante vai estabelecer com o genitor da dominada um verdadeiro negócio baseado, segundo Bourdieu, “na lógica da economia de trocas simbólicas”, no âmbito das quais as mulheres adquirem o “seu estatuto social de objetos de troca, definidos segundo os interesses masculinos, e destinados assim a contribuir para a reprodução do capital simbólico dos homens” (2002, p. 28a). Porém, em determinados casos, a mulher é mais do que um capital simbólico, ela reveste um verdadeiro valor económico que vai aumentar a fortuna de um pai ou de um marido. Já no século XIX, Balzac afirmava em La Physiologie du mariage: “A mulher é uma propriedade que se adquire por contrato; é móvel porque possessão vale título” (1891, p. 350)6. Ciente do estatuto de mercadoria do sexo feminino, Ana de Castro Osório apresenta as raparigas como simples “amostras” que as mães exibem perante os eventuais proprietários (Castro Osório, 1905, p. 117). Mas essa mercadoria, uma vez adquirida, perde a atracção inicial. Por exemplo, Narcisa –heroína da novela “Mosarabes” de Maria Archer– é objeto, antes do casamento, de todas as atenções do namorado; mas, logo na primeira noite de casados, o esposo retoma “a sua vida de sempre. Casou-se. Está casado, já não anda a suspirar por mulher.” (n.d., p. 128). Pois, como afirma Antonina, personagem de Mundo Novo, “que seja um letrado ou um analfabeto, que seja um poeta ou um lapuz, todos encaram a mulher como a metade... que carrega os fardos mais inferiores da vida.” 6 “La femme est une propriété que l’on acquiert par contrat; elle est immobilière car la possession vaut titre”.

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(Castro Osório, n.d., p. 103). Mas, nesta sociedade portuguesa da primeira metade do século XX, as raparigas só podem adquirir o estatuto de esposas se forem virtuosas. A menor suspeita de leviandade fá-las perder o valor simbólico, conforme um princípio enunciado por Bourdieu: As mulheres são valores que é preciso conservar ao abrigo da ofensa e da suspeita; valores que investidos nas trocas, podem produzir alianças, isto é, capital social e aliados prestigiosos, isto é, capital simbólico. Na medida em que o valor dessas alianças, e portanto o lucro simbólico que elas podem trazer, depende, por um lado, do valor simbólico das mulheres disponíveis para a troca, isto é, de sua reputação e sobretudo de sua castidade [...]. (p. 29a) Na novela de Maria Archer, “Cavalleria Rusticana”, a Jorja, acusada de ter tido relações sexuais com um rapaz, torna-se imediatamente sua propriedade “porque o ato sexual em si é concebido pelos homens como uma forma de dominação, de apropriação, de posse.” (Bourdieu, p. 14b-15a). Razão pela qual os pais defendem de maneira quase “paranóica” aquilo que consideram ser o principal bem atribuído ao sexo feminino: a castidade. Se a perda da virgindade, na província arcaica, condena irremediavelmente a mulher, nas grandes cidades, o dinheiro reabilita-a. Maria Archer sublinha que o dinheiro reveste a mulher de todas as virtudes, imprimindo-lhe nova virgindade. Por conseguinte, quando Safira, a personagem feminina de “Labirinto”, se torna proprietária, os homens deixaram de ver nela a aventura momentânea mas a possível esposa –a esposa que pode manter a casa. Arranjou depressa outro noivo e fez um casamento aparatoso que encheu de raiva e de inveja as raparigas que não são proprietárias e a quem, por falta do trono da propriedade, os homens exigem virtudes. (n.d., p. 257) Esta hipocrisia masculina é um tema recurrente na obra de Maria Archer. Nas novelas “Emprego de capital”, “Dez raparigas Alentejanas” e “Um Inglês”, o dinheiro exerce um forte poder de atração sobre o homem. Todavia, se o dinheiro imprime ao sexo feminino uma certa respeitabilidade, ele confere

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dificilmente a liberdade. Esta só pode ser adquirida ou pelos estudos que dão acesso ao trabalho, ou pelo amor compartilhado em plena fusão física e sentimental. As análises de Pierre Bourdieu, baseadas na cultura cabila, encontram resonância na sociedade portuguesa tradicional da primeira metade do século XX, aquela que rejeita o acesso ao divórcio que nega à mulher a possibilidade de estudar, de trabalhar, em suma de efetuar qualquer tipo de atividade física ou inteletual que lhe permita abrir o espírito e rejeitar os habitus. Porém, como afirma Mariza Corrêa, estas análises aplicadas a uma sociedade em plena mutação tornam-se caricaturais, visto “os estereótipos da lógica ocidental” (n.d., p. 2) começarem a ser postos em causa. A submissão deixa de ser uma fatalidade, pode ser aniquilada graças essencialmente à instrução e ao trabalho. Na novela “Up do Date”, Maria Archer conta o caso de Bia, menina oriunda duma família abastada, destinada a casar, desde a escola primária, com o primo Quim. Enquanto Bia permanece junto da família e recebe a instrução mínima das meninas de boa condição, Quim parte para Evora e depois para Lisboa, para se matricular na Escola Politécnica. A separação com o meio social e com a família, afasta-o irremediavelmente da sua namorada. A ruptura torna-se efetiva quando o rapaz encontra Helsa, encarnação da Mulher Moderna. Ambos frequentam a mesma Escola e compartilham a paixão do desporto. A rapariga exerce sobre Quim uma sedução mais inteletual que física: “Helsa era uma rapariga quase feia, desportiva, máscula, mas inteligente e muito pessoal. Filha de ingleses, nascida em Lisboa, tirava o seu curso para trabalhar.” (Archer, n.d., p. 93). Face à traição do namorado, Bia, com a cumplicidade da avó, decide reagir matriculando-se no colégio, fazendo desporto e tirando a carta. É o trauma do abandono amoroso, que vai transformar ideologicamente a personagem dando-lhe a possibilidade de conquistar a liberdade. Novamente, é o homem que se encontra na base da construção da mulher; mas, desta vez, trata-se de uma construção positiva que permite à rapariga passar de uma atitude passiva a uma atitude ativa tanto a nível do intelecto quanto do corpo. Desta forma afasta-se definitivamente do princípio aristotélico segundo o qual a mulher é um “homem incompleto” (Ribeiro Ferreira, n.d., p. 143), um ser passivo e receptor, enquanto o homem seria um ser ativo e dador. A disciplina imposta ao corpo faz com que Bia perca rapidamente dois quilos e comece a usar calças. Enquanto mulher moderna, Bia age de ime-

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diato sobre aquilo que marca mais profundamente, segundo Bourdieu, a sua situação de subalterna em relação ao homem: Todo o trabalho de socialização tende, por conseguinte, a impor-lhe limites, todos eles referentes ao corpo, definido para tal como sagrado, h’aram [...]. A moral feminina se impõe, sobretudo, através de uma disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, e que faz lembrar e se exerce continuamente através da coação quanto aos trajes e aos penteados. (p. 18b-19c). Usando calças, Bia deixa o corpo livre e rejeita as estruturas sociais que o mantinham encerrado. Como evidencia justamente Bourdieu, a saia tem “uma função semelhante à sotaina dos padres” (p. 19b), ela “impede ou desencoraja alguns tipos de atividades (a corrida, algumas formas de se sentar, etc.)” (p. 19b). Graças à transformação do vestuário e ao desporto, a mulher vai aceder a outra imagem corporal, pois Bourdieu considera que 246

[...] a prática intensiva de um determinado esporte determina nas mulheres uma profunda transformação da experiência subjectiva e objectiva do corpo: deixando de existir apenas para o outro ou, o que dá no mesmo, para o espelho [...], isto é, deixando de ser apenas uma coisa feita para ser olhada [...], ela se converte de corpo-para-o-outro em corpo-para-si-mesma [...] (p. 41b-42a). Em Mundo Novo, a transformação da nova mulher é mais moral que física, Leonor consegue impor-se num mundo de homens, sem todavia passar pela transformação física que caracteriza as heroínas de Maria Archer. O tio confessa que a sobrinha, Leonor, deve “ser tratada com o respeito e com a mesma franqueza com que se tratam os homens inteligentes.” (Castro Osório, n.d., p. 115). A protagonista feminina de Mundo Novo afasta-se totalmente da tese de Bourdieu que consiste em afirmar que, quando as mulheres ocupam posições de poder, a sua situação é duplamente crítica e insolúvel, “se atuam como homens […], elas se expõem a perder os atributos obrigatórios da feminilidade [...] se agem como mulheres, parecem incapazes e inadaptadas à situação.” (p. 42a). Leonor contradiz esta asserção, pois ela consegue ser feminina e respeitada num mundo de homens.

Como Bia ou Annie, que obtêm a independência graças respetivamente à avó e ao pai, Leonor conquista a liberdade graças à tia que lhe facilitou o acesso à cultura. D. Barbara possuía, segundo a sobrinha, um espírito “esclarecido e cheio de tolerância para todas as ideias novas” (Castro Osório, n.d., p. 117). Contrariamente ao que afirma Bourdieu, a “vontade particular” de certas personagens facilita o acesso à emancipação sem que uma profunda transformação das forças simbólicas tenha necessariamente ocorrido. A mulher teria então a faculdade de sair individualmente dos habitus e até mesmo de os contrariar. As duas escritoras revelam-se assíduas militantes da causa feminina, mas a escrita de Maria Archer é mais aberta relativamente à liberdade sexual da mulher. Em “Um Inglês”, a escritora não hesita em descrever uma rapariga totalmente livre, não somente intelectualmente mas também sexualmente. Com o apoio do pai, de origem inglesa, Annie assume sem preconceitos a sua sexualidade. Nesta novela, a autora critica abertamente a sociedade portuguesa através das palavras do pai da jovem heroína: “–Isso de ficar desonrada por actos alheios é uma ideia portuguesa, fora de moda no resto do mundo... Não vou estragar o futuro da Annie para dar satisfação aos preconceitos de certa gente antiquada...” (Archer, 1949, p. 137). O pai opõe-se assim à mãe que, quando soube da gravidez da filha, emitiu o desejo, para salvaguardar as aparências, de a condenar sobre o altar da honorabilidade. As personagens femininas de Ana de Castro Osório não reivindicam um tipo de sexualidade sem tabus, mas sim uma liberdade jurídica e uma credibilidade profissional. A escrita de Maria Archer seria então mais feminina que feminista7 visto, como afirma Dina Botelho, a literatura feminina não ter por objectivo a reivindicação. Pretende, antes, mostrar uma realidade que não deveria existir. Uma realidade dura e degradante para a mulher. Defende a melhoria das condições da mulher, face à vida em geral e à sua actividade profissional, mas fá-lo subjectivamente e de forma pouco aguerrida. (Botelho, 1994, p. 21) Ana de Castro Osório, considerada como uma das primeiras feministas do nosso país, expõe a situação da mulher na sociedade portuguesa, mas também brasileira, não hesitando em criticar 7 Sobre este tema, ler Luiza Lobo, “Literatura de autoria feminina na América latina” (n.d.)

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abertamente esta sociedade que oprime o sexo feminino. Na primeira carta que escreve à sua amiga Regina, Leonor confia acerca de Portugal: “Ahi, concordo, há muito que fazer para alimentar o pêso enorme da injustiça e crueldade atávica, que esmaga a consciência feminina” (Castro Osório, n.d., p. 14). Para aliviar o sofrimento da mulher, o divórcio surge como um recurso indispensável, Leonor confessa que “para a sua idiosincracia nem sequer era motivo de dúvidas, em qualquer sociedade organizada legalmente.” (p. 92)      Contrariamente às personagens femininas de Filosofia de uma mulher moderna e de “Um Inglês”, Leonor leu “em revistas e jornais estrangeiros tudo quanto reflete, duma forma mais ou menos simpatica, a questão social a que, impropriamente, se convencionou chamar feminismo.” (p. 21). O seu militantismo feminista leva-a a afirmar: –Penso que não tenho já o direito de ser egoistamente feliz, pensando que há tanta mulher neste mundo que sofre fome e sêde de justiça e que eu poderei auxiliar na sua humana revolta. [...] Mal ou bem, sem razão ou com ela, julgo cumprir uma grande e util missão social interessando-me pela libertação do meu sexo. (p. 56) Persuadida de que a liberdade da mulher só pode passar pelo trabalho, Leonor coloca um abismo entre ela e o namorado quando ele lhe confessa: –[...] que a mulher não devia ter direitos, de que não saberia usar e os deveres lhe bastavam para preencher os dias da existência, unicamente devotada ao homem, seu senhor... [...] que mulher sua terminantemente seria impedida de exercer qualquer profissão remunerada, achando vexante e pouco seguro para o marido, que a mulher ganhasse dinheiro proprio, embora não despresasse o que trouxesse em dote, ganho por outros, e do qual seria o administrador [...]. (p. 27) Miguel encarna a imagem da sociedade portuguesa organizada segundo as regras androcêntricas. Nesta sociedade profundamente falocrática, as mulheres não podem ocupar um lugar de destaque no mundo do trabalho; ora, como afirma a socióloga brasileira, Belmira de Magalhães, “É no e pelo trabalho que o sujeito humano se constitui

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enquanto tal, modifica o mundo e a si mesmo num constante pôr de novo, criando novas necessidades e possibilidades [...]” (n.d., p. 2). Esta afirmação da mulher enquanto ser social que apavora o homem, porque constitui uma ameaça ao seu poder divino. Assim, ao pai que a desafia dizendo que é o homem que assume o trabalho e “os encargos mais pesados”, Antonina, rapariga com ideias profundamente feministas, responde: –Sim, Papá! É por nós compreendermos que é injusto que essa responsabilidade e esse trabalho pesado carregue todo sobre os vossos hombros é que reclamamos a nossa parte, para lhes facilitarmos a missão!... Mas... para os compensar queremos dar-lhes participação nas vantagens e honras da nossa realeza doméstica... (Castro Osório, n.d., p. 103) Visto a atividade profissional se apresentar como uma das soluções para a aquisição da emancipação, Catherine Marry lamenta que a problemática do trabalho feminino não tenha retido suficientemente a atenção de Bourdieu. Para a socióloga, Bourdieu não integrou a ideia de que a sociedade estava a ser alvo de uma mudança profunda baseada no trabalho da mulher e que aí residia a sua possibilidade de emancipação (Devreux, Marry, Fassin, Hirata & Löwy, 2009). Bourdieu preferiu focalizar sobre o poder redentor do amor, esse universo que ele considera encantado. Conforme o sociólogo francês, o sentimento amoroso deve assentar Num reconhecimento mútuo pelo qual cada um se reconhece no outro e o reconhece também como tal [...] dois seres podem “perder-se um no outro” sem se perder. [...] o sujeito amoroso só pode obter o reconhecimento de um outro sujeito, mas que abdique, como ele o fez, da intenção de dominar. Ele entrega livremente sua liberdade a um dono que lhe entrega igualmente a sua, coincidindo com ele em um ato de livre alienação [...]. (Bourdieu, 2002, p. 66a) O amor surge como um meio para abolir a dominação masculina. Esta visão do sentimento amoroso exposta por Bourdieu faz eco ao ideal do amor apresentado por Maria Archer e Ana de Castro Osório. Em Mundo Novo, Leonor confessa à sua amiga Regina ter encontrado em Bernardo o seu duplo: “junto de Bernardo, sinto-me engrandecida,

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mais forte e mais serenamente autónoma, como se as nossas almas estivessem organizadas de modo a viverem a par, numa perfeita e completa comunhão, sem absorção.” (p. 279). Leonor e Bernardo conseguiram aceder a essa profunda felicidade que é dada pelo encontro de duas almas gêmeas. Relembremos o mito grego que indica que, após ter criado um ser duplo –metade homem metade mulher–, Zeus, para castigar a criatura por ele formada, decidiu separá-la. Daí que para estas duas personagens o amor seja mais que o sexo, é antes de tudo uma união espiritual. Em “Up to date”, o narrador, sem dúvida emissário das ideias de Maria Archer, sublinha igualmente que a atração que o Quim sente pela Helsa é mais intelectual que física: A Helsa era o seu complexo integral, de corpo e alma, era a mulher companheira do homem, igual ao homem, era a mulher dos seus sonhos. Via nela a Mulher ideal dos romances estrangeiros, dos filmes estrangeiros, a mulher por quem ansiara, anos e anos, através do seu noivado infantil. (n.d., p. 94) 248

A escritora insiste sobre a ideia que a nova mulher é mais comum no estrangeiro do que em Portugal, país no qual o ideal do “eterno feminino” –tal como o descreve Júlio Dantas no seu livro epónimo (1929)– continua profundamente ancorado na sociedade. Não esqueçamos que Portugal foi submetido a uma forte restrição das suas liberdades logo em 1926, com a ditadura militar, e a partir de 1933, com o Estado Novo. Elisabeth Batista relembra que “Maria Archer foi escritora e jornalista durante os anos em que o Estado Novo queria a mulher em casa. A situação portuguesa na altura era francamente hostil a expressões do pensamento crítico [...] e, sobretudo, advindas de uma mulher.” (n.d., p. 6). Bourdieu salienta a importância do papel do Estado na reprodução da divisão dos géneros, citando como casos extremos os “estados paternalistas e autoritários (como a França de Pétain ou a Espanha de Franco), realizações acabadas da visão ultraconservadora que faz da família patriarcal o princípio e modelo da ordem social como ordem moral, fundamentado na preeminência absoluta dos homens em relação às mulheres” (p. 52b). Nesta citação Bourdieu poderia perfeitamente ter incluído o Portugal de Salazar. Se bem que as mulheres se encontrem “encerradas em uma espécie de cerco invisível” (Bourdieu, 2002, p. 20b), algumas escritoras, como Ana de

Castro Osório e Maria Archer, rejeitam o molde da opressão, escapando assim aos habitus descritos por Bourdieu. Elas põem em relevo certas estruturas arquetípicas referentes à feminilidade para melhor as destruir. Estas duas figuras marcantes da literatura feminina ousam contrariar a representação convencional, falocêntrica, da sociedade, apresentando nos seus romances e novelas mulheres em busca da independência. Elas têm em comum um desejo profundo de libertar o sexo feminino da jaula onde a família e a sociedade as colocou. O romance de Ana de Castro Osório e as novelas de Maria Archer revelam-se um excelente veículo para apresentar imagens da nossa sociedade poucas vezes utilizadas pelo historiador. Em todas as obras das autoras, a representação feminina surge como uma crítica à sociedade portuguesa e, no caso de Maria Archer, àquele que a domina: Salazar. A escritora foi fortemente molestada pelo regime salazarista, com a apreensão pela PIDE de dois livros e do manuscrito que relatava o processo de Henrique Galvão. Mundo novo de Ana de Castro Osório, Filosofia de uma mulher moderna e Há-de haver uma lei de Maria Archer são portanto obras profundamente militantes criadas num determinado momento da história, contra a ideologia patriarcal. Bibliografia Archer, M. (n.d.). Filosofia duma mulher moderna. Porto: Simões Lopes. Archer, M. (1949). Há-de haver uma lei... Lisboa: Edição da autora. Balzac, H. de (1891). La Physiologie du mariage. Paris: Calmann-Lévy. Batista, E. (2007). Entre a Literatura e a Impresa: Percursos de Maria Archer no Brasil. Tese apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo. Recuperado em 15 abril, 2012, de http://w ww.teses.usp.br/teses/.../tde-13022008-103921/ Batista, E. (n.d.). Entre o Índico e o Atlântico: Incursões literárias de Maria Archer. Recuperado em 15 abril, 2012, de http://www.fflch.usp.br/dlcv/ revistas/crioula/.../02.pdf Botelho, D. (1994). “Ela é apenas mulher”, Maria Archer Obra e Autora. Dissertação de Mestrado: Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Bourdieu, P. (2002). A dominação masculina (M. H. Kühner, Trad.) 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Recuperado em 12 maio, 2012, de http:// www.pdfcoke.com/.../Bourdieu-Pierre-A-Dominacao-masculina (obra original publicada 1998). Castro Osorio, A. de (1905). Ás Mulheres Portu-

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Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Marilene Felinto: ressonâncias e dissonâncias* Sandra Maria Job (UENP-CJ) (Brasil)

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RESUMO: As escritoras Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Marilene Felinto têm mais em comum do que o sexo, o gênero e a raça: são escritoras afro-brasileiras em cujos textos há uma inovadora representação literária da mulher negra. Sendo assim, este trabalho tem o intuito de trazer à tona os aspectos semelhantes e distintos quanto à representação da mulher negra nas obras dessas escritoras, refletindo sobre as particularidades quanto às representações que tornam estes textos, respeitando a distância temporal e a diferença de estilo, próximos ou distantes uns dos outros. E, mais importante, detectando, na medida do possível, indícios da trajetória histórica e social da mulher negra na literatura e sociedade brasileira para uma melhor compreensão de quem foi/é, onde e como está a mulher negra no texto e contexto social brasileiro.

Ter consciência do que nos aprisiona equivale a deixarmos de ser perigosos para nós mesmos. (Ana Cruz)

As escritoras Maria Firmina dos Reis (século XIX); Carolina Maria de Jesus (meados do século XX); Conceição Evaristo e Marilene Felinto (final do século XX e início do XXI) têm mais em comum do que o sexo, o gênero e a raça: são escritoras afro-brasileiras em cujos textos há uma representação literária da mulher negra que possibilita uma leitura além da literatura, isto é, nas obras dessas autoras, é possível ler, simbolicamente, entre outros aspectos, o que seria a vida social, literária, econômica... das mulheres negras na sociedade brasileira. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é trazer à tona os aspectos semelhantes e distintos quanto à representação da mulher negra nas suas obras, quais sejam: Úrsula e o conto “A escrava” (2004), de Maria Firmina dos Reis; Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), Carolina Maria de Jesus, As mulheres de Tijucopapo (1982), O lago *Este texto é parte dos resultados da minha tese de doutorado defendida em agosto de 2011, na Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação da Profª Drª Simone Pereira Schmidt.

encantado de Grongonzo (1992), Obsceno abandono: amor e perda (2002), de Marilene Felinto; Ponciá Vicêncio (2003), Becos da memória (2006), de Conceição Evaristo. O intuito é evidenciar os elementos que as tornam próximas ou distantes umas das outras. E, mais importante, detectar, na medida do possível, indícios da trajetória histórica e social da mulher negra na literatura e sociedade brasileira, através da sua representação literária nas obras daquelas autoras. Contudo, ao falar de possíveis aspectos semelhantes e/ou distintos quanto à representação na obra de qualquer autor/a não é possível ignorar certos aspectos como, por exemplo, distâncias temporais, históricas e a subjetividade inerente a cada ser humano. Devido a estes aspectos, óbvio que uma das diferenças entre aquelas autoras está relacionada à escrita de cada uma, como não poderia deixar de ser. Maria Firmina dos Reis escreveu em uma época na qual a literatura estava aten-

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dendo a certos propósitos como, por exemplo, a construção de uma identidade nacional, o uso da liberdade de expressão dentro de um gênero literário relativamente novo: o romance. Como ela possuía uma boa formação intelectual, tinha, desta forma, conhecimento da convenção literária de sua época, natural então que sua literatura fosse escrita o mais próxima possível do estilo literário vigente naquele período. Pode-se dizer que Maria Firmina dos Reis assimilou o modelo literário da época, contudo foi um pouco além e utilizou-o não como forma de ratificar uma identidade nacional, mas como arma para denunciar a chaga social, política e econômica daquele momento: a escravidão. A literatura de Carolina Maria de Jesus, por sua vez, está inserida em um contexto social e literário denominado de terceira fase modernista (1945-1960), partindo do princípio de que Quarto de despejo: memórias de uma favelada foi escrita antes de 1960, ano da sua publicação. Já desde a primeira fase do Modernismo, a literatura brasileira buscou por novos caminhos quanto à forma de se expressar, principalmente no que se refere ao aspecto da linguagem. Dando continuidade a esses novos caminhos, na terceira fase, as produções literárias se diversificam, são feitos experimentos linguísticos através de novas técnicas de expressão (Guimarães Rosa, Clarice Lispector) e gêneros literários vão conviver (um gênero não predominará sobre o outro). Já a contemporânea Conceição Evaristo se encontra num período privilegiado, pois, aparentemente, aqui se escreve o que se quer e no formato desejado. A liberdade de expressão, contudo, esbarra no caráter fragmentado1 do sujeito contemporâneo e, muitas vezes, na própria fragmentação da narrativa. Em Becos da memória e Ponciá Vicêncio, por exemplo, personagens fragmentados buscam reafirmar e/ou conquistar sua identidade humana, de raça, de gênero (não no sentido de construção social). Embora dividindo com Evaristo a contemporaneidade, Marilene Felinto, por outro lado, tem um único compromisso: com o eu subjetivo das personagens. Este eu que fala/grita tudo o que as personagens de Reis não podem falar, grita por toda fome e injustiça social educadamente denunciada por Carolina de Jesus e, além disso, extravasa todas as angústias e frustrações sufocadas no âmago das personagens de Conceição Evaristo. Mas mesmo gritando, na verdade, talvez por que gritem para o nada e ninguém em especial, as personagens de Felinto são as mais infelizes e 1 HALL, Stuart (2001).

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solitárias dentre todas as personagens das quatro escritoras, devido, principalmente, à solidão que as cerca. Contudo, apesar do distinto contexto e estilo nos quais estão inseridas, algo as torna próximas: a representação das mulheres negras, pois, entre outros aspectos, todas elas (autoras) trazem nos seus respectivos discursos narrativos, a representação de uma mulher negra consciente do seu estar e ser no mundo. Contudo, cada personagem vai vivenciar isso de uma determinada forma, pois estão intrinsecamente sujeitas à sua respectiva história pessoal. As personagens Susana e a escrava, ambas de Maria Firmina dos Reis, assim como a protagonista de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo, são e estão representadas na narrativa como pessoas conscientes da sua pouca ou nenhuma valorização na sociedade. Por isso, são pessoas introspectivas, tristes, possuidoras de uma revolta contida. Entretanto, estão, cada uma a seu modo e possibilidades, tentando reverter a sua condição enquanto mulher e mulher negra, exceto a escrava Susana. Contudo, o sistema político, social e econômico as aniquila ao longo da caminhada. Mas, nesse ponto, a questão temporal agirá sobre o destino de cada uma dessas personagens. O tempo histórico-social de Carolina Maria de Jesus e de Conceição Evaristo permitirá a suas personagens sonhar, ter esperança. Em Ponciá Vicêncio , “porque enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem que fosse pela força do desejo, a criação de um outro destino”2. Já com a protagonista de Quarto de despejo, porque indiferente à fome, à violência das favelas, um novo dia sempre amanhecia e com ele o “1 de janeiro de 1960”3 , 1970, 1980.... A mesma sorte, entretanto, não coube à Susana e à escrava, pois o contexto histórico dessas personagens não permitia que escravos tivessem muito com o que sonhar, exceto com a liberdade. Por isso, no século XIX, no qual estão inseridos a obra Úrsula e o conto “A escrava”, o sistema escravocrata vence, aniquilando quaisquer possibilidades de ser e estar para as personagens Susana e a escrava Joana. À primeira coube uma “escura e úmida prisão” onde a deixaram “entregue aos vermes, à fome e ao desespero”4 até morrer. Mesmo fim teve a escrava Joana, mas esta foi mais ousada, porque “antes que a morte (lhe) cerre os lábios para sempre”5ela pede para falar, pois quer “morrer 2 3 4 5

EVARISTO, 2003, p. 103. JESUS, 1960, p. 182. REIS, 2004, p. 225. REIS, 2004, p. 225 (parêntese meu).

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amaldiçoando os (seus) carrascos”6 . Ainda nesse contexto de ser e estar no mundo, observa-se nas personagens de Felinto, certas diferenças e peculiaridades quando as comparamos com as personagens de Maria Firmina, Carolina M. de Jesus e Evaristo. Também é possível observar, em relação à Marilene Felinto, que quando comparamos o comportamento das suas personagens entre si, nota-se que cada uma delas tem uma relação distinta com o passado e o seu ser e estar no mundo. Em outras palavras, em relação ao segundo caso, n’As mulheres de Tijucopapo, Rísia conscientemente sabe que é prisioneira de um passado e, por isso, está em busca de si, de respostas. Deisi, n’O lago encantado, é “uma mulher completa – mentirosa e ruim [...]”7 e está sem “interesse em esmiuçar um pedaço de passado que organizasse em linha a história de sua vida”8. Nesta o passado tem relevância, mas ela não quer revivê-lo e “pra não sentir saudade, virava bicho, em g de grande ganso, a ave que voa mais alto para onde”9. Já “Dona Baratinha” ou Maria doidinha, em Obsceno abandono, é e está “só”10. Portanto, de Rísia a “Dona Baratinha”, personagem da última obra, há um desapego da personagem para com as lembranças passadas. Se o passado em Rísia é a causa de toda sua infelicidade e de seu percurso dentro da narrativa, o mesmo acontece com Deisi, porém de forma mais amena, e, praticamente, inexiste para “Dona Baratinha”. Quando saímos da literatura do século XIX, isto é, do texto de Maria Firmina dos Reis, e nos detemos, especialmente na literatura do século XX, outro aspecto, vai se juntar aos outros tantos problemas enfrentados pelas personagens: a da solidão enfrentada por aquelas que ascenderam social ou intelectualmente e se encontram no “entre mundos”11, o que equivale dizer sem mundo, pois retroceder não é possível e ser aceita no ‘novo’ mundo não é algo tão simples assim. Esta solidão, por um lado, é, segundo Sueli Carneiro, consequência da hegemonia da ‘branquitude’ que instituiu a mulher negra como a antimusa da sociedade brasileira, dando-lhe uma acentuada desvantagem, entre outras coisas, no mercado afetivo, o que caracteriza uma situação de solidão estrutural motivada pelo desinteresse dos homens brancos e pela

6 REIS, 2004, p. 225(parêntese meu). 7 FELINTO, 1992, p. 14. 8 FELINTO, 1992, p. 41. 9 FELINTO, 1992, p. 130. 10 FELINTO, 2002, p. 11.. 11 Expressão usada por SAID, Edward. Entre mundos. In: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

deserção de grande parte dos homens negros12. Mas quando falo de solidão, não quero me referir a problemas de ordem pessoal que acometem qualquer mulher e que, como é sabido, dificultam sim que as mesmas se relacionem sentimentalmente com alguém como, por exemplo, o fato de ser separada/divorciada, ter filhos e/ou certa idade. Quando me refiro à solidão que pode perpassar a vida social da mulher negra, quero me referir à exclusão que a mesma sofre devido ao padrão de beleza socialmente instituído, aos estereótipos socialmente construídos e que a desvalorizam/ denigrem aos olhos da sociedade, devido à própria desvalorização pessoal introjetada que a mesma tem para consigo; quero também me referir ao entre mundo, entre classes, entre vidas pelos quais transita. Enfim, refiro-me a aspectos que fogem às consequências fortuitas de quando se é casada/ solteira, com filhos/sem filhos, idosa/jovem, gorda/ magra. Refiro-me, portanto, a aspectos socialmente construídos que têm o poder de colocar a mulher negra em desvantagem em determinados segmentos como o afetivo, já mencionado na citação acima. A questão da entre classe, por exemplo, pode ser observada em Quarto de despejo, pois assim que inicia a ‘ascensão’ social da narradora-personagem, ela começa a sofrer certa rejeição por parte dos vizinhos, pois, por exemplo, quando eu ia chegando, os vagabundos disseram: – Olha a Elisabety Thaylôr [sic]. – Vão criticar o Diabo!13 Claro que na piadinha dos vizinhos pode ter um quê de inveja também. Mas nem por isso deixa de ter um lado de rejeição, uma forma de eles dizerem que ela não mais pertence àquele grupo social. Mas como a ascensão social de alguém não implica na aceitação tácita pelo grupo ao qual se ascendeu, o não pertencer mais à antiga classe social e nem a atual é que colocará o indivíduo nesse entre ambientes, porque retroceder não se justifica, ‘enturmar-se’ na nova classe dependerá de um conjunto de fatores muitas vezes alheios à vontade daquele que ascendeu socialmente. Ainda em relação à solidão, esse novo aspecto, portanto, estará presente de forma mais relevante nos textos de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Marilene Felinto. Desnecessário explicar 12 CARNEIRO, 2002, p. 74. 13 JESUS, 1960, 180.

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o porquê da ausência desse novo item ‘excluidor’ na literatura de Maria Firmina, no século XIX, em pleno sistema escravocrata. Porém, a condição de escrava não impede, muito pelo contrário, acaba colocando Susana e a escrava Joana em uma espécie de “entre mundos”, no qual, a lembrança/ memória/cultura seria o mecanismo com o qual ratifica sua identidade, mas, ao mesmo tempo, inconscientemente, poderia ser também o mecanismo através do qual, Susana, em específico, reivindicaria para si um pertencimento a um grupo/ mundo que, exceto pelo lado da memória, não mais lhe pertenceria. Portanto, a denúncia de Carneiro sobre a hegemonia da ‘branquitute’, citada acima, vem ao encontro da situação de Ditinha, doméstica e analfabeta funcional que, ao pensar nas belas roupas, joias e nos bonitos sapatos da patroa, olhou-se no espelho e se sentiu “tão feia, mais feia do que normalmente se sentia”14, pois sugestionada pela visão do outro (no caso a sua patroa branca), ao se olhar no espelho, enxergou-se com os olhos desse outro. Em outras palavras, a beleza que via na patroa a cegou para quaisquer aspectos belos que trazia em si, pois não viu refletido no espelho nada que se assemelhasse à beleza alva da patroa. Daí a constatação de ela não ser um modelo de beleza, pois não possuía nada do que a patroa tinha – nem em beleza física, muito menos em bens materiais. Muito provavelmente, mas de forma inconsciente, foi o fato de se defrontar com essa ‘verdade’ socialmente introjetada que o desejo de roubar, no sentido metafórico e literal do termo, um pouco da beleza física e material da patroa nasceu, por isso “colocou a caixinha de jóias na terceira prateleira; mas, antes, porém, apanhou a pedra verde, tão bonita, tão suave, que até parecia macia.[...]. Ditinha colocou o broche no peito, só que do lado de dentro do peito [...]. A pedra não era tão macia assim, estava machucando-lhe o peito15. Machucava porque não era da sua índole apropriar-se de coisas alheias e, além disso, “Ditinha gostava muito de D. Laura”, em contrapartida, “D. Laura gostava muito do trabalho de Ditinha”16. Devido a essas desigualdades afetivas, econômicas e, principalmente por saber não corresponder ao padrão de beleza pré-estabelecido é que, por outro lado, ‘Maria Doidinha’ curva-se, único momento, sob o peso de (pré)conceitos físicos e não foge à indagação: “quem fará o favor? Quem fará o favor de olhar para a minha cara feia? Quem 14 EVARISTO, 2006, p. 93. 15 EVARISTO, 2006, p. 99. 16 EVARISTO, 2006, p.94.

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fará o favor de apaixonar-se por mim?”17, pois sabe não ter o padrão de beleza estabelecido e sabe que isso é, pelo menos, uma das causas da sua solidão. Das vozes ouvidas aqui, pode-se concluir, portanto, que as poucas dissonâncias entre elas advêm da distância histórica e temporal, como não poderia deixar de acontecer. Já as ressonâncias, isto é, os aspectos em comum quanto à representação da afro-brasileira nas quatro escritoras, elas têm desafiado ao tempo, pois as desigualdades sociais, de gênero e raça ainda existem até os dias atuais, por exemplo. Diante de todos os aspectos expostos aqui e devido a algumas dissonâncias, para uma melhor compreensão da mulher negra na sociedade e na própria literatura, poder-se-ia separar sua trajetória histórica, literária, social e humana em três fases cujas características são distintas. A primeira fase, na qual Maria Firmina dos Reis e seus textos estão inseridos, diz respeito ao período no qual as mulheres negras, de forma generalizada, não tinham quaisquer atenções, qualquer consideração da sociedade brasileira (além do aspecto de mercadoria valiosa), pois não existiam enquanto pessoa, apenas como objeto de propriedade particular. Já a segunda fase, na qual se encontra Carolina Maria de Jesus, a situação social da mulher negra sofreu poucas alterações, muito embora o fim da escravidão já tivesse completado mais de cinquenta anos e um novo sistema de governo também. Nesta fase houve uma ‘anulação’ distinta da primeira, pois elas (mulheres negras) não apenas tinham uma existência real, eram cidadãs livres – para ir e vir. Porém, na intimidade era uma existência ‘real’ na medida em que sua presença servia à sociedade enquanto mão-de-obra, isto é, a mulher negra era boa para os serviços domésticos. Afora isso, sua invisibilidade social tornava sua existência praticamente nula. Mas como ela era uma cidadã livre – e considerada ‘boa para os serviços domésticos’ –, ela adquiria, nesta situação, a sua visibilidade social, pois os meios para adquirir essa mão-de-obra pediam caminhos e ‘jeitos’ distintos daqueles do tempo da escravidão, visto que não era mais possível comprá-las em mercados abertos e nem mantê-las onde elas não quisessem trabalhar. Sendo assim, a sociedade, necessariamente, enxergava-a e é por isso que a ‘anulação’, neste período, torna-se distinta da primeira fase. A outra forma de a sociedade enxergá-la, tornando-a visível dentro do contexto social, era quando a sua presença, por um motivo ou outro, tornava-se 17 FELINTO, 2002, p. 80.

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incômoda, isto é, quando a mesma ousadamente aparecia em ambientes nos quais era ‘proibida a entrada de negros’, por exemplo. Em se tratando da literatura, no período correspondente à Carolina M. de Jesus, a situação pouco se alterou, pois embora tenha sido dada visibilidade para as personagens femininas negras, essa visibilidade não chegou além do exterior das mesmas, isto é, das mãos, braços e pernas, enfim do corpo: instrumento necessário para a realização dos serviços da casa e da ‘cama’ – na concepção da sociedade e, muitas vezes, refletida na literatura. Tudo isso, portanto, colocaria a mulher negra em um contexto no qual existe sim a ‘anulação’ da sua pessoa enquanto indivíduo, cidadã, mas que se realiza sob condições sociais distintas que, entre outras coisas, permite-lhe ser política e socialmente livre – embora ainda não reconhecida, respeitada e valorizada. Em relação à terceira fase, a mesma compreende os anos 80 do século passado até a atualidade, por isso é preciso considerar a proximidade desse período como um elemento complicador, pois falta um distanciamento que proporcione uma certa neutralidade a qualquer julgamento. Contudo, nesta fase, na qual Conceição Evaristo e Marilene Felinto estão inseridas (de 1980 a 2011), é possível lançar algumas assertivas. Uma delas diz respeito às últimas décadas onde termos como anulação, intolerância, por exemplo, não devem nortear pensamentos e atitudes, porque já há algum tempo existe em relação ao pobre uma nova atitude, que vai do sentimento de culpa até o medo. Nas caricaturas dos jornais e das revistas o esfarrapado e o negro não são mais temas prediletos das piadas, porque a sociedade sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado de coisas, e o temor é um dos caminhos para a compreensão.18 Mais que o temor, creio que lembranças de um passado sangrento, desumano na história da humanidade, aliado a uma propagação de discursos conscienciosos sobre o respeito às diferenças contribuem para as mudanças de hoje, isto é, a sociedade contemporânea tenta remendar e não repetir erros passados e, é fato, há uma grande parcela da sociedade disposta a viver e deixar viver, a respeitar para ser respeitada, felizmente. De qualquer forma, neste contexto surgiu, ainda que com ressalvas, uma abertura para nós mulheres negras. Ressalvas porque para alcançar esta 18 CÂNDIDO, 1995, p. 238.

abertura estas mulheres ainda encontram muitas dificuldades, tanto de ordem econômica quanto de gênero e raça dentro da sociedade. Contudo, a mulher negra neste terceiro momento está (re) escrevendo sua história nas literaturas e na sociedade brasileira. Esta (re)escrita tem denunciado que a trajetória da margem até o centro (já que o centro é algo que a sociedade capitalista nos impõe e do qual, por isso, não podemos nos livrar) ou suas proximidades é lenta, pois a ‘abertura’ muitas vezes se confessa utópica ou se revela como uma miragem. Por isso, uma das formas encontradas para atravessá-la se resume a ir ‘comendo pelas beiradas’, isto é, ir buscando mecanismos de sobrevivência alternativos para atingir os objetivos. Neste processo ainda árduo, dadas as muitas adversidades seculares, a mulher negra vai realizando o que na atualidade se denomina como ‘inclusão’19. Na literatura, em muitos casos, inserindo-se nesse campo através da união de grupos de escritores como, por exemplo, o Quilombhoje ou com uma literatura de escre(vivência)20. Enfim, fazendo-se visível na sociedade e literatura enquanto sujeito e objeto de sua escrita, enquanto portadora de um discurso feminino negro... Por tudo isso, esse momento pode ser caracterizado como o do movimento para dentro de uma sociedade na qual nem sempre sua pessoa se fez presente. Ou seja, fase do movimento para dentro da sociedade literária, dos discursos acadêmicos, dos discursos políticos, sociais... E/ou pode ser também a fase do movimento no qual se quer negar para reivindicar algo, isto é, fase da negação de uma sociedade que se autodenomina democrática, negação de ‘verdades’ construídas para elas, negação de que somos mulheres cujos anseios, cujas reivindicações são iguais aos da mulher branca só por sermos do mesmo sexo, entre outras tantas negações. Fase esta na qual o movimento para dentro, isto é, o movimento de ingressar, inscrever, inserir19 ‘Inclusão’ pode ser compreendido como sendo o “fechamento, encerramento de alguma coisa dentro de outra”, segundo Bueno (1988, p. 1888), semântica que neste contexto não explica a mobilidade e a existência de uma independência que advogamos ao longo deste trabalho. Ainda nesse viés, se lermos IN – CLU – SÃO por partes silábicas, pode-se obter os seguintes significados: in = entre, em; club = sociedade, associação; são = que tem saúde, saudável. Ao pé da letra, inclusão pode ser lida, então, como estar dentre aqueles que são saudáveis, se a sílaba ‘clu’ estiver relacionada ao termo club, do inglês e são remeter ao vocábulo sadio. É uma possibilidade (ainda que gramaticalmente pouco fundamentada aqui) que, de qualquer forma, dá ao vocábulo inclusão um peso que não quero trazer para esta terceira fase da mulher negra na sociedade brasileira. Principalmente porque na sociedade brasileira, o termo inclusão está muito associado à inclusão das crianças portadoras de alguma deficiência nas escolas regulares, isto é, nas escolas onde estudam os alunos ‘normais’ (sadios aos olhos da sociedade, em oposição aos ‘não normais’ - os portadores de deficiência, os ‘doentes’ aos olhos da sociedade. Por isso trouxe a palavra entre aspas simples. 20 Termo utilizado por Conceição Evaristo

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-se passa, parece que necessariamente, pelo caminho do imigrar. Imigrar para dentro de si, para o passado. Por isso, talvez, a literatura afro-brasileira tenha esse olhar voltado para o passado e para o interior de si e suas reminiscências. Linguisticamente, este é o caminho da inserção, da inscrição, enfim, do movimento que nós leve a um lugar/espaço de direito. Quanto às literaturas das escritoras dessas três fases, em particular as que foram estudadas aqui, mesmo sendo literaturas distintas, posto que estão inseridas em fases, em períodos literários e estilo de escrita distintos, seus discursos ultrapassam as barreiras temporais e revelam um legado entremeado de ressonâncias, denunciando o quanto e como gênero, raça e classe têm conduzido e tornado distinta a vida das mulheres negras. E se estas ressonâncias têm invadido os séculos, insistir, portanto, nos aspectos racistas, discriminatórios, machistas que permeiam as relações de gênero e raça e, consequentemente, classe no Brasil ainda é a única forma possível de reverter o legado que o tempo deixou: os estereótipos depreciativos que têm colocado a mulher negra, em muitos casos, em uma situação de exclusão profissional e/ou social e/ou afetiva. Por isso, estão, no amor, na “[...] eterna busca, busca de um lugar que não seja o de amante fogosa,  mas da mulher que ama e quer ser amada” de acordo com a historiadora Fabiana Schleumer21. Mas quase sempre terminam social e literariamente solitárias, pois já dizia ‘Maria Doidinha’, “ hoje é sábado de noite no silêncio da minha casa, e estou pondo roupa no varal como se fosse qualquer outro dia deste mês [...]. Dia, noite, segunda, terça, tanto faz.. Estou só22. Reverter todo este contexto, contudo, não tem data, nem tempo certo. O certo é jogar palavras, reflexões no tempo presente, acreditando que o tempo futuro saberá traduzi-las e (re)escrevê-las. Isso, porém, não quer dizer que se chegou ao fim de um problema secular: a situação social dessa mulher. Aliás, “a quantas mil milhas será que estou? A 250? Faltará parte ainda?”23 Seguramente sim, visto que “a paisagem que eu trouxe pintada na folha em branco [...]” não “virou uma revolução”24, já que não era essa a proposta. Mas, por outro lado, essa “paisagem” rabiscada aqui possibilita que reflitamos, entre outras coisas, sobre quem é, onde e como está a mulher negra na 21 Fala da historiadora Fabiana Schleumer após apresentação na XI Conferencia Internacional de Cultura Africana y afroamericana, realizada em Santiago de Cuba, em abril de 2010. 22 FELINTO, 2002, p. 11(grifos meus) 23 FELINTO, 1982, p. 56. 24 FELINTO, 1982, p. 133.

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sociedade e literatura brasileira. Refletir e se posicionar, de preferência antes que “bip-bip-bip-bip... [...]. Tempo esgotado” porque “a vida é cruel”25. E no ínterim de um século para outro, de uma década para outra estereótipos já foram criados, sofrimentos impingidos e outras senzalas criadas, pois para os (e porque) vivos o tempo não para – para nada, nem ninguém. Referências Bibliográficas BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico – prosódico da língua portuguesa. São Paulo: Editora Lira S.A., 1988. v.2 e 4. CÂNDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CÂNDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. CARNEIRO, Sueli. Gênero, democracia e sociedade brasileira. In: BRUSCHINI, C. UNBEHAUM, S.G. (orgs.) Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Ed. 34, 2002. EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003. _____. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza edições, 2006. FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. _____. O lago encantado de Grongonzo. 2.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1992. _____. Obsceno abandono: amor e perda. Rio de Janeiro: Record, 2002. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 2. ed. São Paulo: Editora Paulo de Azevedo Ltda., 1960. REIS, Maria Firmina. Úrsula. Ilha de Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2004.

25 FELINTO, 2002, p. 77

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A desconstrução dos estereótipos sobre a mulher em Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo Anike Ruth Omidire | Obafemi Awolowo University Ile-Ife, Nigéria

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Resumo: A mulher é geralmente concebida e apresentada em muitas obras literárias dentro do modelo patriarcal, como dona de casa, pessoa frágil, aquela que é incapaz de opinar ou atuar no tempo certo, colocando-a como um ser passivo na sociedade, o que reflete na maneira em que ela é tratada no espaço publico e privado. É na perspectiva de rebelar e lutar contra essa imagem passiva da mulher que muitos autores e muitas autoras começaram a desconstruir os estereótipos, reconstruindo uma imagem positiva e avançada da mulher em suas obras literárias. A obra de Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio (2003) entra nessa última modalidade. Essa obra reflete a mistura de realidade e ficção, dentro do qual alguns eventos memoriais da época Pós -Escravidão no Brasil são revelados. Também a autora fala da memória familiar da protagonista da obra Ponciá Vicêncio. O presente ensaio pretende estudar como a autora desconstrói os estereótipos femininos, mostrando no contexto textual da obra a denuncia da realidade social dos afro-brasileiros que trabalham nas fazendas dos brancos. Em prol da valorização da imagem feminina, este trabalho vai mostrar como a autora destaca na protagonista – Ponciá – a imagem de dona do saber familiar que pretende mudar seu próprio destino. Por outro lado pretende-se mostrar como a atitude e ação da protagonista expõem a dor e a satisfação que acompanham o caminho da emancipação feminina

Introdução Sempre os estudos de gênero nos levam a entender melhor a importância de imagens obtidas nas obras literárias vis-à-vis à imagem dadas às mulheres na sociedade. A partir dos anos ‘60, as mulheres na Europa começaram a lutar contra todas as injustiças que elas enfrentam no mercado de trabalho e na política. Helena Parente Cunha1 destaca a luta das feministas nos anos que seguem aos anos de 60. Nos anos de 70, elas lutam conta o excesso do patriarcado, nos anos de 80, elas tematizam as conseqüências do sujeição da mulher ao poderio androcêntrico. A luta parece sem fim, até hoje as mulheres continuam na luta contra todas as formas e espécies de injustiça. Desde já, gostaria de ressaltar que eu analiso a imagem da mulher de uma raça na obras literárias com o foco de mudar a imagem da mulher de todas as raças, porque somos, todas nós, mulheres na mesma situação: as nossas realidades e 1 Cunha, Helena Perante, “A Mulher Partida: A Busca do Verdadeiro Rosto na Miragem dos Espelhos”. In Entre Resistir e Identificar-se para uma Teoria da Prática da Narrativa Brasileira de autoria feminina. Org. Peggy Sharpe. Editora Mulheres, FLorianópolis, SC. Brasil. 1997:113

as nossas experiências são mais unidas do que as cores que nos separam. Na maioria das obras literárias, a mulher é apresentada na sombra de um homem ou estereotipada. Por isso, a análise de desconstrução dos estereótipos sobre a mulher na obra de Ponciá Vicêncio é um caminho no meio de tantos para reconstruir a imagem da mulher nas obras literárias. A literatura é geralmente entendida como uma representação ficcional da realidade, utilizando a linguagem como seu instrumento de comunicação. Por isso, ninguém pode negar o poder da linguagem no mundo literário. Margarita Naona, na sua análise de linguagem e violência na obra literária mostra o poder da linguagem. Em “Pierced Tongues, Language and Violence in Carmen Boulosa`s Dystopia” ela explica como a criança cresce no meio da sua família e da comunidade, aprendendo das falas e das idéias dos membros dessa comunidade. Ela afirma que ninguém existe na ausência da linguagem, porque, para ela, a linguagem representa todas as regras que governam a sociedade humana, todas as violências e todos os prazeres,

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(2003:231). Não há nada de exagero em dizer que as imagens apresentadas nas obras literárias podem influenciar ou definir o comportamento das pessoas na sociedade. É esse poder da linguagem na literatura que serve como uma arma de naturalização das imagens estereotipadas da mulher. Lucia Marilena Guidicini contesta essa idéia do espaço privado como o âmbito natural da mulher. Ela explica que isso é uma forma de deformação machista da realidade em defesa dos próprios interesses e de monopólio do espaço público. Também critica a ausência de acesso das mulheres às atividades profissionais. Ela chama isso de um estratagema para evitar a participação das mulheres que possam sair muito melhor do que os homens (1987:87). Por isso, toda mulher tem que sair desse padrão patriarcal. Arnfred Signe (2011:33) também comenta sobre essa falta de oportunidades para as mulheres no espaço público em seu estudo das mulheres moçambicanas, o que vale para todas as mulheres. Para ela, as mulheres são poucas no espaço público não porque elas são incapazes de atuar nessa área, mas porque as regras patriarcais já confinam-nas na vida domestica2. Tudo isso nos leva a repensar a representação da mulher na sociedade, e a pensar como se pode desnaturalizar os estereótipos naturalizados sobre a imagem da mulher tanto na sociedade como nas obras literárias. A luta das feministas e o avanço de estudo de gênero, têm o foco de emancipação feminina. Desde os anos ’70, logo após e resultando da revolução de 68, muitas feministas da primeira geração já haviam proclamado a desconstrução dos estereótipos sobre a mulher. (algumas precursoras d(esse) gênero mais conhecido como) feminismo desconstrucionistas dos anos de 70 são Virginia Woolf, Julia Kristeva etc. Perrot, (2007:15) descreve a mudança que aconteceu depois desse período assim, ... A partir desse período a história das mulheres mudou em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam a mudança3 2 Arnfred Signe, Sexuality and Dender Politics in Mozambique. Rethinking Gender in Africa. James Currey, Boydell & Brewer Ltd, UK. 2011:33 3 http://www.portalsaofrancisco.com.br/ Depoimento de Conceição Evaristo concedido a Eduardo de Assis Duarte,em 2 de março de 2006., Acesso em:03 de fevereiro, 2012.

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A desconstrução dos estereótipos sobre a mulher na obra de Ponciá Vicêncio Depois de muitos anos de opressão feminina, alguns autores engajados na luta contra a opressão feminina e a má representação da mulher na sociedade e nas obras literárias começam a revoltar contra essa situação. Eles usam a única arma que têm, seu poder intelectual, para reconstruir a imagem da mulher na sociedade através de uma imagem criada fora de estereótipos. O foco dessa tentativa é incentivar a nova imagem da mulher na sociedade, também para ajudar na mudança de comportamento feminino e na percepção que o povo tem da imagem da mulher. A análise da imagem das mulheres nas obras literárias é muito importante no campo acadêmico do feminismo. Principalmente para mostrar que alguma coisa está errada na representação da mulher, e por outro lado, denunciar as imagens estereotipadas da mulher na literatura. Além disso, Davies (1986:14-15),comenta que isso torna-se uma forma de contestar a representação deformada que a maioria dos autores masculinos fazem da figura feminina, desmascarando seu machismo e, às vezes, seu racismo contra a mulher.. Quase sempre, as representações feitas das mulheres nas obras literárias são baseadas no estereotipo. Criticando a naturalização dos estereótipos sobre a mulher, Francineide, F.(2008:3), afirma, “...os estereótipos de gênero atravessaram os tempos e naturalizam a diferença entre o masculino e o feminino como se essa visão social e cultural que varia a depender da civilização, época e povo, fosse uma característica biológica”4. Em muitos casos, a mulher é vista como a provocadora das relações sexuais, ou seja, atribui-se-lhe um papel ativo na vida privada, principalmente do tipo ilícito, enquanto ela é apresentada como um ser necessariamente passivo no espaço público. Afirmando essa noção na sua análise de algumas obras literárias brasileiras, Cristina Ferreira Pinto descreve a imagem da mulher na maioria das obras literárias como um mito da feminilidade: Even Works that depict Brazilian social reality, critically, or with irony, such as Manuel Antônio de Almeida`s popular novel Memória de um sargento de milícias, fails to significantly deviate from stereotypical portrayal of women. In reality Memórias defines some of the myths of feminity that will be pervasive in Brazilianculture throughout the twentieth century. These myths are concerned particularly with the 4 Palmeira Francineide Santo, Souza, FLorentina da silva. “Representações de Gênero e Afro-descendência na obra de Conceição Evaristo” 2008:3

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female body and sexuality and with marriage as the institution that sets the boundaries for women`s social action.5

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Efetivamente, a estereotipação da mulher denunciada por Cristina Ferreira Pinto é evidente na construção da mulata Gabriela projetada na obra de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela e de Rita baiana em O Cortiço, de Aluisio Azevedo e tantas outras obras literárias brasileiras. Como afirma Lucia Marilena Guidicini, o machismo é considerado como terreno de confronto e conflito pelas feministas. É nessa crítica ao machismo e outras formas da ideologia construída pela instituição patriarcal que as feministas encontram as raízes da humilhação e de todo o preconceito contra as mulheres. A mulher é condenada a ser subordinada ao homem enquanto ser homem é sinônimo de poder. Virginia Woolf sugere uma abordagem desconstrutiva do binarismo que aprisiona os sexos em pólo opostos regido pela relação de poder. (Apud, Eduardo de Assis Duarte, 2003:442) Quer não, a imagem estereotipada da mulher nas obras literárias faz parte dos produtos desse binarismo. Para todas feministas, é necessário desconstruir a imagem estereotipada da mulher, esvaziando todo o discurso preconceituoso do machismo para que as mulheres possam melhorar de auto estima e disputar o espaço público a pé de igualdade com os homens. Outro elemento histórico que a gente não pode deixar de salientar nessa obra é a questão de preconceito racial que existe na sociedade brasileira. Por questão histórica, a mistura das raças na sociedade brasileira não se produziu sem problemas entre os componentes da população. De fato, o mito da democracia racial é um disfarce para esconder a segregação e discriminação racial na sociedade brasileira. Esse preconceito racial é visto como uma sombra que percorre e atormenta a sociedade brasileira até os dias de hoje. A noção comum relacionada à raça e gênero é concebida nessa noção de que a mulher branca é para casar, a mulata é para fazer amor e a negra para cozinhar. Essa noção da mulata boa-de-cama é exibida nas personagens de Gabriela e Rita Baiana dos dois autores já citados, o que denuncia o racismo latente dos autores. Começando pelo sentido do próprio título da obra de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela6 que é relacionado ao aroma do 5 Cristina Ferreira Pinto, Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women`s Literature. Purdue University, 2004:15 6 Cravo e Canela referem-se ao aroma do corpo de Gabriela que Nacib aprecia e que ele não consegue esquecer depois do divórcio.

corpo de Gabriela, já se vê desde o início da obra que o autor quer eternizar a noção popular da ‘mulata boa-de-cama’. De fato, esse preconceito racial promovido por Jorge Amado confirma a afirmação de Eliana Guerreiro Ramos Bennet de que existe no Brasil um mito sobre a sexualidade da Mulata. Isso, ela demonstra com maestria na sua análise da situação da mulher afro-brasileira no texto “Gabriela, Cravo e Canela: Jorge Amado and the Myth of the Sexual Mulata in Brazil” na qual ela assim descreve esse preconceito racial, “In Brazil, there developed the ideology of `Mulata` by which woman of colour are mythologized as both less than human and over sexual”7. Na realidade, vejo a situação da mulher afro-brasileira pior que isso. A mulher afro-brasileira sofre de uma tripla condenação - ela é inferiorizada ao homem; ela é condenada ao espaço privado e ainda estigmatizada como modelo hiper-sexual como é o caso de Gabriela e de Rita Baiana. Conceição Evaristo e a criação de Ponciá Vicêncio Falar da autora de Ponciá Vicêncio é também falar da obra por causa da experiência da infância da autora que faz parte dos temas desenvolvidos na obra. A autora, Conceição Evaristo nasceu em 1946, numa favela situada no alto da Avenida Afonso Pena, hoje uma das áreas mais valorizadas da zona sul de Belo Horizonte. A mudança social e estrutural que tornou sua área que era de barracos e favelados para uma avenida de altos prédios deixou a autora a guardar tudo que havia vivido antes dessas mudanças na memória afetiva. Essa memória foi re-consultada depois de muitos anos para produzir muitas obras que servem para conscientizar os afro-descendente sobre a sua herança cultural e identidade racial. Autora de muitas obras literárias, a obra Ponciá Vicêncio foi seu primeiro romance e foi indicado ao vestibular da UFMG em 2008. A mesma obra foi publicada recentemente em Inglês. A autora condena a forma pela qual o discurso histórico tenta esconder os feitos e as contribuições de negros africanos para a construção do Brasil. Ela citou várias obras literárias tais como os romances de São Bernardo de Graciliano Ramos e Agosto de Rubem Fonseca como exemplos de textos em que os negros existem como personagens, mas sem ter o direito à fala. Denunciando tal silenciamento, ela pergunta: 7 Eliana Guerreiro Ramos Bennett na sua análise de ``Gabriela, Cravo e Canela: Jorge Amado and the Myth of the Sexual Mulata in Brazil``In The African Diaspora, African Origins and NewWorld Identities. Ed. Isidore Okpeweho, Carole Boyce Davies & Ali A. Mazrui. Indiana University Press, U.S.A. 1999, p.232

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“...O que uma ficção que cria personagens sem fala está construindo? ...A literatura brasileira nega a presença negra na constituição da nacionalidade brasileira?...”8A sua arte é muito diferente, ela procura alterar as imagens estereotipadas da mulher nas suas obras, apresentando a realidade das mulheres afros-descendentes desde a sua própria experiência como mulher negra, sofrida e oprimida que precisa ser vindicada. Como ela mesma analisa no seu trabalho intitulado “Da representação e auto-representação da mulher negra na literatura brasileira”(Apud, Francineide et al, 2008: 53): ...Uma leitura mais profunda da literatura brasileira, em suas diversas épocas e gênero nos revela uma imagem deturpada da mulher negra. Um aspecto a observar é a ausência de representação da mulher negra como mãe, matriz de uma família negra, perfil delineado para as mulheres brancas em geral... 9 A tentativa de mudar as imagens estereotipadas da mulher liderar a criação de uma protagonista forte e corajosa na sua obra de Ponciá Vicêncio, dando uma imagem valorizada para essa personagem. O ambiente cultural e memorial em que a autora cresceu, com a mãe que valoriza a herança cultural africana ajudou-a bastante na criação das suas obras ficcionais. Sua biografia mostra como a mãe, Dona Joana, sempre conta as historias para os pequenos depois do trabalho de lavar e passar roupas que ela fazia. A mãe ainda pediu a autora e outros para escrever muita dessas historias em caderno grafado a lápis. Seguindo no mundo, ela deparou-se com a sociedade que não lhe deu outra oportunidade senão para ser doméstica. A autora exercia este mesmo ofício enquanto sonhava em estudar. Apesar de toda a dificuldade enfrentada pela autora quando se dispôs a estudar, a sua formação da infância e a exigência da mãe severa colaboram para o sucesso de seu desempenho literário. Em 1990 foi publicado o primeiro poema de Conceição Evaristo em Cadernos Negros, Numero 13. E seu poema “Vozes-mulheres”, foi uma produção literária na qual ela demonstra a sua ligação com sua herança memorial. A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos 8 Conceição Evaristo, [email protected]. Acessed: Dimanche 29 avril 2012, 20h37 9 Ibid, Francineide et al: 53

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de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos donos de tudo. e fome...10 Ponciá Vicêncio, defensora do saber familiar A historia e a memória de um povo se forma a partir da convivência do povo junto com sua experiência em um período. Nessa reprodução de memória de um povo, os velhos, principalmente os avôs são considerados os guardiões da memorial familiar. Nesse papel de mediador da memorial os mais novos se encontram com os eventos marcantes da historia de seu povo e de sua família, tirando as morais necessárias para suas vidas. Essa corrente de contar uma história ou mostrar a maneira de fazer uma coisa para uma nova geração pela velha geração faz parte da cultura oral do povo africano, a origem dos afros-descendentes. Segundo Amanda Dal’Zotto Parizote, “os avós são considerados figuras fundamentais para a análise da representação da família e se configuram como responsáveis pela manutenção do valor família”11Essa colocação confirma a atuação de Conceição Evaristo na criação de sua obra. Ela reproduz as histórias narradas por sua mãe nas suas narrativas. Aline Alves Arruda (2007:11) descreve essa obra como “...uma historia narrada com alta dose de lirismo e com marcas culturais...”, essa idéia de Aline mostra como a autora valoriza sua herança negra. Pensando na historia da humanidade e toda evolução que acompanham o povo por muitos séculos, o poder de saber e de contar a historia ficam nas mãos dos homens. Raramente acha-se uma mulher na liderança de tal empreendimento. O lugar de liderar é sempre reservado por os homens, sendo eles capazes de funcionar nesse cargo ou não. Graças à luta dos movimentos das mulheres e das feministas a partir dos anos de sessenta que dá um novo olhar para a situação da mulher com isso a mulher começa a aparecer em algumas obras literárias em nova imagem de valor tal como Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo. A obra Ponciá Vicêncio (2003) tem o foco de relatar e denunciar os eventos históricos que preju10 Ibid, Eduardo de Assis Duarte. 11 Amanda Dal’Zotto Parizote “Literatura, história: Fronteiras instáveis” In Mulher e Literatura:, Historia, Gênero, Sexualidade. Org. Cecil Jeanine Albert Zinani, Salete Rosa Pezzi dos Santos. Caxias do Sul, RS. Brasil. 2010:41

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dicam os afros-descendentes na época da pós-escravidão. Presente no contexto textual da obra e dos temas tratados, a denuncia da opressão e a dominação enfrentada pelos trabalhadores afros-descendentes nas fazendas dos brancos nessa época e a desconstrução dos estereótipos sobre a mulher, o que deixa a obra a ser considerada um romance de denuncia. A protagonista Ponciá Vicêncio consegue reconstruir seu destino a través do saber familiar e sua coragem de dar um novo rumo à sua vida. Ela demonstra uma coragem forte e uma sensibilidade focada à união familiar e às relações familiares. Maria José Somerlate Barbosa no prefácio da obra descreve a protagonista, Ponciá Vicêncio como uma agente memorial que conecta a cultura e a memorial familiar do passado com o presente. Ponciá é de uma família simples e humilde, o pai trabalha com o irmão de Ponciá em uma fazenda do Coronel Vicêncio e a mãe trabalha com a criação dos objetos feitos de barro. A arte familiar que a mãe de Ponciá passa para ela. Ela trabalha com a mãe no trabalho de barro e esses objetos passam a ser vendidos na fazenda pelo pai de Ponciá. Quando a mãe de Ponciá embarca na viagem em buscar de seus filhos, Ponciá e Luandi que foram para a cidade, ela encontra suas obras de barro e de filha em cada povoação que ela passa, “E nessa andanças, em cada lugar que passava, encontrava os trabalhos de barros feitos por ela e pela filhas”.12Até na cidade, Luandi, o irmao de Poncia também encontra o trabalho da mãe e de irmã em uma exposição, com seus nomes grifados nesses trabalhos. Essa descoberta dos trabalhos de barro das duas mulheres na obra nos ponha diante da desconstrução de estereótipo sobre a mulher, transformando Ponciá e sua mãe de mulheres passivas para mulheres produtivas no espaço publico. Mostrando também a valorização do poder econômico da mulher na sociedade e o reconhecimento da mulher como a preservadora da memória familiar. Ponciá sempre demonstra seu afeto para sua família. Na sua família, a protagonista é vista como alguém que carrega a marca memorial de seu avô. Os pais de Ponciá Vicêncio continuam a estranhar à maneira como a menina comporta-se como o avô, andando de braço coto igual ao avô. Com o saber de barro, ela faz uma figura de avô de braço coto, guarda dentro de um pano na casa. Quando a mãe achou o trabalho escondido de Ponciá Vicêncio, ela continua pensando nesse mistério da herança familiar que a menina carrega, uma vez ela 12 Ibid, Conceição: 85

...O que havia com aquela menina? Primeiro andou de repente e com o todo jeito de avô... agora havia feito aquele homenzinho de barro, tao igual ao velho. Ela havia enrolado o trabalho guardando-o no fundo do caixote. E mesmo assim, parecia que la de dentro saia ora risos-lamentos, ora choro-gargalhadas. O que fazer com a criação da filha? Sim era ele, igualzinho! Como a meninia se lembrava dele? Ela era tão pequena quando o homem fez a passagem. Como, então, Ponciá Vicêncio havia guardado todo o jeito dele na memória?...13 Mas diferente do que a mãe pensava, a herança familiar maior que ela herdou de avô é o foco de mudar a situação de seu povo, a luta pela liberdade. Nessa obra, conseguimos acompanhar a trajetória da vida da protagonista que mostra sua determinação de mudar a sua vida para o melhor. Nesse caminho nada chega para ela de bandeja, ela começa a ter dificuldades consigo próprio, começando com o próprio nome que carrega. Remi Sonaiya (2010), pensando nos obstáculos que afrontam um povo na luta pela liberdade nos lembra que o caminho da liberdade nunca é fácil. Sugere a coragem e persistência do povo na luta pela liberdade, “Freedom will never be handed to us on a platter; it is a people’s desire for and insistence on freedom that compels and propels them to wrest it from the hands of whoever their oppressor might be.”14Mesmo sabendo que o caminho de liberdade nunca é fácil, Ponciá Vicêncio coloca a esperança e a determinação como seus guias de caminho. A luta pela sua identidade começa desde criança. Cada vez que a sua mãe manda-a buscar o barro, Poncia Vicêncio senta-se na beira do rio e questiona o seu ser, o nome dela parece vazio. Ela considera o sobrenome “Vicêncio” como um estigma que refere à herança da escravidão. Porque o sobrenome da família “Vicêncio” é também o nome de Coronel, o branco. Ele é o dono da fazenda onde todos os homens da sua família trabalham. Por isso o nome sempre traz para ela uma sensação de opressão e dominação racial. Vemos como a autora descreve o sentimento de Ponciá sobre seu nome: ... em tempos outros, havia sonhado tanto! Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe 13 Evaristo Conceição, Ponciá Vicêncio. Maza Edição, Belo Horizonte.2003:18-19 14 Sonaiya, Remi. A Trust to Earn. Reflection on Life and Leadership in Nigeria. Prestige Publisher, Lagos, Nigeria. 2010:41

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deram. Menina, tinha o habito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa...15 Fora desse nome que ela odeia, a memorial familiar que ela guarda a faz lembrar de alguma historia dolorosa da situação opressiva de seu povo. O pai de Ponciá Vicêncio havia contado uma historia de como a vida era dura para ele e o avô na fazenda. No período posterior à Lei Áurea, ele experimentava o maltrato na mão de filho de coronel, o coronelzinho da fazenda. O pai de Ponciá Vicêncio naquela época sempre ia com o seu pai, (o avô de Ponciá Vicêncio) para a fazenda com o sonho de conhecer a terra de sua família. Ele era o “pajem” para o filho de Coronel porque era ele quem brincava com o coronelzinho na fazenda. Um dia o filho de coronel pediu para ele abrir a boca para ele mijar dentro. Ele abriu e o coronelzinho começou a urinar dentro de sua boca. Ele questionava a situação de liberdade do seu povo. Ele como o pajem de sinhô moço era também o escravo de sinhô moço. O pai de Poncia não entendia a situação do pai, se ele estava livre porque continuava na mesma situação de opressão, exploração e dominação? Considerando como a protagonista ocupa uma posição de mulher consciente, pronta para lutar contra toda forma de injustiça podemos dizer que a luta pela emancipação feminina está muito presente na obra. Outra coisa que Poncia Vicêncio guarda na memória é a discriminação racial contra seu povo naquela época. O coronelzinho (O filho do Coronel Vicêncio) demonstra isso quando ensina o pai de Ponciá Vicêncio a aprender a ler. Para ele, os negros não são tão inteligentes como os brancos. E quando o pai de Ponciá Vicêncio consegue reconhecer as letras em pouco tempo, ele questiona o poder de saber dos negros e pergunta o que o negro fazia com o saber dos brancos, “...Quando sinhô-moço se certificou que o negro aprendia, parou a brincadeira. Negro aprendia sim! Mas o que o negro ia fazer com o saber de brancos?...”16 Essa manifestação do coronelzinho confirma a colocação de Ayoh’Omidire (200:9), na sua análise do que chama de “Oralitura ou uma outra escrita”, ele traz à luz a ligação entre a oralidade e a escrita dos gêneros literários do povo Yorubano na África, ressaltando o preconceito europeu em relação ao povo africano afirmando que “ ...O estereotipo europeu 15 Ibid. p. 16 16 Ibid, p. 14-15

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mais comum era considerar todos os povos africanos como incultos, portanto incapazes de fazer aquilo que a epistemologia eurocêntrica classisfica como “ alta literatura...”17 A situação dos negros na fazenda dos brancos piora e por causa da injustiça contra os negros, o avô de Ponciá entra na tristeza. O avô matava a mulher e tentando se matar quando o filho e outros conseguiram impedi-lo de tirar sua própria vida. Mas ele já se havia mutilado, cortando o próprio braço. Por muitos anos antes de sua morte, o avô fica no delírio, às vezes grita ou dá sorriso de nada. Depois disso, o Coronel Vicêncio planeja tirar os papeis assinados para a doação de terra, com o pretexto de ajudá-lhes a guardar esses papeis. Para ele, os negros não sabem guardar documentos. Mas o avô de Ponciá não cai nessa armadilha. Na frente de Coronel rasga o título da sua terra, porque não queria entregá-lhe a sua terra. Tudo isso faz parte da memorial familiar que Ponciá guarda no seu pensamento, pensa na revolta do avô na luta contra a opressão racial. É nesse ponto que nos conseguimos achar a herança de Poncia Vicêncio – a luta pela liberdade de seu povo. Ponciá segue esse caminho de ser diferente dos outros, ela tomar a coragem de sair da sua terra, Vila Vicêncio, em busca de uma vida melhor. O questionamento da situação precária do povo negro na fazenda dos brancos e a insatisfação de Ponciá Vicêncio com o seu nome, sua identidade, tem uma referencia ao tempo de escravidão e são justificadas na experiência vivida pelo seu povo depois da escravidão. Ponciá queria uma nova identidade para ela. Barro (1989) descreve o ser humano como um produto do meio social. Para ele, a compreensão comum dos símbolos e dos significados e a comunhão de noções que partilhamos com os membros social definem o caráter social das memórias individuais. A través dessa participação de um grupo social, na reconstrução da lembrança coletiva, os indivíduos conseguem reconstruir sua memória coletiva, (Apud Amanda Dal’Zotto Parizote, 2010:30-38. Vale dizer que a memória coletiva que Barro descreve está muito presente na vida de Poncia Vicêncio, e isso muda sua vida de uma menina simples, filha de um trabalhador de fazenda e de trabalhadora de barro para se transformar numa guerreira. Para uma mulher chegar nesse ponto de lutar contra as discriminações raciais, precisa ter uma coragem que a faça chegar no ponto de ser impugnante às regras da sociedade patriarcal. 17 Ayoh’OMIDIRE, F. “Yorubanidade Mundializada: O reinado oralitura em textos yorubá-nigerianos e afro-baianos contemporâneos”. Tese de doutoramento, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2005:9.

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Considerando como a protagonista ocupa uma posição de mulher consciente, pronta para lutar contra toda forma de injustiça podemos dizer que a luta pela emancipação feminina está muito presente na obra. Outra coisa relacionada é a criação de uma nova imagem fora de discurso androcêntrico, aquela que atua por decisão própria. Essa atitude confirma a colocação de Martha Narvaz e Henrique Caetano Nardi que convidam as feministas para fazer a desconstrução dos discursos hegemônicos acerca dos sexos e dos gêneros.18A final, todos os estereótipos sobre a mulher foram naturalizados a partir das representações das mulheres nas muitas obras literárias de autoria masculina e nas imagens promovidas na sociedade, nada melhor do que criar uma personagem ativa como Ponciá. Para se torna uma mulher independente, Ponciá Vicêncio se disponha a aprender a ler. Ela se interesse por ter um novo saber fora de saber de barro. Até sua mãe se disponha a deixar a menina a aprender a ler com a esperança de que um dia ela terá outra vida melhor. Em uma oportunidade de aprender com os missionários na sua área, Ponciá Vicêncio se disponha a fazer tudo para conseguir o novo saber. A autora descreve a coragem e o desempenho de protagonista nesse período de aprendizagem: ... Ponciá Vicêncio vencia as dificuldades. Aprendeu o abecedário, conhecia as letras em qualquer lugar..., quando os padres partiram, depois de terem cumprido todos os seus ofícios, Ponciá logo percebeu que não podia ficar esperando por eles para aumentar o seu saber. Foi avançado sozinha e pertinaz pelas folhas da cartilha. E em poucos meses já sabia ler... 19 Na tentativa de conquistar a emancipação feminina, a autora coloca Ponciá, uma menina na posição de liderança deixando seu irmão, Luandi, (que sempre acompanha o pai ao trabalho) a seguir o exemplo de Ponciá. É Poncia que decide viajar para a cidade, quebrando uma das regras da sociedade patriarcal que somente os homens podem ocupar o lugar de liderança. Na sociedade patriarcal é o homem que ocupa o lugar de chefe da família, é ele que sair em busca da nova vida enquanto a mulher fica à espera do homem em casa. Acrescentando nessa troca de papel de gênero, a menina embarca em uma viagem de três dias e três noites, com todo desconforto e de fome, mostran18 Martha Narvaz e Henrique Caetano Nardi, revista Mal estar e subjetividade, vol. vii – Nº 1 – Fortaleza, Mar /2007,p. 45-70. Acesso em:25 fev, 2012. 19 Ibid, p. 25-26

do sua forca e sua coragem. A autora descreve sua coragem assim, “...ela trazia a esperança como bilhete de passagem. Haveria, sim, de traça o seu destino...”20. Chegando na cidade toda sozinha, sem nenhuma pessoa conhecida para a acolher, ela dorme na frente da igreja até o dia seguinte quando ela consegue arrumar um trabalho de domestica na casa de uma mulher. Ela trabalha e fica juntando dinheiro para comprar um barraco na perspectiva de trazer sua família para a cidade. Foi esse exemplo de coragem de Ponciá que o irmão de Ponciá segue quando ele sair para a cidade e foi acolhido pelo soldado Nestor, um negro que ajuda ele a aprender a ler e realizar seu sonho de se tornar um soldado também. Essa oportunidade de ter alguém para amenizar o sofrimento da cidade para quem é novo falta no caso de Ponciá, é ela que resolve sua problema sozinha. Ponciá Vicêncio na relação do género Pela regra, a sociedade moderna tem uma vocação androcêntrica, ou seja, ela é centrada na figura masculina. O estudo de gênero mostra como a sociedade patriarcal coloca o homem como ocupando o topo da hierarquia das relações homem-mulher. O homem é considerado como o provedor, o trabalhador que ocupa o espaço publico. Por outro lado, a mulher tem o seu lugar marcado na sociedade, condenada ao espaço domestico que é considerado natural para toda mulher, pilotando o fogão e cuidando da ninhada. No estudo de gênero e jornalismo, Nincia Ribas Borges Teixeira (2012), explica as funções de revista na desconstrução dos estereótipos sobre a mulher em seu trabalho de “A Nova Mulher: O estereotipas femininas representadas na Revista Nova Cosmopolita.” Para ela, “...as imagens promovidas na revista mostram as ideologias, cultura, hábitos e formas de vida das pessoas em uma época...”21 A mesma opinião vale para analisar as obras literárias, elas tornam a ser consideradas como o espelho da sociedade e uma fonte de entender a evolução da imagem feminina na sociedade. Na relação de gênero, a sociedade patriarcal coloca o homem como aquele que ocupa a posição de liderança, ele é o provedor da família, o modelo da humanidade. Por causa de sua atuação no espaço publico, ele tem na mão o controle de poder econômico e político. Enquanto a mulher é a outra, condenada ao espaço privada como dona de casa, 20 Ibid, p. 35 21 Teixeira Nincia Ribas Borges, “A Nova Mulher : O estereótipos femininos representados na Revista Nova Cosmopolita. [htpp://revista.univerciencia.org/ index.php/versoereverso] Acesso em:03 de fevereiro, 2012.

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coroando ela na função de procriação. Essa falta de oportunidade no espaço publico para a mulher a deixa de ser dependente no marido por todas necessidades financeiras. A situação se torna mais desagradável para uma mulher quando sua função biológica de mãe se torna a ser uma inibição para sua ascensão social. O estudo de gênero mostra como o corpo da mulher pode ser um fator determinante que impede sua ascensão social. A crítica de Simone sobre os corpos femininos é que a mulher está sempre ligada ao seu corpo, isso é justificada nos modelos dados às mulheres em muitas obras literárias. Ela critica a naturalização dos alguns estereótipos através de conceito biológico da mulher, “o corpo feminino permanecesse preso a sua imanência, o que lhe deixa fora da possibilidade de transcendência”. (Apud, Funck, Susana Boméo. 2003, SIgne Arnfred, 2011:108) A mulher é sempre amarrada com seu corpo ou com sua função materna, limitando a ao espaço domestico sem nenhuma oportunidade de mostrar sua capacidade no espaço público. No caso de Ponciá Vicêncio, ela sofre de fator biológicos. A perda materna de sete filhos no casamento e o sufoco de violência domestica a deixa na tristeza, a mesma posição de tristeza que ela procura mudar. Na sua memória está a lista das mulheres negras como Sá Ita, Durvalina e Zé Moreira, trabalhadoras domesticas que ainda sofrem por causa de miséria. Por causa da discriminação racial a mulher negra não tem outra opção a não ser o trabalho menos remunerado, tal de domestica. Infelizmente, a conquista de alfabetização e de trabalho na cidade pela Ponciá não a coloca fora de estereotipo de negra pobre. E nessa situação sofrida de Ponciá, a única coisa que faz sentido para ela é o sonho de encontrar sua familiar. Enquanto muitas mulheres irão permanecer na solidão da perda de seus filhos, Ponciá se abre ao outro caminho de felicidade. Ela sempre lembra da sua promessa de retornar a Vila Vicêncio para buscar sua mãe e seu irmão. Lembrando que a velha Nêngua Kainda na Vila VIcêncio a avisa que um dia, ela vai cumprir sua herança e encontrar sua família. Um dia ela decide sair de casa em buscar de sua família. Tudo que vale para ela no mundo, é encontrar sua família e volta para o rio da sua terra. A autora descreve essa cena de partida de Ponciá em busca de sua família: Um dia, depois de olha para o homem como se fosse não o visse, depois de tantos anos recolhida, enterrada morta-viva dentro de casa, Ponciá Vicêncio sorriu, gargalhou, chorou, dizendo que sabia o que fazer. La toma o

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trem, volta ao povoado, volta ao rio. Dizendo isso apanhou debaixo do banco a estatueta do homem-barro. Pegou ainda uns panos e com um gesto antigo, com um modo rememorativo de sua mãe, perguntou se não havia folhas de bananeiras secas e palhas de milho para embrulhar o barro. Em seguida fez uma pequena trouxa e lentamente saiu...22 Ponciá saia com toda determinação para a estação de trem, e seu irmão que já se tornou um soldado reconhecê-la na sua ida e volta e levá-la para sua casa para encontrar sua mãe. A partida de protagonista mostra que a memória familiar se torna o objetivo maior de vida para ela, não há nenhum lugar no seu coração para a submissão feminina no casamento ou para o sentimento afetivo. Com isso a autora desconstrói o estereotipo de que a mulher é feita só para o casamento. Outra coisa que vale salientar na obra é a denuncia de violência domestica que está presente na obra. Sabemos que a violência domestica não é um novo tema na nossa sociedade, essa atitude violenta já foi denunciado pelas feministas por muitos anos. Analisando a atitude de Ponciá diante dessa violência domestica, descobrimos que a autora mostra sua fidelidade à realidade da condição da mulher na sociedade patriarcal. Através da protagonista, podemos ver a situação da mulher que ela está silenciada pela repressão e pela submissão feminina que percorre a sociedade patriarcal. A apresentação das causas sociais pela autora como a explicação para a violência domestica na obra não são as justificações de violência, mas uma forma de denunciar a injustiça contra os homens afros-descendentes na sociedade brasileira. Isso mostra que os homens afros-descendentes são vitimas da desigualdade social e racismo, o que levam alguns a tornar-se violentos quando não querem. Para afirmar essa posição da autora, Harrazini (1998:81) descreve a violência domestica como a distribuição desigual do poder físico, econômico psicológico, social e sobre tudo emocional do homem.23Mas para defender as mulheres violentadas precisamos mais que essa leitura. Outra analise feminista nos aconselha de tomar cuidado com toda simpatia que nós temos para os homens quando o assunto é violência contra as mulheres. Yvete Flores Ortiz (2003) critica essa simpatia das mulheres pelos homens violentos. Ela 22 Ibid, p. 123 23 Apud, Ivoneide Lima de Goias, “Violência domestica na cidade de Natal”In Os Poderes e Os Saberes das Mulheres: A Construção do Gênero. Org, Maria Ferreira et al. EDUFMA, Salvador, 2001.

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descreve a atitude das mulheres que têm simpatia para os homens violentos como a manifestação de cultura, linguagem e ordem patriarcal. Algumas mulheres escolhem o silêncio para proteger a honra da família e outras por piedade dos homens que sofrem de desigualdade social. Algumas mulheres que sofrem da repressão no casamento resultam em divulgar seus sentimentos através de outros vínculos como as canções etc, mas no caso da protagonista, ela escolhe a forma tradicional, “o silêncio”. Se nos consideramos a época que a autora pretende recriar na obra, podemos dizer que a escolha de Ponciá está certa porque naquela época não há outra opção para as mulheres a não ficar no silêncio diante de um marido violento. Ponciá procura isola-se em silêncio para proibir o acesso do marido ao seu mundo. Esse silêncio tem dois lados: primeiro, para uma mulher ficar no silêncio durante a violência domestica, a autora mostra isso como o produto da cultura de repressão feminina. Outra interpretação para esse silêncio é que algumas feministas consideram esse tipo de silencio como uma forma de prevenir a expansão do poder masculino. Showalter, (1985:262) descreve a condição da mulher opressiva com a diagrama de Ardener. Mostrando que a mulher opressiva consegue isola se em um espaço crescente, chamado “Wild Zone” onde o homem não tem nenhum acesso de penetrar, deixando o sem forçar de dominar a mulher. A descrição da reação de Ponciá um dia que o marido agredi-la mostra que ela escolha a segunda opção de silencio. “...Ela não reagia, não manifestava qualquer sentimento de dor ou de raiva”24 Mas vale dizer que nada justifica a violência contra a mulher. O estudo de gênero condena a permanência de silêncio diante da violência domestica, A nova visão de conscientização aponta para a denuncia de violência em qualquer forma, seja no espaço público ou privado. Precisamos evitar a continuação de naturalização de violência domestica e a continuação da cultura de silêncio Conclusão Em conclusão, a busca pela desconstrução dos estereótipos sobre a mulher nessa obra torna se um olha extensivo e profundo para a análise de emancipação feminina. Essa nova representação da mulher brasileira na obra nos ponha diante das novas representações da mulher na sociedade humana. Essa tentativa serve para incentivar a criação de nova imagem da mulher na sociedade, serve também para ajudar na mudança de comportamento e de percepção do povo. Cada ima24 Ibid, p. 98

gem valorizada e não estereotipada transformara a situação da mulher de pior para o melhor A autora, Conceição Evaristo mostra que a mulher também tem direito de escolhar o que ela queria e de ter um sonho fora da vida sentimental. Ela tem sua arma para combater a desigualdade que existe na nossa sociedade. Basta-a decidir, e sistematicamente acabará com todo preconceito sobre a mulher. Em prol da valorização da imagem da mulher, é importante acabar com a naturalização dos estereótipos machista/sexistas e racistas, tal como as de Jorge Amado, Luísio Azevedo citado no trabalho. Como Lukás sugere, precisamos das obras literárias que apresentem o essencial da condição humana e não as que promovem as ideologias falsas. (apud Toril Moi, 1985:7) Referências bibliográficas AMANDA, Dal’Zotto Parizote. “Literatura, história: Fronteiras instáveis” In Mulher e Literatura:, Historia, Gênero, Sexualidade. Org. Cecil Jeanine Albert Zinani, Salete Rosa Pezzi dos Santos. Caxias do Sul, RS. Brasil. 2010 ARNFRED, Signe. Sexuality & Gender Politics in Mozambique, Rethinking Gender in Africa. James Currey, Suffolk, UK. 2011 BENNETT, Eliana Guerreiro Ramos. “Gabriela, Cravo e Canela: Jorge Amado and the Myth of the Sexual Mulata in Brazil``In The African Diaspora, African Origins and New World Identities. Ed. Isidore Okpeweho, Carole Boyce Davies & Ali A. Mazrui. Indiana University Press, U.S.A. 1999 CARVALHO, Maria Eulina. “Introdução à Questão das Relações de Gênero”. EDUIFIBA, Salvador. 2004 DAVIES, Carole Boyce “Feminist Consciousness and African Literature Criticism” In Ngambika, Studies of Women in Africa Literature. Ed. Carole Boyce Davies & Anne Adams Graves. Africa World Press, Trenton, New Jersey.1986 DUARTE, Eduardo de Assis. “Feminismo e Desconstução: Anotações para um possível percurso”. In Refazendo Nós:ensaios sobre mulher e literatura. Org. BRADÃO, Izabel e ZAHIDE, L. Florianópolis, Ed. Mulheres: EDUNSC. 2003 EVARISTO, Conceição, Ponciá Vicêncio. Maza Edição, Belo Horizonte. 2003 FUNCK, Susana Boméo. “O jogo das Representações”. In Refazendo Nós: ensaios sobre mulher e literatura.Org. BRADÃO, Izabel e ZAHIDE, L. Florianópolis, Ed. Mulheres: EDUNSC. 2003 FERREIRA, Mary. Org. Os Poderes e os Saberes das Mulheres: A Construção de Gênero. São Luis,

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A ESCRITA DO CORPO NA LITERATURA FEMININA AFROBRASILEIRA: novos olhares, outras representações* Cristian Souza de Sales** Liz Maria Telles de Sá Almeida*** Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes, Brasil

RESUMO: As práticas discursivas falocêntricas e etnocêntricas têm, ao longo da história, moldado e demarcado o corpo da mulher negra para ela mesma sem que esta se reconheça nessas representações ou construções. As escritoras afrobrasileiras contemporâneas têm construído outras formas de representação para o corpo feminino negro, desvencilhando-o do discurso normatizador, da objetificação e da fragmentação do desejo patriarcal. Em suas poesias, elas deixam a condição de ser objeto de representação na escrita “outro” para se tornar, simultaneamente, sujeito e objeto de sua produção literária. Este artigo tem por objetivo analisar como são elaboradas estas novas imagens.

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CONSTRUINDO UM PERCURSO: LEITURAS POSSÍVEIS SOBRE O CORPO. Compor, Decompor, Recompor Olho-me espelhos Imagens que não me contém Perdem-se de meu corpo as palavras Decomponho-me [...] Recompondo-me sentada na sala de espera falando com meus fantasmas (ALVES, 1985, p.32)1 1 Poema publicado pela autora em sua segunda antologia poética Estrelas no dedo em 1985.

Como primeira forma de visibilidade humana, o corpo desperta interesses, teorias e interpretações em diferentes áreas do conhecimento. Da medicina às artes, da biologia à cultura, multiplicam-se explicações quanto aos seus aspectos anatômicos, étnicos e estéticos. No campo natural e biológico, o corpo físico é dado como uma materialidade finita. Contudo, para além de seu caráter biológico, o corpo humano sofre interferências ideológicas, culturais, religiosas, políticas, assim como de gênero, raça e classe, entre outras. Em Corpo, conhecimento e educação: notas esparsas, Carmem Soares (2006, p.3) afirma que em um sentido mais “agudo” de sua presença, como “materialidade polissêmica”, constituído por múltiplas significações e sentidos, o corpo “invade lugares”, exige compreensão, determina funcionamentos sociais, mas também sofre “determinações pedagógicas e disciplinamentos”. Nele, a sociedade “circunscreve o seu retrato”, impondo “limi* As reflexões apresentadas neste artigo foram desenvolvidas durante a elaboração da dissertação de mestrado intitulada Composições e Recomposições: o corpo feminino negro na poesia de Miriam Alves. (SALES, 2011) ** Mestra em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB, professora de Universidade Aberta do Brasil (UAB/EAD/UNEB), participante do Grupo de pesquisa CNPQ: Leitura e ensino: tecendo identidades, imprimindo leituras, participante do Grupo de pesquisa CNPQ: História, Literatura e Memória, da Universidade do Estado da Bahia-UNEB. Email: [email protected]. *** Mestra em Estudo de Linguagens pela Universidade Estado da Bahia-UNEB, professora substituta de Literatura Brasileira, da Universidade Estado da Bahia-UNEB, Campus XXIV. Email: [email protected]

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tes sociais e psicológicos”, principalmente, a sua conduta moral. Esta também fixa seus “sentidos e seus valores”, submetendo o corpo a normatizações, privilegiando um dado número de atributos físicos e padrões estéticos que o “transformam” e o definem dentro de uma escala definida entre o aceitável e o inaceitável. E o modo como este se move e modifica-se “revela trechos da história a que pertence”. (SOARES, 2006, p.110). Em É possível realizar uma história do corpo, Denise Bernuzzi Sant´Anna (2006, p.3) apresenta perspectiva semelhante à de Soares, já que considera a possibilidade de leitura do corpo a partir de duas dimensões, abrindo espaço para reflexões sobre o tema, tanto na esfera biológica – quanto na cultura e/ou simbólica. Para a autora, o corpo é uma “instância biocultural” que é determinada por aspectos naturais, morais, religiosos e históricos. Território simbólico onde “atuam forças que não cessam de inquietar e confrontar”. É um verdadeiro arquivo vivo: “talvez seja o mais belo traço da memória da vida” dos sujeitos. Segundo Sant´Anna, investigar seus segredos e sua história é uma tarefa ampla e escorregadia, pois quando se pesquisa o corpo por meio de suas inúmeras vias, a biológica, a cultural, a educacional, a política, a antropológica, entre outras, é preciso destacar uma questão geral: como uma dada cultura ou um determinado grupo social criou maneiras de conhecê-lo e controlá-lo?. (SANT´ANNA, 2006, p.3). Portanto, diferentemente de realizar uma história do corpo, Sant´Anna orienta que talvez seja mais instigante realizar investigações sobre algumas das ambições utilizadas para “governá-lo e organizá-lo”, pois cada vontade de “manter o corpo sob o controle” é constituída por ideologias, “especificidades e generalidades culturais”. Assim exposto, a autora ressalva que é preciso levar em conta como uma dada cultura “o define e o interpreta” ou ainda de que forma um determinado grupo social criou maneiras de “conhecê-lo, governá-lo e controlá-lo”, impondo-lhe condutas morais, sociais, raciais e de gênero ou definindo padrões estéticos. (SANT`ANNA, 2006, p.3). Em uma vertente de reflexão mais restrita, Nilma Lino Gomes (2006, p.261), em Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo de identidade negra, corroborando com as reflexões propostas por Sant´Anna e por Soares, diz que para além do princípio de apreensão do corpo em sua “especificidade biológica” ou mesmo em suas funções “puramente fisiológicas”, aproximando-o das “relações de sentido e de significação”, interpretado em sua

“materialidade simbólica”, o corpo está localizado em um “terreno social e subjetivamente conflitivo”2. De acordo com Gomes, ao longo da história, o corpo se tornou “emblema étnico”, símbolo a ser explorado, manipulado e transformado nas “relações de poder e de dominação” para marcar “assimetrias sociais”, “classificar, hierarquizar” e estabelecer desigualdades na “distribuição de poder” entre grupos raciais distintos por causa de fenótipos como a cor da pele. Assim, a sua aparência física passou a difundir mensagens e a integrar significados ideológicos relacionados a “atributos negativos e positivos”, introjetados por regras sociais, padrões estéticos, códigos de comportamento moral, transformando-se em “objeto de reflexão e de apelo da cultura” dominante, sendo por ela, “tocado, modelado, modificado”, violentado e agredido. (GOMES, 2006, pp.261-262). Nesse sentido, a autora passa a discorrer sobre o corpo negro, pois segundo ela, no processo histórico, cultural e político brasileiro, este corpo foi “tocado, modificado”, agredido e violentado nas relações do poder mantidas entre os brancos e os afrodescendentes. O corpo negro foi usado como um dos “sinais diferenciadores” mais evidentes pelo racismo para estabelecer hierarquias entre as classes sociais no Brasil e para marcar a “referência negra” de um sujeito, e, dessa forma, justificar sua posição social subalterna. (GOMES, 2006, p.261). Sobre este corpo, agiram duplamente e de forma simultânea, a violência física e simbólica, investindo no controle de sua aparência, em seus movimentos, em seus gestos, em suas expressões, em seus desejos, em suas vontades, em suas experiências, entre muitos outros aspectos. Essa é uma das razões pelas quais, na construção de sua identidade, na sociedade brasileira, os negros, sobretudo, as mulheres negras “por meio de um aprendizado contínuo” precisam aprender a lidar, desde sempre, com um “movimento tenso, conflitivo” e ambivalente de aceitação e rejeição, “negação e aceitação” de seus corpos. (GOMES, 2006, p.262). Ainda meninas, as mulheres afrodescendentes são impelidas a conviver, cotidianamente, com os referenciais de beleza, de poder, de pertencimento, de inserção e de exclusão social, que foram estabelecidos pelos padrões da estética branca, vinculados ao corpo da mulher, concernentes à forma, ao movimento, à proporcionalidade, à 2 O trabalho realizado pela autora sobre o corpo negro, em particular, sobre o cabelo, está relacionado à estética, beleza e identidade negra presente no universo dos salões étnicos. Embora Gomes não trate das representações ficcionais do corpo feminino negro, suas considerações sobre o significado do corpo feminino negro no âmbito da cultura são importantes para a composição deste artigo.

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cor da epiderme e à textura do cabelo. Na menina, na moça e na mulher negra, isto gera três tipos de posicionamentos, relacionados ao modo como elas veem o seu corpo negro: a aceitação de suas diferenças, de seus traços étnicos e, como, consequência à elevação de sua autoestima – a autoafirmação de sua estética afrodescendente ou mesmo a rejeição do que visualizamos diante do espelho. Essa ambivalência entre a “aceitação e a rejeição” de nossas “diferenças”, significa o estar no mundo primeiro no “plano da rejeição” para então, depois, nos aceitarmos e nos afirmarmos como pessoas, como sujeitos pertencentes a um grupo étnico racial. (GOMES, 2006, p.262). Para as mulheres negras e escritoras, neste caso, utilizo como referência as imagens, os significados e os sentidos elaborados nas poesias de Miriam Alves, refletir sobre as representações sociais construídas historicamente para o corpo feminino negro, em princípio, é pensar nessa tensão a que se refere Nilma Lino Gomes: rejeição, aceitação, autoafirmação da diferença e valorização dos traços etnicorraciais. São olhares e vozes que usam a escrita literária e seus recursos disponíveis para desenvolver autoestima da mulher negra. Trata-se de uma escrita de cunho feminino negro, que se fortalece no Brasil a partir de 1978, utilizando a autorrepresentação como estratégia e recurso de linguagem, de aproximação e de criação de laços comuns com o seu público leitor. Um mecanismo de construção de novos sentidos e significações para as mulheres afrodescendentes elaborarem autoimagens positivas. São escritoras que têm buscado contestar as representações estereotipadas e configurações depreciativas disseminadas por uma tradição cultural no Brasil. Os textos literários produzidos no Brasil, em diferentes contextos e momentos histórico-culturais, criaram modos de identificação para alteridade, cujo objetivo principal era enquadrar e classificar as mulheres negras, o corpo feminino negro com base em categorias fenotípicas e “escalas cromáticas”: a mulata, a negrinha, a pretinha, a moreninha, a crioula, entre outras3. Os corpos negros femininos foram inscritos nas relações de gênero estabelecidas pela dominação masculina, sendo submetidos às normatizações sociais, a um conjunto de valores morais e inúmeras tentativas de controle e disciplina de seus movimentos, de seus gestos e de suas 3 Destaco as terminologias utilizadas por Lídia Avelar Estanislau, em Feminino Plural: negras no Brasil, artigo publicado no livro Brasil Afrobrasileiro, organizado por Maria Nazareth Fonseca (2000). Neste texto, a autora apresenta retratos de mulheres negras que “ultrapassaram as bordas do silêncio”, mostrando a efetiva participação da mulher negra na formação da sociedade brasileira”.

atitudes: de sua aparência e de sua sexualidade4. Cito como exemplo os sonetos atribuídos ao escritor Gregório de Matos (XVII) dedicados à mulata Jelu; as características construídas pelo narrador para a personagem Vidinha, no romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Joaquim Manuel de Almeida (1953); as imagens construídas pelo narrador para as personagens afrodescendentes Eufêmia, Esméria e Lucinda, em As Vítimas-Algozes: quadros da escravidão, de Joaquim Manuel de Macedo (1869); os poemas de Castro Alves (1868) nos quais o escritor se refere ao processo de escravização dos negros africanos em nosso país; a representação da personagem Rosa, em A Escrava Isaura, romance escrito por Bernardo Guimarães (1875); a figuração das personagens Rita baiana e Bertoleza, em O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1891); O conto intitulado Negrinha, de autoria de Monteiro Lobato (1918); o poema Essa Negra Fulô, de Jorge de Lima (1929), a imagem da mulher negra presente na poesia Irene, de Manuel Bandeira (1930); as personagens afrodescendentes do livro Casa-grande senzala, de Gilberto Freyre (1930); os Poemas da Negra, de Mário de Andrade (1929) e, finalmente, as incontáveis personagens das obras do escritor baiano Jorge Amado, entre elas, destaco o romance Gabriela, cravo e canela (1958), entre outras (os). Foram e são romances, contos e poemas, cujas representações construídas por alguns autores não negros, em sua maioria, expressam situações em que a malícia, a imoralidade, a permissividade são apresentadas como características inerentes ao comportamento moral da mulher de origem afrodescendente, aparecendo no imaginário brasileiro como um corpo à disposição, pronto para consumo pela dominação masculina branca: um corpo possuidor de uma sexualidade voraz e pervertida, tratado nas produções literárias mencionadas como um corpo-produto e corpo-objeto. Contrariando tais perspectivas e representações estereotipadas, as escritoras afrobrasileiras contemporâneas como Miriam Alves, buscam desvencilhar o corpo feminino negro das marcas de racialização e sexualização impostas historicamente pela dominação masculina, antes de revestí-lo de outros significantes literários. Trata-se de um coletivo de mulheres que questionam o modo como essas imagens foram elaboradas, denunciando os 4 Utilizo o termo “dominação masculina” em consonância com o pensamento de Pierre Bourdieu (1999) em A Dominação Masculina. Sem mencionar o corpo da mulher negra, mas refletindo sobre o corpo feminino, o autor diz que este se tornou alvo de mecanismos ideológicos. Segundo defende, a “dóxa masculina” encontrou terreno fértil na articulação mulher, violência e poder, utilizando-se de diferentes estratégias para aplicar “coerções e disciplinamentos” aos seus corpos.

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efeitos que elas produziram para a trajetória social das afrodescendentes5. Nos dizeres poéticos de Miriam Alves, as mulheres negras se ocupam em elaborar outras formas de escrita para o corpo feminino negro, à medida que o seu olhar reescreve a história e trajetória das mulheres negras na sociedade brasileira, levando em conta, nessa, outra forma constituição de corporal negra, as marcações sociais, históricas, estéticas e culturais que este traz consigo. São versos que projetam imagens de um corpo feminino negro carregando as dores do tempo (e de seu tempo), de onde ecoam as vozes de seus/ suas antepassados(as) africanos (as), homens e mulheres que vivenciaram as agruras e as amarguras das experiências vivenciadas durante o escravismo colonial e a diáspora africana no Brasil

relação à pretensa inferioridade, passividade e sexualidade voraz do corpo feminino negro. Por isso, em princípio, o sujeito poético solicita:

OUTRAS REPRESENTAÇÕES DO CORPO FEMININO NEGRO NAS POESIAS DE MIRIAM ALVES. Miriam Alves é autora de um trabalho intelectual em pleno processo de produção até a primeira década do século XXI, formado por um amplo e variado repertório sobre temas e questões ligadas à afrodescendência. Militante do movimento negro, afrofeminista e professora, considerada uma das primeiras mulheres negras a fazer parte do Grupo Quilombhoje Literatura (1982), responsável pela edição e publicação dos Cadernos Negros (1978) até 2012, a escritora tem publicado e divulgado seus poemas, contos, ensaios e artigos, no Brasil e no exterior, tendo obras traduzidas para o inglês, alemão e espanhol6. Dos lugares de enunciação, racial e de gênero, Miriam Alves escreve as suas poesias inserindo mulheres afrodescendentes em outros espaços e em novas configurações sociais, as quais se diferenciam das convenções pejorativas e estereotipadas difundidas pela literatura brasileira de autoria masculina, desde o século XVII, especialmente em

Retiradas de sua condição humana, respectivamente, pela dominação masculina branca e pelo racismo brasileiro, tratadas como um corpo sexual em excesso pronto para o consumo do desejo alheio, expostas nos textos literários nacionais como possuidoras de uma “natureza animalística e primitiva”, “corpos negros sem mente”, conforme acusa bell hooks (1995), Intelectuais Negras, concebidas como “criaturas ameaçadoras”, como “seres assexuados, desumanizados e inferiores”, questiona Cornel West (1994), em Questão de Raça, a voz literária feminina negra denuncia a exploração racial e de gênero sofrida pelas afrodescendentes, mas, em paralelo, constrói as suas reivindicações7. O eu-lírico reivindica a sua existência humana e reconhece que é preciso negar os discursos forjados, os quais foram responsáveis pelo silenciamento, pelos julgamentos, pela imposição da violência física e simbólica conferida aos corpos das mulheres negras. Com efeito, este corpo tornou-se, sob a ótica do discurso colonial e racial brasileiro, que se expressou nas vozes dos escritores nacionais, ao mesmo tempo objeto de escárnio e de desejo, sendo inscrito em duplo jogo de dominações e de marginalização. Codificado por um conjunto de afirmações e figurações quanto ao seu comportamento social, lido pela visão dominante e patriarcal como “imoral, lascivo e torpe”, as mulheres afrobrasileiras foram tratadas desde sempre como uma diferença racial e sexual negativa para a ideologia patriarcal. Logo, é preciso negar as “máscaras indiferentes”

5 Cito também um coletivo de vozes formadas por Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Celinha (Célia Pereira), Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Lia Vieira, Mel Adún, Miriam Alves, Sônia Fátima da Conceição, entre outras. 6 Os Cadernos Negros têm sido o principal veículo de divulgação de contos e poemas produzidos por autores e autoras afrodescendentes no Brasil até 2012. O último volume foi publicado em dezembro de 2011, contendo apenas contos. São produções ficcionais nas quais os sujeitos da escrita se enunciam como negras(os), constituindo-se como uma nova geração de escritores(as) que se forma a partir de 1970, composta por militantes do Movimento Negro Unificado (MNU), intelectuais, afrofeministas, professores(as), artistas e pesquisadoras(es). Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa são os atuais organizadores dos Cadernos. As mais recentes publicações da autora podem ser conferidas no volume 34, Cadernos Negros: contos afrobrasileiros, lançado em 17 de dezembro de 2011, com o conto intitulado O velório. Miriam Alves só esteve ausente de nove edições dos Cadernos.

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Ser pessoa Nego as forjas as armaduras Lapidadas na aparência bruta da lama Nego as máscaras indiferentes forjando distância Nego o resguardo do silêncio (ALVES, 1985, p-42).

7 Sugiro a leitura dos romances, poemas e contos brasileiros citados neste artigo.

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construídas por representações sociais com as quais as mulheres afrodescendentes não se identificam. Recusar as “armaduras” que forçaram a sua invisibilização social, impondo-lhes a clausura de rostos e corpos femininos negros. Negar a submissão feminina negra. Afirmar a sua voz, o seu olhar e o seu discurso literário sobre si, como um canto de denúncia, de rebeldia e de renovação: investir em sua imagem social como pessoa a cada linha poética. Portanto, nos poemas de Miriam Alves aparece a escrita de um corpo negro que deseja se depreender das “amarras do silêncio”, promovendo contínuas reversibilidades:

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Quero correr em desafio soltar meu corpo lamber sem sentido as verdades as mentiras não ditas não ditas verdades escritas que não posso entender [...] Como um aflito libertar num grito - Quero Viver! Quero Viver! QUERO VIVER! (ALVES, 1983, p.26) Em Vozes Femininas no Atlântico negro, Florentina Souza (2006, p.340) analisando as representações do “feminino” no texto de autoras negras, observa que algumas escritoras contemporâneas, africanas ou brasileiras, têm se voltado para o questionamento do próprio sentido e “lugar do feminino: seus ritos e seus mitos”. Nesse sentido, a autora diz que o corpo assume “papel significativo”, se não “principal”, pois [...] trazendo inscritos em si signos, histórias, verdades e sutilezas das experiências de vida, com sua exuberância, vitalidade ou rugas, o corpo revela os caminhos trilhados, as mudanças vivenciadas, as escarificações dos tempos e do coração. Em razão das circunstâncias da ordem da cultura e da natureza, a mulher vivencia significativas especificidades de mudanças no corpo. (SOUZA, 2006, p.340). Para Souza, “as mulheres têm sido, na maior

parte das tradições, negado o direito de decidir sobre como agir com seus corpos”. Silenciadas ou marcadas pelas tentativas de “descorporificação”, elas continuam reagindo firmemente contra as várias formas de opressão, principalmente a racial e a de gênero. Assim exposto, reflete sobre o papel das mulheres afrodescendentes neste processo de recomposição do corpo por outras imagens ficcionais, discutindo em particular a sua condição feminina em todas as dimensões (sociais, políticas, econômicas etc.), na qual elas saem da situação de “objeto”, assunto ou tema para tornarem-se sujeito de sua própria escrita. De acordo com Souza, teórica ou poeticamente, as mulheres negras demonstram a preocupação em apontar e “questionar os papéis e os lugares definidos para si”, colocando-se como “vozes autorizadas para falar de suas sensações e percepções de mundo”, tendo em vista que a autoimagens elaboradas por escritoras como Miriam Alves, nelas, estão introjetadas as experiências de dor, prazer, ou desprazer vivenciadas pelos afrodescendentes na diáspora africana. O corpo negro feminino obriga-se a “sentir e a pensar um espaço qualificado historicamente para a grafia e a leitura das experiências passadas e cotidianas”, lugares novos para “inscrição de sonhos e desejos”. (SOUZA, 2006, p.340). Ao mencionar e reiterar mais uma vez a necessidade de se libertar o corpo feminino negro das “amarras” elaboradas pelas vozes dos autores brasileiros, “das mordaças de linguagem”, “das mordaças ideológicas” do racismo e das imposições da dominação masculina e branca, o sujeito poético feminino negro confirma o que diz Souza.8. O corpo feminino negro que aparece concebido na poesia Cena do Cotidiano, “obriga-se” a pensar nas imagens estereotipadas do passado, “nas experiências de dor e de desprazer” vivenciadas, ao longo da história, pelas mulheres afrodescendentes. (SOUZA, 2006, p.340). Entretanto, apesar de ressentido, segregado e violentado por “mentiras”, é um corpo feminino que deseja se distanciar dos “lugares definidos para si”. Apresenta-se como um corpo em ação e ativo, negando, mais uma vez, a imagem do corpo negro feminino submisso e subalterno construída pelos textos literários nacionais. É um corpo feminino negro que performatiza a luta, a rebeldia e a resistência feminina negra, emudecida nas histórias narradas sobre a presença da mulher negra na 8 As aspas correspondem às afirmações feitas por Miriam Alves, no ensaio Mulheres negras: vozes na literatura que integra o livro BrasilAfro Autorrevalado: literatura brasileira contemporânea, organizado pela poetisa.

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sociedade brasileira. Um corpo feminino negro que faz “contestações” ao imaginário instituído sobre sua representação social: “quero correr em desafio... as mentiras e as verdades inscritas que não posso entender”. Este provoca o aprisionamento e a reclusão do silêncio, mediante atuação de uma voz poética negra, que seguindo o ritmo desse novo corpo, coloca-se imperativa: quero viver!. E esse apelo que se expressa em um grito, repetido três vezes no texto, demonstra a ânsia de mudança, o desejo de transformação, de se constituir outra. Por essa razão, no agenciamento destas propostas, o eu literário será categórico em suas solicitações: Estou a toque de máquina corro, louca, voo, suo a fumaça sou eu [...] Paro, mas estou sempre correndo doem as pernas, os pés e este corpo é o meu [...] Indago, mas não estou escutando a pergunta anda solta e ninguém explicou que a resposta sou eu (ALVES, CN, 1982, grifos meus). Nos versos, são descritas as sensações naturais deste corpo por meio das palavras suar e doer, contrariando mais uma vez a perspectiva de um corpo animado, sem vida, sem sensibilidade, “materializado à força”, suscetível apenas à prática dos prazeres sexuais e o exercício do trabalho forçado, representações bastante difundidas pela literatura brasileira. Por outra rota de análise, a dor física e o cansaço dos pés, das pernas, do corpo inteiro, mencionados na poesia, também representam uma dor simbólica, sentida e vivenciada secularmente pelas afrodescendentes em diferentes contextos históricos, já que foram herdadas de suas ancestrais africanas escravizadas. Significam a agonia e aflição de ter que viver sempre negando as “máscaras”, as “mentiras” e a subordinação da mulher negra em diferentes momentos da história no Brasil. Assim, estão também incorporadas outras questões subjetivas: voar (libertar), indagar e responder, ações e sentidos que estão diretamente relacionados à posição adotada pelas mulheres negras no que diz respeito ao modo como elas per-

cebem o lugar ocupado por seus corpos femininos na atualidade. No poema, o corpo representa um ente, carregado de “significações”, tornado para a trajetória da população afrodescendente, em particular, para as mulheres, um espaço que se constitui como “sínteses de sonhos, frustrações, realizações e ambições”. (SOARES, 2006, p.3). Um corpo que reelaborado pelo olhar feminino negro vai produzir contestações e fazer “exigências”, saindo da condição de mero objeto manipulado pela cultura dominante onde foi colocado, para se tornar e se estabelecer como um tecido social, político e cultural, entrelaçado a particularidades de raça e de gênero. (GROSZ, 2002, p.74). Dessa forma, o estar no mundo parece acessível quando se articulam e se explicitam na voz da escritora negra em nível linguístico e literário, essas questões: a raça e o gênero. Ao pensar a relação com o seu corpo feminino, o sujeito poético provoca: “[...] a resposta sou eu ... este corpo é meu”. O verbo “ser” marca intimamente a presença da identidade de gênero e étnica do sujeito literário, deixando assinalados os lugares de enunciação desses “eus” do corpo que se expressam na poesia em questão. Já o uso do pronome possessivo agencia o rompimento das ideias e olhares historicamente cristalizados sobre a figura e o papel da mulher negra na sociedade brasileira, reforçando a função de sua escrita literária feminina e posição política, “colocando-se como vozes autorizadas para falar de suas sensações e percepções” de si. (SOUZA, 2006, p.340). Apresenta-se como um corpo feminino negro que pode agora, enfim, (re)composto na visão de Miriam Alves, solto, alforriado, vivenciar a sua liberdade individual. Corpo-território onde o ser-mulher-negra pode exercer e organizar a sua liberdade de transformação. Corpo feminino negro que produz questionamentos e constrói respostas as suas interpelações, inquietações e frustrações. Corpo feminino negro em luta que se movimenta e se contrapõe a todas as formas de opressão. Corpos femininos negros que guardam vontades reprimidas, que “falam de amor à vida e ao outro”, mas que também refletem sobre sua sexualidade. (ALVES, 2010, p.70). O poema a seguir ilustra o que estou afirmando: Necessidade Os lamentos soltos Esfarrapam minhas vestes Descobrem os meus pensamentos

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Fico só Emano ondas de calor Endurecidos nos medos Amolecidos nos abraços Prontos para amar (ALVES, 1985, p.43, grifos meus).

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Por meio da voz lírica, a mulher negra revela outras necessidades que emanam de seu corpo – amar e sentir prazer – sem – no entanto – repetir ou apelar para formas depreciativas de exposição de sua intimidade. Um discurso feminino negro que traz à cena uma voz poética transbordando em desejos que são transmitidos no corpo por “ondas de calor”. Um corpo de onde emergem vontades secretas que vão substituindo os “lamentos soltos”, descobrindo-se em pensamentos novos, ainda que “endurecidos” por medos e receios, parecendo se recordar das marcas negativas deixadas pelo passado colonial. Apesar disso, das interdições sofridas no discurso da tradição cultural hegemônica, o corpo se diz pronto, finalmente pronto para viver sensações novas. Falar da intimidade, do prazer erótico e da sexualidade sob as mais diferentes orientações e formas, aparece como temática importante no discurso ficcional de escritoras negras como Miriam Alves9. Discussões que perpassam e dizem respeito também às relações de gênero e raça, assim como as reflexões associadas às discussões sobre identidade, a autorrepresentação e a autoafirmação das mulheres negras brasileiras na primeira década do século XXI. São direitos que lhes foram negados, ao longo de sua história e trajetória social pela dominação masculina que apoiada no essencialismo, no naturalismo e no biologismo, definiram os corpos negros apenas como objetos receptivos, atraentes e disponíveis para a prática do sexo livre de compromisso. Por esse motivo, as mulheres negras, na atualidade, têm pensado “na sexualidade não apenas como uma questão pessoal”, mas, sobretudo, como uma questão social e política que precisa ser explorada e debatida em todos os âmbitos. Miriam Alves constitui uma nova forma de escrita para o corpo feminino negro. Nela, além de elaborar o que chamo de outras imagens poéticas, a poetisa grafa a voz e o olhar da mulher negra nas configurações que propõe. Reescreve a sua sexualidade e sensualidade restituindo-lhe beleza, vitalidade, harmonia nos movimentos do corpo 9 Coloco a sexualidade como uma necessidade da mulher negra que não está necessariamente ligado ao objeto fálico pertencente aos homens.

e sedução aos gestos. Ela adota um discurso poético-erótico que reabre passagens secretas, reacende vontades ocultas e faz os versos tocarem territórios do corpo que afloram desejos e sensações sem medo ou vergonha. Penso que a literatura afrobrasileira feminina produzida por Miriam Alves elabora formas de dizer um corpo que permite as mulheres negras brasileiras gostarem mais de si mesmas a partir de suas diferenças. Uma escrita feminina negra que evidencia que o corpo negro traz uma história e uma tradição cultural que não podem ser esquecidas. São palavras que tocam uma melodia encantatória que cicatriza as nossas feridas emocionais, apontando estratégias no combate ao racismo e o sexismo, promovendo um diálogo simbólico com a nossa herança ancestral, compondo e recompondo outras representações literárias. Referências Bibliográficas ALVES, Miriam. Momentos de Busca. São Paulo: Do Autor, 1983. ALVES, Miriam. Estrelas de Dedo. São Paulo: Do Autor, 1985. ALVES, Miriam. Pedaços de mulher. Entrevista. In: MARTINS, Leda Maria; DURHAM, Carolyn; PERES, Phylis; HOWELL, C. (Ed.). Callaloo, v. 18, n. 4, African Brazilian Literature, an special issue. Baltimore: John Hopkins University Press, 1995. ALVES, Miriam. Finally us / Enfim nós: contemporary Black Brazilian woman writers. (org. Miriam Alves e Carolyn R. Durham). Edição bilíngue português/inglês. Colorado: Continent Press, 1995. ALVES, Miriam. Women righting/Mulheres escre-vendo: Afro-Brazilian women’s short fiction. Edição, com Maria Helena Lima. Londres: Mango Publishing, 2005. (edição bilingüe inglês português). ALVES, Miriam. BrasilAfro autorevelado: literatura afrobrasileira contemporânea. Belo Horizonte: Nandayla, 2010. ALVES, Miriam. A literatura negra feminina no Brasil – pensando a existência. Revista ABPN, v. 1, n. 3 – nov. 2010 – fev. 2011, p. 181-189. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995. CADERNOS NEGROS 5. São Paulo: Quilombhoje Literatura, 1982. CADERNOS NEGROS 25. São Paulo: Quilombhoje Literatura, 2002.

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“Entre a História e as ficções – o caso da Balada da Praia dos Cães” Rita Correia Centro de Estudos Comparatistas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, (Portugal)

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Resumo: Baseando-nos no trabalho de Michel Foucault, faremos uma leitura do romance Balada da Praia dos Cães (1982), de José Cardoso Pires, partindo do modo como nele se encena a acção dos mecanismos de poder sobre o sujeito – neste caso um sujeito feminino. Focar-nos-emos na personagem Mena e na forma como ela se constitui na teia de discursos que esquadrinham o seu corpo e nele se inscrevem para, a partir dele, a conformarem a um estereótipo em que a biologia serve de fundamento a uma naturalização da ideologia. Procuraremos analisar a construção desta personagem ao longo de três eixos, configurando cada um deles uma dimensão de definição do sujeito pela sua corporeidade, e por isso um espaço aberto à penetração do poder: nos modos de habitação das várias casas que lhe servem de abrigo ou prisão, na vivência da sexualidade, no discurso sobre si mesma em que se posiciona relativamente às representações vigentes. Argumentaremos que Mena é uma personagem em luta pela aquisição de um discurso próprio, erguido nas brechas da teia ideológica em que o corpo é moldado e, através dele, a sua própria identidade. Quero começar este artigo, em que me ocuparei de Balada da Praia dos Cães [BPC], de José Cardoso Pires, com uma pequena provocação, dizendo a respeito deste romance: “ceci n’est pas une fiction”. A blague prende-se com aquilo que me parece ser o tema principal deste texto, comum aliás, como a crítica já notou1, a todos os romances do autor: a identidade, tanto a nacional como a de cada sujeito em confronto com o país e o espectro da sua história, no contexto do Estado Novo. Mais especificamente, prende-se com o retrato que neste texto é feito do modo como as estruturas de poder instituem ficções, procuram viver nelas e por elas acabam finalmente por perecer. Catorze anos após O Delfim, Cardoso Pires publica um novo romance em torno de um crime, pretexto para um retrato já não de um ambiente de uma anacrónica ruralidade, como no romance anterior, mas de uma Lisboa em clima de silenciosa opressão. Baseado, como é sabido, num caso

1 Ver, a este respeito, a título de exemplo, o artigo de Maria Luiza Scher Pereira “Espaço em questão: Portugal no romance de Cardoso Pires” (s.d.), bem como declarações do próprio autor, em entrevista a Artur Portela (1991, 51-2).

real2, não é contudo a revisitação desse episódio mediático o aspecto central deste romance, nem mesmo é ele veículo primeiro da reavaliação da História a que aqui se procede (mas tão-somente da historiografia tradicional), assumindo eu já, nesta afirmação, que estaremos perante um exemplo da “metaficção historiográfica”, conforme teorizada por Linda Hutcheon em A poetics of postmodernism : history, theory, fiction. Neste romance, repensar a História e a identidade nacional não significa tanto procurar e efabular uma verdade alternativa àquela veiculada pelos vencedores, mas sondar e encenar o confronto dos indivíduos com os vários mitos e discursos que formam o seu contexto histórico, cultural e ideológico, e a forma como este é vivenciado pelo sujeito anónimo no seu quotidiano, contribuindo assim para uma desconstrução da história do Estado Novo tal como concebida e veiculada pelos vários órgãos ligados ao poder. Diria, a propósito da Balada da Praia dos Cães, e adoptando a formulação de Mônica Figueiredo, 2 O assassínio em 1960 de um dissidente político evadido do Forte de Elvas, depois de um golpe militar abortado, o ex-capitão do Exército José Almeida Santos, cujo cadáver viria a ser encontrado na Praia do Guincho.

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que “[e]ste texto quer percorrer construções que fugiram à sedução do monumento, repositório da verdade - porque sabe o quanto a monumentalização cerceia, impede e inviabiliza” (Figueiredo 2002, 6). Este modo de retratar, que toma como objecto aqueles que tradicionalmente são deixados de fora da historiografia, é desde logo indiciado pelo próprio título do romance, que aponta para o seu carácter “popular”, como já notaram Ana Paula Arnaut (2002, 145) e Benjamin Abdala Jr. (s.d.). Quer pensemos na “balada” enquanto narrativa poética de lendas que fazem parte de um repositório colectivo, actualizado em cada interpretação individual, quer consideremos a acepção de canção de estrutura simples e conteúdo narrativo, em estilo popular ou ainda a de canção de temática romântica, os vários significados encontram eco neste texto: por um lado nele se expõe o modo como um determinado repositório de discursos que fazem parte do contexto histórico-social da narrativa são incorporados pelos indivíduos, por outro, é uma temática romântica a enformar aquilo que, em aparência, seria uma intriga de contornos políticos; por fim, note-se a própria hibridez genológica do texto, que se vale de artifícios de romance histórico e de policial, subgéneros de grande sucesso popular3. Só considerando, pois, o contexto histórico da narrativa se pode compreender o ambiente retratado no romance de Cardoso Pires, a cosmovisão das personagens e todos os conflitos que as opõem4. Mais do que a forma como o Estado Novo agiu na determinação das condições reais de existência dos indivíduos, interessa neste romance sobretudo a influência insidiosa daquele na dimensão das relações humanas, não só ditando os termos simbólicos da existência dos sujeitos, mas também coagindo a acção destes. Por outro lado, o texto revela também – e é esse o ponto que aqui mais me interessa – que neste jogo de coacção e interferências subtis as posições não são fixas e as influências circulam em ambas as direcções, numa manifesta interdependência que constitui a contradição interna desta lógica de domínio. Porque é da mulher na literatura que aqui se trata, farei uma brevíssima leitura do romance a partir da personagem de Mena, a única figura feminina a ocupar um lugar central5. Com o chefe de polícia

Elias e o Major Luís Dantas Castro, Mena forma o núcleo de personagens que estrutura a narrativa, constituindo-se como elo de ligação entre as outras duas: por um lado, Mena é o elemento fundamental e principal interveniente dos acontecimentos que antecedem o crime, estando a sua relação com o morto no cerne dos problemas que a ele conduzem; por outro lado, a investigação levada a cabo por Elias centra-se em Mena e baseia-se nos interrogatórios a que a susujeita, confundindo-se com a própria reconstituição do romance entre aquela e o Major. Mena é, assim, também, aquela que articula e serve de ponte entre os dois níveis diegéticos – o do presente da narração e da investigação e o da estadia dos fugitivos na Casa da Vereda – que finalmente se intersectam na segunda parte do romance, na reconstituição do crime. De importância central é também, pois, a relação que se estabelece entre esta personagem e Elias, e que a vários níveis duplica a outra, entre ela e o Major. O nosso primeiro contacto com Mena dá-se por meio de uma reconstituição que Elias faz do que teria sido a chegada dos fugitivos à Casa da Vereda, onde se abrigariam durante meses, até ao assassínio do Major. Nessa reconstituição, Mena surge-nos a ter relações sexuais com um padre (que pouco depois percebemos não se tratar realmente de um padre, mas de Dantas Castro disfarçado), numa descrição em que o vocabulário sublinha toda a dimensão corporal do acto, ao mesmo tempo que o dota de um carácter quase compulsivo, conotando-o assim com um estereótipo de animalidade:

3 E, coincidentemente, foi a Balada da Praia dos Cães o romance do autor a obter maior sucesso junto do público. 4 Veja-se, a este respeito, Petar Petrov (2000). Dowe Fokkema (1992, 65), na sua análise desta obra, faz contudo notar que um leitor não familiarizado com o contexto histórico português não deixaria de convocar para a sua leitura outras referências, com as quais a Balada da Praia dos Cães também estabelece um diálogo, nomeadamente o romance erótico e o romance de tonalidade existencialista. 5 Embora as vozes femininas abundem neste texto, elas não são mais do

que breves irrupções, ainda que altamente individualizadas, nunca dotadas de relevância na acção ou de espessura suficiente para se tornarem verdadeiramente personagens. Óscar Lopes (1990, 302-3) afirma a este respeito que a Balada… é “rica em polifonia vocal, se pensarmos no seu coral de vozes que à nossa leitura se sobrepõem […] dando às mulheres, populares ou burguesas, vozes sexual e pessoalmente mais individualizadas e por vezes mais insubmissas do que nunca na ficção portuguesa (…)” 6 Como nos é dito pela voz de Elias “Um padre é pai, é Deus, é pecado, tudo duma assentada” (BPC, 32).

E de repente jogaram-se um ao outro, assim mesmo, jogaram-se, e rolavam pelas paredes, e sorviam-se na pele, nos cheiros, saliva, tudo, irmanados na chuva que traziam, e só se ouvia uma voz soluçada, um gritar para dentro, cego e obstinado (“Homem… sim, oh, homem…”) – a voz dela retomada em toda a sua verdade ao fim de oito meses de ausência. (BPC, 30) A personagem é-nos desde logo apresentada, portanto, associada a uma dimensão sexual transgressiva, indiciada pela situação do encontro amoroso com um padre6. Esta representação será reiterada ao longo do texto em inúmeros momen-

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tos, nas descrições físicas da personagem e da sua relação com o Major, nos comentários de Elias, e também numa parafernália erótica que a ela se associa (os versos escritos pelo punho de Mena que o chefe de polícia guarda no “baú dos sobrantes”, uma página de revista, Erotika, com alusões sexuais privadas, o postal enviado de Itália, por um não assinado, com o chavão, bastante significativo, “Não há homens impotentes, há mulheres incompetentes” [BPC, 114-5] etc…). Elias, cuja perspectiva seguiremos ao longo do romance, oferece-nos a lente pela qual a narrativa nos é apresentada e, sobretudo, pela qual Mena nos é revelada. Ainda que Mena seja o eixo em torno do qual se constrói esta teia de relações, a sua perspectiva está quase ausente. O nosso acesso a esta personagem é sempre mediado pela voz do chefe de polícia, seja por este se fazer narrador dos eventos que reconstitui, seja pelas suas divagações, que se vão apondo a cada frase de Mena em discurso directo. Alguns parágrafos adiante, Mena é descrita pela primeira vez, numa passagem em que é sobretudo o desejo de Elias que se diz:

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Pelas fotografias apreendidas na busca da polícia ao apartamento de Mena, Elias adivinha esse corpo. Um corpo sumptuoso; e todo no concreto, cada coisa no seu lugar. Admira-o em particular numa foto em que ela aparece em bikini num relvado de piscina com um friso de pavões ao fundo – e era uma verdade, aquele corpo. Coxas serenas e poderosas, o altear do púbis, era isso, era essa verdade saudável e repousada que o homem fugido à tempestade contemplava, apoiado num cotovelo. (BPC, 31) É portanto o olhar desejante de Elias que molda Mena, transformada em paradigma de uma fisicalidade e sexualidade livres. Essa “verdade saudável e repousada” que se faz abrigo do “homem fugido à tempestade”, na imaginação de Elias, torna-se símbolo de um feminino poderoso, matricial, perigoso. O corpo é “sumptuoso”, “concreto” porque nele se projecta um desejo de reencontro com a carne, tornando-o uma espécie de irrupção do real, sobreabundância de matéria que não se deixa conter, um absoluto que se impõe como evidência. Ora, se a beleza de Mena a torna naturalmente alvo conspícuo de uma atenção masculina, as projecções de Elias, que tem de inventá-la como mito de um feminino quase titânico, de um poder de atracção subterrâneo, não deixam de se revelar ficções pelas quais procura acomodar o desejo em si suscitado. Ao longo do texto, as descrições de Mena ecoam sempre esta ideia de uma realidade

telúrica, patente, por exemplo, na recorrência de palavras como “verdade” e “natural” associadas a ela ou ao seu corpo, ou nas referências àquilo que neste mais remete para a sua dimensão biológica, como por exemplo o pormenor dos pêlos nas axilas: “(…) e os pêlos do sovaco são de um negro seco e agreste, tão negro como é decerto todo o cabelo que ela tem no mais privado do corpo e com um gosto acidulado, retenso”. Embora a retórica do Estado Novo, de forma, na verdade, pouco original, tenha procurado aplicar às mulheres modelos simbólicos que veiculavam uma ideia de contenção sexual ou mesmo de dessexualização (a mulher é anjo, fada, mãe, irmã), figuras havia que rompiam com esses modelos, e nas quais se cristalizavam fantasias de uma sexualidade livre, como a prostituta ou a “criada de servir”, verdadeira marginalidade institucionalizada7. Esta dicotomia funda-se, claro, numa mesma essencialização do feminino. Neste caso, o carácter irracional e emotivo atribuído à mulher, a sua fragilidade moral, a sua maior propensão a ser conduzida por impulsos são as características que, quando não devidamente controladas, ameaçam permanentemente a ordem com a irrupção de uma sexualidade capaz de arrastar o homem para a sua voragem. Estas tipificações funcionam, portanto, como uma segunda ficção capaz de delimitar e acondicionar esse perigo pressentido, permitindo a existência de uma ideia de feminino não ameaçador ao circunscrever e banir a ameaça para as margens, tornando-a assim manejável. O ideal do lar, tal como se configurou no contexto do Estado Novo, lugar de serôdia utopia, deve ser aqui tido em mente enquanto modelo institucionalizado dessa pacificação possível. A casa era, como se sabe, o domínio por excelência da mulher, a rainha do lar, cuja missão de educadora dos filhos e apoio do marido se exercia no e devia confinar-se ao espaço protegido do lar. Utopia minada desde a base, pois de uma parte exaltam-se as virtudes “tipicamente” femininas com o intuito de hipervalorizar um comportamento passivo e ideologicamente legitimar um lugar de subserviência da mulher, através de série de discursos que (de)limitam o modo como é possível pensá-la, enquanto doutra parte o dispositivo legal corrobora e assegura a vigência daquele modelo. Desenha-se aqui, portanto, desde logo, o reverso do lar utópico: a casa como microcosmos onde se reproduzem as mesmas tensões que rasgam o tecido social. Os espaços domésticos repre7 Veja-se, a este respeito, por exemplo, o trabalho de Irene Flunser Pimentel (2011) e da jornalista Isabel Freire (2010).

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sentados na Balada da Praia dos Cães – aqueles ocupados por Mena e a casa de Elias (de que não me ocuparei aqui) – revelam-se prolongamento dos constrangimentos e violências que embebem a sociedade, e em ambas as esferas são os próprios mecanismos do poder ditatorial e os discursos que ele sanciona a gerar, desde a base, as perturbações de que irão padecer. As duas casas que Mena habita – a casa da Av. de Roma e a Casa da Vereda8 – mostram uma realidade muito diferente da que é veiculada pelos meios ligados directa ou indirectamente ao poder. Da casa da Av. de Roma, onde Mena vive grande parte do seu romance com Dantas Castro, se diz que Mena lá passava os dias “sentada à espera e a fumar” (BPC, 189), numa espécie de suspensão da normalidade quotidiana que já prenuncia as tensões vividas na Casa da Vereda. As frequentes e violentas brigas são relatadas, no testemunho da proprietária, bem como um certo discurso libertário do Major que, como refere a mesma proprietária “à mais pequena coisa punha-se a berrar que daquela porta para fora cada qual tinha a sua liberdade e que não precisava que ela lhe desse contas do que fazia para coisíssima nenhuma” (BPC, 190). Contudo, a relação entre Dantas Castro e Mena nesta casa torna-se uma negra inversão do “amor livre” propalado pelo Major, revelando-se este apenas uma espécie de duplo invertido do discurso oficial. Quando Mena confessa ao amante uma traição, este insulta-a e espanca-a. Sozinha e desprezada, Mena risca as paredes do apartamento com a frase que fica a ecoar-lhe na cabeça: Mena, a investir contra as paredes, de esferográfica em punho, a destroçar-se pelas portas, pelos vidros, por tudo o que representasse limite, barreira, e onde pudesse deixar bem à vista e para ser lido SOU UMA PUTA PORCA (…) Desvairara ao correr dos muros, riscando-se neles, retraçando-se, e quando levantou a cabeça e se viu no espelho não se reconheceu. Recusava-se a aceitar aquela cara ensanguentada e para não ter piedade dela pôs-se a cobri-la à esferográfica com toda a fúria. (BPC, 199) A frase em que se concentram a violência e o particular modo de opressão existente na ficção e na imposição identitárias que ela sintetiza é precisamente a arma de arremesso contra todos os limites físicos da casa, materialização dos outros limites que lhe são impostos. A imagem própria procurada e reflectida no espelho, e assim exterio8 Menciona-se também uma casa na Estrada da Luz, que Mena abandona para viver com Dantas Castro na Avenida de Roma.

rizada, objectivada, a frase repetida nas paredes para assim se “retraçar” serve a Mena para assumir a agressão de que é alvo, para então finalmente poder não se aceitar naquela súmula da sua identidade. A passagem de Mena para a Casa da Vereda representa o agudizar das tensões já vividas, até ao ponto de ruptura. Esta casa, que Mena partilhará com o Major e os dois companheiros de fuga – o arquitecto Fontenova e o cabo Barroca – converter-se-á numa prisão, com Dantas Castro transformado em duplo doméstico do regime. Aqui, Dantas Castro vale-se principalmente de formas de violência psicológica, mantendo os três cúmplices num clima de tensão e medo constantes, não só pela ameaça que permanentemente espreita do exterior como pela ameaça interna que o Major neste ponto já representa. Da parte de Dantas Castro, este comportamento, é-nos dito, é motivado por um receio paranoico de traição, levando o Major a procurar um controlo total sobre os movimentos dos companheiros e exercendo sobre eles vigilância perpétua, mimetizando assim, novamente, os mecanismos do próprio regime. É esta tentativa de criação de uma micro-sociedade transparente, em que qualquer ameaça possa ser de imediato identificada e debelada, esta forma progressivamente mais violenta de eliminação sistemática de qualquer oposição, que, ao não mais permitir a possibilidade de negociação, cria o próprio estado de espírito que levará ao assassínio do Major. Como o próprio Cardoso Pires refere, em entrevista a Artur Portela, a propósito do Estado Novo, “(…) a Dura Pax de tal branda ditadura o que pretendia era instituir uma atmosfera de medo tolerado e tolerante. Pacto de convívio entre opressores e oprimidos, o sonho de qualquer totalitarismo é sempre esse” (Portela 1991, 38). Ao retratar o marasmo deste pacto de convívio – o “crime social” referido na nota final do romance9 - que se alastra a todas as instâncias da sociedade, mesmo àquelas aliadas ao regime (pense-se em Elias e no seu receio da PIDE, espectro omnipresente), a Balada da Praia dos Cães mostra também como este pacto é frágil, pois a sua manutenção depende da margem que concede aos indivíduos para negociação das suas condições de existência – a sua possibilidade de exercício de poder. Se este é o contexto em que Mena se move – de uma parte, uma sociedade patriarcal e um regi9 “Então como hoje ele sabia que na sua tragédia individual existia uma parte-maior de erro colectivo; que as sociedades de terror se servem dos crimes avulsos para justificarem o crime social que elas representam por si mesmas e que em todos esses crimes a sua mão está presente, em todos.” (BPC, 300-1).

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me ditatorial, de outra parte, no que diz respeito à dimensão privada, uma relação amorosa e um espaço doméstico em que a opressão silenciosa do exterior se transpõe como violência explícita, quer física quer psicológica, esta personagem não deixa de exercer a sua particular forma de poder – aquela para que se abre espaço nas brechas da própria ideologia. As características intrínsecas ao tipo de idealização de que a mulher é alvo – que amputa uma dimensão da pluralidade do real para o acomodar a abstracções e que, fundando-se num imaginário simbólico fortemente enraizado (Jung chamar-lhe-ia arquétipos do inconsciente colectivo), exerce uma sedução sobre o sujeito, na medida em que apela a impulsos humanos básicos – são precisamente o que dota Mena de poder perante o indivíduo que adere àquela ficção identitária – ou mito, ou estereótipo, como lhe queiramos chamar. Esta assunção do poder que os próprios modelos identitários disponíveis no imaginário colectivo lhe permitem é particularmente evidente na interacção com Elias. Os interrogatórios são exemplo de uma curiosa inversão de papéis que revela não só a permutabilidade das posições relativas das personagens como também a sua equivalência, se consideradas no contexto social mais amplo. Se Elias transforma Mena na consubstanciação de um estereótipo sexual, a própria Mena reivindica a imagem que esse olhar lhe impõe para a partir dela exercer o poder de que dispõe – o de fazer Elias confrontar-se com a sua própria impotência perante o desejo que nela se projecta, mas que ela só reflecte. Veja-se o seguinte excerto: “Elias vigia-a espalmado na superfície da porta, olho quedo. Ali a tem ao real e por inteiro. Fechada num círculo de vidro, ali a tem. (…) Mesmo distanciada e reduzida pelo vidro panorâmico do ralo é uma provocação, uma agressão da natureza (…)” [BPC, 244]). O olhar que tenta aprisioná-la e delimitá-la, como que fechando-a num círculo de vidro, num movimento que é de distanciamento do objecto e consequente redução (porque de amputação), submete-se por sua vez ao poder que essa imagem passa a deter sobre ele. A “indiferença humilhadora” (BPC, 149) de Mena confronta Elias e, nesse confronto, é também a identidade “masculina”, socialmente construída, que é abalada, agredida por esse feminino que, ao não se conformar às diversas ficções que procuram torná-lo manejável, baralha as próprias categorias da masculinidade. O relato de Mena revela-se mais um modo de confronto com os modelos e estereótipos com que

se depara e de assunção de uma individualidade que não permite a apropriação que o discurso do outro inevitavelmente procura. Dirigindo-se sempre a Elias de forma impessoal e assim destituindo-o de conteúdo subjectivo, Mena relata pormenores íntimos da sua relação com Dantas Castro, mais uma vez confrontando Elias por um lado com a inatingibilidade da promessa contida no estereótipo sexual que Mena para ele incarna e por outro com a própria irredutibilidade do ser real cuja existência se assinala para além daquela ficção. Ao perguntar a Elias “São assim tão primários, os juízes? Assusta-os tanto uma mulher confessar que foi para a cama com outro homem? Por outro lado a palavra amante incomoda-os porquê?” (BPC, 196), a sua assunção de um discurso próprio – que aqui se manifesta na confissão da traição a Dantas Castro, na repetição a Elias e na antecipada reprodução em tribunal – garante o seu reduto de existência enquanto indivíduo. Por outro lado, ao descrever-se a si mesma como “amante”, apropria-se da palavra e subtrai-a ao contexto ideológico que lhe cunha o significado, criando para ela e para si um lugar que a própria Mena assim define. Esta não-conformidade na conduta sexual, na ética amorosa, tão “incómoda” e “assustadora” porque mostra quão porosas são as fronteiras entre o que se quis escrupulosamente separado e estanque, é afinal reflexo da maior ou menor refracção dos sujeitos a qualquer narrativa identitária que se procure impor-lhes, e por isso ameaçadora também pelo potencial de não-conformidade mais amplo, a nível social, que ela indicia. Enquanto a interacção de Mena e Elias ocupa longas passagens do romance, da relação de Mena com Dantas Castro sabemos apenas aquilo que nos é revelado por testemunhos, da própria e de terceiros. Contudo, pelos relatos das violências físicas e psicológicas de que Mena era alvo, pelas menções a uma espécie de desregramento sexual e pela afirmação da impotência final do Major, percebemos que também aqui se joga aquele mesmo jogo de dominação que se desenrola entre Mena e Elias. Quando Mena revela ao chefe de polícia que o Major se havia tornado impotente, fá-lo na sequência da afirmação na crença de que este acabaria por matá-la (BPC, 255), estabelecendo uma associação explícita entre a impotência do Major e o crescendo da violência. A ameaça que Mena representa exige, assim, punição. Em Dantas Castro, ela concretiza-se em violência física; em Elias, é uma “exorcização pela linguagem”, nas palavras de Petar Petrov (2000, 233), que concentra a violência que não pode encontrar outra concretização.

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Cardoso Pires, no volume E agora, José?, refere, a propósito de O Delfim, e articulando as duas questões: “Nas sociedades fechadas, sociedades predominantemente masculinas em que o cidadão é destituído de autoridade cívica e de influência social, os exibicionismos da virilidade são as compensações dessa desautorização (…)”. Depois de enumerar alguns exemplos, acrescenta: “De qualquer deles se pode deduzir que, quer a obsessão sexual, quer as manifestações secundárias de exibicionismos viris, são sublimações de impotência sexual” (Pires 1999, 135-6). Podemos dizer que neste texto tanto a impotência como a obsessão sexual e os exibicionismos viris são materializações e manifestações da impotência do indivíduo no campo político e social. Mena, enquanto alvo do desejo e da obsessão é aquela que revela esta impotência e, por isso, a vítima da violência. Quando, transtornado pela venda da pulseira de tornozelo que oferecera à amante como símbolo da sua união, tomado por um ciúme paranoico e impotente, o Major desnuda Mena e a obriga a manter-se nua enquanto a insulta e finalmente a força a lavar o chão, o sentido dessa nudez é explicitado pelo próprio texto: “Mena de pé, envolvida nos braços. Não era frio que sentia, era a nudez como uma impotência final (…)” (BPC, 123). Creio que é precisamente durante este episódio, na percepção de uma “impotência final”, que se impõe a Mena a ideia do crime. Fácil ou violenta que seja a negociação do quotidiano, o ponto de ruptura só se atinge quando ela deixa de ser possível e a sobrevivência do indivíduo está ameaçada. Quando isto sucede, Mena reage exercendo também o poder que lhe é possível. À semelhança de um Iago, Mena vai instilando nos seus companheiros de cativeiro a dúvida, o medo e a consciência da insustentabilidade da situação que todos vivem. Valendo-se de um exemplar do Lobo do Mar, de Jack London, que circula entre os três, e do qual vai sublinhando passagens cuidadosamente selecionadas para que nelas os companheiro possam ler a sua própria situação, Mena acaba por conseguir despertar em todos a ideia de que vivem num estado limite cuja manutenção é impossível. Assim perspectivada, Mena torna-se representativa de todas as outras personagens do romance e do próprio rumo histórico do país. O crime e o papel de Mena nele – a sua acção subterrânea – tornam-se, pois, metáfora dos acontecimentos que levam à queda do regime, uma vez chegado o ponto de ruptura que a guerra colonial inevitavelmente representou, e que o tempo da narrativa pouco

antecede. Embora as estratégias repressivas e de formação ideológica não deixem de produzir o efeito desejado – a criação de sujeitos que mantêm e reproduzem o sistema – o texto retrata o regime salazarista no princípio do fim e mostra como, ainda que na aparência sólido, já indicia na sua própria constituição os elementos que o levarão à queda. As várias formas de disfunção ou perversão sexual mencionadas ao longo do texto, clara metáfora (como já o eram n’O Delfim) da decadência do próprio regime, mostram também, como referi no início, os aspectos internamente contraditórios da lógica de dominação que elas aqui implicam, bem como o seu carácter auto-destrutivo. Além da obsessão de Elias e do Major, a deste último transformada em impotência, pense-se no sonho delirante de Elias em que a irmã morta se transforma numa espécie de monstro voraz, expressamente sexualizado, ameaçando engolir Elias, e como essa figura adopta algumas características de Mena, ou na conversa telefónica com a prostituta, na referência a Américo Thomaz como “pénis decrépito fardado de almirante” (BPC, 113), ou ainda no modo como Fontenova acaba por substituir o Major na cama de Mena, depois daquilo que Óscar Lopes (1990, 305) refere como “crime edipiano”, entre outros exemplos de ocorrências de um imaginário de decadência sexual, no qual as sugestões de incesto têm um papel particularmente revelador, a meu ver, do carácter intrinsecamente malsão e estéril do ambiente de que se fazem metáfora. Regresso à pequena brincadeira com que iniciei esta comunicação. Se a obra de Cardoso Pires se ocupa, antes de mais, da identidade, e das diversas formas como a de cada indivíduo se constitui no confronto com um contexto histórico e social específico, com os vários discursos, estereótipos, mitos que constituem esse tecido simbólico, na Balada da Praia dos Cães o retrato desse confronto faz-se mostrando o quanto a realidade das personagens é sempre mais complexa e multifacetada do que quaisquer ficções individuais ou colectivas que perpassem o tecido social. Mena torna-se aqui figura paradigmática desse confronto, e a ela mais do que a qualquer outra das personagens parece poder aplicar-se a passagem já muito citada da “Nota final”: Em certas vidas (…) há circunstâncias que projectam o indivíduo para significações do domínio geral. Um acaso pode transformá-lo em matéria universal – matéria histórica para uns, matéria de ficção para outros, mas sempre justificativa de abordagem. Interrogamo-la, essa matéria, porque ela nos interroga no

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fundo de cada um de nós (…). (BPC, 301) Na dificuldade em fazer uma distinção maniqueísta entre opressores e oprimidos, entre os que detêm o poder e os que dele estão destituídos, o texto retrata essa pluralidade de faces do real e o modo como a vida de todos os indivíduos decorre nessa negociação sempre complexa de espaço e expectativas de que as relações humanas são feitas, e na qual mutuamente nos definimos e inventamos. Como afirma Dowe Fokkema (1992, 62) relativamente às personagens desta obra, e a propósito da reacção ambígua – de simultânea adesão e distanciamento – que elas provocarão no leitor: “Todos parecem estar à mercê de guardas e tomados de terror. Ninguém é completamente livre; há apenas matizes de liberdade e clausura”10. Mas esta é, seguramente, a condição de todos nós.

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Referências Bibliográficas Pires, José Cardoso. 2007. Balada da Praia dos Cães. Lisboa: Publicações Dom Quixote. Col. Booket. ________ ABDALA, JR, Benjamim. s.d. “Os cravos de Abril e os encontros da história”. In Revista Semear nº5. Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Consulta online em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/semiar_5.html. ARNAUT, Ana Paula. 2002. Post-modernismo no romance português contemporâneo. Coimbra: Almedina. FIGUEIREDO, Monica. 2002. No corpo, na casa e na cidade, a ficção ergue a morada possível. Tese de Doutorado apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro. FOKKEMA, Dowe. 1992. “Empirical questions about symbolic worlds: a reflection on potential interpretation of José Cardoso Pires, Ballad of Dog’s Beach (1982). In Dedalus nº2. Lisboa: APLC-Edições Cosmos. FREIRE, Isabel. 2010. Amor e sexo no tempo de Salazar. Lisboa: Esfera dos Livros. LOPES, Óscar. 1990. “Os tempos e as vozes na obra de Cardoso Pires”. Cifras do Tempo. Lisboa: Editorial Caminho. pp. 287-307. PEREIRA, Maria Luiza Scher. s.d. “Espaço em questão: Portugal no romance de Cardoso Pires”. In Revista Semear nº5. Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Consulta online em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/

semiar_5.html. PETROV, Petar. 2000. O realismo na ficção de José Cardoso Pires e de Rubem Fonseca. Lisboa: Difel. PIMENTEL, Irene Flunser. 2011. A cada um o seu lugar - A política feminina do Estado Novo. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores. PIRES, José Cardoso. 1999. E agora, José?. Lisboa: Publicações Dom Quixote. PORTELA, Artur. 1991. Cardoso Pires por Cardoso Pires. Entrevista conduzida por Artur Portela. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

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A construção do feminino nas obras Ponciá Vicêncio e Insubmissas lágrimas de mulheres, da escritora e pesquisadora Conceição Evaristo Rosinéia de Jesus Ferreira Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, (Brasil)

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a construção do feminino nas obras PonciáVicêncio e Insubmissas lágrimas de mulher, da escritora e pesquisadora Conceição Evaristo. Nas duas obras, as questões do vazio, da memória e da violência doméstica são abordadas. A escritura feminina é marcada pelo posicionamento político de sua auto-descoberta e de sua busca por uma identidade que rechaça o estereótipo de submissão e constrói o seu caminho rumo à plenitude do ser mulher.

O romance Ponciá Vicêncio narra a trajetória de Ponciá, desde a infância à idade adulta, evidenciando a busca pela identidade, o trauma da ausência dos entes queridos e as marcas da escravidão, presentes no sobrenome Vicêncio, herdado do Coronel Vicêncio, dono de seus bisavós e do qual carregava o nome como estigma, seu jeito de “não estar no mundo”. Ponciá Vicêncio é também um romance de denúncia da situação da mulher, da exploração do trabalho na zona rural e do coronelismo. Consciente da falta de perspectiva no campo, Ponciá parte para a cidade em busca de melhores oportunidades de vida e trabalho: Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. de trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros cobertas de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte da colheita ser entregue aos coronéis. (Ponciá Vicêncio, 2003:32) Durante sua trajetória, Ponciá une passado e presente através da memória num fluxo de pensa-

mento que trazem não só o amor e a ternura, mas momentos de grande impacto psicológico. A figura de Vô Vicêncio é a conexão entre Ponciá e suas raízes, marca o passado-presente-aqui-agora da escravidão, isto é, a atemporalidade da condição de escravidão do negro, sua estratégia de submissão insubmissa e os reflexos da memória de tempos difíceis, passados como herança. Desprovida de si, Ponciá mergulha na sua narrativa particular, coletiva, atemporal, em que convivem as alegrias, tristezas, traumas e o desejo de reconstruir o seio familiar na esperança de retê-lo, se reencontrar nele, refazer o caminho dos antepassados que é também seu, na expectativa de unir fragmentos de vida que foram perdidos e dar um sentido a sua existência. O contínuo fluir dos pensamentos de Ponciá recria as figuras do pai ausente e do avô que tinha o braço cotó e dá a eles substância e visibilidade. Remerorando toda a sua trajetória, Ponciá percebe que a herança do Vó Vicêncio era a loucura, advinda da consciência da impossibilidade da verdadeira liberdade e da escravidão sem fim. Por isso, Vô Vicêncio havia matado sua mulher e tentou contra sua própria vida. Ponciá tinha esse estigma no seu corpo que não dava condições de vida aos filhos fora de seu ventre. Com relação aos personagens, eles são imbuídos de complexidade que os coloca além do simples dualismo e dos estereótipos. Para cada personagem, Conceição Evaristo apresenta um

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aspecto da trajetória e os justifica, evitando que caiam na comiseração do leitor ou que façamos acerca deles considerações simplistas. Essas situações pelas quais passam os herdeiros da escravidão se refletem nas condições de vida das populações que migraram do campo para as grandes cidades em busca de melhores oportunidades de vida e trabalho e que percebem, tanto quanto Luandi e Ponciá, que a situação do negro livre reproduz a escravidão, através do trabalho subalterno, que não lhe confere poder de decisão e da vida no barraco da favela. A esse respeito, Ponciá considera: De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de coragem-covardia, se rebelara, matara uns dos seus e quisera se matar também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma situação que se repetia. (Ponciá Vicêncio, 2002: 84) 284

A narrativa aponta um caminho ao exibir os trabalhos de cerâmica de Ponciá e sua mãe como elemento agregador da família e da valorização da arte popular como agente de mudança e dignificação social, mas que ainda é vedado ao negro. Como exemplo, podemos citar a emoção de Luandi, ao ver os trabalhos de sua mãe e Ponciá numa exposição de arte popular: E, não agüentando mais guardar as lágrimas, Luandi tomou do Cartãozinho branco e reconheceu o nome das duas, quis levar A indicação consigo, mas recuou. Estava feliz também, porque Na criação da mãe e da irmã estavam apontados os nomes delas Como autoras. Na mesa anterior havia um trabalho tão bonito E o nome de seu criador era desconhecido. No caso de sua família, não. Desconhecido para ele era o dono. (Ponciá Vicêncio, 2002: 107) No tocante à vida sentimental de Ponciá, o relacionamento entre ela e seu companheiro é marcado pela impossibilidade de diálogo, desesperança e violência doméstica, que aumentaram ainda mais o vazio e o alheamento da personagem: Desde os primeiros tempos, nos momentos

em que ela se abria para ele, o homem vinha emudecido, trancado de falas, sem gesto algum dizível de nada. Enquanto que Ponciá vivia a ânsia do prazer e o desesperado desejo de encontro. E, então, um nisto de raiva e desaponto tomava conta dela, ao perceber que ela e ele nunca iam além do corpo, que não se tocavam para além da pele. (Ponciá Vicêncio, 2002:67) Quando viu Ponciá parada, alheia, morta-viva, longe de tudo, precisou fazê-la doer também e começou a agredi-la. Batia-lhe, chutava-a, puxava-lhe os cabelos. Ela não tinha um gesto de defesa. Quando o homem viu o sangue a escorrer-lhe pela boca e pelas narinas, pensou em matá-la, mas caiu em si assustado. Foi ao pote, buscou uma caneca d´água e limpou arrependido e carinhoso o rosto da mulher. (Ponciá Vicêncio, 2002:98) Insubmissas lágrimas de mulheres é uma enunciação ficcional de relatos de mulheres negras que têm em comum estórias de insubmissão, das quais seleciono três. A primeira, Aramides Florença conta o episódio de ter sido estuprada pelo próprio marido enquanto amamentava o filho recém-nascido e de não aceitar aquela violência, sentindo-se machucada em seu corpo e em sua dignidade: Numa sucessão de gestos violentos, ele me jogou sobre nossa cama, rasgando minhas roupas e tocando violentamente com a boca umdos meus seios que já estava descoberto, no ato da amamentação de meu filho. E, dessa forma, o pai de Emildes me violentou. E, em mim, o que ainda doía um pouco pela passagem de meu filho, de dor aprofundada sofri, sentindo o sangue jorrar. (...) havia deixado conceber em mim um filho.(...) E quando ele se levantou com o seu membro murcho e satisfeito, a escorrer o sangue que jorrava de mim, ainda murmurou entre os dentes que não me queria mais, pois eu não havia sido dele, como sempre fora, nos outros momentos de prazer. (Insubmissas lágrimas de mulheres, 2011:18)

O segundo conto, Shirley Paixão, narra a estória de uma mulher que tinha duas filhas e se casou com um homem que tinha três filhas. Depois de

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anos de convivência em comum, o homem estuprou a própria filha e foi golpeado pela esposa, numa tentativa desesperada de proteger a enteada: Um homem esbravejando, tentando agarrar, possuir, violentar o Corpo nu de uma menina, enquanto outras vozes suplicantes, deesperadas, desamparadas, chamavam por socorro. Pediam ajuda Ao pai, sem perceberem que ele era o próprio algoz. (...) Eu precisava salvar minha filha que, literalmente, estava sob as garras daquele monstro. (...) Foi só um levantar e abaixar da barra. Quand Vi, o animal ruim caiu estatelado no chão. (Insubmissas lágrimas de mulheres, 2011:29-30) O terceiro conto, Lia Gabriel, narra a estória de uma mulher, mãe de três filhos, cujo filho caçula sofre de esquizofrenia e no tratamento ao qual ele foi submetido, descobriu-se que o monstro imaginário que o afligia era a figura do pai que ao espancar a mãe, o espancou nos braços dela: Não era a primeira vez que ele me agredia. As crianças choravam aturdidas. Eu só escutava os gritos e imaginava o temor delas. Em seguida, ele me jogou no quartinho de empregada e, com o cinto na mão, ordenou que eu tirasse a roupa, me chicoteando várias vezes. Eu não emiti um só grito, não podia assustar mais as crianças, que já estavam apavoradas. O que mais me dois era o choro desamparado delas. Depois, ele voltou à sala e me trouxe o meu menino, já nu, arremessando a criança contra mim. Amparei meu filho em meus braços, que já sangravam. (...) Ele me chicoteando e eu com Gabriel no colo. E, quando uma das chicotadas pegou o corpo do menino, eu só tive tempo de de me envergar sobre meu filho e oferecer as minhas costas e as minhas nadegas nuas ao homem que me torturava. (Insubmissas lágrimas de mulheres, 2011:87) O romance Ponciá Vicêncio e o livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres tratam da situação da mulher negra, vítima da violência doméstica praticada, na maioria das vezes, pelos maridos ou companheiros. Os textos de Conceição Evaristo estabelecem um fórum de discussão acerca das práticas contra a mulher, antes consideradas legítimas e, ainda hoje, caladas por várias mulheres por medo, vergonha, desinformação e baixa auto-

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-estima. O fazer literário é também fazer político por expressar as várias subjetividades aqui mostradas na tecitura do texto e compartilhar vivências, vazios, temores e coragem. Coragem de se expressar, de se reinventar e se reencontrar a cada passo no caminho. Ao tematizar o feminino negro, Conceição Evaristo coloca em evidência não só a denúncia social, mas a visibilidade de populações marginalizadas em busca da real cidadania. E a voz da mulher negra como insubmissa, superando os desafios sociais e estereótipos em busca da plena realização do ser mulher, apoiada pela convicção do seu direito de expressão. Referências bibliográficas EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: uma poética da nossa afro-brasilidade. 1996. Dissertação (Mestrado em Letras), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. ____________________. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003 ____________________. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011. GUIMARÃES, Geni. Leite do peito. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 1988. VÁRIOS AUTORES. Cadernos Negros 13. São Paulo: Quilombhoje, 1990.

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Construção da identidade feminina nas obras de Alice Vieira Teresa Mendes Instituto Politécnico de Portalegre/Escola Superior de Educação/ C3i/CEC-FLUL, (Portugal)

Resumo: Pretende-se, neste artigo, demonstrar que a obra de Alice Vieira destinada preferencialmente ao público juvenil coloca em cena personagens femininas adolescentes que problematizam e reconfiguram uma certa construção da identidade feminina, nas suas diversas representações discursivas e modalidades enunciativas. Assim, partindo de alguns textos literários da autora, procurar-se-á analisar a forma como as vozes plurais de um sujeito adolescente arquetípico (feminino) dão conta, na primeira pessoa, das suas inquietações de ordem existencial, psicoemotiva e relacional, e como, nos seus discursos introspetivos, as personagens adolescentes femininas narrativizam a problemática da constituição do sujeito como ser oscilante e dramático, plasmando na superfície textual os meandros da sua interioridade e do seu sentir.

287 Introdução Portugal assistia, no final dos anos setenta, início dos anos oitenta do século XX, a uma fase de transição, marcada por diversas movimentações políticas, ideológicas, sociais e culturais decorrentes da instauração de um novo regime, fase essa que se traduziu numa completa alteração das mentalidades, dos códigos sociais de conduta e numa renovação sem precedentes ao nível das estruturas familiares. De facto, a evolução socioeconómica e cultural e a democratização dos costumes possibilitaram o surgimento de novas estruturas familiares e a redefinição dos papéis tradicionalmente desempenhados por homens e mulheres na sociedade e no microcosmos familiar, bem como transformações profundas nos modelos de autoridade parental e, consequentemente, nos relacionamentos intergeracionais e intrafamiliares. Especialmente atenta às profundas mudanças operadas na sociedade portuguesa finissecular, a literatura juvenil, em grande parte pela mão de Alice Vieira, que se viria a afirmar no panorama literário para o público adolescente e juvenil como “a grande revelação da literatura portuguesa para jovens dos anos oitenta e noventa” (Gomes, 1997: 45), soube dar conta dessa evolução da sociedade portuguesa contemporânea, colocando no centro das narrativas literárias destinadas ao público

juvenil protagonistas adolescentes, na sua maioria femininas, que, na primeira pessoa, discursivizam os problemas e os anseios relacionados com a sua dupla condição de mulheres e de seres em crescimento, manifestando, nas suas vozes plurais, as inquietações decorrentes da fase de desenvolvimento em que se encontram bem como as divergências ideológicas e comportamentais que as separam de uma certa alteridade adulta, desvalorizada no interior dos textos. A vastíssima obra de Alice Vieira, a escritora portuguesa de livros para jovens mais conceituada, traduzida e divulgada no estrangeiro, é a este nível exemplar, na medida em que nela encontramos um universo predominantemente feminino, povoado por personagens adolescentes de grande densidade psicológica, que se constroem literariamente através de procedimentos como a focalização interna e o discurso autodiegético, a introspeção, o autoquestionamento e a indagação, o registo intimista e confessional, por vezes memorialístico, personagens que nos inquietam porque nos dão a conhecer os meandros da sua interioridade e as oscilações do seu sentir através de um discurso fortemente modalizado que serve claramente o intuito de validação do mundo adolescente e a consequente desvalorização dos adultos, não raro submetidos ao olhar impiedoso e crítico dos mais

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novos, naquela que se me afigura como uma subtil estratégia de captação do público leitor adolescente e juvenil.

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Predomínio do Eu – introspeção e discurso intimista O predomínio da primeira pessoa (e da narração autodiegética) institui-se, nas obras de Alice Vieira, como um vetor axial na construção das personagens adolescentes que, recorrendo preferencialmente à palavra monologal e a uma retórica da intimidade a que frequentes vezes só o leitor tem acesso, manifestam, nos seus discursos plurais, as suas inquietações, os seus desejos mais íntimos e os problemas de ordem afetiva e relacional que decorrem das situações de incomunicabilidade e divergência interpessoal e intergeracional com que se deparam habitualmente. Na verdade, em obras como Rosa, minha irmã Rosa, Lote 12, 2º Frente, Chocolate à Chuva, Caderno de Agosto, Paulina ao Piano, Úrsula, a maior, Flor de Mel, Os Olhos de Ana Marta, Águas de Verão, Se Perguntarem por Mim Digam que Voei, e muitas outras, as vozes plurais de um sujeito adolescente arquetípico, frequentemente configurado como um eu exemplar, atravessam os universos textuais, instituindo-se o recurso à primeira pessoa como estratégia discursiva e enunciativa preferencial. Nos seus discursos introspetivos, as personagens narrativizam a problemática da constituição do sujeito como ser oscilante e dramático, plasmando na superfície textual os meandros da sua interioridade. Esse movimento introspetivo de um ser que continuamente se desdobra e multiplica no discurso é sustentado preferencialmente pela narração autodiegética, colocando no centro das narrativas personagens adolescentes, na sua maioria femininas, que, através do seu ponto de vista e de um discurso gerado no seu interior, legitimam não apenas a sua voz singular mas a da geração a que pertencem. Tal estratégia narrativa serve o propósito genérico de orientação da leitura, uma vez que, pelo filtro da sua subjetividade, o sujeito enunciativo seleciona os dados da sua existência ficcional, construindo uma imagem idílica de si, das suas vivências pessoais e do seu constructo mental. A partir do ponto de vista da personagem em formação, constrói-se, pois, um universo ficcional em que se procede explicitamente à valorização do mundo adolescente e, por consequência, à desvalorização e desqualificação dos adultos, pelo menos de alguns, apresentados quase sempre de forma

disfórica e invariavelmente submetidos ao olhar (impiedoso) dos mais novos. Nas narrativas de Alice Vieira em que o procedimento autodiegético predomina, é de facto através de um discurso de primeira pessoa que personagens e/ou narradoras verbalizam a inevitabilidade do dizer(-se) e exploram narcisicamente os caminhos da sua interioridade, incorporando no tecido narrativo considerações epistemológicas sobre o existir discursivizadas em registo introspetivo e intimista. Ora, sendo a narrativa literária para jovens, nos finais do século XX, uma produção que assenta em matrizes semânticas e genológicas de tendência manifestamente intimista, a preponderância da primeira pessoa num discurso fortemente modalizado, propício à prática da autoanálise e do autoquestionamento, não surpreende. Assim, os meandros da interioridade subjetiva são plasmados numa expressão individual não necessariamente acessível ao outro - por pudor ou tão-só por vontade de resguardar a sua privacidade -, o que explica, pelo menos em parte, a centração preferencial do discurso na primeira pessoa. Aliás, a inexistência efetiva de um interlocutor nesse contexto (pelo menos a nível intratextual) acentua a autorreflexividade que enforma os discursos plurais das personagens, que manifestam assim a necessidade imperiosa de falarem de si, para si, de se dizerem simultaneamente enquanto sujeitos e enquanto objetos. Nesse sentido, e de forma recorrente, as narradoras projetam para o exterior (leia-se, para a superfície textual) o discurso interior que corporiza o seu pensamento ou as oscilações do seu sentir, no presente, mas também as reminiscências de um tempo passado frequentes vezes evocado pela memória subjetiva, um tempo filtrado pelo olhar distante de sujeitos adolescentes que assim se reveem mimeticamente no espelho da infância. Numa e noutra situação, os segmentos textuais, cumprindo uma função preferencialmente retórica, dão conta do mover labiríntico do sujeito dentro de si e da sua linguagem. Diálogo interiorizado: a dramaturgia da voz De um modo geral, a modalidade discursiva mais difundida e declinada na narrativa literária para jovens nas duas últimas décadas do século XX, e em particular na obra de Alice Vieira, é o monólogo. De facto, e porque nem sempre as personagens encontram nas diversas representações da alteridade a comunhão empática que lhes

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permita verbalizarem as suas inquietações e os seus anseios mais íntimos sem constrangimentos, as narradoras socorrem-se frequentemente do registo monologal para darem voz ao seu pensamento e aos seus estados emotivos, numa tentativa de inquirirem sobre a sua identidade e de encontrarem soluções para o enigma existencial. Na verdade, o eu textual que se inscreve no discurso em primeira pessoa é um eu-sujeito-observador que continuamente reflete e se interroga sobre os meandros da personalidade do eu-sujeito-observado, ocasionalmente reconvertido num tu sem capacidade de resposta. Esta dimensão do sujeito cindido, do sujeito em permanente diálogo consigo, sinaliza aliás a tendência para o desdobramento e a multiplicidade do indivíduo em que se funda, no plano ontológico, a literatura intimista contemporânea (cf. Rocha, 1992: 48). Aliás, o entendimento do indivíduo como um ser plural consubstancia-se, na maioria das narrativas literárias para jovens de finais do século XX, e em particular nas de Alice Vieira, em situações discursivas que problematizam e equacionam o estatuto do eu e as suas relações com a alteridade. A relação dialógica entre o eu e o Mesmo, manifestação discursiva privilegiada da autocomunicatividade intratextual anunciada por Aguiar e Silva (cf. Aguiar e Silva, 1986: 307) enfatiza justamente o movimento autorreflexivo que sustenta o processo de autognose. Dialogar consigo próprio1, na aceção bakhtiniana, significa desdobrar-se funcionalmente em duas pessoas gramaticais e adotar diferentes pontos de vista, o do eu emotivo e sensível e o do outro, racional e objetivo, que assumem alternadamente quer a função de emissor quer a função de recetor. Daí que as narradoras adolescentes oscilem entre o ato de assumirem a solidão da própria voz e a necessidade de criarem outro para o diálogo, como sucede com a protagonista de Cortei as Tranças, mas também com Mariana em Chocolate à Chuva (28), Lote 12-2º Frente (23) ou com Melinda em Flor de Mel (47). Aliás, o recurso à dialogização do monólogo é uma das fórmulas encontradas para de certa forma suprir ou compensar o déficit de comunicação interpessoal a que as personagens estão sujeitas. No entanto, outras estratégias atestam igualmente a presença obsessiva do eu no interior dos textos, como o recurso à memória e à retrospeção, bem como a insistente utilização da interrogação retórica, que atesta a necessidade de o eu se projetar no discurso e de encontrar respostas para as questões existenciais e identitárias que continuamente se lhe colocam no presente.

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Projeção retrospetiva: o lugar de um (re) encontro O pendor intimista e por vezes memorialístico que perpassa os textos de Alice Vieira para o público juvenil assenta, com frequência, no procedimento da analepse para dar conta de eventos ocorridos num tempo anterior à própria narrativa e que ajudam a compreender o presente. Assim, através de sucessivas incursões no passado, as personagens aludem aos factos mais marcantes do seu crescimento para, a partir deles, tecerem considerações de ordem filosófica e metafísica ou para, simplesmente, vincarem a importância que tais factos tiveram numa altura crucial das suas vidas. O tempo surge assim concebido como um continuum pontuado de descontinuidades que as narrativas podem ir colmatando como sentido. É o que sucede com Mariana, a protagonista de Chocolate à Chuva, por exemplo, quando, sem que ela própria consiga perceber porquê, recorda o seu primeiro dia de escola: De repente, sabe-se lá porquê, lembro-me do primeiro dia em que fui à escola, Outubro mal começara, chovia tanto. A minha mãe tinha-me dado um chocolate, sem se importar com o mal que aquilo fazia aos dentes, como sempre me dizia. Acho que passei a manhã de nariz esborrachado no vidro, a olhar a chuva lá por fora, e todos os que pelas ruas andavam tão felizes, sem terem de ir à escola. Nunca fui capaz de esquecer esse dia, a chuva, a minha vontade de chorar, o bibe, o chocolate esmagado na minha mão. Não sei por que me lembro disto agora. Só sei que quero (quero mesmo?) lembrar-me de outras coisas (….). (CC, 71) Apesar de Mariana, no seu discurso, manifestar estranheza relativamente ao verdadeiro motivo que fez ativar a sua memória subjetiva e involuntária, recuperando, intactas, as emoções e as sensações experimentadas nesse dia, o leitor percebe que o episódio é invocado por Mariana num momento em que, perante a notícia da separação dos pais da sua melhor amiga, a protagonista de Chocolate à Chuva se sente particularmente próxima de Rita. Com efeito, pelo processo da transferência, Mariana sente a tristeza da amiga como sendo também a sua, recuperando do seu passado a sensação de abandono e mágoa que viveu nesse seu primeiro dia de escola.

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No seu discurso retrospetivo, Mariana vê-se à distância como uma menina frágil e desprotegida (com vontade de chorar), uma menina que então se sentira abandonada pela mãe, mas o eu que assim se observa num tempo pretérito é ainda um sujeito fragilizado pelas emoções então vividas, um sujeito que confessa nunca ter sido “capaz de esquecer esse dia” e que assume, sem grande convicção (“quero mesmo?”), querer lembrar-se de outras coisas – como se a memória se submetesse à vontade do sujeito e dele dependesse para irromper, dar forma, visibilidade ou nitidez a determinadas imagens do passado. Assim se compreende que o processo de construção de si encontra na visão retrospetiva do sujeito-observador uma das estratégias narrativas mais declinadas nas narrativas em estudo. Várias são as personagens que, à semelhança de Mariana, recordam episódios marcantes do seu passado (na maior parte dos casos, dolorosos), episódios que sublinham feridas por cicatrizar, no presente. É o caso, por exemplo, de Marta, a protagonista de Os Olhos de Ana Marta, que recorda o tempo em que era acometida por febres altas, durante a Primavera, embora a sua memória não lhe permita precisar o momento em que tudo começou: Não me lembro quando as febres começaram. Quero eu dizer: sempre me lembro de elas chegarem no princípio da Primavera, mas quando foi a primeira vez que isso sucedeu, não sei. Nem tinha sentido chamar o médico, porque não havia nada a fazer, nem remédios a tomar. Leonor deitava-me e dizia: - Esteja muito quieta, Vidrinho: chegou a hora. (OAM, 73) O que Marta retém desse tempo é a vulnerabilidade de um eu impossibilitado de lutar contra a doença, mas sobretudo a dedicação da velha criada Leonor, que lhe “punha na cama lençóis de linho que cheiravam a alfazema” (73), que “não largava a cabeceira da (…) [sua] cama” (74), que “não fazia outra coisa senão olhar para [si]” (74) e que a tratava carinhosamente pelo diminutivo Vidrinho por causa das febres que a debilitavam e a tornavam frágil, como se depreende das palavras de Marta: “Por causa das febres, Leonor chamava-me às vezes Vidrinho. Dizia ela que eu não tinha resistência nenhuma, que era frágil” (97).

Desse tempo, Marta guarda a memória das agradáveis impressões sinestésicas que então experimentava (“Essa era outra das coisas boas de se estar doente: o cheiro a alfazema”, as mãos frescas de Leonor “sobre a minha cabeça a escaldar” (74)), mas também da indiferença de Flávia, a mãe “que só respondia pelo nome próprio porque – dizia – já não tinha idade para ser mãe de ninguém” (25). Compreende-se, portanto, que toda a movimentação retrospetiva de um sujeito adolescente que se olha narcisicamente no espelho da infância, procurando reunir os fragmentos dispersos de si e as marcas impressivas que esse tempo anterior deixou no seu íntimo, deriva, nas obras de Alice Vieira, grosso modo, de um desejo de unificação2 que o ajude a compreender-se no presente e a projetar-se no futuro. Por isso, as operações seletivas que realiza neste contexto de rememoração e de evocação do paraíso perdido para resumir a sua (ainda) curta experiência de vida passam também pela recordação dos que já partiram, adquirindo a presença fantasmática dos mortos particular relevância no discurso retrospetivo das personagens femininas (pré)adolescentes. O eu recupera, pois, através da sua memória subjetiva, as palavras, os gestos, o riso do(s) outro(s), o tempo de harmonia vivido em comum e que já não causa sofrimento porque a dilatação temporal que separa o então do agora lhe permite minimizar a dor da perda. É assim com Mariana, a protagonista de Rosa, Minha Irmã Rosa, Lote 12-2º Frente e Chocolate à Chuva, que evoca constantemente, no seu discurso interior, a avó Lídia, assumindo lembrar-se dela “todos os dias, apesar de ter morrido há quase um ano” (RMIR, 23). Mariana recorda assim esse tempo anterior ao nascimento da irmã Rosa, um tempo em que, como a menina enfatiza, “as coisas eram bem melhores cá em casa [porque] chegava da escola, a avó Lídia arranjava-me sempre pão com queijo, e para ali ficávamos as duas a rir” (RMIR, 92). Esse era o tempo em que a avó lhe pertencia só a ela, em que a menina era ela e não tinha de dividir a avó com ninguém, era o tempo em que o riso era fácil e o afeto se traduzia em pequenos gestos do quotidiano. Deste modo se percebe que o eu arquetípico que atravessa os universos textuais, consubstanciado nas diversas manifestações romanescas que o configuram, é um ser inquieto, permanentemente em busca de si, um ser que ora se vira para o passado e procura filtrar, com um outro olhar, os marcos incontornáveis da sua história de vida, ora se foca no presente, tentando perceber quem é e qual

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o seu lugar no mundo. As constantes movimentações discursivas de introspeção e análise que, nas obras em estudo, traduzem a inquietação das personagens adolescentes, dão conta justamente do seu percurso «iniciático» rumo à maturação, um percurso interior feito de avanços e recuos, de hesitações e certezas, de contradições e fragilidades. Indagação e perplexidade: o discurso da itinerância Instituindo-se como o reflexo da natural inquietação dos sujeitos em crescimento, a interrogação, a par da projeção retrospetiva, funciona como um dos mecanismos linguísticos mais reiterados no discurso autocentrado das narradoras, o que não surpreende, uma vez que, como afirma Mercedes Manzano, “na adolescência prevalece o mundo das perguntas” (Manzano, 1984: 4). Assim, no trajeto indagador do sujeito em busca de si e da sua identidade, as personagens adolescentes encetam um percurso interior de (auto)questionamento e de (auto)análise que passa inevitavelmente também pelo confronto com as diversas representações da alteridade. Perceber por que são assim e não como os outros é um caminho que se afigura não isento de dor para algumas dessas adolescentes, mas o processo de indagação não se fica por aqui. Na realidade, o eu arquetípico que atravessa os diversos universos textuais manifesta, através de uma forte propensão para o discurso interrogativo, não só um insaciável desejo de (se) conhecer, de perceber os contornos da sua existência (e da dos outros), de compreender qual o seu lugar no mundo, mas também uma necessidade de tecer considerações de natureza filosófica e epistemológica quase sempre de grande profundidade, não sendo, nestes casos, a interrogação sentida como particularmente dolorosa. Em Rosa, Minha Irmã Rosa, por exemplo, uma das obras em que o recurso à interrogação é mais evidente, Mariana questiona-se frequentemente sobre as implicações pessoais e familiares que o nascimento da irmã Rosa acarretou (74), os sentimentos que a unem aos outros (17), o seu crescimento e o da irmã (66), atitudes que considera incompreensíveis nos outros (57), o significado de palavras que desconhece ou que não consegue perceber quando inseridas em contextos pragmáticos não habituais (9) ou o desfasamento entre o que se aprende na escola e o que se sabe das pessoas que estão perto de si: Como se explica que eu saiba tantas coisas

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dos romanos, e dos mouros, e não saiba nada da minha vizinha?! Como se explica que eu saiba quantas toneladas pesava a espada do D. Afonso Henriques e não saiba quanto pesa a máquina de costura da minha vizinha?! (…) Como se explica que eu saiba que Isabel era o nome da mulher de D. Dinis e não saiba nem o nome da minha vizinha?! (RMIR, 96) Frente a frente consigo própria, ou com a voz da sua consciência, Mariana oferece-nos um quadro reflexivo sustentado pelo procedimento da interrogação retórica, que se afigura, neste contexto, como uma estratégia discursiva de autorrepresentação com um nítido propósito de fazer participar o leitor na construção de sentidos propositadamente deixados em suspenso. Nesse sentido, o dizer-se, ou melhor, o interrogar-se pode ser entendido como um ato perfomativo e pedagógico que implica o leitor no circuito comunicativo, empurrando-o para além do texto, obrigando-o também a questionar-se. Aliás, no âmbito dos estudos literários e semióticos, as orientações teóricas contemporâneas, de que se destacam a perspetiva desenvolvimentista defendida por J. A. Appleyard (1991) e a teoria semiótica da cooperação textual concebida por Umberto Eco (1993), atribuem ao leitor uma função relevante e dinâmica no processo interpretativo do texto literário. Desta forma, o leitor modelo previsto pelo autor do texto infanto-juvenil deverá ser capaz de ativar os mecanismos da compreensão que lhe permitam estabelecer inferências e retirar ilações a partir do conteúdo semântico plasmado na superfície textual. Por isso, e apesar de o alcance epistemológico e metafísico das interrogações de Mariana - só para dar um exemplo - poder não ser demasiado evidente a priori, a instância recetiva não adulta provavelmente será capaz de preencher os espaços em branco, ensaiar respostas para as questões retóricas deixadas em suspenso, projetando-se no lido, e fechar dessa forma o circuito comunicativo através da sua capacidade hermenêutica, apesar da sua inevitável incompetência (ou competência condicionada) na decifração de códigos axiológico-valorativos mais complexos. Conclusão Percebe-se assim que, aquando da leitura das obras de Alice Vieira, o leitor funciona como testemunha do processo de construção literária de um sujeito oscilante e dramático, um ser em fase de crescimento e de consolidação da sua personali-

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dade, que se interroga e se autoexamina através de diferentes procedimentos técnico-literários que assentam numa estratégia global de autocomunicatividade intratextual (cf. Aguiar e Silva, 1986: 307). Deste modo se potencia a provável identificação com o/a jovem leitor(a), que, projetando-se no narrado, se revê nas palavras das personagens adolescentes e nas observações valorativas e de caráter judicativo que as mesmas vão tecendo ao longo da narrativa. Esse processo de identificação é facilitado pelo facto de personagens e prováveis leitores(as) terem aproximadamente a mesma idade, com problemas de ordem existencial, emotiva e relacional semelhantes, inerentes à fase de crescimento em que se encontram. Nesse sentido, o encontro eloquente entre personagem e leitor, mediado pela escrita, confere à narrativa, em sentido lato, um estatuto comunicativo que potencia a instauração de um clima de cumplicidade e de entendimento entre sujeitos textuais e empíricos, permitindo ao leitor (e preferencialmente à leitora) encontrar, no silêncio da página, o espaço íntimo de uma comunhão. 292

Referências bibliográficas AGUIAR e SILVA, V. (1986). Teoria da Literatura. 7ª ed. revista. Vol. I. Coimbra: Almedina. APPLEYARD, J. A. (1991). Becoming a Reader. The Experience of Fiction from Childhood to Adulthood. Cambridge: Cambridge University Press. ECO, U. (1993). Leitura do Texto Literário. Lector in Fabula – A Cooperação Interpretativa nos Textos Literários, 2ª ed.. Lisboa: Editorial Presença. MANZANO, M. G. (1984). “Literatura juvenil: sí o no?”. Alacena. Nº 1, pp. 4–5. MORÃO, P. (2007). “The impossible Self-Portrait”. In BUESCU, H. e DUARTE, J. F. (coord). Stories and Portraits of the Self. Amsterdam – New York: Rodopi, pp. 253 – 265. ROCHA, C. (1992). Máscaras de Narciso. Estudos Sobre a Literatura Autobiográfica em Portugal. Coimbra: Almedina. VIEIRA, Alice (1999). Rosa, Minha Irmã Rosa. 15ª ed. [1ªed. 1979]. Lisboa: Caminho. VIEIRA, Alice (1998). Lote 12 – 2º Frente. 11ª ed. [1ª ed. 1980] Lisboa: Caminho. VIEIRA, Alice (2003). Chocolate à Chuva. 13ª ed. [1ª ed. 1982]. Lisboa: Caminho. VIEIRA, Alice (1998). Flor de Mel. 6ª ed. [1ª ed. 1986]. Lisboa: Caminho. VIEIRA, Alice (1998). Os Olhos de Ana Marta. 3ª ed. [1ª ed. 1990]. Lisboa: Caminho.

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Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)configuração do cânone e da identidade

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DO CINEMA, O MENOR: algumas considerações sobre mulheres, alteridade e documentário Carla Maia* (Doutoranda do PPGCOM/UFMG)

Resumo: A partir de dois filmes realizados por mulheres no Brasil que apresentam personagens femininas – Vida (Paula Gaitán, 2008) e Acácio (Marília Rocha, 2008) - busco elaborar um pensamento que vincula três termos: o feminino, a alteridade e o cinema, em particular, o documentário. Em lugar de um cinema de mulher, tomado sob viés autoral ou identitário, me interessa refletir sobre um cinema com as mulheres, numa perspectiva animada pelo encontro entre mulheres que filmam e que são filmadas. Em minha análise, destaco a dimensão relacional e necessariamente política desse fazer com, estar junto, que tais filmes trazem à cena. Deleuze e Guattari escrevem sobre uma literatura que poderia ser considerada não como língua menor, “mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior.”1 Entre suas características principais, os autores destacam que, nela, “tudo é político”.2 A proposta desse trabalho é construir uma ponte que sustente tal formulação, levando-a porém a uma outra margem: passar da literatura para um cinema menor - e feminino. macho, cidadão” e “as mulheres, independentemente de seu número, são uma minoria”.3 Avançando a partir dos pressupostos de Deleuze e Guattari, a proposta é justamente refletir sobre alguns filmes que resultam da ação conjunta de mulheres. Se, de acordo com a formulação deleuziana, o cinema não apenas apresenta imagens mas as cerca com um mundo, a questão ganha fôlego e surge renovada: que mundos podem resultar da ação conjunta de mulheres? A alteridade começa no feminino, ensina o filósofo Emmanuel Levinas4. Recorro ao pensamento do filósofo para compor minha análise, justamente por defender a ideia de que abordar esse cinema com mulheres exige atentar para algo como um mundo com alteridade - mundo em que ainda é possível atar laços e propor partilha.

Certa vez, no Rio de Janeiro, ouvi a diretora Claire Denis fazer um comentário instigante a respeito de seu filme O intruso (2004): ela disse que Jean-Luc Nancy, autor do livro que inspirou o filme, contou-lhe que muitos transplantes do coração não acontecem porque os pacientes do sexo masculino não querem receber o órgão de uma mulher. Pelo visto, de acordo com eles, um coração feminino pode ser algo muito grave. A anedota não é gratui-

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço eletrônico: kkmaia@gmail. com / www.carlamaia.com

ta. É em torno desse centro de gravidade – esse atributo de diferença ou de alteridade das mulheres – que busco elaborar um pensamento a respeito da presença das mulheres no documentário brasileiro contemporâneo. Presença discreta, é verdade, haja vista a diminuta produção de filmes de assinatura feminina no Brasil, quiçá no mundo. É fato que as cineastas são menores em número, o que pode ser explicado a partir de uma série de contingências sociais, históricas, políticas. Entretanto, elas existem. Deleuze e Guattari escrevem: “no Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, ma-

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cho, cidadão” e “as mulheres, independentemente de seu número, são uma minoria.” (DELEUZE; GUATTARI, 2005: 44). Elas são minoria, no entendimento dos autores, porque não se encaixam nos padrões ocidentais, porque dizem respeito a uma alteridade difícil de contar. Em Kafka – por uma literatura menor, os mesmos autores referem-se a um tornar-se menor – dentro de uma língua maior, fazer um uso menor, estar em sua própria língua como estrangeiro. Ao analisar a escritura de Kafka, Deleuze e Guattari destacam o modo original como Kafka soube escrever como nômade, imigrado, cigano de sua própria língua. Tal atitude exige deslocamentos, rupturas, uma certa maneira de fazer a língua vacilar em suas estruturas dominantes, numa busca das intensidades menos que das representações: “a linguagem deixa de ser representativa para tender para seus extremos, ou seus limites” (DELEUZE; GUATTARI, 1977: 36). Propomos explorar esse pensamento do menor pela chave oferecida por Deleuze e Guattari, que de modo algum corresponde a “em menor número” ou “de menor importância”. No cinema, queremos observar como um certo devir minoritário e feminino gera processos criativos particulares. Quando transponho tal pensamento, inicialmente pensado para a literatura, para o domínio das imagens e sons cinematográficos, quero insistir no que há de político em “tornar-se menor”. Tal movimento, que pressupõe algo de autônomo e imprevisto, constitui um devir que só pode existir como minoritário, “devir potencial por desviar do modelo”, como explica Deleuze. Para o autor, não há devir majoritário, a maioria apenas reproduz o mesmo, sob o jugo do poder e da dominação, enquanto o devir exige a variação contínua, o irrompimento da diferença, a criação. Enquanto a palavra da maioria é palavra de ordem, estratificada e organizada, uma consciência minoritária compõe com as passagens, detonando movimentos incontroláveis, na busca por encontrar “seu próprio patuá, seu próprio subdesenvolvimento, seu próprio deserto” (DELEUZE; GUATTARI, 1977: 29). Pensar o menor exige uma saída do subjetivo em favor do coletivo – cada caso individual passa a exercer funções políticas na medida em que outra história se agita nele. A enunciação individuada passa a convocar enunciações coletivas, a ação do autor passa a constituir-se como ação que cria um comum. Esse comum não é da ordem da identificação, antes, é um comum que só pode surgir das diferenças, de situações de não-entendimento em que, ainda assim, alguma relação se afirma, fora da lógica da dominação, da propriedade, do perten-

cimento. Um comum que não se constitui sobre a semelhança ou a identidade, mas sobre um vazio, uma lacuna, uma falta, que não é preenchida ou eliminada, mas antes é tornada visível enquanto falta. Penso num filme brasileiro recente: A falta que me faz (2009) de Marília Rocha. Nele, a diretora vai ao encontro de um grupo de jovens em Curralinho, na Serra do Espinhaço, Minas Gerais. No convívio com as meninas, entre imagens do cotidiano – elas nadam no rio, colhem flores, saem para dançar - há diálogos com a diretora em que ficam nítidas as diferenças de mundo que estão ali em contato, em contraste. O casamento, por exemplo, relacionado à violência e à restrição e portanto visto como indesejável pelas meninas, surge na conversa como indicador dessa diferença de repertórios: a diretora, ao ouvir das meninas que elas não pretendem se casar, replica numa voz um tanto hesitante: “mas casamento é bom…” Há outros momentos como esse no filme, em que, no diálogo entre a diretora e as personagens, restam lacunas, desentendimentos que não permitem uma aproximação total ao mundo filmado. Em uma desses momentos, vemos a personagem Alessandra numa conversa com a equipe do filme. Ela começa por contrariar nossas expectativas: no diálogo, é ela quem coloca as perguntas, ao contrário do que se espera. Uma certa reversibilidade da relação entre quem filma e quem é filmado toma a cena. Tudo se passa “como se” Alessandra ocupasse posição semelhante a dos entrevistadores – mas nas incompreensões e no riso tímido fica evidente que não há, de um lado a outro, equivalências. A cena se constrói, numa aparente igualdade, que é colocada à prova a todo instante, dissensualmente. À medida que o filme se aproxima de suas personagens, surgem a contradição, o impasse, o silêncio, a hesitação. O que se torna cada vez mais evidente é a diferença entre os mundos que ali estão colocados em contato, em contraste: o daquela jovem moradora de Curralinho, Minas Gerais, e o da reduzida equipe que a filma. No encontro da diretora com o grupo de meninas, há sempre algo que falta, que resta fraturado e separado, e essa falta é constitutiva do filme (como já anuncia o próprio título). Cria-se, assim, um espaço sensível movido pela diferença, pelo dissenso. Um dissenso que se dá a ver sutilmente, mais pela hesitação do que pela afirmação. No filme, encena-se uma aproximação da diretora ao universo daquelas meninas, mas trata-se de uma aproximação que não existe de fato – elas não vem do mesmo lugar, não compartilham do mesmo repertório, não se tornam amigas.

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Aproximam-se, mas também se afastam. Esse afastamento dá o tom do encerramento do filme, quando vemos uma das meninas na garupa de uma moto, na estrada, ao som de uma trilha evidentemente alheia a paisagem sonora do filme. Se antes ouvíamos músicas populares bem próximas do contexto das moradoras de Curralinho, o filme alcança o final com uma canção francesa, estrangeira em tudo daquele universo: “Je rêve de toi”. Seria fácil identificar, na canção, o tema do amor, tão caro ao filme (a letra da canção poderia ser traduzida como “eu sonho com você, escuto sua voz, a voz do amor”). Mas a canção é mais que isso: é um elemento que instaura uma certa dissonância com aquele universo. O eu sonha com o tu, mas o tu permanece apartado. Em nossa leitura, o filme se torna mais político na medida em que propõe um trabalho ao espectador, negando a ele qualquer satisfação (o desejo de ver mais, ou o desejo de integração ao mundo filmado, nenhum desses é atendido, nenhum voyerisno na observação dessas meninas, nenhum fetiche). Assim, ao espectador cabe elaborar algo com a falta de correspondência, com a distância insuperável e jamais elidida do mundo do outro. Embora bem distintos na forma e no conteúdo, algo análogo se passa nos filmes mais recentes de Paula Gaitán: Vida (2008) e Agreste (2010). Ao compor o retrato das atrizes Maria Gladys e Marcélia Cartaxo, respectivamente, tais filmes não nos deixam adivinhar suas feições com nitidez, não são revelados seus segredos, seus detalhes íntimos. Ao contrário, através de um forte investimento poético, os filmes sugerem associações insuspeitas, bem longe de qualquer fidelidade autobiográfica: é assim que Gladys é filmada, por trás de um véu, lendo repetidas vezes o mesmo poema, ou Cartaxo atravessa desertos, estranhas paisagens agrestes, até desaparecer nos rostos de mulheres anônimas, montados em sequência como uma série de retratos. “Marcélia pode ser todas as mulheres”, diz a sinopse de Agreste – no rosto da atriz se agita uma outra história. Agreste nos convida a uma incursão pela paisagem de um rosto, de uma montanha, de um campo aberto. Como que a seguir o ensinamento da mulher que vemos no retrato logo no início do filme, a escritora Clarice Lispector, o filme parece não se preocupar em fazer-se entender – “viver ultrapassa qualquer entendimento”, escreve Clarice. A presença da foto e da voz de Clarice logo no começo do filme, apesar da aparente desconexão, não são nada gratuitas. Por dois motivos. O primeiro, mais óbvio: Marcélia Cartaxo obteve reconhecimento

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como atriz ao receber o Urso de Prata no Festival de Berlim de 1985, pela sua atuação como a Macabéa na adaptação de Suzana Amaral do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. O segundo motivo é mais arriscado, porém mais promissor: é possível encontrar, nesse mesmo livro, preciosas chaves de leitura para o filme de Gaitán. Logo no princípio, escreve Clarice: “a minha vida mais verdadeira é irreconhecível”. Esse é, também, o efeito do filme: tornar irreconhecível a vida da personagem que propõe retratar. A cineasta parece guardar “o delicado essencial” da escritora, por contar uma história que contém segredos1. De forte carga poética, Agreste não se deixa apreender por completo. Nele, resiste sempre a abertura do mundo a outros mundos possíveis. A fotografia abusa das sombras, como que a sublinhar que nem tudo será iluminado pela verdade e seus fogos. É na penumbra que Gaitán constrói o retrato da artista, retrato em que se vê perfeitamente nada. Ou melhor, para ser fiel a uma das imagens do filme, um retrato que se forma como reflexo na superfície lisa da água, para num segundo momento oscilar e deformar-se, no momento em que a água se agita, diante do toque da mão, como que a quebrar o feitiço de Narciso. Com Maria Gladys, em Vida, tampouco se adivinha um retrato nítido. Logo na sequência inicial, vemos uma série de porta-retratos velados e desvelados por um tecido vermelho, que culmina na imagem de um porta-retrato… sem retrato. Enigmática, a abertura do filme já coloca questões: “impossibilidade do retrato, ou retrato a preencher a partir da relação contingente e criativa que o filme (que ali se inicia) vai erigir e reportar?” (MESQUITA, 2010: 117). Entre a abertura e a impossibilidade, entre a luz e a sombra, firma-se uma relação de alteridade formalmente construída, indicada nas escolhas e procedimentos expressivos do filme. Além dos momentos de abertura, há diversas cenas em que a atriz surge entre sombras, ou por trás de um tecido leve e translúcido. Em outras, Maria Gladys declama poemas e versos diversos, repetidamente: “lembrar é quase promessa, é quase, quase alegria”. Ecoando nos versos declamados repetidas vezes por Gladys, há o pensamento de Deleuze, que escreve que “não é por acaso que um poema deve ser aprendido de cor. A cabeça é o órgão das trocas, mas o coração é o órgão amoroso da repetição” (DELEUZE 1988: 11,12). O filósofo afirma que “a repetição só é uma conduta necessária e fundada apenas em relação ao que não pode ser 1 A predileção de Clarice Lispector pelos segredos fica bem evidente na mesma entrevista da TV Cultura, de onde se retira a frase ouvida no filme. Diante de várias perguntas, ela responde, simplesmente: “Isso é segredo”.

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substituído. Como conduta e como ponto de vista, a repetição concerne a uma singularidade não trocável, insubstituível” (DELEUZE 1988:11). Desse modo, a repetição não deve remeter a qualquer generalidade, semelhança, igualdade ou equivalência, mas somente ao que é único e singular, aquilo que, de tal modo insubstituível, só pode ser repetido. Por isso, ela não se refere a qualquer identidade ou generalidade do particular. “Para ser parecido, tem que ser muito diferente”, como lembra Gladys no filme, ao ler em voz alta a frase de Caetano Veloso anotada em sua agenda. Lemos a repetição dos versos, no filme, como recurso expressivo que tem a ver com a alteridade, algo como “a universalidade do singular”, em termos deleuzianos. O que se repete nunca é o mesmo: é, a cada vez, a singular e insubstituível aparição do novo. Entre os diálogos hesitantes e contrastados de Marília Rocha e a presença misteriosa de Maria e Marcélia nos filmes de Paula Gaitán, afirma-se uma força feminina que não cabe em determinações e não segue princípios normativos, o que coloca problemas a uma aproximação das obras pela chave da identidade ou do reconhecimento. Ao contrário, é pelo estranhamento que essas mulheres são dadas a ver. Esse modo de aparecer como um enigma, fora de qualquer identificação, faz do feminino potência de alteridade e, do cinema, instrumento de relação com essa alteridade. Não se trata, portanto, de afirmar um feminino centrado no sujeito, ou um feminino estilisticamente formado, delineado pelo gênio criativo de uma diretora que distribui cada coisa em seu lugar: trata-se de um feminino politicamente problematizado e tensionado, justamente pelo encontro entre autoras e personagens, e destas com o espectador. Por isso propomos pensar um cinema com mulheres, e não um cinema de mulher. É na alteração da preposição, um pequeno detalhe, que se dá a mudança de sentido fundamental para nossa argumentação. Dizer “cinema de mulher” implicaria pensar em traços autorais, padrões de estilo. A esses padrões, contrapomos filmes que são realizados em terrenos instáveis de abertura aos movimentos do outro, filmes em que a fala hesita diante do impasse, em que os planos se chocam uns contra os outros, fragmentam-se em passagens que não chegam a se concluir. Afirmar o com é buscar um comum firmado sobre a lacuna e o vazio, mas que ainda assim se afirma, enquanto necessário endereçamento ao outro. Paula encontra Marcélia e Maria, Marília encontra Valdete, Alessandra, Cota, Priscila, nós, espectadores, as encontramos, na tela: é assim que os filmes se constróem, do que

surge desses encontros. Afirmar que esse cinema com mulheres é um cinema menor é, portanto, sublinhar seu caráter não-totalizante, seu traço de abertura aos movimentos de alteridade. O cinema, quando se faz dele um uso menor, busca a fronteira, como quem testa o limite de sua própria linguagem. Com isso, há um abandono da ontologia em função de estados provisórios de relação, sempre muito passageiros, instáveis e incertos, mas que no limite dessa incerteza, nesse modo minoritário de expressão, acabam por criar novas possibilidades de pensamento. “Grande e revolucionário, somente o menor” (DELEUZE; GUATTARI, 1977: 40). Um traço que chama atenção nesses documentários realizados entre mulheres é como é conferida a elas uma presença praticamente exclusiva nos filmes. Os homens ocupam um fora-de-campo, embora não possamos dizer que fiquem fora de cena. Mesmo que não sejam vistos, eles estão presentes, sobretudo em A falta que me faz, filme que tem o amor como um dos seus principais temas. As meninas falam muito sobre os meninos, vivem os dramas da relação amorosa, inclusive a gravidez precoce: duas delas estão grávidas. Elas trocam anéis, “brincam” de casamento, mas se recusam a cumprir o papel de esposas, querem fugir da sina de suas mães e avós que se viram condenadas ao trabalho doméstico e a uma vida de submissão ao marido. Diante desse impasse – entre o desejo de encontrar o amor e o de evitar a opressão advinda da relação com o homem – elas hesitam, e junto com elas, hesita o filme. Com efeito, o filme deixa mais incertezas que verdades. É tudo passagem - o amor, a gravidez, a moto na estrada que leva o casal de namorados ao final (para onde irão?). O amor, no filme (e na vida?), jamais se realiza completamente. Ele se efetua momentaneamente, num beijo apaixonado da jovem em seu namorado, mas somente para se esquivar em seguida, no olhar dessa mesma jovem, dirigido ao extra-campo. A relação do eros, nos escritos do filósofo Emmanuel Levinas, encontra, na incompletude, sua singularidade: Só ao mostrarmos aquilo por que o eros difere da posse e do poder é que podemos admitir uma comunicação no eros. Não é uma luta, nem uma fusão, nem um conhecimento. Há que reconhecer o seu lugar excepcional entre as relações. É a relação com a alteridade, com o mistério, quer dizer, com o futuro, com aquilo que, num mundo onde tudo está dado, nunca está lá, com aquilo que não pode estar onde tudo está (...) (LEVINAS, 1983: 81,82).” Eis que se anuncia, na relação com a alteridade

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que é também relação com o futuro, um tempo já não mais contido no horizonte ontológico do ser, mas au delà de l’etre, na relação com o outro. Para Levinas, o tempo e o outro só podem ser pensados conjuntamente. O futuro é a temporalidade própria da relação com a exterioridade, o acontecimento do absolutamente outro. “O tempo significa o sempre da nãocoincidência, mas também o sempre da relação”(LEVINAS, 1983: 10). Em lugar da representação do outro, que depende da presença ou co-presença para se efetuar, Levinas propõe o tempo do outro, enquanto abertura para sua dimensão infinita, sua alteridade. Liberto de uma compreensão totalizadora que tome o tempo como linear e progressivo, o movimento do tempo é agora a transcendência. Sua significação é marcada pelo mistério - o mistério da morte (LEVINAS, 1983: 11), como escreve Levinas. Também o mistério do feminino: O feminino é outro para um ser masculino, não só porque é de natureza diferente, mas também enquanto a alteridade é, de alguma maneira, a sua natureza. Não se trata, na relação erótica, de um atributo noutrem, mas de um atributo de alteridade nele (LEVINAS, 1982: 58). Para Levinas, homem e mulher, ou mais precisamente, masculino e feminino são, de saída e para sempre, incomparáveis. O atributo de alteridade que o feminino possui funda a distância infinita que impede a comparação. Nos escritos de Levinas, o feminino é o outro per si, incognoscível visto que seu modo de ser é o de uma fuga diante da luz: “a maneira de existir do feminino é esconder-se”, escreve o autor, “seu mistério constitui sua alteridade”(LEVINAS, 1983: 79, 80). O feminino, por designar não apenas uma diferença qualitativa, mas antes a qualidade mesma da diferença, permanece como absolutamente outro, enigma que não se pode desvendar, mistério reservado às vidas futuras.2 Não é nova a discussão que relaciona a ideia de feminino com a noção de alteridade ou diferença. Na teoria feminista, como explica Antônio Flávio Pierucci, há uma forte “onda” diferencialista, que tratou de inverter o sinal negativo da diferença, “bloquear a carga inferiorizante de um preconceito tradicionalista e explorar, e favor das mulheres ‘en2 Pensar as vidas futuras é pensar a fecundidade, tópico ao qual Levinas dedica longas reflexões. A relação de filiação é, para Levinas, ainda mais misteriosa que o feminino, “é uma relação com outrem em que outrem é radicalmente outro, e em que, apesar de tudo, é de alguma maneira, eu, o eu do pai tem de haver-se com uma alteridade que é sua, sem ser possessão ou prioridade”(LEVINAS, 1982: 61).

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quanto mulheres’, o dado da diferença sexual com todas as suas mais impertinentes decorrências e implicações até então impensadas” (PIERUCCI, 2007: 32). Iniciada nos anos 1960, essa “onda” coloca toda uma nova problemática em torno do pensamento sobre as mulheres “enquanto mulheres” – o que seria o específico do sexo feminino? A diferença irredutível da mulher seria de ordem natural ou cultural? Origina-se no corpo ou na sociedade? É possível pensar uma diferença irredutível entre homens e mulheres sem com isso determinar uma relação de dominação? Como pensar a relação entre os sexos de forma positivamente diferente? A todas essas questões de difícil resolução, Levinas oferece uma resposta intrigante e promissora: Todas estas alusões às diferenças ontológicas entre o masculino e o feminino parecerão talvez menos arcaicas se, em vez de dividir a humanidade em duas espécies (ou em dois gêneros), elas quisessem significar que a participação no masculino e no feminino é próprio de todo o ser humano. Será este o sentido do enigmático versículo do Gênesis 1:27: homem e mulher os criou?” (LEVINAS, 1982: 58). O autor defende menos uma ontologia do que uma ética, um modo de relação ao ser que não passe pela determinação, mas pela relação. A crítica de Levinas ao idealismo hegeliano toca precisamente nesse ponto: conhecer, pela representação, é determinar o Outro pelo Mesmo, sem que o Mesmo se determine pelo Outro (LEVINAS, 1980: 164). Elimina-se toda e qualquer alteridade da relação entre-dois em favor da soberania do ser. Contra essa vontade de representação do outro que acaba por determiná-lo em identidades fixas - o negro, a mulher, o pobre, o imigrante etc. - Levinas, defende o outro como incomparável, não-representável. Isso não significa relativizar sua existência: sabemos bem que os negros, as mulheres, os pobres, os imigrantes existem. Trata-se, porém, de uma esquiva da representação, do conhecimento, em favor de uma aposta no exigente jogo da alteridade: se o outro é uma questão sem resposta, entrar em relação com ele é uma tarefa imperativa. A argumentação de Levinas segue a lógica de um sujeito despojado de poderes, na condição mesma de estar sujeito ao outro: para tornar possível a política, é preciso dar ouvidos às exigências do intersubjectivo. Diante do outro, nada posso, tudo devo. Trata-se, portanto, de entender a subjetividade de um modo bem diferente – em lugar do sujeito soberano do idealismo, o ser-em-si, ou mesmo do sujeito fragmentado do desconstrucionismo, temos um sujeito que existe para-outrem, um processo de

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subjetivação fundado sobre uma impossibilidade, um não-poder diante do outro. Para dar conta de toda essa problemática no campo do cinema, consideramos fundamental a atenção ao documentário, esse “pobre cinema de atualidades”, como quis Godard, um cinema afetado pela alteridade. Menos um pacto de verdade do que uma tentativa de relação, a prática do documentário se orienta pela criação de um comum, ainda que fraturado, disperso, difícil de apreender. É evidente que alguns filmes são mais ou menos bem sucedidos nessa empreitada, mas o que buscamos refletir é como a participação mais efetiva das mulheres contribui nesses processos criativos menores, dedicados ao que difere, atento às potências de alteridade presentes no mundo. Defendemos uma pesquisa das mulheres no cinema que passe pela tentativa de evitar arquétipos, de fugir de relações biunívocas de contraposição entre masculino e feminino. “O arquétipo procede por assimilação, homogeneização, temática, ao passo que só encontramos nossa regra quando resvala uma pequena linha heterogênea, em ruptura” (DELEUZE; GUATTARI, 1977: 12). Não acreditamos numa estrutura simbólica própria do feminino que encontraria, nos filmes, sua expressão, sua simetria. Tampouco queremos, pela via da interpretação, revelar significados ocultos das imagens que os filmes apresentam. Interessa-nos apenas uma política fundada pela presença e ação das mulheres no mundo, mas uma política bem diferente daquela da representação. Uma política que se faça como experiência sensível, como prática de relação com a alteridade. Sobretudo, uma política que não faça do Outro apenas o contrário do Mesmo, mas algo de, a um só tempo, radicalmente inacessível e necessariamente endereçado. Não se trata, simplesmente, de tomar a política como instrumento de combate à opressão na busca por uma liberdade, mas de valorizar alguns movimentos que destacam qualidades heterogêneas e dissonantes de dentro das estruturas dominantes. Tornadas visíveis, expostas em suas fragilidades, essas heterogeneidades talvez permitam encontrar não saídas ou entradas, mas portas laterais, corredores obscuros, caminhos tortuosos através dos quais seja possível tatear outros modos de acesso ao mundo. Referências bibliográficas: DELEUZE. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol.2. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2005.

________________. Kafka – por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. LEVINAS. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. __________________. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1982. __________________. Le temps et l’autre. Paris: Quadrige, 1983. __________________. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. MESQUITA, Cláudia. Retratos em diálogo: notas sobre o documentário brasileiro recente. Revista Novos Estudos CEBRAP, n.86, março de 2010, p. 105-118. PIERUCCI. Do feminismo igualitarista ao feminismo diferencialista e depois. In: BRABO (org.). Gênero e educação: lutas do passado, conquistas do presente e perspectivas futuras. São Paulo: Ícone, 2007.

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Modulações do Feminino na canção de Chico Buarque e na Pintura Brasileira Adelia Bezerra de Meneses Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (Brasil)

Resumo: Chico Buarque sempre foi reconhecido no Brasil como um dos poetas que mais sensivelmente captam o feminino e o exprimem, traduzindo-o em palavras e música. Em sua lírica entranhadamente corporal, emerge o ser e a fala da mulher de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina.É esta a proposta desta apresentação: um estudo temático das letras que modulam o feminino na canção desse compositor, e que utilizará uma abordagem ora sociológica, ora psicanalítica – inevitáveis quando se trata de “questões de gênero”. Partindo da vinculação do tema das mulheres ao da marginalidade social , apontam-se, entre outros tópicos, a mulher “dionisíaca” (canção “Ela desatinou”) e a mulher “prometéica” (canção “Quotidiano”); a mulher na ordem da festa e na ordem do trágico – especificamente, a maternidade ferida (“Angélica” e “ Meu Guri”) ; a sobreposicão das imagens da mulher e da polis, mesclando o afetivo e o social, o erótico e o político (“Cala a boca Bárbara”). E chega-se à conclusão de que é impossível tratar-se da mulher sem que se desvende também o homem, sem que o masculino seja convocado: é no contexto de uma intensa relação afetiva que se flagra o fundamental do feminino. E é por isso que se acabará deslizando inescapavelmente para o terreno dos afetos, obrigando-nos a descortinar o poderoso filão da lírica amorosa do Autor. (Como exemplo, a canção “Pedaço de Mim”). Os temas da mulher e do amor, que por sinal entraram juntos na poesia ocidental, são reciprocamente aferidos. No entanto, as “modulações” de que fala o título não se restringirão apenas à alta poesia de Chico Buarque, mas dirão respeito, também à presença da mulher no imaginário de pintores brasileiros. Assim, reproduções de Di Cavalcanti, Ismael Nery, Candido Portinari, Vicente do Rego Monteiro, Flávio de Carvalho, entre outros, estabelecerão – pela mera aposição – um diálogo texto-imagem que pode ser eficaz.

O poeta é aquele ser a quem é dado, mais do que aos outros, o poder de manifestar a vida dos afetos; é como se ele tivesse uma maior possibilidade de contacto com o próprio inconsciente (pessoal e filogenético...) e a poesia é um espaço em que se permite ao inconsciente aflorar. Eu proponho uma amostra -- nos limites deste ensaio, uma pequeníssima amostra -- de composições que modulam o feminino na canção de Chico Buarque. Apenas uma amostra dessa temática, que é riquíssima. Importa observar que as figuras do Feminino evocadas não se restringirão apenas à alta poesia de Chico, mas dirão respeito também à presença da mulher no patrimônio de sensibilidade da

pintura brasileira. São os artistas que propiciam o “nascimento de Vênus”, o nascimento do feminino no imaginário brasileiro. Aliás, “Nascimento de Vênus” numa praia brasileira é o que se vê numa pintura de Di Cavalcanti, do ano de 1940, e que tem esse título: É interessante fazer-se um contraponto com o “Nascimento de Venus” de Botticelli – quadro com o qual Di Cavalcanti inequivocamente – a partir do título! – dialogará. Botticelli: “Nascimento de Vênus”, 1485.

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Nessa tela, a deusa do amor, Afrodite - Vênus para os romanos - emerge das águas em uma concha, sendo impelida pelo vento Zéfiro (abraçado a uma ninfa) até uma praia, onde a espera uma das deusas Hora (alegoria da Primavera), prestes a colocar-lhe um manto bordado de flores. É importante observar que essa mulher, à direita, mais velha, séria e decidida, maternal, como que tenta cobrir a nudez de Venus. Pois bem, Chico Buarque tem uma canção “Renata Maria , que tematiza uma mulher que sai das águas do mar – uma visão deslumbrante e que como que fulmina e paralisa o espectador, que é o eu lírico. Eis um trecho da canção: Ela era ela era ela no centro da tela daquela manhã Tudo o que não era ela se desvaneceu Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês

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Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar Pássaros cristalizados no branco do céu E eu, atolado na areia, perdia meus pés Músicas imaginei Mas o assombro gelou Na minha boca as palavras que eu ia falar Nem uma brisa soprou Enquanto Renata Maria saía do mar [...] O nome próprio “Maria” é usado em certos casos na linguagem popular não como onomástico, mas para designar uma mulher. No Brasil se diz “Dona Maria “ para indiciar uma personagem feminina, anônima; além do que “Maria “ tem, embutido, o termo “mar”. E Re- nata = renascida: a alusão a uma mulher que (re)nasce do mar é inequívoca. A canção é apenas isto, e é tudo isto: um homem fulminado pela visão de uma mulher saindo do mar: Ela era ela era ela no centro da tela daquela manhã A alusão a uma “tela” também é subsidiária de um diálogo cultural -- não apenas no nível do texto, com a Teogonia de Hesíodo, onde o mito se formulou originalmente, mas também no nível plástico, com as as inúmeras figurações de Vênus,

inclusive essas de que nos ocupamos, de Botticelli e de Di Cavalcanti. Importa, então, sem nenhuma pretensão de uma análise de pintura, fazer um cotejo entre as duas telas: * * No mito hesiódico Afrodite nasce do mar, mais precisamente da espuma do mar, amálgama do esperma do membro cortado de Urano, e as águas salgadas do mar em que ele caíra, lançado por Cronos. Mas enquanto no “Nascimento de Venus” do italiano há uma figura feminina que, em pé, domina a cena, centralizando a atenção, na tela do Di Cavalcanti, Vênus – que é a única imagem clara, uma mulher loira – é cercada numa grande proximidade por três outras mulheres, 3 belas mulatas, que dela cuidam ainda adormecida, recém resgatada das águas. O mar de um azul profundo, comparece atrás da cena – trata-se de uma praia brasileira. E se é verdade que por causa da cor clara da pele, é Vênus que atrai toda a luminosidade do quadro, ela não ocupa o centro da tela de Di Cavalcanti. Quem está no centro é uma esplêndida mulata, sentada na areia, que a segura ao colo, uma mão no seu ombro, e outra no seu joelho como se segura uma criança que dorme. Também séria, decidida, maternal, poderosa. Mas o intento de vestir a sua nudez – se é que esteve presente – talvez tivesse ficado a cargo da outra figura feminina, à esquerda da tela, e que segura um “manto”, talvez já para dobrá-lo. Volto à canção de Chico: aqui a mulher renasce: Renata Maria, Vênus renascida. Essa asssociação Venus /Maria, estabelecida por Chico Buarque, é extremamente interessante. Na História da Arte, temos, como figuração do feminino, na Arte Clássica, as representações das deusas gregas; depois, com o Cristianismo, as imagens da Virgem Maria, imagens das Madonas com a criança ao colo. Mas, como observa Francastel, nessa pintura de Botticelli o rosto da Venus se assemelha antes ao das Madonas que ao das deusas gregas. Como Poeta que é, Chico faz essa aproximação no nível dos nomes. A mulher aqui nasce (renasce) num cenário muito provavelmente carioca, numa praia próxima ao Cristo do Corcovado, fazendo tudo desvanecer: Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês. Fulminado pela visão -- a fulgurante visão -- que domina

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a manhã, o espectador da cena – que vem a ser o eu lírico -- se confessa paralisado , “atolado na areia” e, também literalmente, “sem palavras” (Mas o assombro gelou / na minha boca as palavras que eu ia falar)”. Isso é grave porque se trata de um artista (poeta, compositor, ficcionista, que trabalha com a palavra. “Músicas imaginei” diz o eu lírico que é um poeta dublado de compositor. E na sequência, ele recupera as palavras de sua boca, com que comporá os versos da canção que estampa a sua reação diante do feminino: Ela era ela era ela no centro da tela daquela manhã A presença dominadora do feminino é martelada pelo pronome pessoal feminino “ela”: Ela era ela era ela – que ecoa dentro do termos “tela” e “daquela”. Então: é sob o signo do nascimento de Venus no imaginário brasileiro que esta abordagem que se seguirá é feita. Vamos ver algumas modulações do feminino na canção de Chico Buarque, onde “ela” ocupa o centro da tela. Mulher como protagonista É inegável que a canção de Chico privilegia a fala da mulher, como na galeria das suas personagens sobressai o marginal como protagonista. Desde o Pedro Pedreiro do seu primeiro disco (1965), até “Sinhá” (do último CD e do show de 2012) os despossuídos têm voz e vez: sambistas, malandros, operários, pivetes, escravos, mulheres. Mulheres. O seu discurso dá voz àqueles que em geral não têm voz. Assim, encontraremos, de uma certa maneira, o tema das mulheres vinculado ao tema da marginalidade social. E não por acaso, junto com a temática do marginal, em Chico Buarque emerge a fala da mulher — o que o filia a uma velha tradição: a tradição grega do dionismo.. Seguem, à guisa de ilustração de magníficas “modulações do feminino”, pinturas, respectivamente, de Ismael Nery (“Mulher com Ramo de flores”) e de Volpi: “Mulata”. No entanto, há uma observação importantíssima a ser feita: como é sempre no contexto de uma intensa relação afetiva que se flagra o fundamental do feminino,ao tratar da mulher deslizar-se-á, inevitavelmente, para o mundo dos afetos, obrigando-nos a descortinar o poderoso filão da lírica amorosa de Chico Buarque. Assim, não se pode falar da mulher sem falar do homem, sem convocar o masculino. Diz Baudelaire que o Poeta dispõe do privilégio

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de ser ao mesmo tempo ele próprio e outro. E eu acrescentaria: ou outra. É assim que , assumindo o eu lírico feminino, ele fala como mulher. Na canção de um homem, Chico Buarque, emerge a fala da mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina.. É o caso da canção “Pedaço de Mim”, em que surge com grande intensidade o sentimento feminino de perda, de privação, de falta: Oh, pedaço de mim Oh, metade exilada de mim Leva os teus sinais Que a saudade dói como um barco Que aos poucos descreve um arco E evita atracar no cais Oh, pedaço de mim Oh, metade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu Oh, pedaço de mim Oh, metade amputada de mim Leva o que há de ti Que a saudade dói latejada É assim como uma fisgada No membro que já perdi [...] O poeta fala de um “ pedaço de mim”, de uma metade – exilada / arrancada / amputada” ... de si.. Evidentemente, há aqui uma convergência de elementos: de uma perspectiva psicanalítica (freudiana), o complexo de castração: a percepção feminina de que lhe falta um pedaço, como queria Freud (e que se evidencia nesse “metade amputada” de mim); no nível do mito, uma dupla alusão. De um lado, alusão ao Andrógino do Banquete de Platão: o ser composto, dividido por Zeus em 2 metades, que hão de procurar-se, inapelavelmente... De outro lado, ainda no nível mítico, mas de outra vertente cultural, alusão à narrativa mítica da Criação, tal como ela aparece no Genesis, no primeiro livro da Bíblia: – trata-se do texto em que Javé cria Eva a partir de uma costela de Adão. O que de melhor para ilustrar a canção “Pedaço de Mim” de Chico Buarque do que a pintura intitulada “Casal”, de Ismael Nery, no qual um homem

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e uma mulher, num registro dramático, compõem uma única figura, metades orgânicas que procuram uma unidade à beira do risco? Voltemos ao mito: é essa percepção de radical incompletude que experimentamos, a dor da mutilação nas separações amorosas, a percepção da falha, da falta, da carência – é a isso tudo que respondem essas duas narrativas míticas, de culturas diferentes, grega e judaica. “Pedaço de mim” é uma canção que tematiza a separação – e a saudade. Um homem e uma mulher se falam, no momento da despedida. Momento de intensidade extrema, desraigadora. A caracterização dos amantes separados se faz pelo estigma da mutilação: de arrancar pedaços. A unidade (precária, fugaz, ilusória) que se consegue no encontro amoroso, quando rompida, leva à percepção de uma mutilação. O Andrógino era, efetivamente, o ser total, completo, pleno. Dividido, restam metades incompletas, faltantes. Vivemos na nostalgia de uma unidade perdida. Com efeito, quando essa unidade se rompe, restam metades desamparadas, procurando sua outra “cara metade”. Há quase que uma perda do próprio eu, no momento da separação. A intensa troca entre os amantes faz com que a própria identidade deles seja alterada. O que remeteria a um belíssimo soneto de Camões: Transforma-se o amador na cousa amada por virtude do muito imaginar não tenho logo mais que desejar Pois em mim tenho a parte desejada. -- no qual, embutida, está a idéia petrarqueana de “L’amante nell’amato si trasforma”. *** Vamos a uma outra modulação do feminino. “Cala a boca, Bárbara” é uma canção cujo “eu lírico” é feminino”, e que representa a variante engajada e política de Chico Buarque, com uma sobreposição de planos erótico, telúrico e político. Trata-se de uma das mais intensas e delicadas canções de amor da Literatura Brasileira, em que os elementos da natureza metaforizam o corpo feminino; aí se apresenta uma mulher que é ao mesmo tempo amante e parceira de luta, a guerrilheira. (Não podemos nos esquecer de que essa canção foi composta nos inícios da década de 70, nos anos de chumbo da Ditadura Militar, em que grupos de militantes propunham o enfrentamento da repressão militar com a luta armada -- a Guerrilha.) Essa canção integra a peça de teatro Calabar , escrita por Chico Buarque e Rui Guerra, em 1973,

mas que, por problemas de censura só em 1980 pode ser conhecida pela público. Nessa peça os autores empreendem uma reconsideração do papel histórico dessa personagem, Calabar, da época do Brasil Colônia, considerado como o traidor por excelência na historiografia brasileira oficial. De 1630 a 1645 o Brasil foi ocupado pela Holanda, e as lutas entre portugueses e holandeses travadas aqui ressoam o eco das disputas que ocorriam na Europa. E havia interesses muito precisos em jogo: o açúcar, imenso potencial econômico. Na guerra para a expulsão dos holandeses, Calabar, que lutava com os portugueses, passa para o lado dos holandeses. Julgado como traidor, foi condenado e executado. Nessa canção reverberam os problemas políticos tanto do período histórico em que se desenrola a trama da peça, o século XVII, os percalços do Brasil Colonia, quanto dos tempos em que foi produzida a canção (década de 70, os anos de chumbo da Ditadura Militar brasileira). Vamos à canção: Ele sabe dos caminhos Dessa minha terra No meu corpo se escondeu Minhas matas percorreu, Os meus rios, Os meus braços Ele é o meu guerreiro Nos colchões de terra Nas bandeiras, bons lençóis Nas trincheiras, quantos ais, ai Cala a boca, Olha o fogo, Cala a boca, Olha a relva, Cala a boca, Bárbara Cala a boca, Bárbara Cala a boca, Bárbara Cala a boca, Bárbara Ele sabe dos segredos Que ninguém ensina: Onde guardo o meu prazer Em que pântanos beber, As vazantes, As correntes, Nos colchões de ferro Ele é o meu parceiro Nas campanhas, nos currais

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Nas estranhas, quantos ais, ai Cala a boca, Olha a noite, Cala a boca, Olha o frio Cala a boca, Bárbara Cala a boca, Bárbara Cala a boca, Bárbara Cala a boca, Bárbara Como se vê, trata-se de um poema em que o corpo feminino, com a sexualidade feminina intensamente presente, se sobrepõe a imagens da terra: rios, matas, vazantes, enchentes, relva, pântanos – tudo sintetizado em “essa minha terra”. Cada um desses termos pode ser submetido a uma dupla leitura, no registro paisagístico, e no registro erótico: eles evocam toda uma geografia simbólica do corpo feminino, marcam inequívocas referências (por alusão e/ou analogia) ao sexo da mulher: pelos, fenda e fonte de umidade. No entanto, essa terra/mulher não há que ser considerada só do ponto de vista telúrico, mas também do político: é a terra pátria, pela qual vale a pena lutar. Calabar era um “guerreiro”, ao mesmo tempo que “parceiro”, e a mulher que aí aparece é a guerrilheira, misturada ao combate e identificada com o país pelo qual se luta. A entrega do homem, no jogo amoroso, é a entrega à mulher-terra, possuidora de trincheiras/entranhas (povoadas de ais). Ao registro telúrico, soma-se não apenas o erótico, mas o político. Em contraponto ilustrativo, a pintura “Mulher” de Flávio de Carvalho: Voltando a “Cala boca, Bárbara”: os elementos do corpo desejado (seus braços, suas matas ) e da terra amada ( respectivamente, rios e florestas) se equivalem. Calabar, amante e guerreiro, faz com que, os elementos da luta e os do amor se embaralhem: as bandeiras estão para os lençóis, assim como as trincheiras estão pra as entranhas: parceria no amor e na guerra: Quando a peça se inicia, Calabar já está morto e esquartejado, executado pelos portugueses, que também promulgaram um edito de “Damnatio memoriae” (Condenação da memória) que não apenas exigia que seu nome fosse apagado de qualquer registro onde pudesse figurar (como por exemplo, nas certidões de batismo), como também proibia que esse nome fosse pronunciado. Mas restou sua mulher, Bárbara, que é quem

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canta a canção, e em quem o amado está intensamente presente. Ela nunca o chama, nessa canção, pelo nome: Calabar é o ele a que se refere. No entanto, é esse nome que se forma, com espantosa nitidez, como uma constelaçào, à força da repetição quase obsessiva do refrão: CALA a boca BÁRbara : CALABAR Aquilo que Bárbara silencia, é o que reponta, com força e realidade. Impõe-se uma técnica psicanalítica: no não dito, descobrir-se o dito. No inter-dito, descobre-se o dito. Interdito porque foi interditado (por injunções da censura) e interdito porque está dito entre as sílabas das palavras que constituem o refrão. O nome proibido continua a ressoar, no tecido da linguagem. O essencial é aparentemente omitido, mas ele está lá, latejando (latente...) no coração do discurso. A partir daí, a própria palavra Calabar, reinventada, passa a condensar em si o “Cala a boca” que estigmatiza a peça e os tempos que a geraram. Doravante, aqueles que lerem/ouvirem esta canção, incorporarão o “Cala a boca” ao nome de Calabar. E o nome de Calabar conterá o nome de Bárbara: fusão de amantes apaixonados. Aqui também, nessa canção que diz respeito a dois amantes, um pode dizer do outro, literalmente, que é um “Pedaço de Mim.” E comprova-se que não se pode falar da mulher sem falar do homem, e vice-versa.

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Território de mulheres Pontuações do trânsito entre as montanhas de Minas Gerais e a cordilheira dos Andes Dulce Couto Especialista em Arte Contemporânea, Brasil

Resumo: O trabalho tem a intenção de delinear parte de um percurso com as Artes Visuais, especificamente com as configurações híbridas do campo ampliado da cultura contemporânea. Esse mapeamento, cartografia utópica, reflete fragmentos de tempos de vida onde o feminino impera e onde a memória se converte em histórias de mulheres da América Latina. A pesquisa busca organizar pontos imagéticos com elementos bastante distintos entre si. Tais elementos possuem uma relação direta com as experiências, com a espacialidade, temporalidade e universo imagético nos quais as obras foram geradas. Estas são as chaves que acionam o território onde habita a memória e guarda os elementos da identidade feminina. Nessa vertente, o conjunto de obras e textos apresentados remete a uma trilha percorrida entre a cordilheira dos Andes, no Chile e as montanhas de Minas Gerais e do Espírito Santo, no Brasil. Vale ressaltar que a idéia de trilha consiste em um percurso que já foi percorrido por muitos, um caminho que se constituí pela constante passagem de andarilhos que migram de um lugar para outro e aproveitam as pegadas já existentes e as clareiras já abertas, deixadas pelos outros que por ali passaram. Apesar das variações contidas ao longo de toda a produção visual e textual de toda a obra alguns conceitos, comuns ou recorrentes, abordam substâncias tal como: vida, morte, fronteiras, territórios, transitoriedade e erotismo, constituindo deste modo as vertentes fundamentais que deságuam no campo do sagrado e do profano do universo feminino.

Este trabalho tem a intenção de delinear parte de um percurso com as Artes Visuais, especificamente com as configurações híbridas do campo ampliado1 da cultura contemporânea, procedimento esse que venho percorrendo como artista ao longo de uma pesquisa estética. Por se tratar de um trabalho que busca organizar pontos imagéticos que são as chaves que acionam um campo memorial, dentro de um território específico, foi utilizada como metodologia a proposta de impregnação e interpretação2, que a princípio procura estreitar o contato com uma produção visual, registrando, coletando dados e materiais relacionados com o percurso pesquisado Vale ressaltar que os pontos de memória, emergidos de um território exclusivamente feminino, são bastante distintos entre si e que os elementos utilizados nas obras também o são. Tais elementos

possuem uma relação direta com as experiências, com a espacialidade, temporalidade e universo imagético nos quais as obras foram geradas. Apesar das variações contidas em cada obra, conceitos comuns ou recorrentes, abordam substâncias tal como: vida e morte, fronteiras, territórios, transitoriedade e erotismo3, constituindo deste modo as vertentes fundamentais que deságuam no campo do sagrado e do profano4 do universo feminino. O erotismo é uma experiência que depende de seu aspecto proibido e sagrado e nasce justamente deste sentimento de violação, de profanação de seu objeto. O erotismo se liga á morte porque de certa forma antecipa a experiência da morte. O ser humano, segundo Bataille, é um dado trágico e em suas concepções, a vida e a morte, a dor e o êxtase comunicam-se em agonia, numa estética que permeia o sujeito com sua ambivalên-

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cia. De acordo com suas concepções o erotismo é a aprovação da vida até na morte. Nessa vertente, a pesquisa remete ao memorial de uma trilha percorrida e supostamente vivenciada. Vale ressaltar que a idéia de trilha consiste em um percurso que já foi percorrido por muitos, um caminho que se constituí pela constante passagem de andarilhos que migram de um lugar para outro e aproveitam as pegadas já existentes e as clareiras já abertas deixadas pelos outros que por ali passaram. Portanto nessa trilha, caminho que muitos já transitaram com suas propostas artísticas, me embrenho agora como uma andarilha que está sempre pronta para partir e com anseios de retorno ao antigo território. Esta relação diaspórica5, na qual sempre se busca a tão sonhada origem perdida na escuridão do tempo e do espaço me impulsiona a estabelecer diálogos com as diferenças culturais observadas durante o caminho, trânsito pontuado de memórias. Esse trânsito é determinado apenas por pontos que se somam a partir do tempo vivido, de uma existência que inclua o passado, o presente e o futuro e que vai se abrindo no momento em as chaves da memória e do imaginário são acionadas. Esse caminho é uma busca sem um fim, sem uma intenção de propor um perfil definido6 que não se basta em nenhuma cartografia estabelecida. Para realização da pesquisa elegi um campo de especulação para definir o território de trabalho, aquele que ainda estou demarcando e que hoje é composto por pontos que sinalizam minha cartografia, meu mapeamento poético na forma de um solilóquio7. Na verdade busco unir vários percursos sob a forma de pontos que recordo, imagens que vão compondo e aperfeiçoando minha identidade8 como ser humano e como artista. O território de trabalho eleito teve para mim um valor afetivo e significativo. Entre as montanhas de Minas Gerais, no Brasil e a cordilheira dos Andes, no Chile, estabeleci um diálogo com essas culturas, buscando referências não só em minhas próprias memórias como também, em possíveis correspondências ou analogias com o ambiente cultural desses lugares. Considerando a experiência gerada na vivência desse trânsito, apresento algumas obras que remetem de forma direta e às vezes por meio de metáforas esses pontos que agora somados demarcam parte de meu território poético. Faço dessas aparições, minhas imagens, meus fragmentos que pavimentam esse percurso. Na maioria das obras utilizo o cobre, metal de

cor avermelhada abundante no Chile e que me remete á terra vermelha do vilarejo onde nasci em Minas Gerais. Esse material também possui uma maleabilidade como a terra de minha infância e na arte possui uma função primordial como suporte de gravação, o que também remete à necessidade de gravar as imagens contidas em minha memória. O cobre permite a presença de marcas originadas pela oxidação do metal a partir do manuseio, tendo em vista que tais marcas remetem ao corpo ausente, que anteriormente foram feitas a partir de uma presença física que ali não habita mais. Foram também utilizados nas obras materiais coletados nos lugares percorridos como: espinhos, terra, lágrimas de pessoas e imagens de santos. Todos os materiais carregam em si suas relativas cargas afetivas e semânticas e estabelecem uma relação com elementos advindos do meu imaginário. Nessa vertente apresento um breve percurso que mapeará parte desse território poético. Um breve percurso Os impulsos que acionaram essa produção visual são originários de minha infância em Minas Gerais. Meu imaginário abriu as portas para um mundo repleto de imagens e sentimentos dos quais me recordo de forma fragmentária, como se fossem retalhos de memória que tento resgatar para organizar e construir uma história. Dessa trajetória imagética recordo-me dos santos milagreiros que sabiam curar todos os males e dos demônios que sabiam com maestria a alquimia das tentações. Nessa mescla de fantasia e realidade, medo e coragem, a morte era muito presente e sempre visitava o pequeno vilarejo onde eu vivia. Tal visita produzia velórios nos quais as carpideiras ecoavam um coro de gemidos regado de lágrimas. Do negro profundo de minha imaginação, onde habitam fortes impressões, recordo-me dos lenços que elas usavam, desenhados por uma monocromia de lágrimas já secas, sempre prontas para serem redesenhados novamente por novas lágrimas. Essas lembranças me remetem atualmente aos caminhos por onde transitei. Esses caminhos me impulsionaram a ressignificar essas imagens de minha infância, criando a partir de minhas andanças novos lenços com outros significados. Os lenços foram tingidos com monocromias de pigmentos extraídos da terra do lugar onde nasci. As imagens são oriundas de manchas que surgem com a umidade dos lenços em contato com terra vermelha. Os caminhos que surgem são demarcados por meio de bordado com fios de cobre. Tais percursos foram transitados por mim e indicam que o

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momento do inicio de cada caminho é o ponto de partida para o seu um fim. Choro de carpideira – seda, pigmento de terra e fios de cobre – 400 x 30 – 2006 ( detalhe) Também nessa concepção de caminho foi construída uma cartografia tridimensional ligando o hemisfério Norte ao Sul, dois pólos opostos: vida e morte, sagrado e profano, dor e êxtase. Os dois pólos se apresentam configurados por um extenso tubo de cobre remetendo a uma trilha, mas não podemos determinar onde é o início ou o fim dessa trilha. A trilha segue serpenteando pelo ar, repleta de pequenas conexões que deixam aflorar pequenos recipientes de vidro. Os recipientes são garrafinhas coletoras de lágrimas expelidas por pessoas que encontrei ao longo dessa pesquisa. A trilha chora as lágrimas de encontros e despedidas expelidas por uma torneira de cobre. Trilha Guarani – cobre, vidro e lágrimas – 300x 30 – 2007 ( detalhe) As experiências sensoriais vividas na infância definiram também a forma de relacionar com o mundo, estimulando meu corpo por meio dos sentidos e sempre acionando os mecanismos de minha memória, promovendo cada vez mais diferentes impressões sobre o mundo no qual vivo. A partir dessas idéias de memória ou impressões9 formamos um tipo de sistema, compreendendo o que quer que lembremos que tenha estado presente às nossas percepções e sentidos. Tais sensações poderiam ser advindas de algo exterior como a temperatura local, as imagens que observava, os odores que sentia, os doces que comia, sempre roubados nas compoteiras e escondidos na calcinha, degustados posteriormente às escondidas. Nessa época domingo era sempre movimentado, pelas festas religiosas ou simplesmente pela missa na igreja que fazia as mães zelosas pedir ás filhas para vestirem a roupa de domingo, também conhecida como “roupa de ver Deus”. Eu sempre me perguntava: Será que Deus quer que nos vistamos para vê-lo?

Roupa de ver Deus – cobre – 70x 30 – 2007 Ode aos sentidos – cobre e cravos da índia – 30x 30 – 2007

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Essas sensações, captadas pelo corpo de alguma forma remetiam á minha interioridade, ás fragmentárias lembranças de coisas sagradas e profanas, de nascimento e morte, de perdas e também de erotismo. Vale ressaltar que o erotismo está associado á própria dinâmica da vida, á sua interioridade, á sua essência. Para Bataille o erotismo é, na consciência do homem, o que leva a colocar o seu SER em questão. Portanto, o erotismo, é por excelência, uma experiência interior, na medida em que seu sentido último está em conduzir o sujeito a um estado de interioridade plena. Para ele todos existem por dentro. Nesse denso território de memórias as mulheres de minha terra me introduziram no incomensurável universo feminino. Com elas aprendi a magia da terra, a mesma terra que coloria seus pés descalços. As mulheres recebiam o nome de pés vermelhos, pois o clima frio de inverno fazia trincar em sulcos seus calcanhares, impregnando-os da cor rubra da terra. Elas eram fortes, trabalhavam no plantio e na colheita da lavoura. Algumas iam com seus filhos ainda no ventre, sempre mais cuidadosas nestas ocasiões devido ao fato da enorme barriga não lhes conceder grande mobilidade. As crianças sempre ajudavam devido ao fato destas serem também convocadas para acompanhar o ritual do plantio e da colheita dos grãos. Elas faziam pequenas covas e depositavam as sementes esperando a época do grande milagre de gestação da Mãe Terra. Essas experiências me impulsionaram a estabelecer metáforas do universo feminino e elementos como terra, semente, maternidade, gestação e milagres. Atualmente aciono meu imaginário e reconfiguro essas mulheres que sempre povoaram minha memória. Elas hoje se apresentam como santas rainhas, prestes a dar a luz, grávidas de desejos e prontas para realizarem o extremo milagre da vida. Elas são modeladas pelo mesmo barro vermelho advindo do local onde viviam e são coroadas por coroas de cobre produzidas pelo metal de cor avermelhada advindo do território chileno. Filhas da terra – cerâmica e cobre – 30x 20 – 2006 ( detalhe) Os rituais religiosos da cristandade delinearam meu imaginário em minha infância. Em Minas Gerais, no período da quaresma, quarentena que antecede a Semana Santa, as igrejas se vestiam de roxo. Naquela época eu percorria as matas com uma caixa de sapatos vazia colhendo espinhos para construir a coroa do “Senhor Morto”. Minhas mãos sangravam perfuradas por espinhos de

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várias espécies e os pontos vermelhos de sangue que brotavam de meus pequenos dedos fazendo-me lembrar da agonia do Senhor. Esses pontos vermelhos eram quase imperceptíveis pois se confundiam pelo vermelho da terra sempre presente em minhas mãos. Tais sensações, impressas em minha memória se afloram atualmente em forma de configurações duráveis suportadas em caixas de cobre, vermelhas como minhas mãos de menina. Elas hoje acondicionam espinhos que carregam em suas formas distintas uma carga de significados acerca de experiências vividas e lugares percorridos. Segredos da dor – Cobre e espinhos - Dimensões variadas – 2007 ( detalhe) As estradas de Minas Gerais, caminhos que muito transitei em minha infância são referências presentes nessa pesquisa. Os caminhos eram margeados por cruzes de madeira tosca indicando os pontos daqueles que foram levados subitamente pela morte. Nesses pontos jamais se passava sem gesticular o “Nome do Pai”. 310

Margens da Rota 262, de Bom Despacho a Engenho do Ribeiro – Minas Gerais - 2006 Naquela época minha família utilizava um caminhão de transporte de leite como condução. O caminhão, pertencente a uma cooperativa de laticínios, além de transportar os latões de leite, desempenhava uma função social de transportar também agricultores que trabalhavam nas fazendas da região. Viajando por aquelas estradas, sentindo o cheiro forte do leite se adentrando por minhas narinas, observava e contabilizava as cruzes do caminho, ao som de uma sinfonia causada pelo barulho estridente do metal dos latões se chocando uns aos outros. Essa experiência sensorial traduzia para mim a própria vida advinda do cheiro de vida presente no leite, da vida interrompida presente nas cruzes e da vida vivida traduzida pela dinâmica e transformações geográficas sempre presentes nos caminhos percorridos. Atualmente percorro outras estradas e tive a oportunidade de voltar a meu imaginário primeiro percorrendo as carreteiras do Chile. Nessa oportunidade de investigação visual, utilizando a fotografia como forma de apreensão, viajei ao norte em direção ao deserto de Atacama. Percorri oitocentos quilômetros de distância conhecendo as animitas10, pequenos templos erguidos na beira das estradas, sinalizando a morte súbita

causada por acidentes, atropelamentos, suicídios etc. As animitas nos impulsionam a lembrar que os espíritos dos mortos sobrevivam na memória dos vivos. Nesta oportunidade produzi uma série fotográfica que narra parte de meu percurso de pesquisa visual e configuram para mim um olhar diferente sobre o conceito de vida e morte. Vale ressaltar que a fotografia é um índice, origem de ligação de contiguidade e casualidade com seu referente e que assinala a sua existência e sua realidade. De acordo com os ensaios sobre fotografia de Thierry de Duvé, esta se divide em séries: superficial que indica o ponto em que o signo está em conexão com o seu referente e a série referencial que apresenta o real denotado pela fotografia. A série referencial mostra sua natureza indicial, aquilo que marca sua origem, os elementos primários que indica sua referência primeira, seu índice. Para o autor a fotografia divide e une ao mesmo tempo a superfície e o referente , unindo um traço á vida ( tempo presente) e o outro á morte ( tempo passado), por isso é um miasma entre estas duas séries. Ela se apreende de duas facções que se excluem, mutuamente, sendo ela testemunha viva como tempo estacionado ou como vida mantida e morte recuada ou mesmo como natureza imanente. A fotografia pode designar a morte do referente, o passado retornado, um tempo efetuado e imóvel. Por outro ângulo ela pode também ser recebida como captação de vida, como tempo suspendido, como vida suprimida e não realizada ou como um artifício. Sendo assim a fotografia indica que por debaixo a vida continua, que o temo flui e que o objeto capta e ao mesmo tempo deixa escapar. Na série de fotografias produzida sobre as animitas busquei captar a carga semântica contida nos elementos encontrados, tendo em vista que a impressão fotográfica é impressão de luz, portanto é também impressão imaginária. A fotografia permitiu não apenas o registro das imagens, mas também perceber o quanto uma realidade não orgânica como uma construção arquitetônica pode remeter a uma presença de vida. Remete também a interferência do corpo ausente, aquele que esteve ali e depositou flores, acendeu uma vela ou simplesmente orou. A experiência com as animitas estabelece uma correspondência com as cruzes de beira de estrada do Brasil, distante desta tristeza suscitada que estas transmitem na cultura brasileira, as animitas chilenas não transparecem este sentimento.

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Série fotográfica realizada nas Rotas da região de Valparaizo a Coquimbo – Chile - 2006 A partir dessa experiência iniciei meu trabalho como arquiteta de animitas reconstruindo-as com materiais típicos da cultura brasileira, estabelecendo um trânsito entre minhas memórias e a realidade que agora me inscrevo. Catedrais – vidro e materiais diversos - 60x15 2006 As experiências estéticas citadas demarcaram meu percurso, acionaram minhas lembranças e outras obras vão sendo produzidas, mapeando deste modo territórios remotos perdidos no imaginário, configurando o que para mim pode ser não o fim ou nem início de um novo percurso, mas a consciência sobre a experiência que os intercursos podem dispor. Talvez as respostas ou o sentido dessa pesquisa não se concentrem em um fim específico, mas na própria vivência do percurso, longe de tentar traçar um perfil da minha poética, talvez o fato conclusivo de reconhecer que a experiência no seu acontecimento11 me baste. Atualmente a transitoriedade é minha condição, sempre tentando retornar a um ponto inicial que não mais existe, sempre buscando o início do cordão umbilical, ou seja: nesse sentido posso então entender que minhas questões se inclinam na direção da origem e dos mitos que a circundam. Portanto, as obras apresentadas nesse breve percurso, em verdade são as que emergiram de um oceano profundo de memórias, território feminino vivo e latente que aloja percepções e sentidos, partes de um universo das quais originaram as impressões que me ajudaram a organizar uma pequena parcela de meu território poético.

Bibliografia BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987 DE DUVÉ, Thierry – Essais Date I 1974- 1976 – Editions de la difference, Paris,1987 DUBOIS, Phillippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de marina Appenzeller, Campinas, SP: Papirus, 1994 HALL. Stuart, A identidade Cultural na pós modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro: Editora DP&A, Rio de Janei-

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ro, 1998 HALL. Stuart, Da Diáspora- Identidades e mediações culturais – Liv Sovic – Organização: Editora UFMG, Belo Horizonte. 2006 HUME, David – Tratado da natureza humana – Tradução de Débora Danawski. UNESP, 2000 HUME, David – Investigação sobre o entendimento Humano e sobre princípios da moral. Trad. De José Osmar de Almeida Marques. Unesp. 2004 KRAUSS. Rosalind, A Escultura no campo ampliado. Tradução de Elizabeth Barbosa Baes. Revista Gávea nº 1, Rio de janeiro. 1984. MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de - Crítica Humiana da razão, UFPr e discurso editorial, 2001 STRAUSS, LéviC. “Entretien avec Raymond Bellour”. Lê Monde, 5 de novembro de 1971. Revista de Filosofia - Solilíquy or advice to an author. Shaftesbury, em caracteristicks of men, manners, opinions, times. Clarendon, 1999. ( TA) Revista de Filosofia - Éthique de la communication et art d’écrire – Shaftesbury et les lumiéres anglaises. Laurent Jafro. PUF, 1998 ( T.A). www.unap.cl/iecta/revista

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O género na crítica musical portuguesa (1950s-1970s) Maria Helena de Freitas e Francine Benoit Helena Lopes Braga CESEM – FCSH/ UNL (Portugal)

RESUMO: Tanto a musicologia como os estudos de género são áreas com entrada tardia em Portugal, apenas na década de 1980. Sendo os dois campos de estudo recentes, há ainda muito por fazer em cada um deles, explicando-se por isso a quase inexistência de uma interdisciplinaridade absolutamente necessária. A partir de dois estudos de caso, Maria Helena de Freitas e Francine Benoit, procuraremos dar o nosso contributo, mostrando o que era publicado entre os anos de 1950 e 1970 na crítica musical portuguesa por mulheres. Explorámos marcadores de género, invisibilidades, e destinatários das palavras de ambas. Tentaremos demonstrar porque foram duas figuras tão distintas, o que fez e quem fez parte do percurso de cada uma delas. Ambas representando mulheres, ambas escrevendo sobre música, sobre uma mesma vida musical, a portuguesa, acabaram por se distanciar e incorporar diferentes poderes e interesses. Saibamos quais.. ESTUDOS DE GÉNERO NA MUSICOLOGIA – UMA ÁREA POR DESCOBRIR Assinala-se a consagração da musicologia em Portugal com a criação do Departamento de Ciências Musicais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em 1981. Os estudos de género são ainda mais recentes no nosso país. Explica-se desta forma, uma vez que as duas áreas do conhecimento estão ainda em desenvolvimento, que não tenham surgido ainda muitas oportunidades para as cruzar de forma eficaz. Na musicologia internacional, os estudos de género são já uma realidade, embora não muito evidente, e muitas vezes olhada ainda com desconfiança pelos sectores mais conservadores da musicologia, sobretudo da histórica, pois a etnomusicologia por beber muito do seu método à antropologia, inclui as mulheres no seu âmbito de trabalho. Diga-se a este respeito que entre os grandes pioneiros da etnomusicologia constam muitas mulheres- o que não quer dizer que enquanto saber científico esteja livre do mesmo tipo de estruturas de poder e estigmatizações de género que outros. O facto é que, muitas das questões levan-

tadas pelos estudos musicais sobre as mulheres forçam a musicologia a repensar toda a sua história e método, o que implicaria toda uma reaprendizagem da forma como ver e pensar a música. Em 1982 foi lançada uma compilação de fontes para o estudo da mulher na música, por Carol Neuls-Bate. Na década de oitenta surgiam, aqui e ali, alguns artigos sobre o tema, de por exemplo Susan McClary, John Shepherd, Philip Bohlman, mas tem-se em Feminine Endings, de Susan McClary, a real alvorada. Mais do que um artigo, é todo um livro a pôr em causa preceitos, narrativas, semióticas e estruturas de poder. Pensou-se que haveria uma revolução, mas vinte anos passados o campo continua a ser aceite e respeitado por poucos, não obstante o número cada vez mais frequente de publicações relacionadas. A quantidade de mulheres omitidas na história da música é inimaginável, bem como a quantidade de formas e discursos musicais votados ao esquecimento. Hoje, graças a este novo saber que tem vindo a ser produzido, conseguimos referir alguns nomes que apesar de tudo ainda não constam, ou pouco constam, dos manuais e enciclopédias de história da música. No nosso país, podemos afirmar que o ramo dos

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estudos de género será dos menos desenvolvidos na musicologia. Tendo a musicologia em Portugal cerca de vinte anos, fácil é entender porque há ainda tanto a fazer. A crítica musical feminina é, dentro de uma, outra área por explorar e foi na portuguesa que nos focámos para este trabalho, para o qual pegámos em duas mulheres do século XX, Maria Helena de Freitas e Francine Benoit. DIFERENTES ENTENDIMENTOS DE CRÍTICA MUSICAL Chamo a atenção para a sobriedade de expressão de Shirley Verrett, para os seus bons agudos, a nobreza desta versão, cujo carácter envolvente não deixa dúvidas. […] Segue-se uma passagem d´O Orfeu de Gluck, onde Shirley Verrett põe à prova as suas possibilidades expressivas que são realmente muito grandes.

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Marilyn Horne […] é actualmente um dos casos mais extraordinários da cena lírica. A sua voz fenomenal e a sua estupenda técnica permitem-lhe abordar o reportório mais variado. […] De notar a beleza da sua voz, redonda, igual, de belos graves e muito expressiva. […] Marilyn Horne sabe dar-nos todo o dramatismo que existe no poema e na música, através duma voz escura de inflexões profundas. Quase no final, o timbre torna-se mais claro, mais doce.

rádio, como acima já apontámos parcialmente, a sua função sociológico-cultural. […] Um ramo importante da sociologia terá de ocupar-se do que diz respeito aos múltiplos agentes de acção e de reacção movidos pelos homens em contacto uns com os outros. […] Vejamos que, na realidade, as emissões musicais prestam-se a flutuar entre dois pólos: o que o radiouvinte pede, sugere ou demonstra por qualquer modo, ser-lhe mais grato; e o que umas mentalidades, algumas esclarecidas sem dúvida, entendem próprio para servir uma cultura, no entanto, nebulosa, indefinida. […] Pela má infiltração da toda-poderosa rádio, aconteceu que o pior fado entrou no coração da Beira Alta para ajudar tristemente a rica e rara música folclórica a sucumbir… No que diz respeito a uma acção de cultura musical a que chamaremos unilateral […] a música na nossa rádio está ainda inteiramente submetida aos gostos criados e mantidos pelos concertos que emanam de Lisboa e do Porto […] De Lisboa parte quase tudo, inclusive uma quantidade monstruosa de música em disco… estrangeiro. Discos portugueses, salvo raríssimas excepções, só de música ligeira.

Numa boa interpretação de qualquer artista do canto deve considerar-se aspecto de primordial importância a clareza da dicção. Ora tratando de obras que utilizam textos literários portugueses muito significativos, uma dicção nítida e apropriada torna-se fundamental e por motivos óbvios. […] A [Vianna da Mota e Luis de Freitas Branco] ficou a dever-se, principalmente, a reforma do conservatório, promulgada em 1919, que visava antes de mais à elevação mental dos cultores da arte sonora no nosso país. Vianna da Mota compositor não atinge as mesmas culminâncias de Vianna da Mota pianista e pedagogo. De qualquer modo, e sob certos aspectos, também a sua acção neste campo não pode minimizar-se.

Quantas vezes, em quantas bocas, a arte em geral e a música em especial são tidas por devaneios de sensibilidade, da fantasia, fundamentalmente, alheios à vida social, aos momentos e movimentos históricos. […] E se a música […] tem lugar na formação do indivíduo, não menos tem parte para representá-lo não só como unidade mas como membro da colectividade a que fatalmente pertence. […] O ponto de partida do autor para a esplanação duma análise social da história da música está contido na afirmação de Roman Rolland: toda e qualquer forma musical está ligada a uma forma da sociedade e torna-a compreensível. […] Acabar com a música como frívolo privilégio de classes, como arma diplomática, denunciar os seus compromissos suspeitos […] é tudo que nos faz empenhados, todos nós que acreditamos numa vitória rápida ou demorada, mas vitória do século XX.

Atente-se agora nestas linhas: O que é preciso reconhecer e assentar com alguma nitidez é que está ligada à expansão da

Os primeiros excertos citados são da autoria de Maria Helena de Freitas. Os segundos de Francine Benoit. Tomámos a liberdade de sublinhar termos

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e palavras que pretendem centrar a atenção de quem nos lê. O que vemos? Nas primeiras frases, adjectivos vagos, falta de imparcialidade, poucas preocupações musicais. Nas frases de Francine Benoit, pelo contrário, encontramos preocupações legítimas, reflexões consistentes e pertinentes, verdadeiras questões com que a musicologia se bate. Após atenta audição das emissões da década de 1970 do programa de rádio de Maria Helena de Freitas, O Canto e os seus Intérpretes, podemos afirmar que o tipo de discurso é pouco substancial, não há análise musical, nem sequer comentário, fala-se muitas vezes de ópera, mas sem tecer considerações sobre os compositores, autores dos libretti ou mesmo análise destes ou sequer dos personagens. Não há espírito crítico, sendo o discurso construído por comentários ao nível do senso comum, pontuados por adjectivos decorativos - muitos. Maria Helena de Freitas (1913-2004) foi pianista, crítica musical, musicógrafa. Chegou a assinar artigos em periódicos sob o pseudónimo Mário Heitor que abandonou a certa altura. A relação que manteve com Luis de Freitas Branco e o seu posterior casamento com o amigo deste Nuno Barreiros garantiram-lhe visibilidade e reconhecimento. Publicou em periódicos como A Voz, Diário Popular, Diário de Notícias, O Século Ilustrado, Diário de Lisboa, Gazeta Musical, A Voz de Paço d´Arcos e foi autora do programa de rádio de maior duração da história da rádio portuguesa, entre 1959 e 2000, inicialmente na Emissora Nacional, depois na RDP, Antena 2, O Canto e os seus Intérpretes. Francine Benoit (1894-1990) foi compositora, musicógrafa, conferencista, pedagoga, nascida em França, naturalizada portuguesa em 1929. À sua importância no panorama musical português não foi feita ainda justiça. Havendo duas teses recentemente publicadas, não é suficiente para lhe dar a visibilidade merecida e há questões que merecem uma abordagem mais profunda e englobante do que as apresentadas, que se centram na sua expressão enquanto crítica musical. A acrescentar, há dados significativos da sua existência que foram pura e simplesmente omitidos, como veremos nas secções seguintes.

MARIA HELENA DE FREITAS COMO MODELO No nosso entender, Maria Helena de Freitas cumpre o seu papel de mulher que se pronuncia sobre “a arte dos sons”. Sabemos o lugar que estava destinado às mulheres durante o Estado Novo e que tipo de requisitos se esperava que cumpris-

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sem. Não era desejável que se pronunciassem sobre certos assuntos, como política, nem que revelassem possuir uma cultura muito alargada. Ou melhor, alargada sim, para servir o seu papel de educadora, mas não muito profunda nem reflexiva. Ao mesmo tempo, o modelo de comunicação ópera ainda não era em Portugal reconhecido como tal (parece-nos que ainda hoje não é, dada a parca significância atribuída à produção nacional pelos constantes executivos), servindo a ópera de palco para exibição das destrezas vocais das mais aclamadas estrelas internacionais (CARVALHO, 1999). A ópera dificilmente era vista como um espectáculo musico-teatral completo, como um todo, mas antes como alvo de atenção determinada ária e/ou dueto e/ou coro, onde brilhariam as vozes de que se falam. Maria Helena de Freitas reforça essa ideia na rádio ao longo de quarenta anos, nas notas de programa que escrevia frequentemente para espectáculos de ópera e nos seus artigos em periódicos de grande tiragem. Lembremo-nos do poder que tinha a rádio nas décadas de 1950, 60, 70, quando poucos eram os lares em que havia televisão (surgida em 1957). Numa altura em que raros eram os privilegiados que podiam ter acesso a música dita erudita, a pouca que se ouvia, pela rádio, era comentada desta forma. E uma análise desta superficialidade só poderia ser tecida por uma mulher, veiculando assim o ideal do género feminino cultivado pelo regime. O programa de que citámos excertos, O canto e os seus intérpretes, nasceu na Emissora Nacional, com tudo o que isso acarreta em termos de correspondência ao ideal preconizado pelos representantes do poder. Como rádio oficial do regime, a sua abrangência queria-se a mais alargada possível, com a intenção de levar as mensagens subliminares à maior extensão de território possível. Já na era democrática o programa passou a ser emitido pela RDP, Antena 2, continuando a ser um canal de rádio estatal, agora um consagrado à música dita erudita, mais tarde passando a abranger também a chamada world music, o jazz, e outros programas de cariz cultural idealmente elevado.

AS INVISIBILIDADES DE FRANCINE BENOIT Não há um, mas vários silêncios, e eles fazem parte integrante das estratégias que subentendem e atravessam os discursos. Francine era uma mulher, num contexto nada favorável a este sexo. Francine era contra o regime, feminista, lésbica. Ou seja, reunia uma série de requisitos que fariam dela um ser humano menor, aos

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olhos de grande parte da conservadora sociedade portuguesa e, sobretudo, das elites de poder. À intelectual que foi Francine, muito pouco foi permitido tendo em conta o seu talento e a sua visão. Comecemos pelo seu percurso, que depois das aulas de piano com a mãe passou pela Academia de Amadores de Música e pelo Conservatório Nacional, bem como por Paris, pela Schola Cantorum, importante centro de formação europeu, fundado por Vincent D´Indy. Um dos primeiros percalços evidentes da carreira de Francine deu-se em 1932, quando foi lhe foi recusado o lugar de professora no Conservatório Nacional, através da anulação do concurso para o lugar com o pretexto de não possuir nacionalidade portuguesa há pelo menos cinco anos, sobre o que nada constava nas regras do concurso. Já em 1955 foi convidada a dirigir a Academia de Amadores de Música por ocasião da morte de Luis de Freitas Branco. Mesmo impedida pelo poder central de aceitar, acabou por tomar o cargo. Escusado será dizer que em toda a sua vida surgiram vários contratempos e dificuldades, tendo constado dos registos da PIDE. É impossível separarmos o seu círculo social da sua actividade profissional. Ao passar por várias instituições, desde escolas, a associações, publicações, entre outros, Francine cruzava-se com figuras da elite intelectual portuguesa, onde manteve muitas amizades, sobretudo do lado dos opositores ao regime. Foi também graças a estas amizades que viu algum reconhecimento pelo seu valor criativo, intelectual e pedagógico, área onde se revelou bastante activa, defendendo um modelo educacional que englobasse o ensino da música, responsável por desenvolver o intelecto e incutir capacidade de trabalho em grupo, de concentração, de criatividade e valores como a amizade, a solidariedade e o respeito pelos outros. Preocupava-a a também a falta de participação das mulheres na vida musical, constatava que os coros com que trabalhava tinham mais homens do que mulheres, pois estas não eram incentivadas para a prática musical a menos que doméstica, o que a levou a abrir um curso de música destinado a mulheres na Voz do Operário, instituição a que esteve ligada quer como professora, quer como directora coral, quer como conferencista. Francine Benoit associou-se a várias manifestações feministas, tendo privado com Maria Lamas, Irene Lisboa, Manuela Porto, em organizações como o Conselho Nacional de Mulheres Portuguesas, a Associação Feminina Portuguesa para a Paz, o M.U.D. e, já depois do 25 de Abril, o Movimento Democrático das Mulheres. Foi uma das fundadoras da So-

nata (1942), sociedade de concertos responsável pela divulgação de música contemporânea. A sua carreira de pedagoga passou também pela Escola Oficina nº1 de Lisboa, pelo Instituto de Música de Coimbra, pela Universidade Popular Portuguesa, entre outras, tendo sido responsável por vários coros em várias instituições. Enquanto crítica, desde publicações femininas como o Magazine de Mulher, Os Nossos Filhos, a revista Eva, onde publicou um artigo sobre Clara Schumann- escrever sobre uma mulher compositora era uma atitude claramente desafiante e inovadora; mas também especializadas como a Gazeta Musical, De Música, Sonoarte e outras. Próximas da orientação ideológica subversiva estão as colaborações com a Revista de Portugal, Seara Nova e Vértice, a que não podemos excluir uma observação sobre o facto de estas revistas serem dominadas por um círculo intelectual de esquerda, sim, contra o regime, sim, mas exclusivamente masculino. Aqui se levanta uma questão a explorar futuramente: estará por detrás da sua participação apenas o valor da sua qualidade intelectual, ou também o facto de ser lésbica a terá aproximado de intelectuais do grupo como Lopes-Graça, Armando José Fernandes e Jorge Croner de Vasconcelos, também homossexuais; ou ainda por ser lésbica ser vista como detentora de qualidades ditas masculinas, como possuidora de comportamentos ditos masculinos? Francine foi uma crítica exímia, conhecida por não ceder a nenhum tipo de interesses, manifestando sempre a sua opinião, mesmo que dura e desfavorável a pessoas próximas - o que a envolveu em algumas polémicas por exemplo, com Ruy Coelho. Mas o que mais gostava de fazer era compor e não o pode fazer tanto quanto gostaria. O Prémio Nacional de Composição que a Fundação Calouste Gulbenkian lhe atribuiu no ano de 1965 não foi suficiente para receber encomendas de outras instituições. A mulher pode acompanhar o marido aos concertos, com a sua nova toilette e o cabelo arranjado, ficando em silêncio todo o tempo e não se pronunciando muito sobre o espectáculo, senão para tecer elogios vagos e agradecer ao marido por tê-la levado. Mas imaginar uma mulher por trás de uma obra daquelas poria muitos sistemas de comunicação em causa. Estava fora de questão. Por reflectir está também o seu envolvimento em grupos feministas. Para uma análise mais profunda torna-se importante desenterrar a sua participação concreta, o que nalguns casos se torna difícil pois algumas destas associações, extintas pela PIDE,

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viram os seus arquivos destruídos. Por fim, uma questão essencial: não conseguimos ser indiferentes ao silenciamento absoluto da homossexualidade de Francine Benoit em tudo o que sobre ela foi escrito até hoje. Muito embora sendo excelentes trabalhos de investigação e neste momento das maiores referências para o estudo da vida e obra de Francine, ambas as teses recentemente publicadas pura e simplesmente falham na omissão de uma questão tão fundamental como esta, imprescindível para um entendimento e reflexão profundos. Não podemos deixar de observar que Madalena Gomes, companheira de Francine, foi uma das fontes primárias a que ambas as investigadoras recorreram… PARA A VISIBILIDADE É necessário dar a conhecer Francine e muitas outras mulheres que participaram activamente na vida musical portuguesa no século XX, como Maria de Lurdes Martins, Berta Alves de Sousa, Clotilde Rosa, Constança Capdeville e um número sem fim de outras por descobrir. Quantas não terão reprimido os seus ímpetos criativos ao aceitarem o seu papel de esposas- lembremo-nos de Alma Mahler-Werfel, que expressa nos seus diários o que foi ter de satisfazer uma das exigências do seu marido, Gustav Mahler, deixar de compor; ou de Fanny Mendelshon Hensel, irmã de Félix Mendelsshon Bartholdy, o celebrado pela historiografia, esquecida pela obrigação de corresponder ao seu papel de esposa. Quanto ao conhecimento a ser produzido sobre estas mulheres, é essencial que seja pluridisciplinar, não se centrando na análise do seu trabalho, ou simplesmente num levantamento biográfico; e de tal modo abrangente que se possam construir narrativas o mais fieis possíveis de cada uma delas. É neste ponto que o pouco que foi produzido sobre Francine, apesar de louvável, falha. Não se pode omitir características tão fundamentais da vida de alguém como a orientação sexual, as relações amorosas que teve, os amigos mais próximos, a cor política, ideologias de qualquer espécie. A obra destas mulheres que queremos conhecer traz em si tudo o que elas foram. Conseguimos ver por este exemplo que se Francine não fosse mulher, se Francine não fosse de esquerda muito se tinha dado de outras formas, se Francine não fosse feminista, se Francine não tivesse um apelido belga, se Francine não fosse lésbica… E não abordámos aqui a questão familiar, igualmente importante. O facto de ter um nome estrangeiro consistiu em mais uma fonte de preconceitos pois foi em várias

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ocasiões vítima de xenofobia. Nos seus primeiros artigos publicados assinava com o apelido Bessao que se torna um nome ambíguo, não só quanto à nacionalidade, mas quanto ao sexo. CONCLUSÕES Vimos como duas figuras tão diferentes co-existiram no espaço público português, as duas pronunciando-se sobre música. Uma, Maria Helena de Freitas, correspondendo ao estereótipo de género, contribuindo para a formação de um público dito melómano, que frui a música não enquanto arte, enquanto arma de reflexão sobre a sociedade, mas enquanto palco de virtudes, enquanto criadora de figuras públicas desejáveis para os homens e copiáveis para as mulheres, como, de resto, a própria Maria Helena se tornava. Outra, Francine Benoit, como verdadeira conhecedora do poder da música enquanto arte, mas também da sua funcionalidade, que revelava e difundia outro tipo de conhecimentos e reflexões, abrangentes, pluridisciplinares, cuja participação activa na sociedade esteve limitada por não corresponder ao ideal feminino procurado pela sociedade capitalista burguesa conservadora do Estado Novo. Em consequência disso foi sistematicamente silenciada, marginalizada e menosprezada, senão por um círculo restrito, também ele marginal.

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A evanescência do absoluto e a sublimação pela Arte: a Mulher em Cântico Final – do romance de Vergílio Ferreira ao filme de Manuel de Guimarães Luís Miguel Cardoso Instituto Politécnico de Portalegre, Escola Superior de Educação, C3i, (Portugal)

Resumo: Entre o romance e o filme, a Mulher é a síntese do Absoluto, reflexo e evidência da evanescência, e simultaneamente a demonstração do etéreo captada pela Arte. De Vergílio Ferreira a Manuel Guimarães, do livro à tela, a presença/ausência feminina ilustra as coordenadas ideológicas que subjazem ao texto e demonstra as opções estéticas do realizador.

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Uma das conexões mais pertinentes entre a literatura e o cinema que podemos encontrar em Vergílio Ferreira é o conjunto das adaptações dos seus livros para a tela. O principal problema neste campo de reflexão é a transmutação do labirinto metafísico e ideológico em que se insere a palavra vergiliana no texto escrito, para o labirinto estético, narrativo e ideológico do cinema que interpreta o texto original e o tenta traduzir através da imagem. Assim, os realizadores Manuel Guimarães e Lauro António sentiram a dificuldade específica do texto vergiliano em se deixar transfigurar para o plano das imagens devido, acima de tudo, à dimensão esfíngica do processo de leitura que advém da natureza filosófica e reflexiva do texto, entre a imanência e a transcendência, entre o mundo empírico e o cosmos interior do sujeito pensante. Neste plano, os realizadores enfrentaram o labirinto das opções que uma adaptação acarreta. No caso de Cântico Final, o primeiro romance vergiliano a ser transposto para o ecrã, constatamos que Manuel Guimarães1 optou deliberamente por uma adaptação que seguisse a «letra» do texto. 1 José de Matos-Cruz sintetiza a tessitura narrativa do filme com as seguintes palavras: «Mário Gonçalves, professor do liceu ameaçado pela morte, devida a cancro, passa os últimos tempos de vida na aldeia onde nasceu, em plena Serra da Estrela. Aí, dá expressão ao seu talento de pintor, na íntima decoração duma capela abandonada. Essa é, também, a hora crepuscular das memórias insubmissas: o amor e a precaridade, as opções e a contingência, a perene insatisfação…» (Cf. José de Matos-Cruz, O cais do olhar. O cinema português de longa metragem e a ficção muda, Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1999, p. 160).

Cântico Final viria a revelar, mais uma vez, que uma adaptação é sempre uma leitura. Não obstante os desejos de Guimarães e de Vergílio Ferreira em criar um filme fiel ao romance, os trâmites da rodagem e da posterior montagem feita por Dórdio Guimarães deram origem a uma «visão» do texto original. É que uma adaptação, ainda que marcada por uma fidelização explícita à essência semântica do texto original, implica sempre uma transfiguração, perpetrada num exercício de recriação estética, da qual não podemos separar as respetivas implicações epocais, ou seja, estabelece-se um cruzamento nas linhas do texto matriz de movimentos sociais e históricos, contextos psicológicos e culturais, e procedimentos formais2. Quinze anos separam o romance e o filme. É uma separação que também contempla coordenadas históricas e sociológicas diferentes. Guimarães opta por desvalorizar as orientações estéticas do romance que atravessam o pensamento de Mário e o seu círculo de amizades, elevando o contexto político e ideológico. O filme traduz precisamente a atmosfera da revolução de 1974, sendo as alusões mais evidentes as cenas em que Mário e os seus amigos debatem diretrizes ideológicas, e o desenlace do filme, com a introdução da cena do fuzilamento dos prisioneiros por agentes da PIDE. Para compreendermos o cerne do romance e o principal problema na sua transposição fílmica, devemos dedicar-nos a Mário, ao estatuto (meta) 2 Cf. Sérgio Sousa, Literatura e Cinema. Ensaios, Entrevistas, Bibliografia, p. 26.

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físico da Arte, e à sua relação com Elsa, encarada como o reflexo da evanescência do absoluto e da sublimação pela Arte. Para utilizarmos as palavras de Eduardo Lourenço, «As ideias dum romancista são os seus personagens…»3, portanto traduzem o seu universo interior, os pilares da sua consciência e os tumultos do seu labirinto íntimo. Mário está dividido entre a metafísica da Arte, a dimensão física da Capela em ruínas, o projecto transcendente de a pintar, numa absoluta situação-limite que é o seu regresso à aldeia natal para morrer. Este espaço físico permite a confluência de passado e presente, de personagens e de espaços, memórias e desejos, construindo uma dimensão metafísica do ser e do criar. No romance, Vergílio Ferreira descreve a missão (meta)física de Mário, num segmento marcado pela consubstanciação na matéria visível das distintas forças interiores invisíveis e mesmo indizíveis. Esta confluência entre distintos tempos é uma estratégia narrativa que nos lembra o Nouveau Cinéma. Sobre esta problemática, lembrem-se os filmes de Alain Resnais onde passado e futuro, imaginário e real se entrelaçam, muitas vezes ilustrando uma estratégia do cineasta que consiste na presentificação de um momento do passado4. O protagonista revela-se um instrumento vergiliano para demonstrar a natureza (meta)física da Arte, traduzida na transcendência/imanência consubstanciada na Capela. Nesta imagem de espaço de projecto heideggeriano, de saída da aldeia, vivência na cidade e regresso purificador à mesma aldeia, Mário não pretende reconstruir uma Capela, mas sim edificar uma contemplação do mistério que é a vida, numa cristalização do Absoluto que é a Arte, uma redenção artística, à semelhança de outros pintores como Matisse, Goya, Braque, Chagal, Léger ou Lurçat. Não se trata de uma conversão religiosa. Pelo contrário, parece um desafio ao divino quando Elsa surge lentamente do pincel de Mário, uma substituição do divino pelo humano – uma linha central do romance vergiliano –, pois o pintor celebra a própria Arte, o verdadeiro Absoluto e o divino por eleição humana, derivado do conceito existencialista de «morte» de Deus e que resulta numa identificação da Arte com o Sagrado (presente em Carta ao Futuro, Do Mundo Original, 3 Idem, ibidem, p. 97. 4 «…assim acontece em L´année dernière à Marienbad e em Hiroshima, mon amour, um dos mais belos filmes franceses (em 1959, em Hiroshima, cidade mártir, durante a rodagem de um filme, uma jovem francesa, Emmanuelle Riva, vive um breve e patético amor com um japonês, Eiji Okada. Essa ligação a faz lembrar de uma outra relação vivida em Nevers durante a ocupação alemã da França)» (Cf. Gérard Betton, op. cit., p. 27).

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Espaço do Invisível I e Invocação ao meu Corpo). A Capela permite um reencontro com o sagrado, que na Aldeia é confundido com uma conversão – interpretação que também é referida no filme –, um retorno e uma libertação, um triunfo sobre a morte que espreita o pintor, um «cântico final» vitorioso do homem sobre o inexorável, em que a Arte é o agente da redenção. Para ultrapassar e dirimir esta dicotomia, a Arte é em Mário, a superação pura dos antagonismos (meta)físicos, pois permite, pela criação, uma atitude de emancipação do Homem5. Outra opção do realizador radicou na relação Mário – Elsa. No romance, este par é a matriz de muitas das reflexões de Mário sobre a Arte, principal temática do texto vergiliano. Elsa é um ideal de mulher. Mulher amada, mulher que se entrega totalmente à sua arte, mulher que traga a vida em intensidade inebriante do momento. A relação entre Mário e Elsa ultrapassa os lampejos de sensualidade e alcança uma dimensão erótica que o autor já havia trabalhado nos seus textos ensaísticos e que realiza uma metamorfose do físico para o metafísico, do corpo para a transcendência. O erotismo é um caminho de partilha com o Absoluto, tal como a relação de Mário e Elsa é um contacto entre duas expressões desse Absoluto, traduzidas em Arte. O texto reflete uma leitura do erótico, elevado por uma veia mística e simbólica que transcende o nível superficial do Eros e o redimensiona de forma sublime6. Se no romance esta problemática (meta)física se destaca, no filme resume-se a esparsos contactos entre Mário e Elsa, numa relação vagamente marcada pelo desejo e pela sede de infinito do pintor, enquanto a bailarina, fugaz e ilusória, se esbate num retrato de contornos pouco nítidos. No filme, o realizador tenta definir Elsa como uma figura etérea. Desde a primeira sequência do bailado, em que surge percorrendo o palco com um vestido que ondula de acordo com os movimentos do seu corpo num compasso de ave e de sedução, em que a personagem nunca está verda5 «Frente ao estilismo puro da fórmula de “a arte pela arte” que vê no objecto estético um valor absoluto, em Cântico Final, através da personagem central, configura-se a arte como prazer essencial da criatura humana, como modo de actualizar uma ideia-emoção, como a única coisa que permite ao homem transcender as limitações inerentes à sua condição, como a única possibilidade de se realizar com plenitude através da criação. Pela arte torna-se mais presente, visível, e manifesta-se-nos, ainda que de modo esporádico mas fulminante e revelador, o que está para lá dos nossos limites, chame-se-lhe invisível, irracional, transcendente, etc.» (Gavilanes Laso, op. cit., p. 205). 6 Cf. José Rodrigues de Paiva, O Espaço-Limite no romance de Vergílio Ferreira, Recife, Edições Encontro, 1984, p. 155.

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deiramente presente. De facto, Elsa vai-se tornando uma presença volátil. Sempre que esteve fisicamente presente nas sequências do filme, surgia fugidia, instável, em permanente alteração, a tradução física da Beleza, da Arte, da leveza intemporal do gesto e do amor à Arte, um movimento milenar de elogio à Vida e ao milagre de estar vivo. No filme, a sua presença física vai desaparecendo lentamente, restando apenas uma imagem gravada em Mário, na memória e no sentimento, um retrato evanescente. Esta ideia de efemeridade é reforçada ao longo do filme. Na casa da praia, Elsa dirige-se a Mário e explica o valor absoluto do momento presente e na agonia final do pintor, quando aparece Guida, o seu discurso sintetiza a natureza e a essência da bailarina. Elsa desperta em Mário o alerta para a evanescência, para a consciência da finitude que urge contrariar. Pintar para estar vivo, como declara Mário no romance. Pintar para ter a consciência. De facto, Cântico Final desperta, em desespero último, em angústia de grito interrogativo face à morte, a problemática do fim. A Capela torna-se um símbolo metafísico que condensa tudo o que o homem tem dentro de si em tumulto, um vazio exercício de uma liturgia sem deuses, mas na consciência da vivência imanente da vida – que elimina qualquer necessidade absoluta de transcendência –, e Elsa exemplifica «uma espécie de transmutação ideal e imaginária do conjunto dilacerante de problemas para os quais se encontraria, assim, em razão transcendida, uma transparência aquietante, um desígnio totalizador».7 Elsa, idealização etérea, simboliza a evanescência artística do momento na perenidade que é a Arte. No instante da fulguração do desempenho artístico, Elsa é eterna, divina. O romance reflete a preocupação sobre a plenitude interior e a dimensão transitória da existência física, abordando o destino terreno do Homem em busca de uma forma de permanência e de continuidade, quer seja através da memória de um gesto de bailarina, dos sons da música, da decoração de uma capela ou da ligação corporal continuada num filho. Mário e Elsa ilustram tentativas de remissão do Homem, de superação da fugacidade temporal. Mário encontra na pintura uma união com o seu próprio sangue, com o seu destino, exemplo de transfiguração do corpo em perenidade, pois a Arte 7 Id.,p. 69.

é uma evidência de tudo o que está vivo, fundindo o Homem com o tempo e o momento. A relação entre Mário e Elsa tem a sua génese na memória. Em sua casa, Mário recorda Elsa quando olha para o quadro que pintara. Esta aparição de Elsa é secundada com a memória de Guida que lembra a Mário: «Ela não tem nada para dar, não há nada nela que fique. Nasceu para passar»8. Desperta agora a faceta do transitório, que irá alongar-se pelo filme de forma ominosa. Esta dimensão é relativa à definição de Elsa como personagem e à pouca atenção que Guimarães lhe concede, desvalorizando uma linha ideológica central do romance. Elsa tornar-se-á uma metáfora de si mesma, surgindo no filme em fragmentos e raramente de forma consolidada. Enquanto Mário espera que o Dr. Beirão termine a visita a uma habitante da aldeia que está prestes a dar à luz, vai desenhando a Capela até passarmos, em analepse, a um novo espaço: o Teatro de São Carlos. Elsa dança, num vestido de tiras de pano que ondeiam lentamente, tal como lentos são os seus movimentos, misto de elegância, subtileza e sensualidade. Mário fica petrificado com esta aparição e só consegue reagir quando o bailado termina e todos já se encontravam há muito a aplaudir. A cena do filme é semelhante ao livro. O romancista, em busca da plenitude, procura na Arte um veículo de metamorfose, de transcendência da dimensão material do corpo. Elsa, na dança, realiza essa transformação, movimenta-se entre o sagrado, o real e o irreal. Assim, em Cântico Final, a Arte é sinónimo de superação. Como vimos, Mário pinta a Capela para superar a inexorabilidade da sua morte física, da sua condição material e Elsa dança para celebrar o momento, única certeza da efemeridade da vida. Quando dança, a bailarina desperta em Mário a eternidade, plasmada no seu gesto de figura alada, e que o pintor pretende captar na tela, materializando esse miraculoso instante de fulguração (meta) física, vibrátil e (in)corpórea. Elsa é a tradução da volatilidade e feição precária da dança. Esgota-se no momento intenso de corpo, e que passa sem nada dele ficar. 8 Esta ideia é recorrente em Vergílio Ferreira. Sobre esta temática, invocamos Rosa Maria Goulart: «Dir-se-á, aliás, que em Vergílio todas as coisas passam “no indistinto limite da alegria e da amargura” (AB, p. 216). Por isso mesmo, se a pacificação nunca é completa, porque lá fora há a vida que a nega, na arte ela, não se fixando embora, mostra-se como plenitude, uma plenitude onde o instante se esgota e uma personagem como Elsa (que se identifica com a afirmação de Höldernin: “Só por instantes o homem aguenta a plenitude divina”) admiravelmente protagoniza: “Viver o milagre no exacto momento em que danço e que passa, e que esquece. Esgotar o instante como esgoto as sapatilhas de ballet num espectáculo, não deixar rasto” (CF, p. 62)» (Cf. Rosa Maria Goulart, op. cit., p. 71).

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No filme, na cena que ocorre no estúdio de Mário, depois de esboçar o retrato, o pintor dialoga com Elsa. A bailarina afirma que nunca havia pensado o que era a vida e para reforçar este posicionamento sem consciência, relembra Fokine (para quem Pavlova podia «voar sobre uma seara») e diz que sente a vida no seu próprio corpo. Deambulando pela sala, Elsa, filmada em travelling, apresenta o seu ideário: o valor do instante, o milagre que não dura, a convicção do presente eterno e o desaparecimento no futuro. É o milagre de estar vivo, o instante da fulguração, o mistério da existência perpetuado pela Arte. Posteriormente, na praia, uma cena entre Mário e Elsa na areia, recorda-nos que a bailarina não acredita nem no passado nem no futuro, apenas no instante do momento. Diz Elsa a Mário: «Só acontece o que se assume, quer aconteça, quer não. Nada mais há agora, para o passado e para o futuro, do que nós aqui». Na cena seguinte, no interior da casa, Elsa levanta-se da cama onde Mário dorme, apressa-se até à varanda e lança um grito agudo. Mário acorda e vai ter com Elsa. No romance, Vergílio Ferreira explora a dimensão mais profunda do grito da bailarina, numa análise sobre a vontade de viver, o milagre de estar vivo, o carácter místico do instante numa celebração sobre as forças da inércia e do não-ser. O grito, inverosímil e profundo, é uma vitória sobre o silêncio e sobre a noite, ou uma tentativa para o esconjurar9. No filme, apenas existe o grito. Na cena da casa da praia, e não durante a visita a Sintra, como no livro, não há diálogo entre as personagens que ilustre o ato de Elsa ou tente explicá-lo. O narrador fílmico não atua de forma esclarecedora, nem no enquadramento, nem na seleção dos planos, de modo a fornecer aos espectadores alguma informação. Talvez a vontade do realizador tenha sido proporcionar um momento de perplexidade, suscitar a dúvida. Porém, esta cena perde-se na inexistência de uma plataforma de entendimento, quer da palavra, quer da imagem e dilui-se, sem grande sentido. Elsa irá partir sem avisar Mário, deixando-o a gritar o seu nome, ao mesmo tempo que uma dor aguda o sufoca. Ao longo do filme, Elsa irá tornar-se cada vez 9 Cf. Helder Godinho, O Universo Imaginário de Vergílio Ferreira, p. 165. O grito surge com relevo na produção romanesca de Vergílio Ferreira. Carlos M. F. Cunha recorda: «O grito constante do narrador de Alegria Breve e o grito final do narrador de Para Sempre dirigido à montanha e ao Espírito do Mundo, são outros modos de uma expressão trágica do não enunciável, do excesso e violência interior, duma interrogação primordial…» (Cf. Carlos M. F. da Cunha, «Da aparição à interrogação: figurações do trágico em Vergílio Ferreira», in Maria Joaquina Nobre Júlio, In memoriam, de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand Editora, 2003, p. 153).

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mais uma memória. Perde consistência e ganha essência, perde presença e ganha ausência, perde a matéria e ganha o simbolismo da eternidade. Mário torna Elsa eterna através da Arte. Na Capela, vai criando a Senhora da Noite e vai recordando a bailarina, projetando-a para a imortalidade, numa conjugação mental de passado, presente e futuro. No final do filme, Manuel Guimarães coloca Mário no seu leito de morte. Lenta e sucessivamente, várias personagens importantes na sua vida visitam-no como aparições fantasmagóricas e deixam o seu testemunho. Elsa, que sorri no retrato, ganha corpo e diz ao pintor que regressará em Março com as luas verdes ou em Junho com as manhãs solenes e pergunta se o retrato já estará pronto. Para sempre, ficará a memória de uma Elsa fugidia, etérea e narcisista. O romance é perpassado por esta dicotómica consciência de uma aparição inicial e de um angustiante fim anunciado, percorrendo nas suas palavras as coordenadas intemporais da inexorabilidade10. A Arte torna-se uma inspiração genesíaca, fonte de todo o pensamento vergiliano, capaz de estruturar diferentes tessituras narrativas, como o provam os seus exercícios romanescos. Assim se pode compreender como este romance comporta desde o seu título – mantido por Guimarães –, uma ressonância religiosa e até mesmo litúrgica11. Este cântico não é apenas um determinado canto, mas sim uma profunda metáfora respeitante ao lugar central e matricial que a Arte possui. Este é também um cântico de reunião entre facetas artísticas e existenciais, que se traduz na Capela, fim último de Mário, sua realização final, e que ainda é adensado, numa comunhão entre o autor e o narrador, pelos cânticos de Natal referidos em memória, numa abstração sem tempo e sem destinatário específico. No texto, o canto também se identifica com a dança de Elsa, essencial para a compreensão do valor da Arte e que o cineasta apenas trabalha em alguns laivos, sendo o mais relevante a atuação da bailarina que coloca Mário em suspenso durante toda a sua performance. O corpo de Elsa estabelece uma confluência de várias expressões artísticas e sublima-se na existência para dele permanecer em símbolo maior. No livro, a atuação de Elsa também deixa Mário em êxtase literal, captado e descrito pelo narrador heterodiegético que o acompanha sempre e que no filme também revela este posicionamento narrativo, deixando o espectador ler essa dimensão mística na atuação de Rui de Carvalho, quase de experiência religiosa, que foi o

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bailado de Elsa. Em síntese, como nos disse Vergílio Ferreira, «A arte é assim o único possível do universo que ficará intacto e disponível, ou seja, que se esbanja quando todo o universo for o silêncio das pedras»12. Com este pensamento, não podemos deixar de ver Mário como a tradução deste ideal e a pintura como instrumento da afirmação do ser, tal como acontece com a palavra. Elsa, encarnação do absoluto, reduz-se à evanescência efémera, mas sublimada pela Arte, na capela pintada por Mário. É a sacralização do humano que renasce e se afirma pela morte dos deuses que inexoravelmente são arrastados pela vertigem do tempo. Do crepúsculo dos deuses surge a aurora do homem. Entre o livro e o filme afirma-se o mortal pela constatação da ausência. O panteão dos deuses está vazio. Agora, é o tempo dos homens.

Bibliografia 322

BETTON, Gérard (1987), Estética do Cinema, São Paulo, Martins Fontes CUNHA, Carlos M. F. da, «Da aparição à interrogação: figurações do trágico em Vergílio Ferreira», in Maria Joaquina Nobre Júlio (2003), In memoriam, de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand Editora FERREIRA, Vergílio (1975), Cântico Final, (4ª ed.), Lisboa, Arcádia FERREIRA, Vergílio (1987), Conta-Corrente V, Lisboa, Bertrand GODINHO, Helder (1985), O Universo Imaginário de Vergílio Ferreira, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica GOULART, Rosa Maria (1990), Romance lírico. O percurso de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand PAIVA, José Rodrigues (1984), O Espaço-Limite no romance de Vergílio Ferreira, Recife, Edições Encontro LASO, J. L. Gavilanes (1989), Vergílio Ferreira. Espaço Metafísico e Simbólico, Lisboa, D. Quixote MATOS-CRUZ, José de (1999), O cais do olhar. O cinema português de longa-metragem e a ficção muda, Lisboa, Cinemateca Portuguesa SOUSA, José Antunes de (2003), Vergílio Ferreira e a filosofia da sua obra literária, Lisboa, Aríon SOUSA, Sérgio Paulo Guimarães de (2003), Literatura e Cinema. Ensaios, Entrevistas, Bibliografia, Coimbra, Angelus Novus

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Princesas da Disney: Percepções do discurso imagético Roberto Lima Bordin Mestrando em Design UNIRRITER RS BRASIL

Drª. Sibila Rocha UNIFRA RS BRASIL

Resumo: Este estudo investiga modos de endereçamento do discurso imagético na construção de personagens enquadrados como “princesas” nos desenhos animados da Walt Disney. A motivação deste estudo é mapear os recursos imagéticos das personagens femininas com intuito de desvendar estratégias e marcas discursivas que caracterizam as representações sociais destes personagens. Para desenvolver esta pesquisa buscou-se como aporte teórico categorias conceituais de significação e metodologia qualitativa de observação interpretativa dos signos e símbolos anexados aos desenhos dos personagens. Deste conjunto de materiais, analisou-se marcas de dois personagens e seus efeitos de sentido, ou seja, o implícito que se constrói nas entrelinhas das formas, cores e enquadramentos que geram significados. Trata-se, portanto de uma pesquisa qualitativa de caráter interpretativo que enuncia a visão do autor a cerca das percepções dos personagens. Como objeto empírico fez-se a comparação entre as personagens dos filmes Branca de Neve e os sete anões de 1937 e a Princesa e o Sapo de 2009.

1. INTRODUÇÃO  Os desenhos animados são objetos semióticos, produzidos e distribuídos para o mundo inteiro por grandes empresas de cinema e televisão. Eles fazem parte do universo infantil e transmitem para a criança valores e sentidos do mundo social em que elas vivem. Para Hall, representação é: O processo através do qual membros de uma cultura usam sistemas de significação para produzir significado… Objetos, pessoas, eventos no mundo não têm em si mesmos qualquer significado fixo, final ou verdadeiro. Somos nós, em sociedade, que atribuímos significado às coisas e ao mundo que nos rodeia. Os significados, conseqüentemente, irão sempre mudar, de uma cultura ou período para outro.... (1997, p. 61) Nesse sentido, os desenhos animados são representacionais, pois significam como a sociedade se apresenta: seus papéis, suas tecnologias, suas identidades e práticas sociais. Neste processo de representação, os meios de comunicação têm um papel decisivo na difusão dessas significações. O ver, o fotografar, o dizer, o escrever, o desenhar são relações. Relações são meios. O que

se quer dizer a uma pessoa vai passar pelo dito, pela palavra. Esse dito é a representação daquilo que se pretende dizer. Agora, essa representação, que é o dizer, é uma estrutura de relações: uma relação com aquilo que se diz e com aquele a quem se diz. (Peruzzolo 2002 p.24) A partir desse cenário, delimitou-se como objeto empírico da pesquisa a comparação entre as personagens dos filmes Branca de Neve e os sete anões, do ano de 1937 e a Princesa e o Sapo, produzido em 2009. A partir deste estudo comparativo, pretendeu-se mapear as marcas das representações sociais das princesas da Disney. Neste sentido, a problemática que norteou o estudo foi: de que forma se pode perceber o discurso imagético como construtor de diferentes visões de princesas nos filmes de Walt Disney? Trata-se, portanto de uma pesquisa qualitativa, de natureza analítico-interpretativa, onde se percebe à luz de categorias semânticas, os significados apresentados através das marcas discursivas das imagens apresentadas nos filmes. 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

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2.1 Linguagem e Signos Pensar sobre os modos de endereçamento das imagens é refletir sobre as estratégias discursivas, como uma proposta de pensar o “como” elas produzem os efeitos de sentidos. Conforme Adriano Rodrigues (1990), na comunicação verbal, os locutores atualizam uma língua, sistema constituído por unidades de significância distintas. Isso significa pensar que, quando pretendemos determinar as unidades significantes das outras modalidades de comunicação, somos forçados a passar pela mediação da linguagem. A razão dessa obrigatoriedade de mediação da linguagem resulta do fato de a linguagem ser o único sistema semiótico susceptível de dar conta de todas as outras modalidades de comunicação e de traduzi-las inequivocamente. O autor lembra ainda que “em relação à comunicação verbal, as outras modalidades de comunicação não estabelecem relações de tradução, mas de sugestão, abrindo assim um campo relativamente indeterminado e, por seguinte, múltiplo de experiências estéticas”. (1990 pág. 97). Nesse contexto, diferenciar texto e linguagem é importante. Para Peruzzolo (2002), quando falamos em texto, queremos significar todo produto empírico de comunicação e toda ocorrência concreta que se submeta a uma analise semiótica. Assim, uma tira é um texto (...) tanto como um poema ou um conto. Um texto – qualquer conjunto tecido para a comunicação – apresenta sinais/representames/ matérias significantes de vários tipos: palavras, gestos, traços, marcas, sons , movimentos, espaços em branco, vazios, silêncios, intensidades, etc., que integram linguagens, fundando a materialidade dos signos: uns, convencionais: estabelecemos para comunicar-nos, como o código Morse, a sinaleira, a alfabeto, as palavras, a mímica... e outros, naturais, que não pertencem a linguagens, mas que se tornam linguagem quando nos servimos deles para comunicar-nos. Já, quando nos referimos à linguagem, o conceito é todo o conjunto de sinais que tem regras de valor e de composição e que serve para deslanchar um processo de comunicação. Isso implica, primeiro, a existência de relações de significação (valor de relação) e, segundo, sinais que suportam um ordenamento num conjunto significativo. As relações de significação se estruturam de acordo com um conjunto traçado de representações e de regras. Estas –as regras –devem poder fazer que aquelas – as representações – se tornem significativas para seus usuários. Estas categorias conceituais permitem o entendimento das relações signicas, ou seja, aquelas referentes

aos significantes e significados. Portanto, estamos falando da ciência do signo, ou seja, da semiótica. Para a semiologia dos discursos, a comunicação é um empreendimento de persuasão e interpretação, situado do interior de uma estrutura polêmico-contratual. Como o objeto da semiologia é o signo, o conceito dele revela a sua significação no processo de efeitos de sentido. A clássica definição de que “um signo é algo que, ao ser percebido, traz à consciência alguma coisa que não ele mesmo”. Signo é algo que é colocado no lugar de outra coisa quando dois comunicantes se encontram, aquilo que em latim se diz aliquid pro aliquo (“algo no lugar de algo”). Aprofundando a questão significação, pode-se entendê-la da seguinte maneira: ele (o signo) é um produto mental numa cadeia de relações (...) que tem no mínimo esta composição mental de cinco elementos: aquilo que funciona como substituto (o signo); os comunicantes que o tomam nessa condição; aquele outro elemento que se liga ao signo como sentido (na verdade, a idéia mental da coisa, o significado); a coisa real ou originado do real, da experiência (o referente); e o elemento material externo, do qual o signo é correspondente, razão pela qual este lê/identifica aquele. A chave sígnica está na intencionalidade significativa, daí se ter dito que ele é uma relação. É por isso que uma ação pode representar algo distinto de si mesma, sendo, portanto, signo. Em signo transforma-se qualquer representação mental de objeto material – ou propriedade dele – ou evento material, quando, no processo de semiose, serve, dentro da estrutura de linguagem adotada pelos seres que se comunicam, ao propósito de produzir outras representações acerca da realidade. 2.2 A Leitura dos Signos O processo de leitura signica é complexo. Entender o caminho gerativo dos signos é interpretar os elos que se encaixam na semiose. Peruzzolo (2002) explica ainda que ler é detectar os signos e perceber as suas relações, é captar a sua realidade significante. Na verdade, é interpretá-los, ter condição de interpretá-los, ou seja, saber ler. Nas palavras do autor, “ler quer dizer colher os sinais, isto é, captar os traços nas suas relações significantes, de tal modo que se possa ver neles o que eles pretendem estimular em termos de significação.” (2002 p.101) Nesta perspectiva, saber ler é acender aos sentidos (na linguagem saussureana, chega ao estabelecimento do significado pelo reconhecimento dos significantes e, na linguagem peirceana,

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realizar processos de semiose, que são remissivas contínuas de signo para signo, na ação de construir um conhecimento). Assim, os signos têm de ser lidos, não somente vistos, ouvidos, sentidos, tocados... Não é a mesma coisa LER um quadro e ver um quadro! Este processo de leitura crítica das significações e dos efeitos de sentido é também um trabalho educativo. Ensinar a LER imagens, por exemplo, é EDUCAR para que se tome consciência muito clara do que a imagem representa; da maneira como é feita; do que significa; do que se pretende; das relações que movimenta dentro de uma tessitura (...). Enfim, ler uma imagem – ler qualquer texto é a mesma coisa – é desvelar os seus significados e, como veremos posteriormente, seus sentidos. (PERUZZOLO 2002 p.108)

no seu contexto. Para Peruzzolo, ao olhar uma figura e fazer sua leitura, na verdade não descrevemos signos, mas desenvolvemos uma narrativa, “é mais um relato que um significado determinado” (2002 p.111), concluindo que figuras, na verdade, são textos articulados. Ele explica, ainda, que “os sentidos denotativos são os que garantem a comunicação”. O autor ressalta, nesse contexto, que, na análise denotativa, “os signos são analisados mais como apontadores, indicadores de objetos, de referências, circunstâncias e aspectos, e menos como significantes produtores de sentido. Ele fala também que a leitura semiológica procura, primeiro, localizar, isto é, constituir a matéria significante dos signos e, a seguir, referenciar o que eles mostram, designam, ou indicam”

2.3 Efeitos de Sentido A interpretação dos discursos sociais gerados na sociedade pode ser chamado de efeitos de sentido. Para Peruzzolo, na teoria dos efeitos de sentido, onde o problema não é mais de significação, mas de responsabilidade das representações, precisa-se entender que:

2.4 Leituras Analíticas Determinar como os elementos visuais se relacionam é operar de modo a fazer um trabalho de sintaxe. Isso permite a descrição do que as imagens representam de modo denotativo e, portanto, permite estabelecer o seu significado primário. A afirmação de Peruzzolo (2002 p.119) traduz o sentido de que, num texto verbal, os sentidos denotativos são citados pelo estabelecimento do argumento (representado pelos personagens, lugares e circunstâncias de tempo) e pela determinação de temas nucleares. Dessa forma, entendemos por Signo conotativo o seguinte conceito: “Um texto constituído apela para, e põe em evidência, significados segundos, que vêm agregar-se ao primeiro naquela mesma relação signo/objeto/referente que os signos denotativos articulam.”. Na verdade, são elos que se encaixam, para, através da narrativa, estabelecer uma “equação de sentidos”. (2002 p.122)

Os estudos se estruturam em torno das obras semióticas que vão da produção até o consumo de sentidos, tomando o discurso como ponto de passagem que suporta a circulação social das significações. Tem-se como dado que todo sentido é social, e o social atravessa as matérias significantes as linguagem. De que modo? Os fenômenos de sentido têm sempre a forma de investimentos nos conglomerados de matérias significantes e remetem ao funcionamento da rede semiótica que é um sistema produtivo. Ora, como sistema produtivo apresenta sempre relações sistemáticas entre conjuntos significativos dados, de um lado, e os aspectos fundamentais desse sistema produtivo de outro, a saber produção, circulação e consumo. (PERUZZOLO 2002 p.51) Isso significa dizer que um discurso sempre provoca efeitos de sentido. Afinal, no funcionamento de uma sociedade, nada é alheio ao sentido, o sentido está para todas as partes. Nessa perspectiva, é importante estudar como esses efeitos são produzidos, com se realizam, e que estratégias e artifícios são usados para conotar determinado sentido. Assim, o significado é assumido como algo dado na formação do signo, mas o sentido se dá na interlocução, no discurso. Não é o signo que agencia sentidos, mas o texto

2.5 Visualidades e Cinema Especificamente com relação ao entendimento da imagem, Dondis explica que as estruturas visuais podem ser entendidas da seguinte maneira: Três níveis distintos e individuais: o input visual, que consiste no sistema dos símbolos, o material representacional, que identificamos no meio ambiente e podemos reproduzir através de desenhos, da pintura, da escultura e do cinema, e a estrutura abstrata, a forma de tudo aquilo que vemos, seja natural ou resultada da composição para efeitos intencionais. (DONDIS, 1997, pág.20)

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Isso significa dizer que o primeiro nível trata de símbolos como os do trânsito ou o alfabeto romano, que, de “tão desvinculados da informação (identificável) é preciso aprendê-los da maneira como se aprende uma língua”. Quanto segundo nível representacional da inteligência visual, a autora nos fala que é fortemente governado pela experiência direta que ultrapassa a percepção. Aprendemos sobre coisas das quais não podemos ter experiência direta. Através dos meios visuais, de demonstrações e de exemplos em forma de modelo. O último nível trata da estrutura abstrata: Mensagem visual pura; Que a natureza da abstração libera o visualizador das exigências de representar a solução final e consumada, permitindo assim que aflorem à superfície as forças estruturais e subjacentes dos problemas compositivos, que apareçam os elementos visuais puros e que as técnicas sejam aplicadas através da experimentação direta. (DONDIS, 1997, pág.22)

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“Os três níveis têm características especificas que podem ser isoladas e definidas, mas que não são absolutamente antagônicas, na verdade eles se sobrepõem, interagem e reforçam mutuamente suas respectivas qualidades.” (DONDIS, 1997, pág.103) “O discurso narrativo no cinema e dos quadrinhos parte da Imagem.” Na criação da imagem da princesa, não vemos apenas seu contorno, mas, segundo Dondis (1997, pág. 30): Na criação e mensagens visuais, o significado não se encontra apenas nos efeitos cumulativos da disposição de elementos básicos, mas também no mecanismo perceptivo universalmente compartilhado pelo organismo humano. (...) criamos um design a partir de inúmeras cores e formas, texturas, sons e proporções relativas relacionando interativamente esses elementos, temos em vista em significado.

3 METODOLOGIA 3.1 Aspectos metodológicos: universo da pesquisa Para dar conta desta proposta de pesquisa, escolheu-se um Estudo de Caso. Ou seja, pretendeu-se aprofundar o caso das “princesas de Walt Disney”. As potencialidades desta proposta são próprias para os objetivos desta pesquisa, uma vez que se visou a entender a construção de represen-

tações sociais no cinema. No entendimento de Gil (1991, p. 46), o estudo de caso permite “embora definidas como descritivas a partir de seus objetivos, acabam servindo mais para proporcionar uma nova visão do problema, o que as aproxima das pesquisas exploratórias”. O autor acrescenta ainda: Há possibilidade de responder perguntas do tipo “como”? e “por quê”?, questões importantes para uma área que não tem muitos trabalhos realizados e uma bibliografia ainda em construção. O estudo de caso não prevê generalizações através de amostras numericamente representativas, mas sim, uma forma de produzir generalizações analíticas. (1991, p.47). Por tratar-se de uma pesquisa que tem caráter interpretativo e, portanto com aspectos subjetivos, classifica-se o estudo como uma pesquisa de natureza qualitativa. Segundo Triviños (1987), a pesquisa qualitativa permite analisar os aspectos implícitos dos fenômenos sociais, e a abordagem descritiva é praticada quando o que se pretende buscar é o conhecimento de determinadas informações, por ser um método capaz de descrever os fatos e fenômenos de determinada realidade. Ao unir o estudo de caso com a pesquisa de natureza qualitativa, pode-se trabalhar com a análise e /ou percepções de uma unidade de determinado universo, pois as ferramentas metodológicas possibilitam a compreensão da generalidade do mesmo ou o estabelecimento de bases para uma investigação posterior, mais sistemática e precisa. Evidenciadas essas possibilidades de pesquisa, cabe ressaltar a importância, nesse método de estudo, de o caso escolhido ter efetivamente condições de colaborar com os objetivos propostos. Dessa forma, as técnicas de pesquisa utilizadas para o desenvolvimento do estudo de caso foram: 1)a pesquisa bibliográfica, 2) análise documental e 3) percepções semânticas. Desse conjunto de material, sistematizam-se os dados para responder o problema de pesquisa do trabalho. 3.2. Percurso metodológico: ângulo de visão As técnicas de pesquisa escolhidas para abordagem do estudo determinam a forma como o autor da pesquisa lança seu olhar para o objeto empírico. Elas foram escolhidas a partir das seguintes justificativas: a pesquisa documental assemelha-se muito à pesquisa bibliográfica; a pesquisa bibliográfica utiliza-se fundamentalmente das contribuições dos diversos autores sobre determinado assunto, enquanto a pesquisa documental utiliza-se de materiais que não receberam

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tratamento analítico; as fontes de pesquisa documental são mais diversificadas e dispersas do que as da pesquisa bibliográfica. Conforme Gil (1991), na pesquisa documental existem documentos de primeira mão, ou seja, aqueles que não receberam nenhum tratamento analítico, tais como os documentos conservados em órgãos públicos e instituições privadas, e os documentos de segunda mão, que, de alguma forma, já foram analisados, tais como: relatórios de pesquisa, relatórios de empresas, tabelas estatísticas e outros. Neste estudo, pesquisou-se a documentação relativa aos filmes selecionados para posterior análise. Eles foram suportes para o entendimento das ações representacionais das princesas. As percepções semânticas foram baseadas na leitura das discursividades apresentadas nos filmes de forma comparativa. Buscou-se o percurso gerativo das marcas imagéticas discursivas para interpretar os sentidos gerados, pois o papel do analista é “Observar a distância, para tentar compreender e explicar como funciona a máquina de fabricar sentido social, engajando-se em interpretações cuja relatividade deverá aceitar e evidenciar”.(Rocha, 2004, pg75) Assim, criaram-se três categorias semânticas para comparar e entender as princesas construídas por Walt Disney nos filmes Branca de Neve e A princesa e o Sapo: 1) Identidade e Figurino; onde se observaram as marcas dos modos de apresentação física das princesas, ou seja, como elas se vestem, seus adereços e detalhes que montam uma identidade; 2) Cenário; onde e como as princesas se locomovem, por onde transitam, ou seja, em que contexto cada uma delas aparece para perceber a ambiência que representam. 3) Missão; o que cada uma delas tem que fazer para ser ou continuar a ser princesa. Após estas análises das personagens, vamos ver quais as suas diferenças e quais as semelhanças para, então poder levantar conclusões sobre este assunto. 3.3 Objeto empírico: o corpus de análise 3.3.1 Branca de Neve e os Sete Anões –1937 O filme narra à história de uma jovem princesa, perseguida por sua madrasta, que tem inveja de sua beleza e manda matá-la. A jovem foge para a floresta, encontra abrigo na casa dos sete anões. A madrasta, ao descobrir que ela ainda vive, dá a ela uma maçã envenenada, Branca de Neve que ao provar a fruta cai ao chão em sono profundo e só corda quando recebe pelo beijo do amor verdadei-

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ro. 3.3.2 A Princesa e o Sapo – 2009 O filme apresenta a história de uma jovem que cresce nos EUA, escutando histórias de príncipes encantados e contos de fadas. Mas sua realidade é bem diferente: ela é filha de trabalhadores, tem que trabalhar em dois empregos para viver e lutar muito para realizar o seu sonho de ter o próprio negócio. Tiana, ao beijar o príncipe/sapo, transforma-se em uma rã, para voltar a forma humana e quebrar o feitiço ele, o príncipe/sapo, teria que beijar uma princesa. 4 - DISCUSSÃO E ANÁLISE DAS PRINCESAS 4.1 A Princesa Branca de Neve 4.1.1 Identidade e Figurino As imagens apresentadas de Branca de Neve representam uma moça magra, branca, com cabelos curtos e escuros e de lábios vermelhos, trabalhadora, resignada com os maus tratos que sofre de sua madrasta. As marcas imagéticas e discursivas remetem para o sentimento de inveja de sua beleza. Mesmo assim, a identidade da personagem é feliz apesar de estar limpando o chão, e isso se revela na alegria que deixa transparecer cantando com os pássaros da floresta. Entretanto essa alegria esconde um jeito tímido, que se revela com o interesse do jovem que vem ao seu encontro. Enquanto ela canta e limpa o pátio, fugindo ao encontrá-lo pela primeira vez, retribui o interesse dele ao manda-lhe um beijo através de uma pomba. Anda pela floresta como se estivesse sempre dançando, com gestos suaves e braços levantados, e não vê a maldade a sua volta, pois se surpreende ao saber a identidade da mandante de seu assassinato, a rainha. A jovem é prestativa e organizada ao chegar à casa dos sete anões. Organiza e limpa a casa e também cozinha para os donos, não se importando com o fato de ser uma princesa, mas agradecendo, na forma de trabalho, música e dança, o carinho e proteção que recebe dos anões. A princesa se apresenta em trajes rasgados, velhos e remendados, roupas de uma camponesa pobre e não de uma princesa. Nesses trajes é que conhece o príncipe, chegando a reconhecer e se envergonhar de sua vestimenta ao fugir de seu encontro e se refugiar na sacada. Logo depois, ela coloca o que seria o seu traje mais conhecido um vestido amarelo com a parte de cima azul com detalhes vermelhos, golas brancas arredondadas e altas e mangas

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curtas, mas bufantes. Tem também uma capa curta e nunca usa a tiara ou coroa de princesa, mas uma fita no cabelo, que faz a referencia a tal acessório. Estes traços caracterizam a elegância “interna” da princesa, em contraponto com a simplicidade de sua aparência. Percebe-se o implícito, as entrelinhas que ditam quem é a princesa Branca de Neve.

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4.1.2 Cenário O filme começa com enredo desenvolvendo-se no castelo medieval. Ele é mostrado com uma visão geral, passando para um detalhe da torre e depois vai para dentro do quarto, onde aparece a madrasta/rainha, que fala com seu espelho mágico. Logo depois, a princesa é mostrada sentada na escadaria do pátio do castelo com um balde e uma escova, esfregando, lavando a escadaria e cercada de pombas brancas. Estas imagens sinalizam para a grandiosidade do reino da pequena princesa. Os meios de transporte do jovem príncipe e do caçador são a tração animal, o cavalo ou a pé, que é como se locomovem, também, a princesa e os anões. Logo após aparece um passeio a pé pelo campo de onde Branca de Neve foge para dentro da floresta e acaba em um pântano e é cercada por troncos de arvores que lembram crocodilos, denotando um ambiente perigoso, hostil e ameaçador para a princesa. O ambiente de claro no campo passa para escuro como a noite dentro da floresta, fugindo, ela cai em um buraco e desiste de fugir se entregando a fatalidade. Nesse momento, a luz volta aos poucos, e os animais na floresta ajudam, ela acaba então na casa dos anões. Basicamente, o castelo de Branca de Neve, a floresta, o pântano, a gruta de minério e a casa dos anões, a montanha com o penhasco, são os cenários do filme, onde os personagens se articulam numa dualidade entre o bem e o mal, o claro e o escuro, o colorido e a falta de cor. 4.1.3 Missão Branca de Neve, no filme esta sempre sofrendo maldades, injustiças, perseguições. Mas indiferente a esses reveses, passa a sua bondade e sua inocência a tudo em sua volta. Ela é doce com os animais e com as pessoas, com os anões. Conquista tudo a sua volta e põe amor em tudo que faz, sem julgar pela aparência, como mostra na parte em que ela, apesar de se assustar com a aparência da rainha transformada em velha que chega a casa dos anões, ajuda-a e aceita sua oferta da fruta envenenada. O amor incondicional a tudo e a todos

é a sua realização sendo feliz com o que a vida lhe oferece e, portanto, aceitando seu destino. A missão desta personagem é clara, o bem vence o mal, o bom vence o malvado, e mais: as aparências nem sempre são o que demonstram. É preciso (re) conhecer as pistas das representações do bem. 4.2 Tiana do Filme: A Princesa e o Sapo 4.2.1 Identidade e figurino O discurso imagético e discursivo desta princesa sugere uma evolução do personagem, de criança para a fase adulta. Nesta história, a princesa é uma moça trabalhadora, que junta dinheiro para realizar seu sonho, ter um restaurante. Sem lazer, foca na sua determinação. O lado amoroso da personagem está sempre em segundo lugar, pois sua intenção não é casar, mas ter um trabalho para poder conquistar sua independência. Nesse sentido, a personagem volta-se sempre para os valores que lhe são mais importantes: o trabalho honesto e o amor. Já adulta, não tem vida social com os amigos, pois guarda suas forças e dinheiro para atingir a meta. Diversas vezes, diferentes personagens tentam minimizar sua meta e sua capacidade de realizá-la: seu patrão no restaurante, os corretores de imóveis e alguns de seus amigos menosprezam seu sonho de ter um restaurante. Ao final, essa representação do bem tem um final feliz: a protagonista ganha o amor e o restaurante como recompensa de atos corretos e responsáveis, com sacrifício e luta. O figurino desta personagem é simples. Na cena inicial do filme, mostra uma mansão, no quarto aparecem duas meninas uma branca, loira e com um vestido rosa rodado com chapéu de cone e varinha na mão, indícios claros de uma fada e a outra negra, cabelos escuros, um vestido simples e curto, verde, golas brancas e uma coroa na cabeça, indícios claros de uma princesa: Charlotte e Tiana. Seu guarda roupa de adulta, em outra cena, mostra poucos vestidos, e a maioria do figurino usado por ela tem a cor verde para conectar com o sentido do filme que a transforma, em determinado período, em uma rã. É só no casamento com o príncipe e como empresária do restaurante que o figurino da princesa se apresenta com mais glamour e cuidado, percebendo-se, então, os indícios de vitória, ou seja, de final feliz. 4.2.2. Cenário Neste filme há uma localização geográfica. Ele se passa nos Estados Unidos da América do Norte,

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na Louisiana, especificamente na cidade de Nova Orleans. A época situa-se logo após a 2º Guerra nos anos 50/60, o que se percebe pelo modelo dos carros e das roupas. O filme começa mostrando a casa de Charlotte, uma mansão com torres, a câmera aproxima de uma delas onde mostra um quarto todo rosa, móveis estilo Luis XV, donde sai a menina Tiana, tomando um bonde, ela vê, pela janela, as mansões vizinhas a casa da sua amiga e depois a mudança para seu bairro, de casas simples, chalés de madeira, um próximo do outro sem cercas. Na cozinha, sua mãe trabalha em seus vestidos, ao mesmo tempo em que Tiana cozinha uma sopa, mostrando claramente a falta de espaço. A cena que mostra seu quarto apresenta móveis simples retos, roupeiro armário e cama. Tiana, já adulta, trabalha na cidade, no centro, em um restaurante simples também, como garçonete. O príncipe chega ao porto da cidade e sai dançando e tocando pelas ruas do centro da cidade. A mudança de cenário se dá quando, já transformados Tiana e o Naveen vão parar nos pântanos. De lá, voltam para a cidade, pelo rio, indo direto para o desfile de Carnaval. Há cenas também dentro de uma igreja e no cemitério da cidade. O filme termina com o local do restaurante, o Palácio de Tiana, muito luxo, lustres de cristal, musica ao vivo de uma banda de jazz em que o príncipe toca. E por fim, ele e Tiana dançando no terraço de seu palácio-restaurante. 4.2.3 Missão A missão da personagem-protagonista mesmo dita nas entrelinhas, é fácil de perceber: evidencia que com muito trabalho foi possível realizar seu sonho – adquirir seu restaurante. Este, que foi sonho e objetivo de seu pai, havia passado para ela, Tiana. Durante o filme, ela aprende que só a realização profissional não é o suficiente para ser feliz, e que o amor é mais importante. Para isso, porém, ela tem que sofrer muito em dois empregos, ser transformada em uma rã, lutar contra crocodilos, caçadores, o homem das sombras e, então, apaixonar-se. Ela abre mão de seu sonho do restaurante pouco antes do fim do filme para ficar com o “sapo” amado. E, dessa forma, escolhendo o amor, em vez da realização profissional é que ela consegue os dois, ou seja, uma missão de vitória através de atos corretos e verdadeiros. 4.3 Diferenças e Semelhanças O bem e o mal. Em Branca de Neve e os Sete Anões assiste-se à contraposição das duas forças oponentes. Vemos, então, as cenas em que a rainha, com inveja de sua enteada, obriga-a traba-

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lhar de serviçal, fazendo-a esfregar o chão. Assim, uma rainha feiticeira, que usa seus poderes para subjugar a princesa às suas vontades, opõe-se à mocinha resignada com seu destino, que espera, feliz, o dia que tudo se resolverá, com a amizade dos pássaros, ela faz o trabalho que lhe é dado sem revolta e até sem consciência da maldade que está a sua volta. Tímida com o interesse do jovem, que lhe quer, ela não se revolta com as maldades da madrasta, embora fuga ao se deparar com a grande crueldade de sua vilã, ela é ingênua ao não perceber o novo golpe, quando transformada de velha a rainha vai ao seu encontro na casa dos sete anões para enfeitiça-lá. Quanto a Tiana, ela que sabe o que quer e trabalha para conseguir isso. Por vontade própria e por necessidade, trabalha em dois empregos, com a idéia de realizar seu sonho: ter um restaurante próprio. Não está feliz com o destino que lhe é apresentado e luta para mudá-lo. Quando está próxima de conseguir isso, novos obstáculos embaraçam seu caminho, mas não a impedem de seguir buscando seu sonho. Ocorre então que, no ultimo momento, ela escolhe o amor, deixando seu sonho para ser feliz, tendo feito a escolha certa, ela é recompensada e logo consegue os dois. Ao contrário de Branca de Neve, ela é que salva seu príncipe e não foge da luta, encara e enfrenta a maldade e resiste às tentações em função de seu amor. Com relação ao figurino, enquanto Branca de Neve é vestida com trapos e mostra somente dois trajes o filme inteiro, Tiana usa roupas simples e uniformes, roupas de trabalho; tem um guarda-roupa com poucos vestidos, por escolha pessoal, pois, sendo sua mãe estilista, poderia vestir-se melhor, se não guarda-se todo o seu dinheiro para a consecução de seu sonho. As duas apresentam poucas roupas, com a diferença de que Tiana não as tem porque não quer, e Branca de Neve, porque a madrasta não lhe permite mostrar sua beleza. Essas diferenças, entretanto, deixam um ponto em comum entre ambas: elas têm uma feminilidade, uma graciosidade e uma postura elegante, que é mostrada em Branca de Neve quando ela vai para a floresta com seu vestido amarelo e azul e em Tiana quando, na festa precisa mudar de roupa e usa um vestido azul longo. É ai, então que recebe o reconhecimento de sua beleza por sua amiga Charlotte. Essas cenas deixam implícita a elegância interna das princesas, ponto comum, portanto, entre estes dois personagens. No que tange ao cenário, as ambiências dos filmes são bem distintas. Enquanto que Branca de

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Neve está contextualizada em um castelo medieval e uma floresta, Tiana é uma jovem da cidade de Nova Orleans, com todas as demandas de uma vida urbana. As marcas imagéticas, porém, apontam para pontos em comum: há semelhanças na abertura de ambos os filmes, mostrando castelos, e torres, e quartos. A diferença é que, enquanto, em um, o quarto é da rainha/madrasta de Branca de Neve, no outro, o quarto é da amiga vestida de fada, Charlotte. Vemos também semelhanças na forma com que, nas duas histórias, as mocinhas fogem ou acabam, em sua fuga, indo para a floresta que está na volta e, mais especificamente, no caso de Tiana, chegando a um pântano, com crocodilos em volta. A diferença é que Branca de Neve, em sua fuga, chega a ficar tão assustada que desiste de fugir e cai ao solo, enquanto Tiana consegue fugir com suas próprias forças, sem esmorecer, e ainda salva o príncipe sapo dos crocodilos. As duas conseguem sair da floresta da mesma forma: com a ajuda de amigos que por lá encontram e lhes indicam o caminho para um local seguro: Branca de Neve é orientada para a casa dos sete anões, e Tiana, para a casa da Mama-Odie. No entanto, elas buscam coisas diferentes: enquanto Branca de Neve está fugindo para não voltar mais, pois sua madrasta a quer morta, Tiana e o príncipe sapo buscam uma forma de voltar a ser humanos. Para Branca de Neve, a casa é um fim; para Tiana, um meio. Há diferenças também nos príncipes. O de Branca de Neve é perfeito, um homem que vem em um cavalo branco, roupas impecáveis, não apresenta defeito algum, compreende a timidez da donzela e canta para ela na sacada. Não a salva da rainha má, mas aparece para dar o beijo e acordar do encanto maligno a bela princesa. Ela o aceita naquele momento como seu salvador, já estava por ele apaixonada, apesar de não o conhecer e nada saber a seu respeito. Seu relacionamento, portanto, é baseado no amor à primeira vista, que os encaminha para o tradicional epílogo do “felizes para sempre”: o príncipe carrega a amada nos braços até o cavalo e a leva para viverem no castelo dourado. Ou seja, um amor romântico, encantado e desconectado da realidade. O príncipe de Tiana é bem diferente, está longe de ser perfeito e perto de ser um homem normal. Já de início ela sabe que ele não tem dinheiro e que vem para casar com sua amiga, para conseguir seguir a vida de boêmio que sempre teve; não sabe cortar um cogumelo e nunca trabalhou na vida. Sendo apaixonado por jazz, ele vai pelas ruas

da cidade tocando e dançando. O primeiro contato com Tiana está longe de suscitar um amor à primeira vista, mas o príncipe reconhece nela uma mulher batalhadora. Ao se apaixonar, ela conhece todos os seus defeitos, mas também consegue ver as suas qualidades. Reconhecendo o amor dele por ela, ela se dispõe a ficar com ele, pede-lhe que não faça o sacrificio de casar sem amor com Charlotte e que fiquem juntos, mesmo como sapos, pois, sozinha, seu sonho não teria mais sentido. Tiana escolhe o príncipe conhecendo todos os seus defeitos e qualidades, e reformam o palácio, onde os dois trabalharão juntos, cada um com seu dom, e poderão ser felizes. O epílogo não menciona que “serão felizes para sempre”. A missão que as duas princesas apresentam é bem distinta também. Tiana tem claro um sonho a perseguir, um objetivo e, para realizá-lo, conta somente com a força de seu trabalho e sua determinação. Porém, na busca de seu sonho, ela encontra também o amor. Tem que escolher e escolhe o amor, mas acaba conseguindo os dois. Branca de Neve conta com os outros – príncipe, caçador, anões, animais – para ajudá-la a escapar da maldade de sua madrasta. Nessa fuga, encontra a amizade e o amor do príncipe. As duas encontram o amor em suas aventuras, e isso une as duas historias. Também a inveja está presente nos dois enredos: em Branca de Neve, a inveja de sua beleza, por parte da madrasta, que manda matá-la; em A Princesa e o Sapo, a inveja que o homem da sombra tem pelo dinheiro do pai de Charlotte, a ponto de usar o príncipe para conseguir chegar até ele; e a inveja do mordomo do príncipe pela posição de Naveen, que ele nunca conseguiria ter. Entre diferenças e semelhanças, a representação imagética é percebida nos contextos de cada signo através de percursos gerativos semânticos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho tem um ponto final, mas não uma conclusão fechada. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que buscou, em um estudo baseado em percepções semânticas, os modos de endereçamento de diferentes personagens/princesas a partir de interpretações subjetivas das marcas imagéticas e discursivas dos filmes. O trabalho comparativo entre os dois filmes e seus personagens permite alguns encaminhamentos de pesquisa: 1) A evolução do papel representado pela mulher. Ela deixa de ser uma resignada com seu destino, permanecendo à espera do príncipe, como no filme dos anos 30, e passa a ser dona de seu des-

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tino, tendo o poder de mudar sua vida com a força de seu trabalho, como no filme dos anos 2000. Exatos 70 anos separam o lançamento desses dois filmes, e a diferença na construção do papel da mulher fica bastante clara: as princesas agora trabalham e sabem que os príncipes têm defeitos, podendo escolher ficar com eles ou não. 2) A construção da personagem princesa. Toda menina sonha com seu príncipe. Não podemos negar que essas construções do imaginário infantil são reais, e o próprio filme da Princesa e o Sapo mostra a diferença entre meninas que crescem ouvindo histórias românticas e, quando adultas, ainda esperam seu príncipe. Ou seja, o amor continua a ser romantizado, glamurizado, fugindo de conceitos mais concretos e reais. 3) Os contos de princesas, apesar de focados em diferentes épocas, apresentam o amor como um valor sempre presente. Mesmo que a princesa moderna trabalhe e não dependa mais de um “príncipe”para salvá-la, a realização dela está sempre vinculada ao amor correspondido. 4) Podemos ver que, na luta do bem contra o mal, para que este seja vencido, é necessário, quase como paradigma de verdade, que haja bondade e uma boa amizade para indicar caminhos e ajudar na luta conta o mal. 5) Evidenciamos mais diferenças do que semelhanças entre as duas histórias. Podemos notar, então, que o conto da princesa está-se atualizando com o passar do tempo. Novos modelos de príncipe e de princesas são importantes para compatibilizar a fantasia com a vida e a sociedade atuais. Por outro lado, embora não haja embasamento teórico para se afirmar que toda menina quer ser princesa e ter como par um príncipe para juntos realizarem sonhos, ocorre que, há décadas, gerações e gerações de crianças vêem modelos de mulher em princesas criadas pelas empresas cinematográficas, o que pode contribuir para essa afirmação. Walt Disney tem usado essa fórmula repetidas vezes, para ir contando sempre a mesma história: uma princesa, um príncipe, o mal que separa os dois, amigos que ajudam a remover obstáculos do caminho, a magia a serviço do mal, o confronto entre o bem e o mal, a escolha, a vitória do amor. A contemporaneidade mostra, entretanto, que nossas princesas agora trabalham, pegam ônibus, escolhem e salvam os príncipes, são as heroínas na história, as protagonistas mesmo, decidindo seu destino na trama e lutando contra o mal. Essa é hoje a realidade mais próxima da mulher moderna. O que não muda, porém, é o amor, sempre pre-

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sente e, na maioria das vezes, constituindo-se na escolha mais desejável para todas as princesas. Referências Bibliográficas DISNEY.COM.. princesas Site oficial disponível em: < http://www.disney.com.br/DVD/brancadeneve/downloads/> acessado em 01 jan.2012. DONDIS Donis A. Sintaxe da linguagem visual; tradução Jeferson L. Camargo, 2º Ed - São Paulo, Martins fontes 1997 GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa, São Paulo, Atlas. 1991, HALL, S. (Ed.). Representation: cultural representations and signifying practices. London: Sage; The Open University, 1997. PERUZZOLO, Adair Caetano. A Estratégia dos signos: quando aprender é fazer. Santa Maria; Ed. FACOS-UFSM, 2002. RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da Comunicação. Questão comunicacional e formas de sociabilidade; Ed. Presença, Lisboa; PT. 1990 ROCHA, Decio. Agendamentos coletivos de enunciação e discursos midiáticos, semiosfera, 8 ano 5, revista da pos graduação eco-ufrj 2004, disponível em : : eacessado em 01 jan.2012. TRIVIÑOS, A.V.S. introdução a pesquisa em ciências sociais- a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo. Atlas. 1987

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Identidades em cena em Des-Medéia, de Denise Stoklos Sonia Pascolati Universidade Estadual de Londrina – Paraná, (Brasil)

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Resumo: A paranaense Denise Stoklos (1953- ) é uma das grandes forças criativas do teatro performático brasileiro, posição consolidada ao longo de seus mais de 40 anos de carreira artística. Múltipla, ela escreve, dirige e atua nos espetáculos, assim como desenvolve um pensamento teórico por ela chamado de Teatro Essencial, o qual é fruto de sua experiência como artista: “Como atriz, diretora, autora, minha preocupação sempre é o poder, as injustiças sociais, os comportamentos padronizados, a estética e a ética rançosa do sistema patriarcal capitalista” (Sítio da autora, disponível em http:// denisestoklos.uol.com.br/trabalhos/manifestos/manifesto-teatro-essencial. htm). Dentre suas peças, escolhemos Des-Medéia (1993-1994) como ponto de partida para uma reflexão sobre a reconfiguração de identidades na contexto contemporâneo, a começar pela recriação da clássica personagem mitológica Medeia e o reflexo dessa retomada sobre o conceito de feminino, passando pela provocação acerca da constante (re)construção da identidade brasileira, e chegando a uma reflexão sobre as recentes reconfigurações do gênero dramático em suas confluências com a presença do épico e o destaque para o performático. Desse modo, a partir de uma Medeia que abandona a violência em nome de uma nova concepção de justiça, procuramos pensar sobre as contribuições do teatro para a reconfiguração do cânone e das identidades feminina e brasileira.

1. Denise Stoklos, essencial Uma força que impulsiona a revisão do cânone nos últimos anos é a ausência(presença) da autoria feminina na história oficial das mais diversas literaturas. Vozes caladas por muitos séculos, os tons e acordes femininos têm se multiplicado nas últimas décadas, assim como pesquisas têm revelado talentos outrora desconhecidos. A autora cuja obra aqui apresento é um exemplo de como a mulher tem ocupado espaços de produção artística e merecido atenção por parte da academia. A paranaense Denise Stoklos (1953- ) é uma das potências criativas do teatro performático brasileiro, posição consolidada ao longo de seus mais de 40 anos de carreira artística. Múltipla, ela escreve, dirige e atua nos espetáculos, assim como desenvolve um pensamento teórico por ela chamado de Teatro Essencial, o qual é fruto de sua experiência como artista: “Como atriz, diretora, autora, minha preocupação sempre é o poder, as injustiças so-

ciais, os comportamentos padronizados, a estética e a ética rançosa do sistema patriarcal capitalista” (STOKLOS, 1987). O essencial, no teatro, é o ator, origem da criação do espetáculo, não só como corpo em cena, mas como matriz de sentidos, que devem ser geridos pelo próprio ator, desdobrado em diretor; os demais elementos do espetáculo serão orquestrados em função do ator, objetivando “um teatro que tem o mínimo possível de gestos, movimentos, palavras, guarda-roupa, cenário, assessórios e efeitos mas que contém o máximo poder dramático” (STOKLOS, 1993, p.4). A montagem para a estreia nacional de Des-Medéia em 1995, texto sobre o qual discorro neste artigo, é um ótimo exemplo de materialização do Teatro Essencial, conforme consta na ficha técnica do espetáculo: “Texto, coreografia, trilha sonora, interpretação solo e direção: Denise Stoklos” (STOKLOS, 1995, p.36). Como destaca Giordano (2011, p.3), “ao concentrar

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todas as funções criativas e originais do espetáculo na figura do ator, o Teatro Essencial busca romper com a hegemonia emergente do diretor-encenador, tendo em vista que este, preocupado em materializar a sua concepção, esquece-se do potencial de invenção e investigação possível do ator: matéria-prima do teatro”. Estar diante de um palco ocupado pela presença de Denise Stoklos é um privilégio. Seu corpo, seus gestos, sua voz ocupam o espaço de tal maneira que somos tomados por uma energia de ação, exatamente como ela quer que aconteça diante do fenômeno artístico; aliás, a ação deve transcender o “templo teatral” e ganhar praças, ruas e casas, pois seus textos dramáticos e sua performance é sempre um apelo à transformação. Comecemos, então, a compreender as transformações de Medeia. O mito, tal como fixado por Eurípides, relata a vingança de Medeia, princesa da Cólquida que trai sua família, mata o próprio irmão e abandona tudo para viver como estrangeira ao lado de Jasão, forasteiro em busca do sagrado velocino de ouro. Depois de 10 anos e dois filhos, Jasão decide unir-se à filha do rei Creonte, Gláucia, abandonando a esposa à própria sorte. Neta do sol, sábia das artes da magia, Medeia não aceita calada a traição de Jasão: a fim de feri-lo o mais profundamente possível, mata os próprios filhos, negando-lhe uma descendência. O desenredo proposto por Denise Stoklos incide sobre o ponto principal do mito: a violência da vingança, da qual a (nova) heroína desiste em nome da vida e do amor. Minha análise da peça Des-Medéia restringe-se a uma reflexão sobre a (re)configuração das identidades feminina e brasileira na última década do século XX. Como se trata de uma reescritura, o duplo registro se anuncia como eixo de leitura da peça, já que a heroína clássica é deslocada de seu contexto para habitar o universo político brasileiro dos anos 1990. Como consequência, as linhas de força do mito – a traição de Jasão e a violenta vingança de Medeia – se reconfiguram à luz de novos valores sociais e humanos, pois agora eles dizem respeito ao contexto brasileiro de abertura política, no período pós-ditadura. 2. Uma Medeia sem sangue nas mãos Como todo texto clássico, Medeia de Eurípides tem suscitado tantas interpretações quantas leituras tenham sido realizadas nesses muitos séculos de recepção da tragédia (CALVINO, 1994) e a análise da personalidade e atitudes da protagonista vão de um extremo ao outro, como aponta Cristina

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Marquardt (2007, p.16): De fato, muitas personagens das peças de Eurípides cometem atos condenáveis, como o matricídio por Medeia, ou a paixão proibida de Fedra que leva Hipólito à ruína. Mas há outras personagens, como Ifigênia, Macária, Polixena que, ao contrário, são admiráveis e mostram-se as figuras mais íntegras diante de um ambiente corrompido. Essa dualidade deveu a Eurípides tanto a acusação de misógino como a de feminista avant la lettre. De fato, é surpreendente que, em uma cultura machista como a grega do século V, seja dado tanto espaço e voz às mulheres. Mesmo as “vilãs”, como Medeia e Fedra, apresentam o ponto de vista feminino e falam a partir do lócus que lhe era determinado, denunciando suas mazelas. Por outro lado, Ribeiro (2008, p.1) não hesita em afirmar que [...] a voz que Eurípedes (sic) confere à mulher não deixa de ser uma voz outorgada pelo homem. Construída pelo olhar masculino, Medéia é a especulação acerca do que se acreditava ser a mulher: não há a autonomia da figura feminina em Eurípedes, pois ela não é por e em si, mas para si, projeção e divagação de conceitos estabelecidos por quem ditava e descrevia a ordem. Os autores, aqui tomados apenas como exemplo de posicionamentos semelhantes, discordam acerca de um ponto importante: o fato de a personagem ter ou não voz própria; dito de outro modo, não há consenso sobre o espaço permitido à manifestação da visão feminina. O texto de Denise Stoklos inova ao calar Jasão, priorizando a voz da mulher. Em cena, apenas Medeia e o Coro; a presença de Jasão se limita ao diegético pela voz de ambas as personagens, mas em particular nas falas de Medeia, logo, construída de seu ponto de vista, com alguns balizamentos do Coro. A figura feminina domina o texto, seja pela força de seu discurso, seja pela poesia exalada de suas palavras, além de ser a primeira personagem descrita pelo Coro, narrador responsável por apresentar o substrato do mito ao público. O texto se inscreve na interface da tradição e sua transformação, pois, se o Coro anuncia a “estória

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de uma mulher violenta, violenta, violentíssima”, recuperando o sentido cristalizado do mito, por outro lado toma liberdades para com Jasão, chamando-o de “Jasão-tesão, Jasão-cagão, Jasão-bundão” (STOKLOS, 1995, p.5). Está dada ao leitor/espectador a primeira construção de um duplo: Medeia e Jasão, feminino e masculino, força e fraqueza. Esses pares se desdobram à medida que, no caso de uma reescritura, sempre paira sobre o texto a sombra de outros textos ou de um texto-fonte (PASCOLATI, 2005); portanto, o feminino, por exemplo, se desdobra no feminino euripideano e no feminino de Stoklos. Não se pode negligenciar que é nessa tensão que os sentidos de feminino se constroem durante a leitura de Des-Medéia. A marca do discurso de Medeia é o sofrimento, como se suas falas formassem um longo canto de lamento pelo abandono. Há uma constante tensão entre o estar junto, o pertencer ao outro, e o estar só, o voltar a ser apenas um, como se vê no trecho abaixo tanto na metáfora da bifurcação do caminho (divisão), quanto na imagem da lua, sempre inconstante e múltipla: 334

MEDEIA No barranco da rota em que me encontro bifurcada vejo as luas. Encostar-se no barranco faz uma sombra neste atalho imposto. É mais uma imagem em dois. E a lua projeta também em duplos dois a sua prateada série, do crescente ao pleno [...]. (STOKLOS, 1995, p.10). A dor da heroína se inscreve no campo da sexualidade, do desejo físico que o outro já não quer mais satisfazer. Trata-se de um doloroso processo de disjunção em relação ao ser amado, expresso por imagens contrastantes como o fogo, signo do desejo que consome o corpo da mulher, e a pedra e a água, elementos frios. Medeia vê Jasão como uma porção de si mesma, mas uma porção perdida. O duplo, que antes da separação é visto como soma, adição, agora é visto como oposição, forças contrárias, ou melhor, desejos contrários. Numa espécie de êxtase verbal, Medeia recorre a metáforas animalescas para expressar simultaneamente seu tesão e seu desprezo pelo marido: Argonauta, seu porco, meu cavalo, veado, seu bode, asno, burro, burro, avestruz, pavão, meu

zoológico voraz me trepa, me come, carnívoro e mamífero mas invertebrado e de penas, meu inidentificado ser animal. Eu, égua árabe, negra, suada, com fogo de dragão nas ventas, vagina olímpica e útero encharcado de esperma de Zeus, com o reto imantado de rubra paixão, eu, égua árabe, pertenço a tua espécie, meu bicho, me come, me trepa. (STOKLOS, 1995, p.15-16). O sexo parece ser a única forma de junção dos corpos, de eus tão diferentes desde a essência: ele, paradoxalmente, dotado de virilidade, mas invertebrado – é tudo e nada ao mesmo tempo: mamífero/ carnívoro, quadrúpede / bípede; ela é égua, pura e simplesmente, e comunga da espécie animal de Jasão – qualquer que seja ela – apenas no plano instintivo, físico, jamais ideológico. Essa Medeia que se lamenta, que revela indiscretamente seus sentimentos – ao contrário do que se espera de um herói clássico, contido e seguro de si (DJIRIGUIAN, 1991) –, absolutamente consciente de ter dado seu maior tesouro – “Aquele precioso da arca sagrada: o tempo [...]” (STOKLOS, 1995, p.19) – a um homem pérfido, sozinha numa lar vazio, do que ela é capaz? Diz o mito que sua vingança não poupa sequer os filhos. Mas não esta Medeia, que se recusa ao crime: “Não imolarei morte nenhuma por você, nenhum sacrifício ritual, a causa não merece. / Há muito a se fazer, adiante.” (STOKLOS, 1995, p.25). Para ela, não faz sentido a vingança para com uma relação em que não há amor: “Como eu poderia assassinar meus frutos por vingança se não há sentimento a ferir? (STOKLOS, 1995, p.30). Numa inversão completa de perspectiva, ela afirma Jasão como perdedor, destronando-o “[...] do direito de permanecer em mim, que é sobre o qual temos autoria: a liberdade de escolher o repertório que me ocupa” (STOKLOS, 1995, p.30). Se a alternativa face à traição não é a vingança ou a violência, tampouco é a passividade. Medeia sofre, se lamenta, mas não se entrega. É outro o caminho proposto pela peça. 3. Des-Medéia e a alma brasileira A retomada de um texto clássico nunca é gratuita, ainda mais quando se trata de uma figura emblemática e tantas vezes revisitada pela arte (literatura, pintura, cinema) quanto Medeia. Como afirmo em minha tese de doutorado, “[...] a reescritura do mito é direcionada pelo olhar do leitor-escritor e

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condicionada pelo contexto histórico-político de recepção do texto [...]” (PASCOLATI, 2005, p.14); ora, o leitor de Eurípides é uma mulher e mãe, como deixa clara a bela “dedicatória permanente” que abre o texto: “Qualquer coisa de belo que eu porventura possa criar será para, por e de meus filhos Thais e Piatã – que incessantemente, através do privilégio da maternidade, me presenteiam com suas generosas luzes” (STOKLOS, 1995, p.1) ou então as palavras incisivas do Manifesto do Teatro Essencial: [...] eu vejo maternidade como fonte de extrema força modificante, poderosa. Digo também que não vejo o parto como sofrimento mas como supremo momento de integração com a natureza, que pode desenvolver uma atitude permanentemente voltada ao sagrado, ao poder criador. Se a mulher puder dar direções à sua gravidez, parto e exercício de sua maternidade, então ela é revolucionária. (STOKLOS, 1987). Das tragédias clássicas que chegaram até nós, a maioria evidencia oposições, tais como: sabedoria versus ignorância, juventude versus velhice, sublime versus prosaico, feminino versus masculino. Neste último binômio, ao masculino são reservados a força, o exercício do poder, o comando e a tomada de decisões; à mulher, como alerta Ismena, personagem de Sófocles (2005, p.8-9), “[...] convém não esquecer [...] que somos mulheres, e, como tais, não podemos lutar contra homens [...]”. Essa lógica da submissão não vale para Des-Medéia. No texto, feminino e masculino enfrentam o momento de disjunção após longa conjunção que deixa profundos vestígios em Medeia. A força não será privilégio de Jasão, assim como a coragem e o destemor, afinal, é Medeia quem enfrenta a separação e cuja ação é capaz de desenredar o mito, descartando a violência em nome do amor. A Jasão – ou ao masculino – cabe a traição, a fraqueza, o conchavo político com Creonte em busca do poder; qualquer relação com manobras políticas do período ditatorial e pós-ditadura no Brasil não é mera coincidência. Quando entra em cena, a primeira fala de Medeia é sobre o abandono, o ser mulher e o ser mãe, isto é, logo no início as diretrizes de composição da personagem se anunciam, reafirmando-se no prosseguimento do texto. Em primeiro lugar, ela sofre por ver o “compromisso rompido”, por ter “duas artérias independentes” agora irrigando “o que antes era um só coração”. Depois, ela evoca a

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condição de geradora de vida, própria do feminino, mas às avessas, pois se vê “menopáusica musa”, “desmenstruada”. Por fim, uma última imagem insinua simultaneamente a separação dos amantes e a maternidade, como se a dor da separação fosse comparada à dor do parto: “Violento fato de antes ser dois para depois inutilizar-se o resgate das veias” (STOKLOS, 1995, p.10), metáfora na qual se entrevê, pelo viés da dor amorosa, também a separação íntima da mãe e dos filhos pelo corte do cordão umbilical. Na desconstrução da matricida Medeia clássica, a violência perde lugar para o amor materno, mais forte que o desejo de vingança; dito de outro modo, como se repetisse as palavras de outra heroína clássica, Antígona – “Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor” (SÓFOCLES, 2005, p.35), a Medeia de Stoklos ama, por isso cuida, preserva: “Meus atos/filhos/sementes foram obras de sonho, e assim para sempre os embalarei” (STOKLOS, 1995, p.31). Esse desvio em relação ao perfil “original” da heroína não se deve apenas ao relevo dado ao instinto maternal, mas em particular às estreitas relações que o texto dramático estabelece com o contexto histórico brasileiro da década de 1990. Como resposta ao lamento inicial da protagonista, o Coro oferece a chave para a compreensão dessa des-Medeia, criando identidade entre ela e o povo brasileiro: Medéia está aqui surpreendida sem nenhuma aliança, com a esperança. Mas querendo muito ouvir o chamamento inerente de pertencer. Ela está sem nenhuma ligação, nem a uma ideologia, nem a uma idéia nobre de pátria, nem à sua memória, a seu passado, seu futuro, nem à Terra, nem a si mesma. Nenhum presente. Só. Como nós. (STOKLOS, 1995, p.10). Mais uma vez a duplicidade se instaura pelo discurso, pois temos uma Medeia abandonada, sem laços, como se apagada, já que não se sente ligada nem mesmo a sua própria memória; contudo, vista de outro ângulo, essa anulação do ser, sequer em conjunção consigo mesmo, traz como aspecto positivo um terreno limpo para a reconstrução, para o recomeço, exatamente como queriam os brasileiros do momento pós-ditadura. A década de 1980

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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

é marcada pelo movimento de redemocratização do país, cujo ápice é a aprovação da Constituição de 1988. O movimento chamado “Diretas já!”, de 1984, embora não tenha conseguido a modificação do sistema de eleição presidencial, foi fundamental para a reunião das mais diferentes categorias sociais em torno de um mesmo objetivo, unidas pela conquista de um mesmo direito: a escolha direto do governante maior do país. Contudo, velhas estruturas permanecem no cenário político, como registra a esclarecedora fala inicial do Coro. Com um tom bastante coloquial, a personagem retoma a trajetória de Jasão, mas refere-se simultaneamente ao contexto político brasileiro, estabelecendo um provocativo paralelo entre o exercício do poder no mundo grego e no Brasil. Se em Iolco Pélias usurpa o trono do pai de Jasão, no Brasil o poder foi usurpado pelos militares anteriormente, e agora está nas mãos de outros poderes tais que o empresariado e a mídia, como relata ironicamente o Coro acerca das jogadas políticas de Jasão:

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Jasão não se deu por achado. Como ele tinha um dote grande, como era bem dotado, era de família bem situada, bem relacionada nessas esferas do poder, sabe como é, empreiteiras na jogada, gráficas à disposição, [...] com um generoso apadrinhamento de muitos deuses ele construiu o primeiro navio da história: Argo, com uma madeira de lei, que falava e dava ordens de tão poderosa, uma rede brasileira de televisão, assim. [...]. Chamou sua coligaçãozinha, seus cabos eleitorais, combinou favores depois de conquistado o cargo, digo, o título, digo, conquistado o pelego, [...] apelidou seus capangas de argonautas e lá se foi (STOKLOS, 1995, p.7). Apesar do avanço democrático representado pela década de 1980, o ranço da troca de favores, do apadrinhamento político, das manipulações ideológicas continua imperando na política brasileira da década de 1990. O texto de Stoklos dá voz ao desencanto de uma parcela da população – talvez sua maioria – diante da esperança frustrada. Tancredo Neves, escolhido para presidência com apoio popular, morre antes de assumir, ficando em seu lugar José Sarney, símbolo do conservadorismo, da permanência no poder por gerações, como o texto faz questão de registrar, ao referir-se às artimanhas de Medeia em comparação às de Roseana Sarney, filha do então presidente e governadora do

Estado do Maranhão desde 2009: “Como boa filha de presidente que era, ensinou pro Jasão umas politicagens, isto é, deu umas rosaneadas: pistolão, sacas? [...]” (STOKLOS, 1995, p.7). É desse modo, fazendo com que o contexto do mito se projete sobre o contexto político brasileiro e vice-versa, que Stoklos consegue reconfigurar tanto a identidade de Medeia quanto do povo brasileiro. Mesmo não sendo possível apagar o assassinato do irmão e a culpa pela morte do pai, é possível transformar o final da história, numa espécie de desenredo no qual Medeia CORO [...] não matou filhos neste espetáculo. Isso foi um fim invertido. Sua natureza há de ser salva. Também não esteve aqui cozinhando nem costurando. Ocupou-se de transformar. Tal como ela, o mito, merecemos desfazer já todo malfeito, fazê-lo em novo jeito: bem. (STOKLOS, 1995, p.31). Lição para os brasileiros: a história está escrita, mas escrita até o momento presente (década 1990); daqui pra frente é possível mudar, transformar. Mais do que possível, necessário. Lição para as mulheres, que também devem ocupar-se de transformar, de gerar vida, como é de sua natureza biológica, e não morte, como em Eurípides. 4. Desmedeando identidades Como aponta Leites Júnior (2012, p.13), cuja pesquisa mapeia retomadas do mito de Medeia nas mais diversas artes e objetos (textos dramáticos, pinturas, imagens iconográficas, filmes), o fundamental na investigação da transposição do mito para novos contextos é “[...] verificar [...] quais obras apresentam ruptura com a série e de que modo os artistas, escritores e dramaturgos se reapropriaram criticamente do passado (representações) para realizar a problematização do presente ou de sua temporalidade histórica”. Não há dúvidas de que o texto de Denise Stoklos é não só uma ruptura com a representação da heroína clássica, como também faz dessa ruptura uma forma de desvelamento de identidades: passagem do paradigma da mulher

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vingativa e violenta para a mulher-mãe amorosa e transformadora; mudança de uma posição conformista para uma ação atuante no espaço político, em particular pela conscientização da importância da escolha dos representantes do povo no poder. O apagamento da violência evidencia outro lado de Medeia: a força de transformação, que começa pela contenção de seus próprios impulsos e chega ao altruísmo de pensar no bem comum, na transformação de atitudes individuais para o bem de todos. Repudiar Jasão é dizer não à corrupção, à política suja que se esquece do povo em favor de benefícios pessoais, como é claro na imagem do abandono de Medeia movido pelo desejo de poder. Em Stoklos, o masculino é fraco e desleal e o feminino é marcado pela pulsão renovadora. Se o masculino é investido de valor disfórico (GREIMAS; COURTÉS, s.d, p.130), há o feminino para apontar outros caminhos de luta que não a violência, seja ela predominantemente física (tortura), como na época da ditadura, seja social e ideológica, como nos tempos democráticos cujos discursos igualitários camuflam políticas assistencialistas e manipuladoras. Portanto, vejo na Des-Medéia de Stoklos uma força que atrai o leitor/espectador em direção a esse novo perfil de feminino e à atuação política consciente e transformadora. Como nos lembra o Coro, o mito não é imutável e tem um caráter simbólico: “[...] E mais uma: Medéia não é de carne e osso como nossos criminosos: é apenas um mito, criado para simbolizar e espelhar esse lado escuro da natureza humana, para que possamos refletir sobre ele e transformá-lo” (STOKLOS, 1995, p.9). O grito de Medeia – solitário, plangente, orgânico –, primeiro som por ela emitido na peça, é substituído por um raio de esperança, que não se quer farol a guiar consciências, mas poderoso sino a despertá-las. Referências Bibliográficas CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. In: ______. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 9-16. DJIRIGUIAN, Karine. La souffrance dans les mythes des labdacides : comparaison entre les tragédies de Sophocle, Antigone et Oedipe roi et les drames d’Anouilh, Antigone et Oedipe ou le roi boiteux. Thèse de doctorat en Littérature Comparée. Direction : Pierre Brunel. Université Paris-Sorbonne IV. Paris, 1991. GIORDANO, Davi. O teatro essencial sob uma perspectiva minimalista. Revista Lindes. Estudios

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CHICK FLICS, MELODRAMA, CINEMA DE MULHER: a semântica dos termos e a presença feminina no recente cinema brasileiro Sumaya Machado Lima* UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil)

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Resumo: O termo de língua inglesa “women’s cinema”, poderia ser traduzido literalmente como “cinema de mulheres” para a língua portuguesa. Mas, sua tradução cultural no cinema brasileiro dos últimos 15 anos teria uma correspondência? Ao procurar por um denominador comum, encontrou-se o termo chick flicks que, em vez de especificar, parece generalizar o que considera cinema de mulheres, fazendo uma grande mistura, ou hodgepodge, por conter uma gama de variedades de dramas num mesmo universo. Numa perspectiva feminista, comentam-se definições e sentidos para esses termos, assim como para o melodrama – por vezes, convencionalmente considerado um gênero audiovisual preferido por mulheres. Além disso, observa-se a propriedade desses termos para classificar as produções cinematográficas como representativas de identidades femininas e da presença feminina no cinema brasileiro contemporâneo. O termo de língua inglesa “women’s cinema”, poderia ser traduzido literalmente como “cinema de mulheres” para a língua portuguesa e chick flicks traduzido como filmes, cujas temáticas são... “coisas de mulheres”. Mas a tradução cultural desses termos teria alguma correspondência no cinema brasileiro, especialmente na primeira fase da Retomada1? Para tentar responder a esta pergunta, esta análise focou nos elementos da narrativa e da linguagem cinematográfica: o discurso, a diegese, a relação das protagonistas com outros personagens, a montagem e os jogos de enquadramento imagético, a estética. Elencou-se um conjunto de filmes para a análise, não importando se foram dirigidos por cineasta homem ou mulher, mas se havia algum protagonismo feminino. Elencaram-se 1 Retomada, Ver: CATELLI; CARDOSO, 2009. Para efeito de pesquisa, convencionou-se a primeira fase da Retomada o período entre 1995 a 2006. Este artigo é adaptado da tese de doutorado da autora. * SUMAYA MACHADO LIMA é Professora graduada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas. Mestre em Estudos Literários pela Pontifícia da Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina. Sua linha de pesquisas compreende estudos de gênero, cinema e cultura. Atualmente é gestora de projetos sócio-culturais

as seguintes obras, as quais o/a leitor/a deve considerar como representativos da primeira fase da retomada: Carlota Joaquina (1995), O quatrilho (1994); A ostra e o vento (1998); Amélia (2000); A partilha (2001); Domésticas, o filme (2001); Uma vida em segredo (2002); Garotas do ABC (2003); Nina (2004); Casa de areia (2005); Vida de menina (2005); Zuzu Angel (2006); As filhas do vento (2005); O céu de Suely (2006). Evidentemente, na narrativa de cada filme há um posicionamento político imbuído. A semântica da narrativa é inseparável daqueles elementos da linguagem cinematográfica, logo, o ponto de vista narrativo também traduz uma visão de mundo que está nas entrelinhas do filme. Contudo, tão importante quanto a análise da narrativa, é a leitura que dela se faz e o lugar de quem a faz. Seu posicionamento deve ser considerável na análise, uma vez que as leituras críticas são uma reflexão livre sobre leituras de teorias e conceituações feministas elaboradas por Susan Bordo, Joan Scott, Judith Butler, Elizabeth Grosz, Donna Haraway, mas especialmente de Teresa de Lauretis (1984;1987;1994) que, sem ignorar as conquistas femininas, proble-

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matiza-as, foca sua análise na representação do sujeito feminino, na construção do sujeito pelas diversas tecnologias de gênero2 (a mídia, a arte, o universo cibernético, o cinema), a produção cinematográfica e a leitura de textos culturais. Questiona tanto o conservadorismo ideológico quanto rotulações de comportamentos de gênero. Esse é o posicionamento que se procura adotar aqui nas reflexões sobre a semântica do termos women’s cinema e chick flicks para denominar filmes de protagonismo feminino no cinema brasileiro da retomada. Não classifico estes filmes como um “cinema de mulheres” ou o que poderia ser um cinema de “olhar feminino” no Brasil. Provavelmente isso remeteria a toda a discussão de Mulvey (1989;1996) sobre a espectatorialidade, o fetichismo e o olhar de aspecto masculino no cinema, de um ponto de vista predominantemente psicanalítico, cujo desdobramento desviaria da questão principal. A RETOMADA A denominação “cinema da retomada” foi criada por alguns profissionais, para se referirem à produção cinematográfica reativada no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Há um artigo3 de Carlos Alberto de Mattos (1998), jornalista e crítico de cinema, que busca entender a característica fundamental dos filmes produzidos nesta fase que, embora ainda seja cedo para defini-la, é possível assegurar, conforme Mattos, que a existência da diversidade estética é predominante – e constatamos que esta tendência continua após a primeira fase. Uma pergunta reiterada sobre aquele período é se existia algum movimento que pudesse caracterizá-lo como no cinema marginal ou no cinema novo. De acordo com Mattos, uma estética representativa é um mito que já começava a ser contestado energicamente por produtores e realizadores em 1996. A discussão estética ficava como que alijada do cenário, pois temiam que se disseminasse uma concepção uniformizadora desse cinema surgente. Ao contrário, os idealizadores prezavam pela diversidade.

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como categoria de análise, encontrou-se o termo chick flicks. A priori, este termo pareceu um denominador comum. A posteriori, percebeu-se que, em vez de especificar, ele generaliza o que considera cinema de mulheres, fazendo uma grande mistura, ou hodgepodge, por conter uma grande variedade de filmes num mesmo universo. Samantha Cook (2006), em The Roudge Guide to Chick Flicks, define chick flicks pelo que parece ser, afinal, um melodrama. O chick flick possui muitos aspectos. Obviamente, há alguns elementos constantes. Seja uma fábula, seja um filme de doença terminal, um musical ou um drama de época, um chick flick incluirá os seguintes ingredientes combinados: união feminina; crises de família e de amizades; mães e filhas; mulheres fortes, sacrifícios, doença, amor e perda. Sobretudo, o chick flick trará emoções – sentimentos – para a grande tela.4

OS TERMOS Ao procurar por possíveis traduções para o momento cultural do cinema brasileiro, tendo o gênero

Cook (2006) analisa os filmes e suas respectivas heroínas; elege um rol das frases mais famosas que elas dizem, assim como descrimina uma trilha sonora correspondente aos seus dramas, ou cenas marcantes. Numa lista de mais de 50 filmes, há os antigos Brief Encounter (1945) de David Lean, Reino Unido, Doutor Jivago (1965), também de Lean, Reino Unido, Gone with the Wind (1940) de Victor Fleming, EUA, misturados a outros contemporâneos de temáticas, gêneros e origens bastante diferentes. Dentre eles: The aple (1998), de Samira Makhmalbaf, Irã; Run, Lola, run (1998), Tom Tykwer, Alemanha; O exterminador do futuro (1984) James Cameron; Legalmente Loura (2001), Robert Luketic, EUA e O diário de Bridget Jones (2001) de Sharon Maguire, Grã Bretanha e França. Considerando uma lista tão abrangente, ela afirma que o estilo melodrama tem sofrido modificações com o tempo. De fato, este também é o parecer de Ismail Xavier (2003). Em A experiência do cinema5, o autor faz uma diacronia do estilo, desde a literatura da Revolução Francesa, para focar sua análise nas telenovelas do Brasil hodierno. Discute, especialmente, atualizações da matriz melodramática na dramaturgia de Gilberto Braga, com Anos Dourados e Anos Rebeldes. Xavier (2003) observa

2 LAURETIS, 1987 3 Este artigo foi escrito no Estadão, em 1996, com o título: “Cinema Brasileiro Prepara Novo Rosto”, mas não consegui encontrar a data exata de publicação nos arquivos do jornal por internet. Entretanto, informada pelo próprio autor, soube que este artigo está expandido em uma publicação de 1998. Pude adquiri-lo e citá-lo (MATTOS, 1998).

4 “The chick flick comes in many guises. There are of course, constants. Be it a fairy-tale fantasy or a terminal illness movie, a musical or a costume drama, a chick flick will include, in some combination, the following ingredients: female bonding; friendship and family crises; mostheres and daughters; strong women; sacrifice, sickness, love and loss. Above all, a chick flick will bring emotion – feelings – to the fore.” (COOK, 2006, p.7, tradução nossa).

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que durante o século XIX o melodrama estimulou o surgimento do cinema e posteriormente a televisão, na predominância de maniqueísmos, sentimentalismos e moralismos. Embora se possa ter diversificado no melodrama e suas formas narrativas no romance e no audiovisual, o fundamental parece estar na seguinte definição de Ismail Xavier:

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Ao melodrama estaria reservada a organização de um mundo mais simples em que os projetos humanos parecem ter a vocação de chegar a termo, em que o sucesso é produto do mérito e da ajuda da Providência, ao passo que o fracasso resulta de uma conspiração exterior que isenta o sujeito de culpa e transforma-o em vítima radical. Essa terceira via da fabulação traria, portanto, as reduções de quem não suporta ambiguidades nem a carga de ironia contida na experiência social, alguém que demanda proteção ou precisa de uma fantasia de inocência diante de qualquer mau resultado. Associado a um maniqueísmo adolescente, o melodrama desenha-se, nesse esquema, como o vértice desvalorizado do triângulo, sendo, no entanto, a modalidade mais popular na ficção moderna, aparentemente imbatível no mercado de sonhos e de experiências vicárias consoladoras.6 Portanto, o melodrama é recorrente na maioria dos filmes eleitos por Samantha Cook (2006), no entanto, o termo chick flicks universaliza gêneros cinematográficos (drama, comédia, aventura, suspense, de viso comercial, mainstream, ou não comercial). Não se preze pela classificação, mas se fosse extremamente necessária, poder-se-ia concluir que, ainda que o melodrama tenha se modificado, a ampla definição de chick flicks de Cook não tem correspondência com o conjunto de filmes selecionados para a primeira fase da retomada. Ambos os universos de filmes têm em comum a centralidade narrativa sobre mulheres; mas, em geral, os filmes brasileiros, nos quais se percebe o protagonismo feminino e a centralidade da narrativa em sujeitos femininos, são filmes autorais, não comerciais, e estão inseridos predominantemente na categoria de drama e melodrama. Para o chick flicks, o melodrama parece ter transformado em sutis as diferenças entre o neorrealismo, o drama, o melodrama. Desse modo, os tipos de filmes brasileiros mencionados dessa primeira fase podem estar contidos na classificação chick flicks, mas não o contrário. E a tradução cultural dos termos “woman’s films”

ou “woman cinema” e o “feminist film studies”? Como pensar a semântica dos termos traduzidos: filmes de mulher, cinema de mulher, estudos de filmes feministas? Um filme precisaria ser considerado feminista pelo feminismo acadêmico? Considerando o gênero como categoria de análise, conclui-se que esses termos classificatórios só são interessantes para ajudar nos questionamentos teóricos e nas suas próprias desconstruções, sobretudo, para serem localizados como um ponto, de onde se deve “escapar”, mas escapar de significados que se quer encerrar, engarrafar. Se for assim, qualquer tradução literal servirá. De acordo com Lauretis (2007, p.29), perguntar qual forma, qual estilística ou qual temática apontaria a presença feminina atrás da câmera ou para um cinema dito de mulheres é o mesmo que cair na armadilha da universalização de termos, que pode generalizar por um lado, mas invisibilizar por outro. Além disso, ela ironiza que há o risco de se reproduzir o termo apenas para assegurar que há uma linguagem específica ou um “cinema de mulheres” – como se uma definição da arte, servisse para se mostrar um tributo que a mulher paga à sociedade. Ao contrário, isso pode legitimar agendas escondidas de uma cultura que nós mal podemos, mas precisamos mudar7. Não obstante, ao mesmo tempo em que não quer rotular formas, a autora apresenta caminhos para se identificar esse cinema sobre mulheres. Lauretis (2007) afirma que esse perfil de “cinema de mulheres” (ou, talvez, “cinema feminino”, porque não está ligado à sexualidade, mas a aspectos do gênero feminino) está contido na pré-estética, que já é plena de estética. Ela exemplifica com o filme de Chantal Akerman, Jeanne Dielman (1975), uma narrativa sobre a rotina das atividades diárias de uma dona de casa belga, de meia idade, de classe média, para mostrar que há mais estética na pré-estética de um filme do que sua aestetização. Entendo que o que Lauretis (2007) quer dizer com a “pré-estética” esteja naquilo que pré-existe fora da ficção, fora do ambiente narrativo, antes, que está previsível na vida comum e nos afazeres cotidianos que, às vezes, são mecânicos, mas estão saturados de uma semântica da cultura e relativa à tecnologia de gênero e aos comportamentos de gênero no mundo. Tentando exemplificar, a autora comenta que o suspense da narrativa de Akerman8 é produzido Pelos pequenos deslizes na rotina de Jeanne, seus pequenos esquecimentos, e as hesitações durante gestos comuns e “insignifican-

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tes” tais como descascar batatas, lavar pratos, ou fazer café – que ela nem vai beber. Todavia, não está lá devido à beleza das suas imagens, à composição harmoniosa de seus enquadramentos, à ausência de campo e contra-campo. (LAURETIS, 2007, p. 30, tradução nossa). Há esses suspenses, por exemplo, no filme em O céu de Suely (2006). O que é revelado ao espectador/a sobre as futuras atitudes de Hermila está mais no suspense de suas ações do que no seu discurso. O que o filme de Akerman constrói, na visão de Lauretis (2007) (e, em parte, é o que se procura encontrar na análise de filmes da primeira fase da retomada), é um retrato da experiência feminina, da duração, da percepção, dos eventos, relacionamentos e silêncios, os quais se fazem sentir imediatamente e inquestionavelmente verdadeiros9. Por isso, entende-se que a pré-estética parece estar no que é extremamente banal e verossímil, compõe uma atmosfera reconhecível nos trejeitos do ator e no cenário, pelo que espectador/a pode perceber no ambiente (enviroment), e reconhecer nas pequenas ações das personagens. Segundo Lauretis (2007), este filme de Akerman é pleno de estética nas ações, nos gestos, no corpo e no olhar de mulher que define o espaço de nossa visão. Está na temporalidade, no ritmo da percepção e no horizonte de significados disponíveis para o/a espectador/a – o que ratifica a importância de quem faz a análise e a interpretação das entrelinhas desse tipo de filme, bem como no posicionamento, intrinsecamente político, de quem o faz e o produz. De onde se conclui que pode não haver uma estética definida que aponte, na retomada da primeira fase, o que é cinema de mulheres, ou women’s cinema. Mas, decerto, há elementos que, reunidos, podem traçar um perfil relacionado a esse “cinema feminizado” que, a propósito da pré-estética de Lauretis, podem ser lidos, quase sistematicamente, em o Céu de Suely. E um dos diferenciais dos filmes do período da retomada, sem dúvida, é o de se preocupar com temáticas, discursos e imagens que representam o universo feminino. Na delicadeza imagética destes filmes, é visível essa preocupação. Referências Bobliográficas CATELLI, R. E.; CARDOSO, S. P. O cinema brasileiro contemporâneo: retomada e diversidade. Revista Rua, mar. 2009. Disponível em:
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Meirelles. Brasil: 02 filmes, 2001. GAROTAS do ABC: Aurélia Shwarzenega. Direção de Carlos Reichenbach. Brasil: Riofilme, 2003. ZUZU Angel. Direção de Sérgio Rezende. Brasil: Warner Bros, 2006. VIDA DE Menina. Direção de Helena Solberg. Rio de Janeiro: Radiante filmes, 2005 UMA VIDA em Segredo. Direção de Suzana Amaral. Brasil: Raiz produções, 2002. O QUATRILHO. Direção de Fábio Barreto. Brasil: Paramount, 1994. O CÉU de Suely. Direção de Karim Aïnuoz. Brasil/França/Alemanha: Videofilmes, 2006. NINA. Direção de Heitor Dhalia. Brasil. 2004.

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AS MULHERES-ILHAS DE ORLANDA AMARÍLIS NO CONTO “MAIRA DA LUZ” Fabiana Miraz de Freitas Grecco UNESP/Assis Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Brasil)

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Resumo: Orlanda Amarílis é uma contista cabo-verdiana nascida em Assomada, Cabo Verde, 1924. Pertenceu à geração da Revista Certeza (1944), periódico cabo-verdiano que se destacou por sua grande preocupação social. Tem publicado, além de artigos nessa revista e em outras como “Colóquio Letras” e “África”, três livros de contos intitulados “Cais-do-Sodré té Salamansa” (1974), “Ilhéu dos Pássaros” (1982), “A casa dos mastros” (1989). Ligada aos propósitos de busca pela identidade cabo-verdiana, Amarílis criou, através de suas personagens femininas, uma nova maneira de tratar essa questão, que se destacou e diferenciou da produção de seus contemporâneos e companheiros do grupo Certeza. Testemunha-se por meio da sua escrita, o esmiuçar do cotidiano de mulheres exiladas, que buscam a sua identidade em um espaço alheio e distante. Procuraremos refletir, nesta comunicação, as questões sobre a identidade da mulher cabo-verdiana no conto “Maira da Luz”, do livro A casa dos mastros, 1989, explicando como ocorre a “escrita pós-colonial de fronteira” na obra da escritora.

INTRODUÇÃO “Não obstante sua importância para o sistema literário de seu país e, ainda, o fato de ser uma das mais importantes escritoras dos cinco países africanos de língua portuguesa, pouco se conhece da obra de Orlanda Amarílis, embora traduzida em vários países” (Jane Tutikian, 2007, p. 239). Orlanda Amarílis nasceu em Assomada, cidade situada no conselho de Santa Catarina, na ilha de Santiago (Cabo Verde) a 8 de outubro de 1924. Viveu a maior parte de sua vida fora do arquipélago, tendo terminado os estudos do Magistério Primário em Goa e depois se formado em Pedagogia pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde se estabeleceu. A sua obra está dispersa em revistas como Certeza (Cabo Verde 1944- 1946), Colóquio Letras e Loreto 13 (Portugal) e O Heraldo (Goa/Índia), por exemplo, e em antologias, como: Escrita e Combate (1976); Contos – O campo da palavra (1985); Fantástico no Feminino (1985). Além da obra dispersa, Amarílis tem publicado três livros de contos: Cais

do Sodré té Salamansa (1974), Ilhéu dos Pássaros (1982), A casa dos mastros (1989). Os contos de Orlanda são marcados pelo neorrealismo da geração da Revista Certeza (1944), periódico cabo-verdiano que se destacou pela grande preocupação social, e da qual foi uma das fundadoras. Sua obra foi traduzida para vários idiomas (italiano, russo, húngaro), e um deles “Luisa, filha de Nica” (Ilhéu dos Pássaros, 1992) foi emitido na Rádio Húngara com tradução e adaptação do professor Pal Ferenc, que tem publicado o livro “As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Hungria”, 2007. Amarílis cria uma nova maneira de tratar as questões do exílio, da diáspora e da insularidade próprios do povo caboverdiano, recorrendo à tradição africana, a suas crenças religiosas e ao bilinguismo, que se divide entre a língua portuguesa e a língua cabo-verdiana, a fim de expressar literariamente a sua identidade. Assim, testemunha-se por meio da sua escrita, o esmiuçar do cotidiano de mulheres exiladas, que questionam ou buscam a sua identidade em um espaço alheio e distante, recorrendo à memória para trazer à tona a casa,

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a pátria, como também, a vida daquelas mulheres que ficaram nas ilhas, mostrando a união entre mães, filhas, tias, avós, amigas, lutando em um ambiente desfavorável. De acordo com Simone Caputo Gomes, a mulher cabo-verdiana tem importância essencial “na construção, nas lutas de libertação e na emancipação do país” (GOMES, 2008, p. 161). Seu papel é destacado, ainda, pela transmissão da cultura crioula e pela fixação da tradição oral. Nesse aspecto, Orlanda se insere entre essas mulheres, “que contam histórias de mulheres dentro da História do seu país. Daí a força da construção de suas personagens femininas” (TUTIKIAN, 2007, p. 239). Não é por acaso, que na literatura, as mulheres cabo-verdianas constituem o maior número de publicações periódicas, fato que afirma a dispersão de textos das autoras, como Dina Salústio, Vera Duarte, Ana Júlia, Orlanda Amarílis, entre outras. De acordo com Benjamin Abdala Jr., em seu ensaio Globalização, Cultura e Identidade em Orlanda Amarílis (2003, p. 287), as marcas femininas da autora se articulam “ao social e não o contrário, como acontecia com as obras de autoria masculina” (2003, p. 299) o que reforça a capacidade da autora em agravar “uma distonia anterior, que seria de gênero” (Idem). Dessa forma, procuraremos refletir, neste artigo, as questões sobre a identidade da mulher cabo-verdiana no conto “Maira da Luz”, do livro A casa dos mastros, 1989, explicando como ocorre a “escrita pós-colonial de fronteira” na obra da escritora Orlanda Amarílis. “MAIRA DA LUZ” – AS MULHERES-ILHAS DE ORLANDA AMARÍLIS “... fustigada pela escassez de recursos que lhe permitam a sobrevivência, uma inteira população de gente válida, a chamada ‘população activa’ opta pela partida. Fica um mundo pequeno, reduzido, exíguo, de corpos frágeis que já não encaram a possibilidade de emigrar. São as mulheres, as mães , as crianças que povoam grande parte dos contos” (MAIA, 2007, p. 271). O conto “Maira da Luz” discorre sobre a determinação de uma menina em alcançar, por meio dos estudos, a profissão com que sonha: tornar-se médica para, assim, abrir um hospital e uma maternidade na cidade do Mindelo. O conto é antecipado de seu conteúdo por uma epígrafe, que anuncia, mediante o uso dos verbos no subjuntivo e no futuro do presente, a hipótese de uma ação: Se caso perguntassem a Maira da Luz qual

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a sua premonição quanto ao futuro, ela responderia: “Vou ser médica. Vou usar uma bata branca como a doutora Maria Francisca. Mandarei construir um hospital novo e uma maternidade... (AMARÍLIS, 1989, p. 118). Maira inicia os estudos no Liceu Central Infante D. Henrique, com aquele mesmo desejo de tornar-se médica. Passa, logo no início das aulas, por um rito de passagem dentro de um colégio dominado por homens, percebe que se sente bem em companhia masculina, e escolhe somente os “melhores-amigos” do sexo oposto: Aproximou-se e viu-se envolvida pelos colegas, rapazes. Da Praia e, sobretudo de S. Vicente. Esses eram a maioria. Daí em diante começou a escolher os melhores amigos, todos do sexo oposto (AMARÍLIS, 1989, p. 123). Apesar de demonstrar inteligência e conseguir sair-se muito bem nas aulas, a situação financeira desfavorável faz com que interrompa os estudos. Vê-se, então, destinada a lecionar em um posto de ensino no Tarrafal (lugar onde se localizavam as prisões e o campo de concentração dos presos políticos das colônias africanas do governo português do Estado Novo), muito longe da cidade do Mindelo/ São Vicente, fervilhante centro intelectual de Cabo Verde, de onde Maira não queria se distanciar. Victor Barros, em seu livro “Campos de Concentração em Cabo Verde”, 2009, afirma que a instalação da Colônia Penal no Tarrafal, em 1936 representou uma das fortes medidas de endurecimento do regime na produção dos aparelhos repressivos de enquadramento e depuração política e ideológica da sociedade, tendo em conta a perspectiva regeneradora que se pretendia imprimir com a nova ordem de obediência política com vista à criação do homem novo do regime, (2009, p. 87). O conto narra a época mais repressiva do regime em Cabo Verde, pois coloca em cena o momento histórico do fechamento do Liceu Central Infante D. Henrique, ocorrido em 1937 e reaberto em 1975) com o nome de Liceu Gil Eanes. Assim como o fechamento do Liceu, há ainda a denúncia e exílio de professores que criticavam o regime, como o caso do professor de Maira, D. Duarte que, por admirar a educação inglesa foi “afastado de seus cargos: “afastado do ensino e do hospital onde dava consultas, este aviso servia para todos. Nada de fazer ondas” (AMARÍLIS, 1989, p. 123). O professor Duarte (Abílio Augusto Monteiro

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Duarte), viveu fora das páginas do conto de Orlanda. Ele foi um dos fundadores do Liceu Gil Eanes, foi ativista e líder político da época da independência. A mudança dos nomes do Liceu, após a denúncia do professor Duarte que se apresentava contra o fascismo, no conto, ilustra um momento histórico em Cabo Verde, de luta contra o colonialismo português, no auge de sua repressão. Esses acontecimentos escancaram os desmandos do poder colonial e a política repressiva do Estado Novo português. A personagem Maira, enquanto mulher e colonizada, não tem chance alguma de vir a tornar-se médica. O desenvolvimento intelectual do colonizado era castrado pelo colonizador, por meio de ações como a extinção dos Liceus, o confinamento de seus intelectuais e a perpetuação da miséria, levando à imobilização de quem desejava mudanças positivas para o arquipélago. Tal imobilização aparece, no conto, configurada na metamorfose de Maira em um inseto e o esmagamento desse:

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Surpresa maior foi a descoberta de Maira de uns pés enormes quase a pisarem-na e de uma voz a desmoronar-se sobre si, a voz da Cesarina. ‘Repare nessa coisa, nesse bicho tão nojento’ (...) ‘Parece uma carocha, não parece?’ (...) ‘Parece daquelas carochas mal cheirosas (...) Pois eu a bichos faço assim’. Levantou o pé e esborrachou a nódoa castanha. Um estalido elevou-se no ar (AMARÍLIS, 1991, p. 126). A intertextualidade com a obra “A Metamorfose”, de Franz Kafka, 1915, torna-se evidente ao final do conto, quando a personagem transmuta-se em um inseto, que é esmagado por sua rival, Cesarina, “she of the masculine imperial name” (PERES, 2002, p. 163). Sobre a metamorfose de Maira, Jane Tutikian retoma o fantástico em Orlanda, explicado em tópico anterior, com relação ao mito: Da mesma forma, na relação com o mito, Orlanda aporta na relação racional. Há, em seus contos, também possibilidade de revisão da realidade externa pelo fantástico, levando à descoberta de verdades fundamentais através de experiências cotidianas. É o caso de Maira da Luz, de A casa dos mastros, kafkianamente esmagada, feito inseto, pelo meio sócio-histórico. Aí, se corrobora a idéia – ocidental – de que o pensamento mitológico é, por princípio, metafórico, o conteúdo dos mitos não é religioso, apenas se torna (TUTIKIAN, 2007, p. 247). Poderíamos pensar, já que há a presença da

metamorfose de Maira em um inseto, assim como a de Gregório, na obra de Kafka, que a transformação parte da opressão. Gregório é constantemente oprimido pelo pai e pelo poder burocrático, que o persegue constantemente. Maira é perseguida por Cesarina, a menina invejosa que consegue um posto de escrevente junto aos negócios de seu tio: “Tio Chico arranjou-me um lugar ao pé dele” (AMARÍLIS, 1989, p. 125). Pode-se concluir que o poder patriarcal protege Cesarina, pois essa se encontra “ao pé” do tio, enquanto Maira está desprovida da proteção do pai, do irmão e do tio, tentando vencer por sua própria inteligência e força. Articulando aspectos próprios de sua cultura, da chamada “identidade de fronteira”, característica fundamental de escritores que vivenciam a diáspora, como afirma Bonnici (2009, p. 278), dentro da chamada literatura pós-colonial, de acordo com Phyllis Peres, as narrativas de Amarílis atuam como uma escrita de fronteira, que problematiza as complexidades, contradições e negociações de identidade nas vidas das mulheres cabo-verdianas. Para compreender sua obra, precisamos compreender que escrever na fronteira entre a colônia e a metrópole implica em uma posição específica de subjetividade, reconhecendo que a escrita é uma pratica localizada na intersecção entre sujeito e história. No caso de Orlanda, essa posição demasiadamente dividida de nação, raça, classe e gênero, ilustra a negociação de identidades no mundo pós-colonial. De acordo com Phyllis Peres, a escritora Orlanda Amarílis pode ser considerada uma escritora pós-colonial tanto quanto uma escritora de fronteira (PERES, 2002, pp. 149-150). Amarílis e sua “escrita pós-colonial de fronteira” coloca em questão, no conto Maíra da Luz, a realidade da mulher cabo-verdiana da época colonial. A imigração dos homens para Portugal, a fim de realizarem estudos ou trabalharem com o intuito de enviar dinheiro as suas famílias, é retratado no conto de modo a mostrar o não cumprimento desse propósito, ou seja, os homens abandonam a terra natal e seus familiares passam a viver na Metrópole e muitas vezes constituem novas famílias, como é o caso do irmão e do tio de Maira. A idade avançada de seu pai (oitenta anos) contrasta com a juventude de sua mãe (quarenta anos), trazendo à tona a viuvez precoce, um aspecto também bastante explorado em seus contos. As mulheres, portanto, nos contos de Orlanda, estão “sós”, nas palavras de Maria Aparecida Santilli (1985), ou ainda são “ilhas desafortunadas” como prefere Pires Laranjeira (1989). Ilhas, pois com relação à diáspora/exílio estão sempre separadas

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de seus companheiros, o sexo oposto está sempre ausente, na “terra-longe”. Quando permanecem, os poucos homens que ficam ou estão em idade avançada ou cometem qualquer tipo de violência contra elas. Desafortunadas, pois como retrata o conto “Maira da Luz”, muitas vezes a miséria aliada ao poder colonial/patriarcal, faz com que tenham destinos trágicos e seus sonhos pisoteados. Nesse ponto, podemos localizar a maioria dos escritos de Orlanda na fase da literatura feminina, que Elaine Showater denominará de “feminist”. Essa fase da escrita feminina, segundo a autora, está diretamente relacionada aos “protestos contra os valores e padrões vigentes”, defendendo “os direitos e valores das minorias” (ZOLIN, 2009, p. 330). Ora, no conto, Maira da Luz, não alcança o seu sonho, é esmagada como um inseto nojento pela rival, que é favorecida pelo poder patriarcal. Difunde-se, assim, que vencer sozinha, ter liberdade para escolher e desenvolver-se, para a mulher da colônia, era uma utopia. Apesar de denunciar o abuso contra a mulher, em uma sociedade colonialista/paternalista, Orlanda mescla, pelo menos, duas fases da escrita feminina descritas por Showalter em suas narrativas. A fase feminist está presente maciçamente em seus textos, pois a todo instante ela denuncia o esmagador poder paternalista sobre os povos colonizados, especificamente sobre as mulheres, no qual esses valores ainda não foram superados, e sim, encontram-se no centro das discussões. No entanto, entrevemos uma outra fase, a fase female, quando há a autodescoberta das personagens femininas, na busca de uma identidade própria. No conto, podemos ter uma visão conspectiva de uma fase female, quando, por exemplo, as experimentações de Maira deixam revelar parte de sua identidade, de descoberta de si mesma: “descobriu surpreendida: gostava da vida ao ar livre, ao sol, ao calor” (AMARÍLIS, 1982, p. 124). Apesar de todas as adversidades que o conto revela sobre a vida de Maira, em um interregno de duas linhas apenas, podemos vislumbrar uma descoberta particular, que diz respeito ao sentir-se no mundo, ao revelar de um gosto próprio, que só diz respeito a ela. Showalter explica que a abordagem cultural da escrita da mulher é a mais completa das teorias desse campo de estudos: Uma teoria baseada em um modelo da cultura da mulher pode proporcionar, acredito eu, uma maneira de falar sobre a especificidade e a diferença dos escritos femininos mais completa e satisfatória que as teorias baseadas

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na biologia, na linguística ou na psicanálise. De fato, uma teoria da cultura incorpora ideias a respeito do corpo, da linguagem e da psique da mulher, mas as interpreta em relação aos contextos sociais nos quais elas ocorrem (SHOWALTER, 1989, p. 13). Assim, a obra de Orlanda encontra-se em terrenos cada vez mais fronteiriços: faz parte dos escritores diaspóricos, cuja formação de identidade é complexa, nas palavras de Bonnici, há uma constante negociação da identidade por sujeitos fragmentados; situa-se dentro da chamada literatura pós-colonial e, ainda, fala da “integração da mulher marginalizada na sociedade” (BONNICI, 2009, pp. 266-267). Pela identificação desses aspectos, não haveria qualquer outra forma de trabalhar a literatura de Orlanda Amarílis sem ser aquela vincada na abordagem cultural descrita por Showalter. CONCLUSÃO A realidade nos contos de Orlanda Amarílis, como comenta Michel Laban em entrevista à autora, começa a “vacilar”. Verificamos esse vacilo ao final do conto “Maira da Luz”. As condições sócio-econômicas transformam Maira em um inseto nojento, esmagado pela rival Cesarina: “a insetos nojentos faço assim”. O poder paternalista, o modelo da mulher duplamente colonizada está explícito em Maira da Luz, como explica Bonnici: “A mulher é duplamente colonizada pela sociedade e pelo poder colonial” (2009: 267). Maira é esmagada por esse sistema, e todos os seus sonhos desaparecem com ela: “Maira da Luz tinha desaparecido sem deixar rastro” (AMARÍLIS, 1982, p. 127). Sobrevive a rival, que se protege pelo apadrinhamento, pelo concordar com o poder paternalista: ela é indicada por um tio a um cargo “ao pé dele”. Concluímos, com a leitura do conto, que a mulher no Cabo Verde colonial, só poderia ocupar cargos semelhantes, aos pés dos homens, jamais se tornariam médicas ou construiriam hospitais e maternidades. O pensar e o progredir da mulher e da colônia eram inaceitáveis na sociedade colonialista/paternalista do Mindelo colonial. De acordo com o estudo de Phyllis Peres, a transformação de Maira da Luz em um inseto, traça uma intertextualidade com o escritor Franz Kafka e sua obra “A Metamorfose”, 1915. É relida por Orlanda a incapacidade da personagem de Kafka diante do pai, do poder paternalista: Maira é igualmente metamorfoseada em inseto e esmagada por esse poder. A partir das fases da literatura feminina proposta

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por Elaine Showalter (1985), o conto de Orlanda, “Maira da Luz”, não se enquadra somente nas descrições da chamada fase feminist, pois protesta contra os valores e os padrões vigentes e defende o direito das minorias (denúncia da repressão realizada pelo fascismo português do Estado Novo e da própria sociedade vincada nos padrões paternalistas), mas também demonstra nuances da fase female, pois evidencia em determinadas passagens a autodescoberta da personagem Maira (surpreende-se por gostar da vida “ao ar livre, ao sol, ao calor”, tem um sonho e procura todos os meios para realizá-lo), ou seja, fora do ambiente doméstico, geralmente legado às mulheres. No entanto, de acordo com Maria Aparecida Santilli (1985), “a linguagem de Orlanda é ainda a das mulheres contidas, a caminho de libertarem-se do código de manifestações que a sociedade masculina ao longo dos tempos lhes impôs”. E ainda completa:

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Se desvios de código há, eles dizem muito mais respeito à fala das mulheres em Cabo Verde em cujas aberturas para o crioulo faz-se um exercício de redação nacional onde a mestiçagem distingue linguisticamente seu texto de qualquer contexto não cabo-verdiano. As mulheres-sós de Orlanda Amarílis, pelo menos nisso, estão ‘na sua’, caboverdianamente inscritas para sempre na literatura feminina universal (p. 111). Imobilizada e impossibilitada de realizar seus desejos, Maira representa a mulher da colônia que caminha para a libertação, tanto dos códigos de manifestações que a sociedade masculina lhe impôs, quanto da independência do poder colonial. A aniquilação dos seus sonhos, o seu desaparecimento, e a anulação dela e de sua personalidade ainda dominam a narrativa, mas já é possível perceber, “intrometendo-se” timidamente nesse espaço ficcional, a mulher surpreendida com a sua autodescoberta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ABDALA Jr., Benjamin. Globalização, Cultura e Idealização em Orlanda Amarílis. In: CARVALHAL, Tânia Franco, TUTIKIAN, Jane. Literatura e História: Três vozes de expressão portuguesa – Helder Macedo, José Saramago e Orlanda Amarílis. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 1999. ____________________. Globalização, Cultura e Idealização em Orlanda Amarílis. In: ___________________. De vôos e ilhas – Literatura e Comunitarismos. Cotia: Ateliê Editorial, 2003, p.

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Estrangeira e estranho: louvor e ilustração da alteridade Joëlle Ghazarian Instituto Politécnico de Portalegre/Escola Superior de Educação (Portugal)

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Resumo: Ao escrever, o homem perde a sua secreção vital e, insensivelmente, aspira à linguagem da ressurreição. A mulher, quando passa por entre as gotas, nada perde e mantém-se em letargia. Em busca de uma harmonia, ambos instauram amiúde ritos estranhos, a cujo auge chegam transexualizando o Moloque estabelecido pelos homens (mandatados por mulheres), desautorizando-o assim para reconhecerem em si mesmos a diferença, a água de um sexo morto inumado na sua carne viva. Vou falar de um jogo muito longo que é preciso jogar muito depressa para apreender as suas fulgurâncias. Impõe-se ir a montante: antes de escrever, onde se encontra o sentir? Em que profundura? E são masculinas ou femininas tais profundidades? Serão o nosso fundo ancestral arcaico, sem sexo cultural? E será o resultado de uma escrita a dois, homem e mulher, um livro masculino, um livro feminino, um livro assexuado, um livro andrógino? Quem é o homem, quem é a mulher? Acaso no-lo dirá a escrita, a escritura? O encontro literário decorre aqui de um amoque, indiferente às contingências; impacto desconcertante, testemunha uma alteridade imanente, feminina e masculina.

«O acaso é só para os que estão fora demais.» – Herberto Helder A passagem do homem à mulher é uma aventura ascética e sagaz.

Ao escrever, o homem perde a sua secreção vital e, insensivelmente, aspira à linguagem da ressurreição. A mulher, quando passa entre as gotas, nada perde e mantém-se em letargia. Em busca de uma harmonia, ambos instauram amiúde ritos estranhos, a cujo auge chegam transexualizando o Moloque estabelecido pelos homens (mandatados por mulheres), desautorizando assim esse deus medonho para reconhecerem em si mesmos a diferença, a água de um sexo morto inumado na sua carne viva. Estrangeira e estranho é o mote para a alteridade de que vamos falar. A estrangeira sou eu, mulher que não é de língua portuguesa e se intrometeu na obra de um poeta português, o qual, ao ser simultaneamente célebre e obscuro, é por isso mesmo, aos olhos do público, uma figura estranha. Alteridade também linguística, porque no início o meu manuscrito estava em francês e português, nas duas línguas misturadas, e Herberto Helder também as sentiu como uma só. Alteridade, ainda, no facto de eu não dominar a língua portuguesa

na oralidade e de, apesar disso, poder apreender profundamente um autor português graças à sensibilidade estética e emotiva da sua escrita. De resto, quanto mais a escrita é elíptica, invulgar ou misteriosa, mais a sinto. É como perante certas pinturas abstractas intensas: se verdadeiramente estivermos «no sentir, no outro, na percepção», não só compreendemos o que vemos, como passamos a compreendê-lo organicamente, corporalmente. E aquilo que assim se compreende não são sentidos prosaicos, são sentidos amplos, exteriores às convenções, que suscitam a alteridade. É nisso também que se esboça a ligação com uma espécie de arcaísmo, como se ocorresse um encontro atemporal, ou mesmo associal. Aos poucos, como esse «encontro» se dá no interior da cultura individualmente formulada, esta adquire a coloração orgânica e vivaz para cuja perda a cultura dominante contribui. Por conseguinte, a alteridade encontra-se aqui também na cultura e contra a cultura, inserindo-se numa espécie de fundo ancestral arcaico, sem sexo cultural. Esse fundo arcaico não é uma metáfora, é algo

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que provavelmente se encontra algures na nossa memória ancestral, mas inacessível por estar soterrado sob as muitas interdições mentais acumuladas pela nossa civilização. A este respeito lembro apenas as experiências que o psiquiatra chileno Claudio Naranjo levou a cabo na década de 1960 com uma planta psicoactiva, o yagé, graças às quais detectou a existência de um fundo comum arcaico de representações humanas. Essas experiências, em que participaram pessoas culturalmente muito contrastadas, índios da Amazónia e cidadãos urbanos habitantes da capital, Santiago do Chile, tiveram como resultado que todos os participantes, independentemente das suas contrastadas culturas, se assimilaram ao felino, ao réptil ou a uma ave de rapina. Das hipóteses formuladas pelo Dr. Naranjo, uma delas remeteu para a existência de uma memória ancestral da espécie humana.1 À partida, a alteridade significa simplesmente o outro. Mas sendo ela o contrário da identidade, constitui-se como reconhecimento do Outro, a partir da perspectiva de Platão segundo a qual um dos atributos do ser humano é a multiplicidade das ideias, entre as quais se encontra a relação de alteridade recíproca. Não se trata pois de paridade; a alteridade está para além de noções legais, administrativas ou jurídicas. É uma complementaridade genérica. É o encontro com o Outro, assumindo positivamente a diferença real que esse outro tem em relação a nós, diferença essa destinada a completar-nos e sem a qual nos atomizamos. A alteridade encontra-se em múltiplas relações. O seu objecto pode ser o forasteiro, o estrangeiro, a pessoa com diferente cor de pele, a pessoa mais velha, a pessoa mais nova, a pessoa muito pobre, o deficiente físico ou mental, os indivíduos com diferentes crenças religiosas, qualquer pessoa que apresente características diferentes das nossas. Mas aqui vamos apenas abordar a alteridade recíproca entre o homem e a mulher. Ao contrário do que pode parecer, a alteridade homem-mulher não é facilmente assumida. Para que ela se manifeste, pressupõe-se que haja entre o homem e a mulher um reconhecimento comum, um respeito partilhado e uma comunicação baseada nestas características essenciais. Neste caso, a alteridade pressupõe uma partilha sem hierarquização de poderes ou de estatutos, em que o grau de liberdade do homem e da mulher é semelhante, assente no facto de ambos serem semelhantes da mesma espécie, a espécie humana. 1 Claudio Naranjo, «Psychological Aspects of Yagé Experience in an Experimental Setting», American Anthropological Association, Denver, 1965, in Peter T. Furst (org.), Flesh of the Gods: The Ritual Use of Hallucinogens, Praeger Publishers, Nova Iorque, 1972.

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Esta alteridade não é facilmente assumida porque entre o homem e a mulher, mesmo nas sociedades tidas como mais avançadas, subsistem incompreensões, separações e hostilidades muito fortes, tão fortes, por vezes, que podem chegar à agressividade homicida, como se constata, por exemplo, na violência doméstica. Além disso, tais sentimentos existem num plano amiúde invisível ou opaco, fora de cena, onde ninguém pode ou quer intervir; e aquilo que se vê em cena, relações mais ou menos equilibradas entre homens e mulheres, esconde muitas vezes a dimensão obscura e potencialmente violenta das relações entre os dois sexos. Se admitirmos que da evolução positiva da sociedade faz parte também o incremento da comunicação dialogante entre o homem e a mulher, compreendemos que a alteridade exerce um papel central no melhoramento emocional das condições de vida. Para abordar este assunto de forma palpável, vou recorrer à minha própria experiência. Em 2007 publiquei um livro de ficção, Cântico do Crime, cuja necessidade se me impôs na sequência da leitura exaustiva da obra de Herberto Helder, um dos maiores poetas portugueses contemporâneos. A minha relação com a sua obra acentuara-se a partir de um trabalho anterior que eu tinha feito para uma editora de Lisboa, a organização de uma antologia do poeta Henri Michaux, autor que Herberto Helder também grandemente preza. A correspondência que trocámos a propósito de Michaux levou-me a aprofundar o conhecimento da obra de Herberto Helder e, ao mesmo tempo, a integrar nas minhas cartas, espontaneamente, a teia de um texto ficcional a que essas leituras me conduziram, a tal ponto que a certa altura o poeta português me incentivou a dar substância a essas linhas, ou seja, a corporizá-las em livro. A nossa alteridade começou por se manifestar na espontânea orientação que Herberto Helder me deu a partir desse momento. Manifestou-se também no facto de eu redigir esse texto em francês e português, ou seja, incluindo no meu texto excertos de vários livros de Herberto Helder que se foram impondo, com naturalidade, no meu espírito e na lógica do livro em construção. Mais: que se foram impondo como um amoque, porém pacífico, algo a que não podia furtar-me. Foi pois um processo de consubstanciação, de passagem de um estado a outro estado em que ambos os estados mantêm a sua individualidade, ao mesmo tempo que se fundem. Ao expor-me a essa intervenção, não o fiz para satisfazer um capricho ou um fantasma; ninguém escolhe ceder

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à exigência duma necessidade vital. Quando o livro saiu, em 2007, fiz questão de nele incluir, em prólogo, a carta que em 2004 Herberto Helder me enviara em resposta a algumas dúvidas minhas. Nessa carta o poeta felicitava-me pelo manuscrito, explicava-me que embora tivesse utilizado em bruto algum material seu, o livro era inteiramente meu, e incitava-me a publicá-lo (ver anexo). Na recepção que o livro teve depois de editado, é interessante notar que ele despoletou desde logo a má-fé, a susceptibilidade e a pequenez que também existem, por vezes em doses abundantes, nos círculos literários e culturais. Algumas recensões não deram mostras dessa pequenez, tendo os seus autores sabido ler o prólogo de Herberto Helder e apreendido honestamente o conteúdo do livro; mas ficou a pairar a ideia, desonesta e ignorante, de que eu me apropriara indevidamente da obra de Herberto Helder, de que fizera um plágio. No tocante aos livros ditos «estranhos», a recepção deficiente ou equivocada que eles têm nos meios mundanos da literatura em conserva ou nos redutos provincianos arrogantes e timoratos só revela as limitações destes círculos sociais, que obviamente não contribuem para uma alteridade estimulante. Essa leitura perversa não revelou apenas uma grande miopia literária, resultante de prováveis azedumes primariamente deduzidos do facto de uma ilustre desconhecida vir a público em companhia de um poeta célebre. Mostrou também, e sobretudo, a dramática incapacidade de reconhecer e valorizar uma alteridade absolutamente exposta. Neste livro, com efeito, podemos dizer que a personagem principal é essa, a alteridade assumida de um homem e uma mulher concretos, identificável no reconhecimento mútuo, na mútua gratidão de dois seres que se encaram como humanamente iguais na sua diversidade respectiva, diversidade de homem e de mulher, de poeta célebre e de autora desconhecida. Sendo conveniente registar aqui que nesta alteridade se inclui também a questão da personalidade: Herberto Helder é um autor que sempre recusou os prémios que lhe foram atribuídos (como Henri Michaux em França), que sempre se furtou a dar entrevistas e a participar em mundanidades exteriores à poesia, e eu sempre fiz questão de formular e manter exigências no plano da comunicação, procurando não ceder à demagogia que hoje nos rodeia e se respira no ar do tempo, ao ponto de muita gente já nem dar por ela. Como no domínio intelectual ainda não deixámos de viver parcialmente mergulhados nalguns pântanos onde a mesquinhez tem por hábito emer-

gir, gostaria de dizer que costumo abordar as questões em que me envolvo com a distanciação que elas possam exigir, observando-me, sem estados de alma, como parte integrante do fenómeno em apreço. É o que acontece no caso vertente. No domínio da leitura, creio ser o peso dos preconceitos (e dos maus hábitos que estes instituem) que impede a abertura de espírito perante um texto dito «estranho». Na realidade, recorremos constantemente, de modo inconsciente, a um mundo linguístico «estranho», que nos permite apreender diversos mundos interiores, os nossos e os dos outros. Na vida cotidiana, as expressões idiomáticas, que todos conhecemos, baseiam-se numa constante mediação entre a linguagem e a ordem poética. Dever-se-ia pois abandonar a ideia de que aquilo que nos exprime é um esquema linear, como se a nossa identidade fosse «escolar» e como se fossemos incapazes de enunciar algo que não tenha sido já formulado. Nós não somos uma mera justaposição de objectos de ensino e de obediência; e a nossa verbalização ou a nossa escrita tão-pouco se reduzem a isso. No sentido da comunhão e complementaridade que referi, creio que a alteridade recíproca do feminino e do masculino não só é possível, como faz parte do processo de emancipação geral, que exige, entre outras coisas, a superação do patriarcado. O caso que expus é apenas um exemplo de como a alteridade constitui um campo fértil das relações humanas. Digo-o também tendo em mente o que penso serem derivas nossas contemporâneas, resultantes do terreno minado onde decorre grande parte das relações entre homens e mulheres, que leva algumas mulheres, por se verem negadas na sua integridade e independência, a pôr em causa a relação homem-mulher, na qual a mulher – apesar das muitas aparências – só existirá com a identidade de um ser inferior. A alteridade homem-mulher que aqui abordo conjuga-se também com o carácter híbrido do meu livro em questão. Vou tentar mostrar porquê. As convenções habituais referentes à narratologia do romance têm por base a exposição mais ou menos linear de uma história, com princípio, meio e fim facilmente identificáveis e com personagens de contornos facilmente reconhecíveis. Esta forma expositiva decorre de um racionalismo que assenta nas predominantes concepções europeias do imaginário e respectivas configurações estéticas. Ou seja, o romance tal como é habitualmente entendido é um modo expositivo sem sobressaltos, em que a forma narrativa propriamente dita não

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contém surpresas. Se chamo a atenção para isto é porque os hábitos de interpretação resultantes deste género de leitura podem criar obstáculos ao entendimento de narrativas exteriores à linearidade do romance, que é quase sempre romance de enredo. Neste domínio da literatura, creio estarmos também perante dois mundos, ou duas diferentes concepções do mundo: uma que assenta no formal racionalismo dum imaginário previamente estruturado, outra que se alicerça numa busca filosofante e instável, que pode partir, por exemplo, da perspectiva exploratória que um verso de Ruy Cinatti sintetiza: «O melhor mundo / está por descobrir.» A primeira concepção do romance, costumeira e preponderante, corresponde a uma categorização da narrativa que subentende uma diferenciação essencial entre prosa e poesia, historicamente decorrente da separação pragmática entre o que é considerado racional e o que é tido como extra-racional. A outra concepção da narrativa provém duma inspiração que se furta às delimitações do pragmatismo e que, por isso mesmo, creio remeter para a noção de mito, para a narração que não separa prosa e poesia, não as separando precisamente por ter raízes mais extensas, por mergulhar numa mais ampla concepção do mundo – mais ampla no seu arco temporal e nas personagens que abarca, em que os humanos não são necessariamente seres superiores, fazendo parte duma complexa teia de seres também eles fabulosos: os outros animais, os vegetais, os minerais, e as restantes substâncias ou entidades, visíveis e invisíveis, constitutivas do mundo. Tendo em conta que Herberto Helder não se considera um autor moderno, e que a sua inspiração remete para aquilo a que podemos chamar um tempo holístico, cuja ordem de grandeza abarca grandes espaços temporais da espécie humana, parece-me necessário ter presente o mito enquanto narrativa desse tempo holístico, e não apenas como expressão do homem circunscrito ao arco temporal da modernidade. Foi por certo nesta confluência que ocorreu o encontro do meu mundo mítico com o mundo mítico de Herberto Helder. Apesar de a noção de mito poder ser entre nós alvo de equívocos, tendo em conta que na linguagem vulgar a palavra mito é sinónimo de mentira, penso ser estimulante (e diria mesmo: cada vez mais estimulante) inserir o mito enquanto narrativa literária nos questionamentos contemporâneos, inclusive nos questionamentos estéticos. Com efeito, na acepção vulgar da palavra mito, um dos

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grandes mitos da nossa cultura é que as nossas narrativas (e antes de mais a narrativa histórica) não seriam mitos – por se partir do categórico princípio de que essas nossas narrativas são produto dum universo científico, tido como automaticamente superior. Ao contrário dum romance de enredo, Cântico do Crime não é facilmente resumível, a sua trama é incomum e as suas personagens não são apenas seres facilmente identificáveis. Julgo que isto acontece porque o que nele vigora é uma busca errática, uma necessidade de conhecimento que, para conhecer, tem de interrogar – e porventura fazer desmoronar – o edifício do conhecimento autorizado. Nesta narrativa, onde as relações simbólicas não são acidentais, sobrenada a problemática do crime. No título do livro surge desde logo uma problematização das categorias mentais que em geral nos moldam ou a que obedecemos. A íntima junção de dois vocábulos aparentemente contraditórios (cântico e crime) formula uma estranheza cuja trama percorre depois a narração. Com efeito, as conotações espirituais da palavra cântico não as destinariam, em princípio, a que ela qualificasse a palavra crime, cujo conceito corrente remete para uma identificação contrária à sublimação. Mas o crime de que neste livro se trata não é, justamente, de ordem prosaica. É um crime primordial, ao mesmo tempo obscuro e sempre encoberto: o crime da individualidade – assumido, numa cultura que não é comunitária, como rejeição da uniformidade castradora e patológica, como recusa do modelo que estrutura uma necessária obediência às arbitrariedades. Este crime é o da existência do indivíduo contra as leis em vigor, que lhe impõem, por regra, o seu próprio emudecimento. Sem dúvida por isso é uma criança a personagem principal da narrativa, cujo movimento interno pende para as graves (e também sarcásticas) entonações do mito. Porque na criança ainda reside, por algum tempo, o humano primordial, arcaico, primevo, que se abre ao mundo na sua inocência criminosa, ou seja, que originariamente tende a interrogar as formas de que o mundo se reveste, as relações que os seres humanos estabelecem entre si e as que fazem vigorar com a Natureza. A mescla dos contraditórios conceitos de cântico e de crime exprime-se depois na mescla processual de poesia e prosa – mescla essa que é característica, precisamente, do mito enquanto relato irreprimível na sua imperiosa necessidade de conhecimento. Se o universo mental da criança tem nesta

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narrativa tanta importância, não é todavia para o destacar como uma espécie de entidade à parte, embora esse universo possa por vezes sugerir a ideia (de resto criticamente estimulante) de que na criança é ainda concebível consubstanciar-se um paraíso perdido – perdido porque nela, a criança, ele será sempre provisório. O universo da criança interrogante é importante na medida em que esse seu universo se inter-relaciona com o universo do adulto, dessa outra entidade humana que, por exaustão ou medo, já não tem perguntas a fazer ao mundo (ou prefere não as ter), por saber que pode ser perigoso questionar o mundo. O universo da criança subentende a vitalidade. Elementarmente, a vitalidade está sem dúvida associada à criança, cuja energia deseja desbravar os grandes mistérios que a circundam e a cercam, não para os eliminar enquanto mistérios, mas para intimizar com eles, para os conhecer por dentro, para fazer parte deles. E neste movimento da vitalidade integra-se, com a naturalidade das coisas que se impõem por si, a vibratória sensualidade do que pode haver de intenso na comunicação humana. Falei discretamente de um jogo muito longo que é preciso jogar muito depressa mas intensamente para apreender as suas fulgurâncias. Impõe-se ir atrás, a montante: antes de escrever, onde reside o sentir? E são masculinas ou femininas tais profundidades? Serão o nosso fundo ancestral arcaico, sem sexo cultural? E será o resultado de uma escrita a dois, homem e mulher, um livro masculino, um livro feminino, um livro assexuado, um livro andrógino ou um livro de alteridade? Quem é o homem, quem é a mulher? Acaso no-lo dirá a escrita, a escritura? O encontro literário decorreu aqui de um amoque – desta vez, a loucura que é um amoque não foi de raiva, foi indiferente às contingências e às normas; impacto desconcertante, testemunha uma alteridade imanente, feminina e masculina. Antes de ser masculino, feminino ou andrógino, um tal encontro é o reconhecimento do outro e de nós. A alteridade é um conjunto de múltiplas oposições que não se opõem. Anexo Carta de Herberto Helder 14.4.04, Cascais Joëlle Perdoe a demora em responder ao seu livro e à carta. Tenho de chamar todas as forças que me restam para fazê-lo. Estou no fundo do fundo. No negro. Na pior das várias depressões (como chamam por aí a estes infernos). Não poderei ser

extenso como desejaria – e você merece –, mas escreverei com certeza o bastante para dizer-lhe que ler o seu livro foi uma das pouquíssimas exaltações que tive nos últimos – e já extensos – tempos. O livro é inteiramente seu. Se é verdade que você utiliza material meu, em bruto, cristaliza-o depois num sistema peremptoriamente seu. Le son et le sens, isto é: forma e demonstração de entendimento do mundo – nada têm a ver comigo. Se eu estivesse bem, decerto poderia dizer-lhe melhor. Desejo apenas que fique tranquila quanto a este assunto. Não posso escrever mais. Parabéns pelo seu livro excepcional e obrigado por ter-me dado a oportunidade de ser o seu primeiro (ou segundo, visto o Júlio já o ter lido) leitor. Talvez um dia, mais tarde, quando (e se) eu sair do inferno, lhe diga mais longas palavras. Um beijo Muito afectuosamente, Herberto P.S. – Não hesite nem um momento em publicar a sua obra.

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FALSOS CAMINHOS DE UM POSSÍVEL DIÁRIO: lugares e não lugares na poesia de Ana Cristina Cesar Juliana Silva Dias Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - IBILCE/UNESP São José do Rio Preto – SP(Brasil)

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Resumo: Poetisa situada dentro do que convencionou-se chamar de período de produção da poesia marginal brasileira, Ana Cristina Cesar não tem suas obras marcadas por um certo intimismo - que foi largamente trabalhado por seus colegas de geração - caracterizado por uma prática comum de venda de obras que consistia em um estabelecimento de vínculo direto com o leitor obtido por meio da venda de seus próprios trabalhos. Contudo, há, sim, algo de íntimo que pode ser encontrado em sua poética: um certo tom de diário que desconstrói a forma original dessa escrita pessoal e reconstrói uma nova forma que, não obstante, revela em si certa ruína dessa forma primeira. Logo, o objetivo deste trabalho foi o de encontrar e analisar esse intimismo peculiar de Ana C. através dessas espécies de ruínas de diário que podemos encontrar na obra A teus pés (1982). Para tal, foram estudados tanto trabalhos teóricos que revelam quais são as marcas mais tradicionais da forma diário quanto trabalhos teóricos outros que revelam como a memória poética diária e feminina constrói seu espaço de representação na contemporaneidade.

O livro de Ana Cristina Cesar, A Teus Pés (1982), único publicado durante a vida da autora, configura-se como parada um tanto obrigatória àqueles que se voltam ao estudo da poesia brasileira contemporânea. Fruto da chamada “poesia marginal”, que, por sua vez, parece ser uma legítima poesia sem aura da modernidade, esse livro, marcado por intensidade e impacto poéticos, mas escrito, em grande parte, ao modo corrente da prosa, abriga em si marcas de gêneros como o diário e a narrativa de viagem (entendido, por vezes, ainda como diário de viagem). Além desses, a carta e o cartão-postal e, conseqüentemente, as implicações e as perturbações que cerceiam a produção desses elementos comunicativos, escrever ou não uma carta, enviar ou não um cartão, são espécies de aparições e situações que são encontradas por todo o livro da poeta. A apropriação de diferentes gêneros e o uso de alguns elementos relacionados a acontecimentos do cotidiano, alguns, espécies de elementos em trânsito (como no caso dos que envolvem a ideia de viagem) que são captados em meio a própria fugacidade do instante, permite-nos dizer que os escritos de Ana são construídos pelo e no detalhe do que, aparentemente, é particular e íntimo. Dessas forma, nascem escritos que

impressionam e que desestruturam o leitor desafiante. Entendemos que a escrita de Ana C. não é um simples fruto - ou fruto simples - do legado da modernidade: o seu trabalho com prosa e poesia reinventa as duas formas, conjuga em si formas da tradição, criando, assim, outra forma. As manifestações poéticas brasileiras das décadas de 60 e 70 foram produzidas em meio a vivência de uma situação política caótica e intensa, oriundas, em grande parte, por movimentos vanguardistas que, de alguma forma, procuravam se situar diante dessa problemática social. O panorama das relações entre as produções das diferentes manifestações literárias traçado por Heloísa Buarque de Hollanda (1980), mostra-nos como o posicionamento adotado por cada uma dessas manifestações diante das conturbações políticas e do sistema econômico de produção, implicava em aproximação ou distanciamento tanto entre as próprias manifestações quanto entre essas e o meio social. Dessa forma, notamos que afastando-se ou dando certa continuidade em sua produções, o concretismo (pelo menos em um primeiro momento), o poema - práxis e o poema - processo, tinham, cada um à sua maneira, o quadro social como base. Já a tropicália, caracterizada, em

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linhas gerais, pela “recusa dos projetos e utopias do poder da esquerda tradicional brasileira” (SÜSSEKIND, p.48, 2004) e pela construção de uma linguagem mais fragmentária, considerada mais coerente com a condição do sujeito moderno, constituiu-se como “crítica despedaçada” e foi entendida como registro de “uma linguagem do nosso tempo” (HOLLANDA, p.56, 1980). A grande diferença entre os primeiros movimentos e a tropicália e, mais incisivamente, a pós-tropicália, será uma mudança de foco na relação entre pares: sai-se da relação Arte/Sociedade, e adota-se “uma postura mais vitalista” pautada no binômio Arte/ Vida (HOLLANDA, p.80-81, 1980). Após esse breve percurso por entre as manifestações literárias pregressas a poesia de Ana C. e que, como veremos adiante, produziram ecos que se fizeram presentes na escrita da poeta, deteremo-nos, agora, no movimento no qual a poeta, à grosso modo, encerrou sua produção: a poesia marginal. À parte as rusgas que envolvem o próprio “rótulo”, como o dizer-se poeta marginal ou o classificar como marginal, os poetas que criaram e que desenvolveram essa manifestação literária eram aqueles que, em linhas gerais, ficaram à margem dos grandes círculos editorias. Longe, então, dos recursos financeiros para editar um livro, eles se envolveram nesse trabalho e desenvolveram, assim, um trabalho artesanal de confecção de livros. Findo esse trabalho, posteriormente, os poetas também realizavam o exercício último dessa produção: vendiam seus livros ao leitor. Se, por um lado, todo esse processo, por si só, já proporcionava o estabelecimento de um vínculo mais afetivo com esse leitor, por outro lado, a própria poesia de alguns desses livros coloca-se como uma espécie de reafirmação dessa intimidade, seja pela temática desenvolvida, seja pelo assunto sobre o qual se poetizava: esses poemas carregavam em si a marca da relação Arte e Vida herdada da pós-tropicália, consolidando-a e definindo-a. Em uma atmosfera marcada por um “vazio cultural”, produto de uma capitalização crescente, onde a cultura passa a alimentar o sistema vigente, “exatamente num momento em que as alternativas fornecidas pela política cultural oficial são inúmeras que os setores jovens passarão a enfatizar a atuação em circuitos alternativos ou marginais” (HOLLANDA, p.96, 1980. Ou seja, nesse clima de “sufoco”, marcado por sentimento de descompromisso e descrença, por uma não preocupação com o futuro, a prática “marginal” coloca-se como alternativa e sua poesia como reflexão sobre as linguagens legitimadas (HOLLANDA, p.117, 1980). Vejamos,

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agora, no poema do poeta marginal, Chico Alvim, essa atmosfera de sufoco, apontada por Hollanda (1980), que é sintetizada na poesia na imagem do fole que arqueja em meio ao lugar em que ele está e em meio às ações que o cerceiam: EU TOCO PRATOS À minha esquerda violas ondulam um areal imenso À minha direita ossos de baleia cavucam as cáries do ar Maestro e pianista desfecham o último ofício: Na platéia um fole arqueja Esse eu-lírico que, aparentemente, compõe uma inusitada orquestra, “eu toco pratos”, que realiza movimentos delirantes, observa a reação de incômodo de um fole diante dessa apresentação. Nesse clima de sufoco, outras são as particularidades dos autores dessa geração que merecem ser apontadas. Observa-se uma espécie de tendência em relação a o quê e como se falar: a preferência pelo tom (político) biográfico, pelo confessional, pelas memórias e memorialismo, com temática intimista ou geracional, como uma espécie de procedimento comum, como uma fo(ô)rma escolhida de expressão da geração pós-641. Essa preferência, que marca não somente a poesia mas, sobretudo, a prosa, estará presente não somente em escritos como os de João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade; mas também, povoarão “o bate-papo geracional” de poetas como Chacal e Charles Peixoto, alguns dos colegas da geração marginal de Ana C (SÜSSEKIND, p. 18-19, 2004). Contudo, notamos que apesar dos escritos de Ana serem considerados frutos da prática dessa poesia, sua poética não se constitui no que poderíamos chamar de lugar modelar para aqueles que procuram, por meio de uma primeira impressão, características bem definidas da também conhecida por “poesia de mimeógrafo”. Vale dizer que, se dentro do próprio movimento houve uma espécie de divisão entre os poetas, onde, em um lado, ficaram os que procuraram maior referencialidade externa para a sua poesia e, em outro lado, se situaram os que buscaram formas diferentes de concepção e lide com as diferentes facetas da censura durante o período da ditadura militar brasileira (SÜSSEKIND, p. 18-19, 2004), os escritos cesarianos se alinharão mais ao segundo grupo, no que se refere à inovação e singularidade poética, contudo, 1 Ano em que se inicia o período da ditadura militar brasileira.

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paradoxalmente, essa mesma poética ainda se distanciará de seu próprio “subgrupo”, criando, dessa forma, o seu próprio locus, ao se apropriar, um tanto às avessas, ao construir os seus poemas, do gênero diário, forma mais ao gosto e ao estilo dos que buscaram o traço memorialístico na composição de suas obras. Então, se o “encanto” da poesia marginal, uma espécie de “elo perdido”, construiu-se justamente no bem marcado e “romântico” contato intimista entre escritor e leitor por meio da produção artesanal e venda direta de livros ao leitor e também pelo tom memorialista, pessoal ou geracional, das obras, sendo essas características tidas como fortes marcas da poesia marginal, como Ana C. pode ser associada a essa marginalidade? De qual tipo de traço é formado sua poesia que poderia associá-la à poesia marginal? Ou, ainda: qual seria a poesia marginal de Ana C.? Se a prosa e poesia tradicionais, ou seja, aquelas dotadas de uma espécie de rigor que buscam inspiração nos modelos clássicos para a construção de sua própria forma, marcam um trabalho norteado, muitas vezes, por espécies de projetos quase que didáticos, muitos deles, um tanto “apegados” e “preocupados” em colocarem-se no contínuo da tradição, Ana fará, então, de seu livro, uma espécie de busca e anseio por um projeto outro na escrita de seu diário que, aparentemente, não se alinha nem à tradição nem à marginália: [...] Preciso aproveitar os últimos segundos, as soluções do dia, a maturação da espera – realmente pensei nisso, e não sou um personagem sob a pena impiedosa e suave de KM, wild colonial girl e metas no caminho do bem, tuberculose em Fontainebleau e histórias em fila e um diário com projetos de verdade que me vejo admirando ardentemente nos últimos segundos. (CESAR, p.133, 1999, grifo nosso) Dessa forma, em performance, Ana fará algo como que um projeto ou o esboço do que poderia ser um projeto, ao conjugar modos e gêneros em sua escrita. O diário, que pode ser facilmente identificado no trabalho da poetisa, como em: 16 de junho Decido escrever um romance. Personagens: a Grande Escritora de Grandes Olhos Pardos, mulher farpada e apaixonada. O fotógrafo feio e fino que me vê pronta e prosa e lápis com-

prido inventando a ilha perdida do prazer. O livrinho que sumiu atrás da estante que morava na parede do quarto que cabia no labirinto cego que o coelho pensante conhecia e conhecia e conhecia. Nessa altura eu tinha um quarto só para mim com janela de correr narcisos e era atacada de noite pela fome tenra que meu pai me deu. (CESAR, p.105, 1999) Contudo, esse diário não tem o mesmo tipo de intimismo construído por seus colegas, nem aparenta ter o sulco da tal marca geracional, visto que eles não assinalam um posicionamento do eu-lirico diante das ações do Estado por meio de uma referência. A escrita toma outras proporções. Os diários de Ana C. parecem mais perturbar do que gerar empatia aos viventes pós-64. A estreita relação estabelecida constante e “metalinguisticamente” entre eu - lírico e poetisa, quando ele assume seus escritos e anuncia o trabalho poético, “Nem tudo são novidades, e escrever demora.”, salienta ainda mais o desconforto, pois a “exposição do eu não se dá apenas em termos de emoções, sentimentos ou aspirações pessoais, mas constitui procedimento para a escrita literária, em poemas nos quais, reflexivamente, problematiza-se a própria inserção de aspectos pessoais na poesia.” (BORGES, p.2, 2008). Entretanto, é possível afirmarmos que, atualmente, sua poesia tem um raio de ação mais abrangente, causando impacto mais profundo que muitos de seus colegas da geração marginal: se seus escritos sem aura, por si só, trazem a marca de uma poética intensa que atrai o leitor, apreciador e sabedor da importância do instante, há o que se dizer também sobre uma espécie de atração (talvez, aura) que envolve a sua obra: A Teus Pés é como que o produto de uma vida inteira, é como que tudo o que uma poeta poetizou até o alto dos seus 31 anos, mais que um livro, A Teus Pés configura-se como espécie de legado poético2. 2 A poeta Ana Cristina Cesar comete suicídio em 29 de outubro de 1983, quase um ano após a publicação de A Teus pés, único livro da autora publicado em vida, e que foi lançado em dezembro de 1982. Esse livro é formado por blocos que foram publicados anteriormente de forma separada e em pequenas tiragens, ou seja, à moda marginal, mas tiveram uma editora a produzir o livro. Tomados, aqui, os devidos cuidados e proporções, entendemos que o livro de Ana, metaforicamente, reconstrói em si, de certa forma, uma velha narrativa benjaminiana, encontrada tanto no texto “Experiência e Pobreza”, e retomada no texto “Narrador”, em que o legado do pai é passado para os filhos em forma de narrativa e, esses filhos, para descobrirem o valor dessa herança precisam escavar a terra de todo o vinhedo para descobrirem que a riqueza está no trabalho. Tal como o velho lavrador, Ana nos deixou como legado seus escritos poéticos conjugados em A Teus Pés e, como tal, estamos em um contínuo processo de escavação que nos possibilita encontrar, a cada movimento, a cada escavação proporcionada pela leitura e análise, um novo

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A Teus Pés é um livro marcado pela intensidade e pelo impacto poético da palavra, mas escrito, em grande parte, ao modo corrente da prosa e que abriga em si marcas de gêneros como o diário e a narrativa de viagem (que também pode ser entendido, por vezes, como diário de viagem). Nessa confluência de gêneros que compõem todo o livro de Ana C., um bloco que daremos especial atenção no desenvolvimento desse trabalho, “Luvas de Pelica”, apresenta em si o que poderíamos chamar de traços de um possível diário de viagem. Entretanto, vale dizer que mais que título, essas luvas de pelica são objetos que propiciam proteção, são objetos que evitam que um contato direto aconteça, são o prenúncio de que não nos depararemos com um diário propriamente dito, em outras palavras, a presença desses objetos revela-nos, em certo sentido, a existências de um eu-poemático que não teria cedido totalmente ao pacto geracional. É assim que as imagens do cotidiano e os espaços mencionados nessas imagens do diário não são vistos, ou melhor, não são passíveis de serem vistos em seu correspondente imediato na exterioridade: há, pois, a prática de um tipo de desdobramento dessa preferência pelo cotidiano, cuja referencialidade espacial, por mais que seja diretamente marcada na poesia, como Brasil, Paris e Espanha, é transfigurada a ponto de não ser possível encontrar a forma base, em sua totalidade, nos poemas. É assim também que as espécies de diálogos travados com o leitor que estão presentes em sua poesia, não desenvolvem-se em sua “forma plena” na construção poética, pois junto aos leitores aparecem Reinaldo, Mick, Shirley, Joe, Luke, Jack, KM e LM: tanto as personagens quanto os leitores diluem-se na poesia, os primeiros quando tornam-se ficção por situarem-se junto aos segundos, já os segundos, por transitarem de nome à abreviação e por serem referência sem referencial, estabelecem, juntos, diálogos fingidos travados em meio a captação de instantes. Essa fluência da poetiza ao transitar entre o que é referencial e o que é ficção, é como um fruto do olhar estetizante da autora que torna singular a sua poética. O início do bloco “Luvas de Pelica” é marcado por um eu-lirico em deslocamento, “Eu só enjôo quando olho o mar, me disse a comissária/ de sea-jet./ Estou partindo com suspiro de alívio.” (CESAR, p.125, 1999, grifo nosso), que, lá no fim do bloco, mais precisamente, no “Epílogo”, mostra-nos uma espécie de volta marcada por uma apresentação ilusionista. O eu-lirico feminino se põe na posição de ilusionista com luvas, “A primeira coisa valor de sua poética.

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que encontramos na mala, por cima de tudo, é/ -adivinhem - um par de luvas./ Ei-las./ Pelica./ Coisa fina./ Visto as luvas [...]” (CESAR, p.146, 11999), e sem truques, “Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum/alçapão escondido, nem jogos de luz enganadores” (CESAR, p.146, 1999), a mostrar elementos, mais precisamente, cartões-postais, aos seus amigos, em um procedimento poético que realiza um processo de distribuição que, às avessas, aponta uma anterior recolha desses objetos angariados em viagens realizadas. Se o início dessa “jornada” informa-nos sobre o começo de uma viagem que nos é sugerida no âmbito da palavra, o “Epílogo” marca, em um primeiro nível, o fim dessa jornada, mas, já em um segundo nível, no metafórico, com a retirada das luvas “[...] mas antes de/ sair tiro a luva, deixo aqui no espaldar desta cadeira.” (CESAR, p.149, 1999), marca o fim do próprio processo de escrita empreendido, visto que essas luvas envolvem todo o bloco. Dessa forma, considerando o próprio formato do bloco, que, marcadamente, abriga início, meio e fim de um acontecimento, “Luvas de pelica” emoldura o que seria essa viagem promovida pela linguagem. Bebendo em fontes longínquas e inusitadas, notamos que apesar do evidente distanciamento, em tempo e forma, dos escritos de Ana C. dos gêneros mais antigos, há como que a apropriação e uma posterior reconstrução inebriante das narrativas de viagem no bloco supracitado. À priori, a produção dessas narrativas era ditada pelo ritmo do transporte escolhido para realizar as travessias. Travessia essa que tinha como finalidade realizar grandes descobertas. Entretanto, há que se destacar que se a viagem em si tinha um propósito definido, para fins de sistematização e logística da própria viagem, entretanto, não era o lugar-destino que proporcionava ao sujeito um encontro com o seu não-Eu, mas sim, era o trajeto em si, que lhe rendia esse processo de um contínuo transcender-se. Aparentemente, a poesia cesariana não nos guia a um destino-espaço seguro e esperado, ela é formada por um intensivo captar de instantes; não traz marcas de constância e precisão, mas antes, traz no traço a mudança constante de foco. É assim que nesse labiríntico espaço poético, os caminhos podem até serem vislumbrados - é como se ao leitor fosse possível somente enxergar a linha que levaria e revelaria o minotauro - mas o destino não poderá ser identificado mesmo que se chegue à extremidade oposta do fio: essa linguagem parece deixar que nos seja revelado somente o caminho, o trajeto, um aparente way, mas que, em verdade, tem a potencialidade e as virtudes de um path, ou seja, um caminho com os valores de uma

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vereda cuja transcendência, aqui, se restringe ao próprio labor poético: Que tristeza essa cidade portuária. Subo London Road de bicicleta e sinto as bochechas pesarem. Comprei um cartão de avião para Malink – um avião roliço, tropical, feliz de estar partindo. Estou há vários dias pensando que rumo dar à correspondência. Em vez dos rasgos de Verdade embarcar no olhar estetizante (foto muito oblíqua, de lado, olheiras invisíveis na luz azul). Ou ser repentina e exclamar do avião – não me escreve mais, suave. (CESAR, p.141, 1999)

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É assim que, por meio de uma espécie de dissimulação anunciada, uma espécie de fio condutor que perpassa por caminhos que, definitivamente, não conduzirão a um destino-espaço intimamente seguro, é que é construído o diário de Ana C. Se a forma diário tradicionalmente apresenta-se como simples ferramenta pessoal para a organização dos fatos da vida sob forma de papel e, talvez em outro nível, ele também poderia ser considerado um instrumento que auxiliaria o indivíduo a se adequar e a se situar em meio a própria vida, visto que ele, ao escrever, passa sua vida a limpo; em “Luvas de Pelica” é possível notar que há uma espécie de oscilante “eu criador” que não estabelece compromisso com o que poderíamos chamar de situações poéticas fragmentárias que “viveu”, mas que parece existir somente para atender aos anseios da própria linguagem em que esse eu se constrói, parece ser com ela (a linguagem) o seu único compromisso. Se o diário tradicional tem como base uma seleção de fatos do dia pautados, a princípio, em uma curta viagem da memória pelo que aconteceu no hoje e sua, digamos, exceção, acontece quando fatos do dia específico acabam pinçando outro ou outros fatos de um passado mais distante, promovendo, assim, um tipo de fluxo de consciência, é importante compreendermos que o diário de Ana é construído justamente pela e na exceção, há constante captar de fragmentos que compõem como que um fluxo de consciência restilizado à moda cesariana. Em linhas gerais, a construção desse diário parece seguir um movimento e um procedimento basilares: um movimento que oscila entre interioridade e exterioridade do eu-lirico e um procedimento que pinça os instantes que formam essa poesia. No primeiro, notamos que, em meio a impressões

e algumas definições, há algo como que um deslocamento contínuo não somente em relação aos lugares citados no início do bloco poético, como o avião, “sea-jet”, os “campos ingleses”, o “lago com patos”, entre outros, mas há também um trânsito intenso do eu-lírico entre o que é externo e o que é interno a ela, entre o contato estabelecido com os que estão a sua volta e o contato que ela estabelece consigo. Contudo, sendo esse um poetizar fragmentado, não parece haver intensidade no(s) contato(s) em si estabelecidos(s), o que é valorizado e descrito é o caminho, o curso, a singular trajetória que estranhamente une esses lugares e esses não lugares. Ou seja, nesse sentido, mais uma vez, é o processo em trânsito “de si” que é valorizado nessa narrativa de viagem de Ana. Já em relação ao procedimento adotado por Ana, há uma espécie de ritmo singular que dita o seu poetizar: o flash fotográfico. Esse transita entre os lugares e o eu poemático de forma a compor um estado ou lugar outro por meio da (trans) formação de elementos e de ações em sequências ininterruptas de imagens-texto. Em um mundo em que o ser é só fragmentos, o flash coloca-se como recurso que revela partes desse sujeito, luz a iluminar esse ser em ruínas. É também nesse singular estado ou lugar poético, que nos é possível ver mais claramente uma espécie de construção exemplar formada por prosa e poesia, visto que é nesse escrito, marcado pela continuidade, aqui, acelerada da prosa, que se pode notar um encadeamento quase infinito do que se poderia chamar de uma das maiores marcas de uma construção poemática: as imagens: Estou te dizendo isso há oito dias. Aprendo a focar em pleno parque. Imagino a onipotência dos fotógrafos escrutinando por trás do visor, invisíveis como Deus. (CESAR, p.126, 1999) Outra forma, a crônica, é, de alguma forma, apropriada pelo texto poético e, dentro dela, como um tipo de mote para a elaboração dessa crônica, reaparece a carta. Considerando-se que o gênero crônica, em algumas de suas manifestações, é marcado pela construção de uma história com base em um fato do cotidiano, o eu-lírico de “Luvas de Pelica” contará a história de um carteiro que ao invés de entregar as cartas, ele as enterrava no porão. Se o escopo social do delito do profissional dos Correios, por si só já bastaria para servir como um tipo de “justificativa” para a definição do trecho da narração - que compõe parte do poema - como crônica, talvez, de cunho jornalístico, esse “narra-

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dor” que conta os fatos, reforça a marca da crônica aos relacionar os fatos narrados à sua própria vida poética e fictícia quando este relata que uma de suas cartas não foi entregue pelo carteiro: “Uma dessas que ele enterrou no mês de maio continha todo o meu pathos derramado, belo e/ secreto como os fatos.” (CESAR, p.134, 1999). Após essa confluência de gêneros, formas e elementos, entendemos que, em “Luvas de pelica”, o diário abriga a carta, que estabelece um ponte e parece ser mote para o aparecimento da crônica. Que, por sua vez, nos traz o cartão postal, que é recorrente em todo o livro. Se o acionamento de todos esses elementos em um único texto marca o caráter de presenças múltiplas em trânsito por todo o livro, é a crônica, aqui, que indica uma espécie de lapso desse trânsito quando conjuga em si um raro arranjo das formas. É essa espécie de narrativa da narrativa que evidencia a importância do processo, mais que o seu “fim utilitário”. É a crônica, aqui, que aparece como síntese de um procedimento que ecoa por toda a obra. Nesse sentido, notamos que se a poesia tratou de perder sua aura foi porque a forma romance e, principalmente, o narrar e a narrativa, também, anteriormente, precisaram reinventar-se para sobreviver da modernidade em diante. Ou seja, se a narrativa tratou e continua a tratar de encontrar novas formas de se expressar na linguagem, a poesia também cede à convocação que é feita (àqueles que são encarregados de reinventar a linguagem) desde a modernidade e se vale de todos os recursos possíveis para que esse sujeito-fragmentos transmita, então, o que está a sua volta - e que também é fragmento - e que, em um embate incessante, o que é externo passa também a compor esse eu, e vice e versa. Se essa comunhão de gêneros na composição do poema de Ana Cristina Cesar marca, por um lado, uma espécie de subversão da forma poética tradicional na formação do poema, por outro lado, esse acionar de formas que têm força maior na expressão do eu, afirma como que um perpetuamento da posição ou até mesmo da existência desse “eu” pela própria reinvenção e adaptação de sua forma de expressão. É assim que a poética de Ana cria para si e em si um não-lugar que, paradoxalmente, gera conforto, pois se trata de um lugar onde para o eu é possível ser a partir dos encontros entre fragmentos. Dessa forma, entendemos que o diário da poeta, não é o lugar onde encontraremos uma espécie de intimidade partilhada entre eu-lírico e leitor, mas sim, é o lugar da recriação das formas de poetizar, da confluência de formas que cria pelo

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afastamento das formas e reencontro incessante entre as mesmas, paradoxalmente, novas páginas do diário da tradição. Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. “O narrador.” In: Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, vol.1, p. 197-221. BORGES, Luciana. Uma poética do segredo: o pacto autobiográfico como projeto poético em Ana C. Travessias, 2008, vol.2, n1, p. 1-12. CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 2.ed. São Paulo: Ática, 1999. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. 2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

Escrita diarística e epistolar de Mécia de Sena, o “anjo eficaz” de Jorge de Sena Carta inédita de Jorge de Sena para Mécia de Sena, Rio de Janeiro, de 24/7/1963

Maria Otília Pereira Lage Universidade Lusófona do Porto, Investigadora do CITCEM da Universidade do Porto (Portugal)

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Resumo: O presente artigo aborda a importante acção e invulgar trabalho de Mécia de Sena quer no campo da boa tradição da epistolografia portuguesa, quer no da escrita diarística representada em sua obra “Flashes”, paradigma de uma escrita literária feminina. Desenvolvida no quadro dos estudos sociais e culturais, na fronteira história-literatura, nela se faz a análise de um significativo corpus, maioritariamente inédito, constituído pelo citado Diário e por uma extensa correspondência trocada com seu marido, o escritor Jorge de Sena de cuja imensa e polifacetada obra literária e ensaística tem sido, a maior estudiosa, difusora e obreira, e da qual aliás, já foi mesmo considerada co-autora, por via da correspondência de toda uma vida, com o escritor.1 Tributo devido a Mécia de Sena, figura notável da cultura portuguesa, este texto visa contribuir para resgatá-la para a nossa historiografia enquanto mulher e intelectual, autora de uma vastíssima e singular escrita de valor documental e literário. Palavras-chave: Correspondências/ Diários/ Escrita Feminina.

1. Mécia de Sena : trajectória biográfica Mécia de Sena (Maria Mécia de Freitas Lopes Leça de Sena), mulher do escritor Jorge de Sena, curadora, organizadora e responsável pela edição póstuma da obra de seu marido, desde a sua morte, em 1978, é figura notável da cultura portuguesa do séc XX. Ensaísta, tradutora, autora de vasta epistolografia e escrita diarística ainda largamente inédita, nasceu em Leça da Palmeira em Março de 1920, filha do portuense Armando Leça [1891-1977] prestigiado compositor, musicólogo, etnólogo, investigador e estudioso do Cancioneiro Musical Popular Português. Com o pai colaborou, desde muito jovem, no 1 COSTA, José Francisco ; FAGUNDES, Francisco Cota, Pref.(2003). A Correspondência de Jorge de Sena : um outro espaço da sua escrita. Lisboa : Ed. Salamandra. Este autor faz um estudo das cartas de amor de Mécia e Jorge de Sena publicadas na obra Isto Tudo que nos rodeia (1981) em paralelo com as Cartas Literárias de Mariana Alcoforado que Jorge de Sena dizia serem suplantadas pelas de Mécia, e das Novas Cartas Portuguesas (1972) de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, as três Marias, designação por que ficou conhecida a autoria desta obra de grande impacto político à época da sua edição.

ensino da música e de piano, áreas em que teve esmerada educação, desde criança, com a avó e a mãe, exímias violoncelistas assim reconhecidas por Guilhermina Suggia. Teve mais quatro irmãos, sendo seu irmão mais velho o ensaísta, professor universitário e historiador da literatura portuguesa, Óscar Lopes, com quem Mécia partilhava o gosto e o interesse pela cultura e a literatura. Licenciada em Histórico-Filosóficas, pela Universidade de Lisboa, em 1956, foi mãe de 9 filhos e colaboradora incessante da obra literária do marido, com quem casou em 1949, no Porto, tendo-o acompanhado no seu exílio voluntário no Brasil, entre 1959 e 1965 e a partir desta data, nos USA, Wisconsin e Santa Bárbara (Califórnia) onde actualmente reside. É sócia correspondente do Centro da Associação Mundial de Escritores – Rio de Janeiro, qualidade que lhe foi reconhecida pelo Pen Clube do Brasil em Agosto de 1980, tendo igualmente sido membro, por convite, do Comité Luso-Brasileiro da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde se fundou no mesmo ano, o “Center for Por-

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tuguese Studies”. Foi-lhe atribuído o Troféu “Prestígio e Dedicação /Comunidades”, em uma sessão solene nos Paços do Conselho de Oliveira de Azeméis em 2 de Junho de 2001 (…) presentes um membro do governo e emigrantes do Canadá, USA, Venezuela, Brasil, África do Sul, Austrália e Luxemburgo (…) Dos EUA a Mécia foi a única….”1 Em Maio de 2011, foi homenageada pela Sociedade Portuguesa de Autores de que Jorge de Sena foi um dos fundadores e que justamente a distinguiu com o Prémio Pró-Autor que “consagra a acção de pessoas individuais e colectivas no tocante à difusão e dignificação do trabalho dos autores portugueses”. 2 É notória a intensa intervenção social e cultural de Mécia de Sena, em reuniões, tertúlias, conferências, concertos, espectáculos culturais, grupos e redes de amizades no mundo das letras e das artes de Portugal e estrangeiro, sendo igualmente notáveis o seu interesse pela actualidade literária, musical e cultural e a sua participação assídua em eventos e actividades sócio-culturais em épocas que não permitiam, e menos favoreciam, relações e dinâmicas sociais significativas, em particular para as mulheres. 2. Uma escrita epistolar e diarística feminina de resistência: o literário e o documental em Mécia de Sena Em consonância com essa trajectória de vida, a escrita diarística e epistolar de Mécia de Sena evidencia um acompanhamento regular de eventos culturais que frequentava, em companhia familiar e/ ou de amigos (Maria Lamas, Sofia de Melo Breyner, Eunice Munõz, etc.), e sobre os quais emite, espontaneamente, bem como sobre tudo que a rodeia, perspicazes comentários, opiniões seguras e posições fundamentadas a que subjaz agudo sentido de observação “participante” etnográfica visível nas descrições e narrativas cheias de vivacidade, realismo e reflexividade. Na sua escrita epistolar e diarística, desconstrói estereótipos e denuncia atrasos e fanatismos, o que significa participar numa forte relação de responsabilidade e cumplicidade social e cultural com 1 Notas biográficas escritas por um de seus quatro irmãos, o tenente- coronel Rui Silvino de Freitas Lopes in Crónica das Famílias Freitas & Lopes. Lisboa: [s.d.] (policopiado). 2 Sobre Maria Mécia de Freitas Lopes Leça de Sena [1919-], ver ainda FLORES, Conceição, DUARTE, Constância Lima, MOREIRA, Zenóbia Collares – Dicionário de Escritoras Portuguesas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009, p.270. e ver também LAGE, Maria Otília Pereira – Correspondência(S), Mécia e Jorge de Sena: (Reminiscências, Carrazeda de Ansiães, anos 1940). Guimarães: UM-ICS-NEPS, 2007

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os contextos históricos de que é e foi protagonista, revelando-se sempre capaz de contribuir para alterar singularmente a posição do intelectual. Trata-se de uma produção escrita, simultaneamente de valor literário, documental e histórico, em que relevam, interpenetrando-se, múltiplas relações e episódios pessoais e sociais, vivências culturais e afectivas ricas, em Portugal e nos países de exílio, especial afinidade electiva com uma diversidade de pessoas e espaços-tempos, lúcida consciência de cidadania e a assumpção, sempre, de uma forte identidade individual e cultural. 2.1. A escrita epistolar: Correspondência de Mécia e Jorge de Sena, um diálogo permanente e inacabado Ao propor-me estudar a produção e recepção epistolares de Mécia de Sena no que sou, aliás, reincidente,3 não posso ignorar quão dilatado é este desafio que envolve milhares de cartas escritas e recebidas, na sua maioria inéditas, com a ressalva devida para “Isto Tudo que nos rodeia (cartas de amor): Mécia de Sena e Jorge de Sena” (1982), organização e edição de sua responsabilidade. Circunscrevemo-nos aqui, a cerca de 200 cartas trocadas entre Mécia e Jorge de Sena, durante o seu exílio no Brasil (1959-1965), as quais, entretecidas de um forte sentimento do vivido em profunda unidade existencial e de grande resistência às dificuldades e à dor da separação e da ausência, não só nos informam sobre uma multiplicidade de assuntos como sobre os respectivos quotidianos, nesta fase decisiva de suas vidas, que Mécia designa de “Vita Nuova”. A prática epistolar de um indivíduo só existe em função de um outro, para quem se anuncia uma fala e de quem se aguarda uma resposta, o que se pode observar explicitamente, nas cartas de Mécia e Jorge de Sena, interlocutores que se nos configuram, invariável e mutuamente, como um “igual”, amigo, aliado, confidente, companheiro e amante, num elevado plano de igualdade, recíproca reverência individual e profunda estima pessoal. Assim estas cartas impressionam, desde logo, pela sua tocante afeição amorosa mesclada de erotismo e sensualidade em que se afirma uma escritura do corpo e uma intensa história de amor que, em sua utopia e cristalização sublime, prende e encanta qualquer leitor, e revelam-se-nos, ain3 Lage, Maria Otília Pereira(2007). Correspondência(S) Mécia/Jorge de Sena (Evocação de Carrazeda, anos 1940). Guimarães: UM-CIS-NEPS e Correspondência(s) Mécia e Jorge de Sena: rede de afectos e exílio luso-americano. In SARMENTO, Clara, Coord. (2001). Diálogos interculturais: os novos rumos da viagem. Lisboa: Vida Economica.

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da, como um contributo incontornável para uma melhor compreensão de dimensões essenciais da vida-obra Seniana e de aspectos importantes da história da sociedade e da cultura portuguesa e brasileira nos anos 1950 e 1960. Alguns autores, de que é exemplo a crítica argentina Marta Traba, costumam apontar como características femininas na literatura contemporânea “a palavra fragmentada, a tendência a impregnar a palavra escrita com elementos de oralidade, o discurso voltado para o sujeito que fala, a projecção da linguagem no nível simbólico, a tendência a explicar o universo em vez de interpretá-lo, a predilecção pelo detalhe”. Todas estas nuances, umas mais que outras, se evidenciam nas cartas de Mécia de Sena, as quais são ainda expressão significativa da sua posição de mulher no exílio, vivendo longe da pátria, de familiares e amigos, consciente de seus novos papéis na sociedade e no mundo em grande medida também ligados à intensa e pública trajectória literária, cultural e política do marido. Breves ou mais extensas, mas sempre escritas com grande regularidade e num estilo simples, coloquial e familiar, as suas cartas não são nunca impessoais ou desapaixonadas, antes ricas de significado e expressões literárias espontâneas, pensamento arguto, opiniões desassombradas, raciocínios e comentários críticos e informados sendo, simultaneamente, expressão sincera, espontânea e natural de fortes sentimentos e emoções genuínas. Passíveis de inúmeras leituras, as cartas de Mécia que Jorge de Sena considerava que “metiam as de Soror Mariana num canto”, subvertem padrões e estereótipos rígidos e convidam-nos a rever as funções triviais da correspondência pessoal e os papéis apagados das mulheres na vida social. Representam, para além de sua subjectividade e subjectivação, depoimentos de forte realidade histórica, considerações de crítica literária e análise política, meios e modos de compreender múltiplas relações com a sociedade e o mundo ou com os microcosmos da imprensa, da edição ou da política. São igualmente objecto de especial referência nestas cartas em que o público e o privado se mesclam: o elevado sentido de pertença e intervenção social nos países de origem e de destino, sentimentos de liberdade, convivialidade, solidariedade, amizade e hospitalidade, a constante inscrição do quotidiano na materialidade da escrita em que emergem também as representações do mundo social e cultural, e uma multiplicidade de sentimentos individuais, familiares, sociais, culturais, éticos, cívicos e políticos. É igualmente pos-

sível identificar nestas cartas, os muitos papéis e diferentes funções sociais e culturais desempenhadas por Mécia de Sena, “anjo eficaz”4 de Jorge de Sena e companheira inseparável do intenso trajecto pessoal, profissional, académico, cultural e literário do escritor. Mas a escrita epistolar de Mécia de Sena pode ainda ser entendida como exercício de “um solilóquio de ausente para ausente” através do qual se procura superar a distância, espacial, temporal e afectiva, como se ilustra: Carta de 14/8/959: “À noite, a convite da Maria Lamas, fui ao “Restelo” ver a “Grande Estrada Azul”. Uma coisa italiana bem feita, sem concessões de happy end mas muito lenta de acção, com interpretações boas mas não excepcionais. Uma coisa um pouco deprimente ou o meu estado de espírito é que anda deprimido. (…)” (referência implícita ao estado de abatimento provocado pela morte recente de sua mãe) E se a terminar uma carta de 17/8/959 escreve: “ (…) “Meu, amor, vivo das tuas cartas e do teu amor. Beijo-te com muitas saudades…” noutra do mesmo dia desabafa: “… isto aqui é atoleiro por todos os lados e ainda por cima é pobre, ao nível dos dez tostões que é a coisa miserável, desconsoladora. Não haverá no mundo uma Parságada qualquer para onde vamos? Meu amor, o mundo é nojento e a humanidade está ao nível do mesmo. E a vida é tão breve e tão poucas as coisas que nos dá meu querido. É-me insuportável estar sem ti, sem te abraçar, sem me sentir nos teus braços com a minha cabeça no teu peito quente, acolhedor, que eu sei pertencer-me como eu te pertenço inteiramente.” Numa vontade sempre renovada de ter e de dar notícias, através de relatos e diálogos retomados, as cartas de Mécia de Sena são um incentivo à escrita de seu interlocutor de quem é leitora especial e atentíssima, para além de um espaço de experimentação constante de uma corrente ininterrupta de escrita em que há lugar para a digressão literária para além da peculiar resistência feminina que se entretece de conversas sempre vivas que a escrita epistolar alimenta. Simultaneamente, abrem-nos outros tantos caminhos para a leitura do importante diálogo epistolar entre duas figuras públicas destacadas da literatura e da cultura portuguesa do séc XX, que em seus silêncios, entrelinhas e senti4 Carta de Jorge de Sena para Mécia de Sena, datada do Rio em 24/7/963, 6 páginas.

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dos somente adivinhados, ou em suas confidências e considerações explicitas, exercem sobre nós o fascínio e a tentação de escrever sobre vidas que, para além do seu real interesse histórico e importância social e cultural objectiva, teceram quotidianos de relações humanas e sociais com grandes figuras das artes e das letras que continuam a envolver-nos e seduzir-nos no seu conhecimento. Em síntese, a correspondência de Mécia de Sena produzida, ininterruptamente, durante mais de sete décadas, e na qual se contam não só os milhares de cartas dirigidas a Jorge de Sena, mas ainda as inúmeras cartas que por si foram e continuam a ser escritas para numerosos destinatários de todo o mundo, assim como o seu significativo trabalho de organização e edição de vários volumes da Correspondência de Jorge de Sena permitem situá-la, com toda a justeza, em lugar de relevo na melhor tradição da moderna epistolografia portuguesa, em que se destacam como relevantes fontes de pesquisa de interesse histórico, literário e documental. 2.2. Escrita diarística: FLASHES , livro inédito de Mécia de Sena Como a escrita epistolar, a escrita diarística de Mécia de Sena, de que o seu livro Flashes, pode ser considerado exemplo, é ilustração paradigmática dessa importante componente da literatura de autoria feminina que sublinha o processo de inserção das mulheres nas aprendizagens da expressão escrita de si próprias, ocorridas desde o séc. XIX e, em particular, das aprendizagens da afirmação cultural e social das mulheres ao longo de todo o séc. XX. “Escrevi um livro de amor”, diz Mécia desse seu inédito com mais de 600 páginas5, cuja escrita iniciou em 1980, mantendo-a em contínua constru5 Mécia de Sena publicou apenas oito flashes na colectânea de estudos apresentados ao Colóquio Internacional sobre Jorge de Sena realizado em Outubro de 1988, na Universidade de Massachusetts em Amherst, tendo ainda autorizado a publicação de mais alguns excertos esparsos nos seguintes estudos e trabalhos: Sena, Mécia de (1992). “FLASHES: Recordando alguns momentos com Jorge de Sena” In “Jorge de Sena: O Homem que sempre foi”. Selecção, organização e introdução de Francisco Cota Fagundes e José N. Ornelas. Lisboa: Ministério da Educação, ICALP, p. 243-245; Picchio, Luciana Stegagno (1983). Esercizi su di una vita: i “Flashes” di Mécia de Sena. “Quaderni portoghesi” 13-14. Pisa: Giardini Editori e Stampatori. Primavera – Autunno, p. 313-322; Santos, Gilda da Conceição (1995).À sombra de uma Paixão: Os Flashes de Mécia de Sena. In “O Rosto Feminino da expansão Portuguesa. Congresso Internacional realizado em Lisboa, 21-25 de Novembro de 1994. Actas II.” (Cadernos Condição Feminina, nº 43). Lisboa: Comissão para a Igualdade e para os direitos das Mulheres, p. 235 – 241; Magalhães, Joaquim; Jorge, João Miguel F., ed. (1989). As escadas não têm degraus. Editora Cotovia, 1º número, Janeiro; Lage, Maria Otilia Pereira(2007). Correspondência(S) Mécia e Jorge de Sena.evocação de Carrazeda 8anos 1940). Guimarães: NEPS.

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ção, qual teia de Penélope, e a qual só poderia ter saído da pena de uma mulher com uma atitude perante a vida e a morte, tão sofrida quanto corajosa. Quando Mécia, a propósito desse seu Diário singular, construído de impressivas micro-histórias, anotações e contidos textos de grande beleza literária, suscitados por uma enorme riqueza de afectos e memórias, diz “escrevi um livro de amor”, adverte-nos, assim, para que o mesmo deverá ser lido tendo-se, em conta isso mesmo, o que poderá entender-se como tendo escrito um livro sobre o amor, ou como o de com amor ter escrito esse livro. Amor que se evidencia não só na escrita epistolar cuja abordagem se poderia também fazer como prática de um diário específico, mas sobretudo neste outro registo de escrita feminina, de que são expressão os “Flashes” cujo valor literário e documental bem justifica, a sua publicação integral até para reconhecimento público de Mécia de Sena como mulher escritora. Embora não seja, porém, na qualidade de escritora que Mécia de Sena se revê. A obra de que se reclama e a que tem dedicado toda a sua vida é, outra, a de Jorge de Sena. A ensaísta Luciana Picchio6 apresenta-nos assim esse livro de “perfil documentário, cronístico e literário [que] fixa em microsequências memorialistas, recordações da vida de Mécia com Jorge de Sena, desde em 1940 em Portugal, Porto e Lisboa até 1978, ano da morte de Sena no exílio. São mais de 30 anos de existência comum recuperada, revisitada, reconstituída no efémero dos instantes, de circunstâncias, de frases de um léxico familiar, de uma proximidade de amigos. Um livro escrito com a sabedoria e a consciência do ‘aqui e agora’ que é Santa Bárbara, Califórnia, sob a casa dos Sena que continua a ser um ponto preciso de referência humana e cultural. Um livro ‘coral’ colectivo, um coro de família…” Mécia de Sena demarca aí a posição das memórias femininas no campo literário, uma das formas de as mulheres estabelecerem sua incorporação à literatura, à margem dos cânones oficiais e das culturas hegemónicas que ela conhece melhor que qualquer outra mulher de sua geração e com que ao longo de toda a sua vida privou, construindo uma identidade cultural e intelectual em que o feminino e o masculino se entrecruzam harmoniosa e criativamente. Por sua vez também aí emerge a diversidade de protagonismos femininos expressivamente captados em muitas passagens, num registo minucioso das particularidades sociais, etárias, profissionais, de origem e contextos de vida que encerram vivências e experiências marcadas 6 Ob cit.

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por acentuadas singularidades nacionais e internacionais. O que nos permite uma melhor aproximação à Mulher que, ao relatar factos de uma realidade quotidiana, fornece múltiplas coordenadas de análise que induzem e possibilitam rastrear, identificar e observar o modo como através do acto e da própria prática de escrita, uma realidade social é construída, pensada, vivida, materializada e dada a ver. Familiarizando-se rapidamente com os outros e sabendo, como poucos, familiarizá-los consigo, muito facilmente, Mécia de Sena, introduz, com toda a naturalidade, os leitores na sua intimidade que no entanto sabe muito bem manter preservada.

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“A minha avó materna, Francisca Teresa de Jesus, tocava piano e, uma vez por ano, no 1º de Dezembro…, não falhava! …juntava os netos e tocava o Hino da Restauração. Contava permanentemente histórias (Dumas, Victor Hugo, Max Du Veuzi, folhetins do século… romances camilianos… reconhecia as peças que se tocavam, se eram piano ou violino, pelos movimentos dos dedos. E enquanto cozia ou fazia intermináveis camisolas de lã, cantava sonatas, trios, quartetos, especificando qual o instrumento da passagem ou trecho em causa… e já cega, recomeçava… por vezes já irreconhecível o fio melódico. (…) duas ruas acima morava a Guilhermina Suggia, a maior veneração de minha mãe…”7 Na educação artística e cultural que a embebe e de todos os lados, absorve, Mécia evoca a marcante influência do círculo familiar e da ambiência cultural local: “…minha mãe tocava e ensinava violoncelo que me embevecia e cheia de entusiasmo me começou a ensinar. Meu pai interferiu logo: piano era o que devia estudar… Na minha casa a música sentava-se à mesa, dormia e despertava connosco. …o melhor de tudo era quando o meu pai proclamava: “ vamos dar um passeio mistério”… os ex-votos… Guifões com o seu moinho… Santa Cruz do Bispo mais “o homem da massa” …despejavam-lhe vinho pela cabeça nos dias de romaria e havia que abraçá-lo para casar cedo!... …eu tocava piano, estudava francês, português e bordados com a “Julinha”, e fui moldando as minhas leituras pelos livros do meu pai: Pierre Loti, Aquilino, Anatole France, Garrett, António 7 Mécia de Sena – Flashes. Pasta 1.

Nobre, Junqueiro, com muito Fernão Lopes e Cantares de Amigo…8 Já casada e mãe de filhos, vários episódios narrados evocam canseiras, esforços e sacrifícios mas também a desenvoltura e coragem femininas para vencer as dificuldades que marcaram a sua vida de mulher trabalhadora dentro e fora de casa, companheira insubstituível de um grande escritor, mãe de 9 filhos, qual “chefe de tribo” que subverte com sabedoria e naturalidade a ordem do modelo patriarcal da família clássica: “pouco antes de nascer a Mariana deixara de dar aulas porque tivera uma anemia séria… fazia traduções, revisões de livros e de provas para os Livros do Brasil, onde o Jorge era consultor literário, por gosto e por necessidade, pois só tinha o ordenado de engenheiro de 3ª classe … começou nessa altura a minha briga com os tipógrafos... escritores brasileiros correcção de nomes”.9 Mais adiante, evocada a estreita relação do casal e os tempos difíceis, Mécia enfrenta, com ironia, a maledicência social que visava Jorge de Sena numa época de suspeitas”: “… alguns anos antes, a Alice [irmã do escritor neo-realista Soeiro Pereira Gomes e esposa do poeta e ensaísta Adolfo Casais Monteiro, amigo do casal Sena] tinha-me dito que se dizia que eu escrevia parte das coisas dele. Respondi-lhe que agradecia muito que tão alto conceito fizessem de mim. Eu tinha um filho cada ano, ensinava horas e horas em colégios, eu dactilografava tudo para o Jorge e não perdia concerto nem conferência que ele desse… Um de nós tinha que ser génio, se lhe aprazia que fosse eu…, problema deles! Ficava muito grata.”10 Este o tom nuanceado da escrita diarística, de Mécia de Sena, rés à forma de ser e estar, na qual foi encontrando a força necessária para continuar a viver e produzir. Num estilo de escrita de intensas e fugazes iluminações, os Flashes mobilizam fragmentos de conversas, narrativas que se suspendem para logo se cruzarem em novas recordações vivas e ricas de sentido, cumplicidades, empenhamentos, ideias e grandes ideais, reflexões sobre a vida, evocação de situações, casos, tipos sociais, pessoas e acontecimentos quer da sociedade portuense, seu meio de formação, ou da de Lisboa dos primeiros anos 8 Mécia de Sena, ob cit. 9 Mécia de Sena, ob cit. 10 Mécia de Sena, ob cit.

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de casada, quer da sociedade portuguesa, brasileira, americana e do mundo com que ao longo da vida manteve e mantém contacto estreito. Numa escrita de afectos, se exprimem as suas múltiplas relações de trabalho e convivência com figuras públicas do campo das artes, das letras e da cultura, fazendo-nos assim partilhar de uma mundividência que permite vencer distâncias. A expressividade da sua escrita, objectiva, realista, clara e densificada por reflexões que irrompem a cada passo, súbitas e certeiras, faz lembrar, frequentemente, as “javelines” sobre a China, do escritor clássico e médico revolucionário Lu Xun (Lou Sin) ou as “iluminações” do filósofo e escritor revolucionário judeu alemão, Walter Benjamim. Atravessados pela voz muito fresca e jovem e por um olhar retrospectivo, fragmentário, mas não fragmentado de sua autora, os Flashes são um diálogo vivo, constante e amoroso com Jorge de Sena, interlocutor privilegiado e omnipresente em quase todos os relatos e narrativas deste livro que traça, numa teia intensa e extensa de reciprocidades, afectos e amizades, uma trajectória de vida feminina (projectos, problemas, realizações, anseios…) ancorada numa grande diversidade de redes sociais e culturais. “Não interessa realmente o que se passou mas o que nos ficou do que se passou”11, acentua Mécia de Sena para quem Flashes é uma escrita de libertação, uma escrita terapêutica, e não uma escrita de memórias, onde “recordando …momentos com Jorge de Sena”, instantes densos de diálogo em silêncio, lembranças de uma relação mutuamente estimulante e criativa, desvenda facetas pouco conhecidas de ambos, congregando, na correnteza dos testemunhos de múltiplos sabores: literários, pictóricos, fotográficos, musicais, uma multiplicidade de círculos humanos, sociais, culturais e académicos portugueses e estrangeiros. Mécia de Sena inventou em Flashes uma escrita de sobrevivência que é ainda um trabalho sobre a obra-vida de Jorge de Sena: promessa herdada, rastro salvaguardado e responsabilidade confiada. Sendo, ela própria, Para além disso, aí é ela própria que “apesar de sua insistência em permanecer na sombra, em terras californianas”, se nos revela como “indubitavelmente, uma individualidade literária portuguesa que merece ganhar os reflectores do reconhecimento”, assim o salienta Gilda Santos, autora para quem: “os Flashes não constituem somente obra de circunstância, referencial sem polimento, mas literatura em si, de qualidade. Não é, pois, necessário convocar propostas pós-mo11 Carta de Mécia de Sena para Otilia Lage, 7 de Abril, 2007.

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dernas de revisão do cânone literário para valorizar este misto de diário, crónica, biografia, autobiografia, memórias.” Sintetizando, para além de reconhecida obra literária, Flashes é ainda um documento histórico, antropológico e sociológico, invulgar na história da nossa produção literária e cultural feminina, tratando-se, em suma, de um livro quase impossível de escrever-se, tal a tensão com que o vivido e o sentido irrompem na corrente impetuosa de uma profusão de recordações ora felizes ora amargas, mas sempre intensas. Estamos pois em presença, não de um livro de memórias, como nos adverte a sua autora, antes perante a escrita da memória para si própria, num diário vivo e actual, porque memória em acto, traço, sobrevida. CONCLUSÃO Mécia de Sena inscreve fluentemente em suas narrativas epistolares e na sua escrita diarística o tempo histórico, a sua consciência ética e crítica do mesmo, uma clara opção pela linguagem do corpo e, no registo labiríntico do tudo e do muito que interessa, a procura do “sentido das coisas” – características da escrita feminina contemporânea. Numa “escrita de si” que atravessa as suas narrativas quotidianas, na correspondência, e rememorativas, no diário Flashes, formas distintas de um idêntico monólogo interactivo e reflexivo, se revelam a resistência, a consciencialização e a coragem da autora em expor-se em épocas e momentos conturbados da história de Portugal e dos diferentes países da América por onde passou e viveu. O que nos permite ainda figurar Mécia de Sena como exemplo de mulher e intelectual que, embora indissoluvelmente ligada a Jorge de Sena, se afirmou sempre, de modo singular, livre e autónomo, não só pelo seu papel na epistolografia portuguesa, reconhecida função editorial pró-autor e função de relevo que assumiu quer na produção de uma escrita de resistência reveladora das subtilezas sugestivas de múltiplas capacidades do “feminino”, quer no horizonte da história, da cultura e da literatura portuguesa do séc XX, devolvendo outra visibilidade ao fazer quotidiano da literatura, da cultura e da política. A sua produção escrita, paradigma de uma escrita feminina emancipada, moderna e de resistência, na manifestação irrecusável da sua materialidade e evidência inscrita na linguagem, de um trajecto singular de mulher que envolve múltiplas redes culturais transatlânticas de pessoas, coisas,

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acontecimentos e afectos, constitui-se ainda numa fonte documental privilegiada quer para a história quotidiana e cultural de Portugal, do Brasil e EUA, no séc XX, quer para a compreensão de meandros menos visíveis da construção intelectual de uma obra literária e sua acção cultural. Neste quadro, e sendo a problemática das mulheres no exílio, entre nós, muito parca de estudos e trabalhos, Mécia de Sena, personalidade publicamente conhecida mas digna de maior visibilidade e reconhecimento social e histórico é, também, a este título, uma figura relevante da história contemporânea das mulheres portuguesas cujo estudo e divulgação se impõem, designadamente através de um melhor conhecimento da sua relevante produção escrita.

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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

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A teia de Penélope: artifícios da inscrição ficcional do diário feminino Sílvia Cunha Universidade de Aveiro, (Portugal) (Doutoranda da Universidade de Aveiro/FCT.)

Resumo: A ficção diarística tem sido uma forma de expressão literária muito cultivada, sobretudo desde o Romantismo, compreendendo desde a intercalação de pequenos trechos ou capítulos diarísticos na narrativa, até ao romance inteiramente apresentado em forma de diário – a diary novel ou romance-diário. As temáticas deste formato expressivo parecem divergir, de acordo com o género do seu autor, verificando-se uma clara diferença entre a expressão feminina e as preocupações evidenciadas pelos autores de sexo masculino. Aproveitando as possibilidades de expressão íntima facultadas pelo género diarístico, a escrita confessional feminina, de uma forma engenhosa, potencia a denúncia, a resistência e a reflexão sobre a condição de ser mulher e do papel que lhe cabe na sociedade. O diário ficcional e, sobretudo, o romance-diário inscrevem-se numa importante tradição europeia de escrita feminina, muito mais representativa do que no campo literário português. Um rastreio da sua evolução parece indicar que, em Portugal, muito mais foram os autores masculinos que cultivaram o subgénero do que as mulheres. Porém, atendendo às convenções formalizantes do subgénero, as mulheres parecem ter tirado partido das suas potencialidades expressivas de uma maneira mais original e mais subversiva, explorando, por seu intermédio, temas como a denúncia social, a reivindicação dos seus direitos ou a procura da sua identidade enquanto mulher. Em Portugal, o subgénero surgiu, precisamente neste contexto, com Guiomar Torrezão, no final do século XIX, e manifestou-se, nesta direção, sobretudo no último quartel do século XX, como pode verificar-se, por exemplo, em Lourenço é Nome de Jogral, de Fernanda Botelho, ou em A Personagem, de Maria Ondina Braga, ou ainda, em Sara, de Olga Gonçalves. Este artigo pretende dar conta, em linhas gerais, da singularidade do trabalho ficcional desenvolvido no diário feminino, de modo a evidenciar as suas idiossincrasias e potencialidades expressivas.

Enquanto calas dobras o medo que te cresce na fala E a solidão bordas a ponto de silêncio. (Horta, 1994: 277) Numa sociedade patriarcal, onde a voz e a vontade femininas se encontravam limitadas pelas convenções ditadas por homens, Penélope é pressionada a contrair um novo casamento, em virtude

da longa demora de Ulisses, que todos consideravam morto. Talvez por amor ou talvez porque apreciasse a sua situação de relativa independência, Penélope repudia todos os pretendentes. No entanto, quando todos os argumentos pareciam falhar, Penélope engenhosamente pediu o tempo de tecer uma mortalha para o seu sogro para chorar a sua viuvez, para escolher depois um novo marido. O tempo passa, Penélope tece e o manto parece interminável, pois, numa estratégia de resistência ao novo casamento, ela tecia de dia e desfazia a teia de noite. Este manto infindável corrobora a célebre máxi-

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ma de que “a necessidade aguça o engenho”, pois, a necessidade de resistir aos desígnios tirânicos masculinos, motivou Penélope a desenvolver um ardil astucioso para impor a sua vontade: Penelope’s weaving-room is a place which shelters her from men, a place where she weaves her own story, a place where her endless weaving grants her a different temporal dimension which cannot be entered, and understood, by men. By spinning during the day the same threads that she unspins at night, Penelope “fabricates” a fictional texture that allows her to escape from the male by symbolic order. And her “plot” shall not be unmasked because her suitors cannot access the weaving-room, the room in which she was secretly construed her ultimate mockery of patriarch system. (Lombardi, 2002: 13, 14)

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Do mesmo modo, durante séculos, mas, sobretudo com o impulso romântico, que as mulheres teciam “a ponto de silêncio” as suas angústias e desabafos em diários íntimos, como exercício confessional e de autoanálise. Com uma educação deficitária (em relação à masculina) e com todos os afazeres domésticos, entre a casa e os filhos, a mulher encontra, na liberdade formal do diário, um incentivo à escrita e a possibilidade de ganhar voz e a tornar-se a protagonista da sua história. Desta forma, quando a mulher decide assumir a sua veia literária e assumir-se como escritora, não é de todo estranho que revisite o formato diarístico, ainda que ao serviço da ficção. Assim, ainda que se inspire no modelo do diário íntimo, pertencente à constelação autobiográfica, o diário ficcional subverte a sua essência, ao negar a autenticidade e o secretismo que envolvem a escrita diarística. Assim, desde pequenos fragmentos de diário, inseridos em textos diversos, evoluindo para contos e novelas, o formato diarístico impõe-se, sobretudo no século XX, como subgénero – o romance-diário. O diário ficcional é uma narrativa que mimetiza os expedientes técnico-compositivos do diário, como a fragmentação, a datação, o uso de abreviaturas e códigos. Estes elementos aliam-se a uma narrativa na primeira pessoa, que privilegia os sentimentos de emoções do diarista, estreitando laços de empatia com o leitor. No entanto, uma das maiores singularidades da ficção diarística é o desenvolvimento em topoi concomitantes ao próprio diário: In other words, unlike other types of fiction the diary novel is concerned with such matters as

why the diarist keeps a diary, what keeping a diary means to the narrator, where and when the diary is written, what its physical form is, and how it came to be published. (Hassam, 1993:13) A exploração ficcional do diário de autoria feminina apresenta diversas potencialidades expressivas. Por um lado, permite demonstrar a perceção feminina de uma sociedade que ignora as suas necessidades, que bloqueia as suas ambições e que restringe oportunidades. Por outro lado, permite que a mulher se pronuncie sobre questões como o casamento, a maternidade e a sexualidade, nas quais ela sempre foi protagonista, sem, no entanto, ter poder de decisão ou sequer de opinião. Assim, como o manto de Penélope, o diário ficcional tem sido uma forma subtil de protesto e de resistência ao jugo patriarcal, permitindo que personagens femininas, que existem apenas no domínio da ficção, sejam porta-vozes discretas das suas criadoras, salvaguardando assim a posição da autora, que, muitas vezes, necessita de se submeter às regras masculinas. Segundo Andrew Hassam, a ficção diarística de autoria feminina pode ser examinada, à luz de dois modos distintos: o modo documental e o modo discursivo. Na verdade, o autor distingue entre os diários que “documentam” ou retratam os estereótipos culturais e as restrições sociais, representando assim a condição feminina num meio patriarcal, e aqueles que questionam, através da escrita, as convenções masculinas e as denunciam. Esta distinção, no entanto, é pouco funcional no contexto português, já que a representatividade de romances-diários de autoria feminina, ainda assim, é limitada, para além de que esta delimitação entre os dois modos nem sempre é precisa, verificando-se a sua coexistência em vários textos. Além disso, importa referir que, como defende Isabel Allegro de Magalhães, não há realmente uma escrita feminista, propriamente dita, apontando como exceção as Novas Cartas Portuguesas (Magalhães, 1992: 154). Ainda assim, Isabel Allegro Magalhães, encontra um “denominador simbólico” na escrita feminina: Trata-se de um denominador simbólico definido pela forma como as mulheres condicionadas por elementos fisiológicos, antropológicos, sócio-económicos, culturais, deram respostas aos problemas de produção e de reprodução, material e simbólica. Haverá, pois, uma afinidade natural e cultural, historicamente construída, a ligar as mulheres entre si. (ibidem: 152)

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Assim, apresentaremos alguns exemplos muito curiosos de autoras que teceram a sua resistência pelos meandros da exploração ficcional do diário na literatura portuguesa, tais Guiomar Torrezão, Maria Ondina Braga e Olga Gonçalves. 1.1 Guiomar Torrezão: ‘cosendo à penna’ a angústia feminina, no «Diário de uma Complicada» Guiomar Torrezão (1844-1898) é considerada a primeira escritora de profissão, em Portugal (Jesus, 2005: 484). Numa situação familiar e económica delicada, esta mulher opta pelas agruras de trabalhar para ganhar o seu sustento, rejeitando a convenção social que encontrava no casamento uma situação de estabilidade financeira: Guiomar Torrezão não tinha pae nem irmãos que exigissem contas aos desrespeitadores eméritos das mulheres sós; e não tendo constituido família, nem tendo fortuna propria, achou-se na condição de ter que ganhar ella mesma o seu prato e os seus vestidos, escrevendo jornaes todos os dias – isto é, cosendo á penna, em vez de coser á machina, e não tirando deste esgotante martyrio sequer talvez o que as pobres costureiras auferem nos armazens onde trabalham. (Almeida, 1924: 189) Para além das traduções e das explicações, Guiomar Torrezão escrevia para jornais e periódicos, o que justifica a dispersão genológica dos seus textos e a sua reduzida extensão. Para além disso, a sua escrita encontrava-se condicionada pela sua necessidade de sobrevivência e, por isso, pela conformação aos padrões sociais vigentes no final do século XIX, “subalternisada ás fluctuações de gosto de gente grosseira, principal clientela dos jornalinhos”. (Almeida, 1924: 193) Ainda assim, Guiomar Torrezão evidenciava algum conhecimento da literatura europeia da época e experimentou, em contexto nacional, formas literárias como o diário ficcional. Primeiro, Guiomar Torrezão usou excertos de um diário, inseridos no conto «Amor de Mãe», publicado em 1873, e depois publicou um conto, que se apresenta integralmente em formato diarístico, em 1894, o «Diário de uma Complicada». Este conto, para além de ser um dos precursores do romance-diário em Portugal, apresenta-se como uma subtil e engenhosa narrativa de denúncia e resistência social. Aliás, o próprio formato diarístico permite dar voz à mulher, aos seus pensamentos e angústias mais íntimas, através da dissociação entre personagem e autora, ficção e realidade:

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The idea is that if no one listens to women writing in old traditional forms, then she must necessarily use new forms that allow her to speak in her own voice about the things that matter to her. To this end, women have experimented with literary forms such as diary. (Ribeiro, 1990: 5) Desta forma, a diarista deste conto é uma jovem burguesa, Maria, que decide empreender este projeto de escrita por não ter ninguém que a possa compreender: Janeiro, 7 … - Ninguem me comprehende, e eis-ahi porque resolvi confiar ao meu jornal, companheiro discreto e mudo que reduzirá a cinzas os segredos que lhe entregarem, o estado da minha alma. (Torrezão, 1894: 43) Apesar de Maria se sentir incompreendida pelo seu círculo de familiares e amigos, as primeiras entradas diarísticas apresentam-na como uma jovem fútil e complicada, muito semelhante a outras de quem ela fala, parecendo perfeitamente integrada no seu meio social. As suas preocupações parecem gravitar apenas em torno de rendas e vestidos, pretendentes e intrigas. Porém, o leitor deparar-se-á com alguns indícios sub-repticiamente distribuídos no texto, relativamente à valorização de uma educação cuidada. Por exemplo, Maria revela-se leitora assídua dos diários de Amiel e domina fluentemente o inglês, surpreendendo Francis, um pretendente britânico, que se lhe dirige em francês, por pensar que, como era usual na época, esta seria apenas a língua que Maria teria estudado. Além disso, o pai de Maria dá-lhe certa medida de Independência ao levar em conta a sua opinião acerca do noivo a escolher, embora o casamento lhe seja imposto pelas convenções sociais. Maria escolhe Francis, justamente pela admiração que nutre pela sua educação britânica, preterindo outros candidatos, um dos quais tinha formação coimbrã. Apesar de discreta, esta subtil valorização de uma educação cuidada para as mulheres fez parte de uma das mais marcantes batalhas da vida de Guiomar Torrezão. No entanto, um dos aspetos mais curiosos do diário de Maria é a angústia que ela manifesta em relação ao seu casamento, inesperadamente sem qualquer referência à escolha do vestido ou da festa, como seria esperado. Pelo contrário, Maria expressa verdadeiramente “terror” (ibidem: 66) face à iminência do seu enlace, aspirando à liberdade das aves, revendo-se, porém, na situação de um “condemnado que espera (…) execução”. Curiosamente, depois do casamento, Maria só

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volta a escrever uma vez no diário, para se anunciar verdadeiramente feliz e “curada” das suas complicadas oscilações de humor, sendo que o miraculoso remédio foi o seu casamento, “a mais divina das instituições humanas” (ibidem: 72). Esta inversão abrupta assume uma dimensão quase cómica, contrastando todo o dramatismo de uma sucessão de entradas diarísticas, carregadas de uma dimensão trágica e assustadora, com uma só entrada tão idílica e, ao mesmo tempo, tão exagerada, que não parece um sentimento genuíno. De facto, Guiomar Torrezão esbate engenhosamente a visão decetiva do casamento como imposição social no último momento da narrativa, devido à necessidade de agradar ao seu público leitor, mas, sobretudo, a um sistema literário, regido por convenções patriarcais, onde a mulher só pode assumir o papel de mãe e esposa. Assim, esta estratégia de (dis)simular permitiu que Guiomar Torrezão tecesse um manto de resistência feminina:

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A transgressão está, muitas vezes, no não dito, produzindo humor dentro do contexto temporal e espacial. Torresão, como escritora, tinha que limitar sua expressão verbal, para não ser criticada e até mesmo condenada. Ao expor uma situação, revela mais do que palavras poderiam expressar. Faz uso do discurso hiperbólico e de uma retórica desusada. (Rector, 2005: 30) Como Penélope que desfazia o que tecera durante o dia, também Guiomar Torrezão teceu uma personagem que defendia o valor da educação e denunciava a violência da imposição social do casamento, mas anulando, no final, os seus efeitos. Assim, Guiomar Torrezão assumiu corajosamente a sua postura de mulher trabalhadora e independente, mas também marcou a sua posição como mulher escritora, que engenhosamente manipulou para “sobreviver num mundo que ainda não estava receptivo às suas escolhas e à sua forma de vida.” Aliás, retomando as palavras de apreço de Fialho de Almeida à sua memória, “esta mulher só teve, para ser verdadeiramente alguém, um obstaculo – o meio onde appareceu e se fez gente.” (Almeida, 1924: 188) 1.2 Maria Ondina Braga: “urdindo os fios que o Tempo destroçou”, em A Personagem Maria Ondina Braga (1932-2003) também revisitou o formato diarístico, com a publicação, em 1978, do romance-diário A Personagem. Neste diário, Paula, a protagonista, verte as suas pelejas

para se afirmar num mundo, regido por ditames masculinos. Este processo de afirmação envolve necessariamente um percurso de autognose e de reunificação da sua identidade, que se encontra estilhaçada e se projeta em Vânia, “a personagem” que ela criou, com quem convive, na esperança de dela fazer um romance. Assim, neste romance-diário, há um claro confronto entre os mundos masculino e feminino, onde Paula denuncia as diferentes perspetivas de mulheres de diferentes grupos e formações que a rodeiam. Apesar da datação não incluir uma menção direta ao ano a que este diário se reporta, existe a referência ao marco da Revolução de 74 como tendo ocorrido há apenas dois anos (Braga, 1978: 203), não tendo, por isso, ainda um impacto estrutural na libertação social das mulheres e, menos ainda, na mentalidade social em relação ao estatuto da mulher. Paula é uma mulher independente, que se orgulha de ganhar o seu sustento, que vive em união de facto com Raul, mas que nunca abdicou do seu pequeno apartamento. Porém, Raul pressiona Paula a deixar o seu trabalho: «Quando deixas esse maldito jornal? Trabalhar de noite, andar por fora de casa a desoras, não é para mulheres como tu, Paula. Para mais agora, com essa vadiagem por aí… Quando me fazes a vontade?» (ibidem: 14) A relação do casal deteriora-se e Paula lamenta a sua incapacidade de se entregar plenamente a Raul, recusando, porém, de abdicar do seu emprego, como é o desejo do companheiro, sendo que a sua independência financeira e a sua atividade profissional liberal são as únicas coisas que conferem significado à sua vida. No entanto, esta recusa e insubmissão ao padrão sociocultural de que uma mulher deve constituir família, dedicar-se ao marido e aos filhos não deixa de provocar um conflito interior em Paula, evidenciando que nem a própria diarista interiorizou o seu direito como mulher à liberdade: Será que não nasci para casar, para coabitar com um homem dia após dia, noite após noite, meses, anos? Nesse caso, a culpa é minha, que aceitei a sua companhia. Mas as outras mulheres? Com a Nucha? Com a Lourdes? As dezenas de mulheres que conheço, orgulhosas de ter marido, de falar do marido, de apresentar o marido… e às vezes que marido! Raul tem boa figura […], é amável, sabe muitas coisas, e, no entanto… Sofro por ser assim. Estou contra mim. (ibidem: 71, 72)

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No entanto, apesar de Raul condescender as aspirações de liberdade de Paula, ele revela também um discurso machista, considerando as suas reivindicações como caprichos, revelando que Paula, aliás, como qualquer mulher “precisa de alguém, precisa de um homem” (ibidem: 73) Aliás, bastante significativo é um diálogo com Raul, que Paula regista no seu diário, que sintetiza a diferença do estatuto social da mulher, em relação ao homem: - Já reparaste […] que tens muita liberdade, Paula? - Não sei a que te referes. - Bem, os meus amigos espantam-se desse teu emprego de noite, esse recolher de madrugada, sem nós termos necessidade disso. - Para mim é uma necessidade. E não foi o que combinámos quando nos juntámos: que eu ficava no jornal? - Combinámos!... Ora, combinámos!... Sabes que a lei dá ao homem direito de decidir sobre o modo de vida da mulher? Não sabias... - Sim, sabia. Mas que temos nós com a lei? […] Estamos fora da lei. - Compreendo. Por isso te interessa uma situação ilegal. Para fazeres o que te apetece, não? - Para ser livre. Para sermos livres. - Um homem é sempre livre. (ibidem: 166, 167) De facto, a lei desajustada, ainda reflexo do anterior regime, concedia direitos ao marido sobre a mulher e a sociedade impunha restrições morais à mulher, que ditavam os seus comportamentos e padrões aceitáveis, mas “o homem era sempre livre”. Esta desigualdade, que Maria Ondina Braga denuncia e que o casal Raul e Paula preconizam, demonstra a necessidade de a mulher lutar pelos seus direitos e de fazer valer a Revolução de Abril. Paula projeta-se na sua personagem, Vânia, cuja vida construiu e reconstruiu, atribuindo-lhe a coragem necessária para romper com um casamento insatisfatório, a atitude que Paula tenta tomar relativamente à sua relação com Raul. No entanto, a coragem de Vânia e os anseios de Paula são raros numa sociedade, onde as mulheres são coniventes com a sua própria discriminação e responsáveis pelo seu infortúnio, por motivos diversos:

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Sobrecarregadas com a lida da casa e a prole – algumas ainda trabalham fora –, e os homens sem nenhuma deferência, sem qualquer mostra de apreço. No entanto, elas dizem na mercearia, no talho: «O meu homem disso não gosta… Despache-me que o meu marido vem a casa almoçar…» Os maridos. Como aquelas bocas amargas, ansiosas ou desconsoladas, se enchem deles! Má sina a das mulheres, até das ociosas, as que levam o dia de seios espapaçados no peitoril da janela ou encostadas à ombreira da porta, de lábios pintados, soquinha de pau. São novas, são de meia-idade, engravidam, incham-lhes as veias das pernas, discorrem entre si sobre partos e abortos, ralham com os filhos, compram a Crónica na tabacaria defronte, estendem a roupa à janela, criam periquitos em gaiolas, lavam e cozinham para um homem que habituaram mimoso e que chega, come, e parte de novo, quantas vezes em busca de outra. (ibidem: 136, 137) Esta expressiva caraterização das mulheres que rodeiam a diarista demonstra a passividade com que as mulheres aceitam o seu cruel fado e, por vezes, até o procuram. Aliás, várias micronarrativas são descritas por Paula, histórias a que ela assistiu casualmente na rua, situações específicas de vizinhas, conhecidas e colegas de trabalho, ou até conversas com mulheres em ocasiões sociais ou com amigas que lhe pedem conselhos ou ajuda, demonstram a precariedade da condição feminina, mesmo depois da Revolução. Assim, Maria Ondina Braga, através do formato diarístico, não só denuncia a situação da mulher no período pós-revolucionário, mas também retrata todo o tipo de conflitos e contradições de uma mulher que tenta enfrentar os padrões patriarcais vigentes, através da perspetiva privilegiada do diário íntimo de Paula. 1.3 Olga Gonçalves: rompendo os fios do tear, em Sara Olga Gonçalves (1929-2004) deu à estampa, em 1986, Sara, um romance-diário que reflete sobre o Portugal do pós 25 de Abril. Sara1 é uma jovem 1 Sara é também a protagonista de Mandei-lhe uma Boca (1977), onde surge como uma adolescente de dezassete anos, em rota de colisão com o poder parental, com questões existenciais e problemas como namoros, drogas e aborto. O romance representa um longo diálogo, aliás, na verdade, monólogo, já que a interlocutora Riva, amiga e confidente, não se manifesta, apenas ouve Sara: «Nesta obra, Olga Gonçalves apresenta-nos o longo discorrer de uma adolescente (Sara) em busca de si própria. A personagem constrói-se pouco a pouco, através de um discurso directo, aparentemente espontâneo, dirigido a Riva (uma amiga da mãe) que assume as funções de narratária silenciosa, e cujas reacções vamos conhecendo de forma indirec-

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estudante de filosofia, de 25 anos, que retrata a apatia da sua geração e avalia os efeitos da Revolução dos Cravos, mas também tenta descobrir o seu lugar no mundo, resolver os seus conflitos e consolidar a sua identidade. No incipit, são fornecidas pista de leituras importantes para a compreensão da obra, sobretudo, para justificar ao leitor o seu acesso a um diário que não lhe pertence, um expediente formal que corrobora o mimetismo do subgénero do romance-diário: Voltou ao quarto, fechou a porta, aproximou-se do baú. Tocando-lhe levemente, ajoelhou, depois sentou-se na carpete. Sabia-lhe bem ficar ali, o coração a bater descompassadamente, ficar ali tamborilando os dedos, comprazer-se na memória das folhas arrancadas aos diários. A selecção estava feita. E as alterações que se propusera. Numerava finalmente as páginas. […] foi buscar uma pequena lapiseira à secretária preparando-se para a última censura. 378

Ergueu a tampa do baú. Com os olhos cheios de centelhas retirou um pesado maço de folhas manuscritas. […] Era fácil dizer: ‘Tenho aqui o meu primeiro romance’! Excessiva a pergunta: ‘Quero eu preservar a minha imagem para o futuro?’ talvez a condição existencial do homem pudesse tornar-se no futuro um ritual iluminado. Sem a carência de outros indícios, outras viagens, a desmaiada memória de outro tempo. Antes de fazer uma leitura definitiva, encostou ao peito o volume que parecia agigantar-se, abranger o mundo inteiro. Surpreendeu-se a reflectir no poder mágico desse contacto. (Gonçalves, 1986: 9) Este trecho inicial adverte o leitor que o conteúdo que se seguirá é fruto de uma seleção criteriosa de “folhas arrancadas aos diários”, submetidas a uma cuidadosa revisão e “censura”, com o objetivo de publicar o primeiro romance de Sara. O gesto simbólico de retirar o diário do baú, um lugar secreto e valioso, para mostrá-lo ao mundo implica o encerramento de um ciclo da sua vida, a superação dos seus conflitos e a completude do seu processo de maturação. No entanto, como refere Silva-Brummel, este percurso de Sara representa também o lento prota.» (Besse, 1994: 91)

cesso de emancipação da mulher: Ao desenterrar o seu diário do fundo da arca, Sara revive as derrotas sofridas e as vitórias ganhas ao longo do seu processo de amadurecimento. A construção da sua identidade está concluída. Sara tem agora a sua vida nas próprias mãos. O seu diário é o testemunho dessa longa caminhada que permite a Olga Gonçalves e, em última instância ao leitor também, tomarem consciência da luta da Mulher Portuguesa contemporânea pela sua emancipação. (Silva-Brummel, 2002: 193) De facto, um dos vetores temáticos mais evidentes no diário de Sara é a condição da mulher, na medida, em que retrata diferentes mulheres, com atitudes distintas perante a reivindicação dos seus direitos. Sara evidencia assim a morosidade do processo de libertação de expressão das mulheres, mas também da liberdade de decidir a sua postura perante o casamento, a maternidade e a sociedade. Por exemplo, quando Sara passa três dias no Gerês, ela observa cuidadosamente Alcina, mulher do feitor, que, embora doente, executa tarefas pesadas na quinta, para além de todos os afazeres domésticos, como a preparação das refeições, da manutenção das roupas e até do cuidado da saúde de toda a família. Para além desta vida árdua de trabalho, esta ainda se encontra limitada pelas duras imposições do seu marido: O meu homem não autoriza que eu corte o cabelo. Mas também não mo quer ver pelas costas abaixo. O meu homem não gosta que eu vá daqui ao povo sem lhe dizer nada, melhor explicando, sem lhe dizer ao que vou. O meu homem não quer que eu pare a falar com os vizinhos. O meu homem, só se lhe agrada, mas franze quase sempre o nariz à comida. […] O meu homem, quando chega daí de fora, aborrece-se de me ver parada, para ele só estou bem a mexer! […] O meu homem, à noite dão a telenovela, mas tenho logo que me deitar, desliga o aparelho, porque o resto não lhe interessa, a não ser em alturas de futebol. (Gonçalves, 1986: 68) Para Sara, a condição de Alcina, que representa a mulher rural, é inaceitável e ela própria manifesta o seu incómodo perante esta realidade:

Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

E esta mulher não diz basta!, sem coragem, sem asco, sem vontade de se atirar para o chão, correr pelo jardim, pelos campos, deixar para trás a casa, um dia só, somente algumas horas, as janelas abertas, o portão escancarado. (ibidem) A mentalidade de subserviência a uma sociedade patriarcal também subsiste nas cidades, embora já se assistam a mudanças graduais. Um episódio paradigmático desta confrontação de realidades distintas passou-se na casa de Sara, quando foi necessário contratar uma empregada doméstica para ajudar Cândida: É verdade. Sim. Desde 74, assistimos gradualmente a grandes transformações. Um exemplo o pessoal doméstico. Tem sido rápida a sua extinção. A Idalina arranjou trabalho na fábrica de Sacavém, decretando aos berros que não servia a senhores, que essas coisas terminaram. Mala feita, apareceu metida nuns jeans muito apertados que ninguém lhe tinha visto. A substituta dela, a Dores, que já custou a encontrar, […] foi sol de pouca dura. Em pouco meses, passou-se para a caixa de um supermercado, o Pão de Açúcar, e falava daquilo como quem vai sentar-se num cadeiral em Buckingham Palace. Com a Dores ficou a Cândida em estado de choque, e assim continua. (ibidem: 19) A recusa de Idalina e de Dores de servirem como domésticas, ofício reminiscente a um regime senhorial, trocando por outros trabalhos, não por questões remuneratórias, que nem são evocadas no texto, mas pela libertação da submissão ao senhor da casa. Aliás, o episódio entre Cândida rapidamente resvala para o papel da mulher, não só na sociedade, mas na família, invocando a autoridade religiosa como fundamentação, que foi sempre a principal aliada da ordem patriarcal: Não, a Cândida não apoia o novo contexto social, e muito menos a revolução feminista: ‘ A minha mãe era um cravo perfeito, quinze filhos e obediência cega ao meu pai’. Coitada da minha velha Cândida! A Dores ainda ouviu esta, e desagradou-lhe a comparação. Era daquelas que não precisava de muita bibliografia: ‘Um cravo perfeito? Ó senhora Cândida, cravos só os do 25, que eu até gosto deles, mas a sua mãe viveu longe destes tempos.’ […]

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Claro que a polémica deu pano para mangas. Grande discussão, em alta sonoridade, a contestação de hábitos, reacções e inclinações, mas nenhuma se rendeu. E, em fabulosa trajetória, foram parar a uma passagem dos Evangelhos muito da simpatia da Cândida, as palavras da Virgem Maria quando da Anunciação do Anjo: ‘Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a Vossa palavra. (ibidem: 20) No entanto, quando Sara retrata os seus amigos e conhecidos da sua faixa etária, muitas vezes, estes contrastes também se evidenciam, de uma forma preocupante “por ser mais cómodo” marido e mulher não terem que competir um com o outro, já que “será só um a correr para o escritório”, enquanto que a “mulher é só moldá-la aos electrodomésticos e às receitas de Pantagruel.” (ibidem: 32, 33) Este é o modelo que Guilherme, seu companheiro, idealiza numa mulher, subserviente e que seja esposa e mãe, ocupando-se da família, enquanto ele, devido a motivos profissionais, está sempre a viajar. No entanto, Sara, que durante algum tempo se acomoda à presença de Guilherme e se deixa vencer pelo prazer carnal que este lhe proporciona, toma a decisão de romper com esta relação por não se rever no modelo de mulher que este deseja. Aliás, Sara, que na adolescência fez um aborto clandestino, reivindica o direito de rejeitar a maternidade, o que ainda hoje gera alguma controvérsia. Aliás, no romance, encontramos, pelo menos, dois exemplos, que Sara critica, de mulheres jovens como ela, que também integravam esta geração da liberdade, da libertação do corpo e da sexualidade, mas, que tentaram aprisionar homens numa relação, através de uma gravidez, sem se aperceberem que era a si próprias que estavam a tentar agrilhoar (ibidem: 32, 174). Assim, a libertação de Sara de uma relação sufocante representa a gradual libertação da mulher portuguesa, no seu lento percurso e na sua aprendizagem. No diário, a liberdade reflete-se também ao nível linguístico, através de vocabulário informal, do uso de calão, mas também da abordagem direta e frontal de tabus sociais. A própria diluição de fronteiras entre o real – o suposto diário de Sara – e a ficção – a sua conversão em romance, desafia as convenções literárias. De facto, este romance faz a apologia da liberdade a vários níveis, que o próprio formato diarístico consubstancia, pela ausência de códigos formalizantes e de estruturas rígidas. Assim, a ficção diarística apresenta inúmeras potencialidades na representação do universo fe-

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minino. O diário permite, não só retratar a condição da mulher, mas como esta a vivencia e a conceptualiza no seu íntimo. Este livre acesso à voz interior da mulher potencia também a crítica e a denúncia sociais, a dúvida e a reflexão sobre as convenções estabelecidas. O diário, como um tear prolífico, tem urdido telas magníficas de afirmação feminina, por Penélopes distintas, mas sempre engenhosas.

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Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino

NIKETCHE – Subalternidade e Poder: Falar e Agir Anabela Gonzaga Penas Agrupamento de Escolas Josefa de Óbidos. Portugal (Professora efetiva do Ensino Básico e Secundário no Agrupamento de Escolas Josefa de Óbidos.)

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Resumo: Paulina Chiziane, a primeira romancista moçambicana, que se diz “contadora de estórias”, porque se inspira nos contos escutados à volta da fogueira, viu em 2002 o seu romance Niketche, uma história de poligamia ser editado. Embora no contexto africano as mulheres ocupem um lugar de relevo, como símbolos de fertilidade, no sul de Moçambique convivem com um duro paradoxo (regime patriarcal imperante e princípios tradicionais), que confere uma posição de inferioridade e de conformismo. Sintoma de uma herança cultural, que remonta à génese, a mulher, sujeita à hegemonia masculina, parece condenada à subalternidade. Neste ambiente, Paulina, mesclando uma variedade de informações, conta a história de amor entre Rami e Tony. Traída pelo marido e convicta de que o mesmo possuía relacionamentos amorosos com quatro mulheres em diferentes localidades do seu país, Rami é a mulher sofrida e oprimida, porém, nutrida de força, sabedoria e determinação. Respeitando as tradições e enfrentando a modernidade, Rami e as restantes personagens femininas responsabilizam-se pela construção do próprio destino, pois encaram e ultrapassam adversidades, para reencontrarem a autoestima e o amor. Ler Niketche significa mergulhar num processo de escrita feminina e averiguar de que modo Chiziane, através dum discurso no feminino, integra a nação; permite escutar a voz de Rami (protagonista e narradora em primeira pessoa) e simultaneamente a voz das mulheres moçambicanas; consente analisar o caminho traçado e percorrido por Rami e desvendar a forma de vencer a condição de subalternidade. A escritora retrata o universo feminino, aborda a questão do amor, da traição, do sofrimento, da paixão e espelha o modo como a mulher moçambicana ganha voz e atua, para edificar a sua própria identidade cultural e / ou nacional e de que modo essa edificação está condicionada pelo poder masculino dominante. Dissemos tudo, Gritámos tudo. Vomitámos toda a amargura que os nossos peitos carregam, até as cordas vocais ficarem roucas. Ele escuta em silêncio e responde com duas lágrimas. E deixa-nos gritar a vento para afastar as achas de fogo que queimam as nossas almas, curandeiras de nós próprias. Mas ele não se assusta e nem treme com a violência dos nossos gritos, porque as vozes das mulheres não atingem os céus. Paulina Chiziane, Niketche

Introdução Em pleno século XXI, numa fase em que diariamente se apregoa a igualdade entre os cidadãos, muitas mulheres veem os seus direitos fundamentais serem desrespeitados. Se, por um lado, verificamos que muitos lugares de chefia são ocupados por figuras femininas, a quem é reconhecido mérito; por outro lado, não pode passar despercebido o

facto de os meios de comunicação darem conta de acontecimentos reveladores da violação sistemática dos direitos da mulher. No contexto africano, as mulheres ocupam um lugar de relevo, porque encaradas como símbolo de fertilidade. No caso de Moçambique, especificamente no sul, convivem com um duro paradoxo: o regime patriarcal imperante e os princípios tradi-

Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino

cionais, que conferem uma posição de inferioridade e de conformismo, face a um casamento de submissão. A mulher vê a sua existência confinada ao serviço da casa, dos filhos e dos demais. Ao debruçarmo-nos sobre a condição feminina, não podemos alhear-nos de toda uma linha de pensamento, que perpassou ao longo dos séculos e que permanece hoje. Sintoma de uma herança cultural e mental, que remonta à génese, a mulher, sujeita à supremacia masculina, parece ainda condenada à subalternidade. Mergulhar no universo feminino de Paulina Chiziane, através da leitura da obra Niketche, Uma história de poligamia, significa imergir num processo de escrita feminina e averiguar de que forma a autora, através dum discurso no feminino, integra a nação; permite escutar a voz de Rami e a voz das mulheres moçambicanas; consente analisar o caminho traçado e percorrido por Rami, para ultrapassar a condição de subalternidade. A escritora retrata o universo feminino, aborda a questão do amor, da paixão, da traição e do sofrimento e espelha o modo como a mulher moçambicana ganha voz e atua, para edificar a sua própria identidade cultural e / ou nacional e de que modo essa edificação está condicionada pelo poder masculino dominante. A escrita feminina: tomar a palavra, integrar a nação Numa cultura hegemonicamente masculina, que submerge a mulher na sombra, caberá analisar a possibilidade de alguém, condenado à subalternidade, tomar a palavra. Gayatri Spivak, com base no exemplo da colonização da Índia pela Inglaterra, reflete sobre a oportunidade do subalterno ter voz e de ter espaço de expressão natural. Toma a aceção de “subalterno”, não só como o oprimido, mas como não participante no circuito do imperialismo e defende que os subalternos não podem falar, porque, se o fizerem, deixam de o ser. Em relação à mulher, com um exemplo da cultura indiana, o sati, sutee1, sustenta que se encontra duplamente na obscuridade, porque não se autorrepresenta fora dos contextos patriarcal e pós-colonial (Spivak 2009). A posição de Spivak motivou a nossa reflexão sobre a escrita feminina, visto que a literatura criada por mulheres, em sociedades pós-coloniais (que poderiam ser vistas como “subalternas”), tem encontrado a sua voz, fazendo-se ouvir. Admite-se uma evolução considerável, mas a mulher africana 1 sati, sutee – ritual do suicídio da viúva na pira funerária do seu marido, para salvar o seu próprio corpo em reencarnações futuras.

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ainda sente o fardo das desigualdades impostas pela lei, pela tradição e pela mentalidade: «desdobra-se em fêmea, progenitora, educadora, doméstica e figura pública, entre outros “papéis” sociais» (Laranjeira 2007; 527). Não é fácil “escrever no feminino”, todavia, como em África a escrita ainda é poder, a escritora africana pode ser “porta-voz” da subalternidade feminina. Quando se usa a expressão “escrita feminina”, considera-se o discurso que «representa um universo ficcional visto, vivido e sentido por uma mulher, a revelação de uma vida no feminino» (Rainho e Silva 2007; 520). Quando se utiliza o enunciado “escrita feminista”, fala-se de um discurso que «resulta de uma espécie de evolução cultural e revela um leque de estratégias discursivas (…) passando pelo questionamento e pela denúncia de valores opressores da liberdade de identidade, impostos» (ibidem; 520-521). Caberá pensarmos se em Niketche se aplicam estas duas conceções de escrita. A obra, escrita por uma moçambicana, o que pressupõe a priori a revelação de uma experiência distinta da dos homens e específica de um determinado contexto, tem como narradora a protagonista Rami. Esta mulher vive em Maputo (meio urbano) e, após duas décadas de casamento cristão, descobre que o marido Tony é informalmente polígamo. Saturada da sua ausência como esposo e pai, parte à sua procura e confronta-se com mais quatro mulheres, vários filhos e muitas interrogações. A partir desse momento, Rami vai realizar um percurso de conhecimento: questiona a situação em que vive e tenta fundamentá-la; toma consciência da sua inserção numa sociedade de contradições, entre um passado com tradições ancestrais e um presente submetido a ideais coloniais; analisa o papel e a condição das distintas mulheres do seu país; questiona e denuncia o sistema que a rodeia; programa e executa um processo de vingança; realiza uma descoberta da sua identidade. Embora presa na teia da tradição, Rami simboliza a regeneração: verbaliza o seu inconformismo e a sua rebeldia; evidencia capacidade de iniciativa e sustenta a urgência da mudança. Se atendermos às conceções de “escrita feminina” e “escrita feminista” citadas previamente, Niketche é um exemplo de discurso no feminino, com tendência feminista; contudo, mais relevante será reconhecer que a obra rompe com o silêncio e dá corpo à voz, com base nesse mesmo silêncio. Ao refletir sobre os valores sociais, históricos e culturais que aprisionam Rami, a narrativa torna-se o percurso praticável, em que o sujeito feminino cria a sua própria subjetividade, pois, na luta pela

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sobrevivência, reinventa a sua própria identidade. Esta nova abordagem, oferecida em Niketche, destrói a visão tradicional, que ficciona na ótica dos dominadores, sem pesar a dos oprimidos. Esta obra é como um corpo que ganha vida e que «não se quis mais esconder, mas gritar a sua diferença e seu modo muito próprio de, encenando-se, enfrentar a política do silêncio» (Padilha 2007; 486). Consciente de que a escrita, que busca dar visibilidade a problemáticas que afetam a mulher, promove uma cultura de equidade e uma cidadania participativa, Paulina escreve Niketche, uma narrativa moçambicana, escrita por uma moçambicana, sobre a mulher moçambicana, incidindo sobre os paradigmas da sociedade moçambicana machista, a repressão e a violência contra a mulher, a situação das esposas dentro da poligamia e as soluções possíveis para atenuar os dramas femininos. Num país em que o domínio da escrita é quase unicamente masculino, Chiziane percorreu um longo caminho até ao reconhecimento. Convirá ouvir a sua voz, legitimando a criação literária: «Olhei para mim e para as outras mulheres. Percorri a trajectória do nosso ser, procurando o erro da nossa existência. Não encontrei nenhum. Reencontrei na escrita o preenchimento do vazio e incompreensão que se erguia à minha volta. A condição social da mulher inspirou-me e tornou-se meu tema. Coloquei no papel as aspirações da mulher no campo afectivo para que o mundo as veja, conheça e reflicta sobre elas. Se as mulheres não gritam quando algo lhe dá amargura da forma como pensam e sentem, ninguém o fará da forma como elas desejam» (Rainho e Silva 2007; 519) Infere-se que, como mulher, sente, questiona e fala sobre mulheres. Todo o ser humano é fruto do meio cultural em que foi sociabilizado e Paulina não é exceção: conviveu com os valores tradicionais moçambicanos e os oriundos da tradição europeia; fá-los conviver em Niketche; harmoniza tradição com modernidade. Primeiro, salientamos a convivência da tradição oral no texto literário. Não assumindo a sua condição de romancista, mas afirmando-se contadora de estórias, a escritora reclama as suas raízes na tradição oral, ao incluir no discurso pequenas histórias de tonalidade oral, apesar de Niketche apresentar as características de um romance, segundo o cânone ocidental. Segundo, realcemos o convívio entre a língua portuguesa e os elementos linguísticos da cultura autóctone. A escolha de um vocábulo bantu - Niketche2 - como título do romance

pode causar alguma perplexidade a um leitor não moçambicano; porém, a apropiação da língua de colonização, como instrumento de expressão literária, é uma porta de entendimento e sintoma da sua perceção de que assim pode ser mais amplamente escutada. Terceiro, destacamos a convivência dos costumes da sociedade africana com a modernidade. Rami, exemplo do processo de aculturação ocorrido no território africano, ao descobrir a traição do seu marido e o seu relacionamento amoroso com quatro mulheres de diferentes zonas do país, indaga respostas nos costumes antigos, mas não se consegue abstrair da sua condição, pelo que são notórias oscilações e inseguranças nas suas escolhas: «Ah, meu bom Deus! Este bruxo estragou o meu momento (…) Fiz de tudo (…) Comecei a frequentar em segredo uma seita milagrosa. Fiz-me baptizar no Rio Jordão (…) Fiz banhos de farinha de milho. De pipocas. De sangue da galinha mágica. Soltei pombos brancos…» (ibidem; 66-67) Vive um casamento católico; porém, sujeita-se aos ritos ancestrais, quando, sabendo que Tony está vivo, aceita a condição de viuvez e o consequente levirato: «Olho para o Levy com olhos gulosos. Ele será o meu purificador sexual, a decisão já foi tomada e ele acatou-a com prazer. Dentro de pouco tempo estarei nos seus braços, na cerimónia do Kutchinga». (ibidem; 220) Quatro, constatamos a criação de um espaço ficcional que deixa de ser um retrato para ser uma reflexão. Há uma escolha simbólica das protagonistas, que abandonam o perfil das mulheres moçambicanas, com uma vida apagada, e que dão lugar às que não deixam de estar ligadas à pátria e às tradições, mas que têm força para exteriorizar os seus sentimentos e para superar a sua condição de subalternidade, esperando ser encaradas pelos homens com um “novo olhar”. Rami e as suas rivais, cada uma na sua especificidade, lutam quotidianamente pela sua sobrevivência: «Atravessaremos o mar com a nau dos nossos olhos porque saberemos navegar até ao além-mar e levaremos a mensagem de solidariedade e fraternidade às mulheres dos quatro cantos do mundo» (ibidem; 292). Com base nos paradigmas moçambicano e europeu assimilados, Chiziane apela à mudança consciente. Molda figuras femininas, que, pelo poder da voz e da ação, se soltam das amarras do passado e do presente, criam a sua identidade e gritam a sua independência: redefinem a vida, reescrevem os seus destinos e o da nação.

2 Originária da Zambézia e de Nampula (região norte de Moçambique) niketche é uma dança, que constitui uma espécie de expressão autêntica da feminilidade moçambicana, numa parte do país onde o mundo familiar é essencialmente matriarcal, estabelecendo-se um contraponto com a tradição

da região sul, dominada pelo patriarcalismo, espaço de origem da protagonista (Chiziane 2002; 160-161).

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A voz que dá voz: uma por todas Em África, os escritores de língua portuguesa, impedidos de falar e atraídos pela luta de libertação, acreditavam que, após a independência, poderiam quebrar o silêncio; porém, a voz da mulher criadora persistiu muda, porque votada à inferioridade. Quase duas décadas após a independência de Moçambique, Chiziane publicou o seu primeiro livro e tornou-se numa das vozes que desvendam a força da mulher moçambicana para vencer resistências. Em Niketche, Rami é a voz: eleita protagonista e narradora das suas estórias, é uma subalterna, inserida na elite intelectual, que se torna agente denunciador. O seu discurso está construído de modo a que se aproprie da voz, questione, denuncie, reflita, construa a sua identidade e induza a mulher moçambicana a mudar. O romance, pelas suas especificidades, permite uma análise desmistificada da condição de Rami e de todas as que vivem como ela. Logo no início, incomodada pela ausência do marido, confessa o seu sofrimento: «Entro num delírio silencioso, profundo. Rajadas de ansiedade varrem-me os nervos como lâminas de vento (…) Sou uma mulher de bem (…) Uma revolta interior envenena todos os caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na boca. Náuseas. Revolta. Impotência e desespero» (ibidem; 12). Paralelamente ao relato da sua saga, comenta as realidades femininas que lhe são próximas: «Olho para todas elas. Mulheres cansadas, usadas. Mulheres belas, mulheres feias. Mulheres novas, mulheres velhas. Mulheres vencidas (…) Vivas por fora e mortas por dentro, eternas habitantes das trevas» (ibidem; 14). De igual modo, conta experiências alheias, opina sobre elas e infere. Lembremos uma história contada pela mãe, a propósito da morte da tia de Rami, devido a uma moela de galinha: «A história tem sobre mim um efeito terapêutico, a minha dor torna-se insignificante (…) Ai mãe, obrigada por me contares esta história! Agora consigo ver que não sou a única que sofre e que no mundo há problemas muito mais graves que o meu (…) Mães, mulheres. Invisíveis, mas presentes (…) Mulheres de ontem, de hoje e de amanhã, cantando a mesma sinfonia, sem esperança de mudanças» (ibidem; 103). Rami usa a palavra para vivificar situações, sentimentos e intenções; logo, o discurso é intenso, comovente e apela à reflexão do leitor, sobretudo pelo tom dramático, com tonalidade oralizante. Em demanda de respostas para questões que envolvem a mulher moçambicana, seria difícil não considerar o homem. Em Niketche, a figura masculina que se contrapõe a Rami é o seu marido

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Tony, homem de estatuto social elevado, pouco apto para a vida conjugal e social. Por conseguinte, pela voz de Rami, são atacadas diversas questões masculinas, discutidas ideologias machistas e desaprovadas posturas viris, todas agenciadas por Tony, mas generalizadas aos machos do sul do país: «Tende piedade de todos os homens que cometeram os crimes mais hediondos em nome da tradição e da cultura» (ibidem; 202). Ciente da poligamia informal do marido e da sua condição de subalterna, tal como as suas rivais, afirma a sua crença de alterar a situação: «Eu não desisto desta luta» (ibidem; 71). Constatamos que, para além de uma atitude subversiva, que passa por querer dizer, dar a pensar que não diz, mas dizer, Rami estabelece diálogos com o seu espelho, as rivais, o marido, a mãe e a tia, através dos quais vai ter oportunidade de mergulhar na sua origem feminina e de descobrir-se como mulher. Se, no início, convivemos com uma Rami cuja batalha era calar as angústias e cuja existência era nula [«Quero libertar a raiva de todos os anos de silêncio (…) hoje quero existir» (ibidem; 20)], ao longo do texto, aferimos que vai obtendo poder pela voz, com que açoita Tony [«A minha linguagem é mais dura que uma rajada de granizo. Chicoteia. Eu dizia tudo sem rodeios» (ibidem; 228)], chegando a roubar-lha [«Ele não fala. Murmura e a sua voz se escuta doce e melódica como o assobio dos pinhais» (ibidem; 236)] e a destruí-lo com uma frase [«- O filho é do Levy!» (ibidem; 336)]. Ao invés do que defende Spivak, que invalida a subalternidade, quando se tem voz, apesar da máscara ficcional, Rami ganha-a e tenta reconfigurar a cidadania moçambicana. Com a independência de Moçambique (1975), iniciou-se a descolonização, que não implicou um corte total com a presença do colonizador, mas que originou questões tão graves quanto o período colonial, porque, primeiro, menosprezou a cultura autóctone e, depois, negou os valores apreendidos como sendo inteiramente seus. Niketche surge neste contexto. Chiziane vai problematizar os anos subsequentes ao período pós-independência, sem esquecer o seu objetivo de «representar lugares esconsos por onde caminha a condição subalterna da mulher» (Mata 2007; 437). Analisemos as reconfigurações sofridas pelas mulheres e a forma como as tradições locais sobreviveram ao novo modelo social. Numa sociedade aculturada, a mulher necessita de sofrer um novo processo de autorreconhecimento, para encontrar o seu espaço social, visto que está estigmatizada pelo encontro com a outra cultura e, ainda mais grave, pela perda

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do modelo da tradição ancestral que aprendeu a seguir. Em Niketche, a voz das mulheres moçambicanas vai ouvir-se à medida que o trajeto de Rami vai sendo traçado, facultando uma reflexão sobre os sentimentos partilhados por uma comunidade. Rami, entre a tradição e os sistemas impostos, personifica todas as mulheres aculturadas que perdem o seu espaço e a sua identidade: «Preciso de um espaço para repousar o meu ser (…) Na terra do meu marido sou estrangeira. Na terra dos meus pais sou passageira (…) Não sou nada. Não existo em parte nenhuma» (Chiziane 2002; 92). O seu casamento seguiu o padrão europeu (monogamia), mas o seu marido age em consonância com o modelo ancestral: «Poligamia é o destino de tantas mulheres neste mundo desde os tempos sem memória (…) Praticam uma poligamia tipo ilegal» (ibidem; 94). Rami procura justificação para esta realidade, que não é só sua, para perceber o papel da mulher «na Moçambique urbana e contemporânea» (Dutra 2007; 312). Durante o percurso de autognose, redescobre valores ancestrais aliados à poligamia, que legitimam as contradições sociais reais: «Preparou a moela cuidadosamente e guardou numa tigela. Veio o gato e comeu (…) O homem sentiu-se desrespeitado e espancou-a selvaticamente» (Chiziane 2002; 102); «Eram famílias verdadeiras, onde havia democracia social (…) Tínhamos o nosso órgão (…) onde discutíamos a divisão do trabalho, decidíamos quem iria cozinhar (…) Participávamos na feitura da escala matrimonial (…) E ele cumpria à risca» (ibidem; 73); «Diz que a grandeza de um homem se afirma pelo número de filhos que tem. Que a poligamia é a natureza do homem (…) Que um homem que se preze tem que ter pelo menos três mulheres» (ibidem; 115). Ao conhecer as suas rivais, Rami vai engrandecer o conhecimento do seu país e reconhecer a heterogeneidade de culturas que o caracteriza. De distintas regiões, afluíram à capital e foram conquistadas por Tony, o “pentágono”. Pela voz desta metáfora nacional, são desvendados as histórias de vida, os segredos, as formas de viver e de conviver. Através delas, Rami revela a grande disparidade cultural entre norte e sul, sobre questões como a relação homem / mulher, o amor e a felicidade, a liberdade sexual, os ritos de iniciação, a morte. Rami constata que no norte, onde impera o sistema matriarcal, as mulheres são iniciadas na arte do prazer sexual, aceitam o concubinato, encaram o homem como “pão”. Por oposição, «No sul, as mulheres são exiladas no seu próprio mundo, condenadas a morrer sem saber o que é o amor e vida» (ibidem;

171). Porém, independentemente das suas origens, todas elas, de algum modo, acabam por ser vítimas dos sistemas do passado e do presente, que as coíbem de agir. Paulina, através de Rami, dá voz às mulheres moçambicanas vítimas da crueza da vida, exploradas sexualmente, da diversidade de mundos e culturas e da poligamia. Propicia uma análise sobre os traumas da colonização3, mas em especial incita a refletir sobre a condição da mulher de Moçambique e não só [«Há milhões de milhões em todo o mundo» (ibidem; 246)], a qual precisa ter espaço de atuação e direitos reconhecidos, ou seja, descobrir o seu espaço no seio de uma sociedade de pressupostos patriarcas. O poder da palavra: discurso e ação Num país como Moçambique, em que a taxa de analfabetismo é ainda muito elevada, incidindo, a nível social, no sexo feminino, ter o poder da palavra é privilégio de uma minoria, sobretudo se for mulher. Rami é mulher, tem estatuto social, é instruída e cosmopolita, mas subalterna. Chiziane não escolhe arbitrariamente a sua narradora-protagonista: através da voz de Rami, revela o seu posicionamento e alerta para a condição feminina moçambicana, pelo que, face à sua situação, Rami questiona-se em frente ao espelho, o seu interlocutor. Ao longo da diegese, aparece verbalizada a obediência de Rami, o que não é casual: existe interrogação e busca de mudança, mas a condição de subalternidade não desaparece. A submissão e a anulação são assumidas como dado adquirido, sintoma do relacionamento com Tony, porque abdica de si própria, para o satisfazer: «Obedecer, sempre obedeci. As suas vontades sempre fiz. Dele sempre cuidei. Até as suas loucuras suportei (…) Sacrifiquei os meus sonhos pelos sonhos dele, a minha vida» (ibidem; 16). A servidão adquire uma feição social: «culpam as mulheres de todos os infortúnios da natureza. Quando não chove (…) Quando há cheias (…) Quando há pragas e doenças, a culpa é delas (…)» (ibidem; 38). A submissão alarga-se à família, que a sujeita ao levirato, em nome dos costumes dos antepassados: «Invocaram a tradição e a religião e mandaram-me calar a boca. (…) Fizeram-me isto porque sou viúva» (ibidem; 215). Apesar da subalternidade assumida, vivendo o dilema do casamento monogâmico com um marido polígamo, Rami inicia um processo de ques3 Atente-se na mulher da Zambézia, mãe de cinco filhos, marcada pela história (Ibidem, p. 277).

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tionação, no sentido de entender as razões para a poligamia e o modo como ela a afeta. Essa atuação, operada frente ao espelho, aufere um cunho pessoal, que se alarga ao social. Do ponto de vista pessoal, Rami faz daquele objeto um confidente, que interroga sobre a sua condição de mulher, sobre a beleza, qual madrasta da Branca de Neve e sobre as aulas com a conselheira de amor, para tentar segurar Tony. Ao analisarmos os diálogos com o espelho, percebemos que ele é a “voz” do inconsciente e que simboliza o autorreconhecimento de Rami, mulher aculturada, que incorpora as culturas tradicional e ocidental. Quanto à interrogação social, Rami inquire a sociedade moçambicana e os estatutos que certificam o sistema patriarcal; denuncia o sistema colonial e a Igreja, por destruírem a ancestralidade; indaga a aceitação da poligamia como garante de um estatuto. Olhando para o exemplo de submissão de Rami e para a sua capacidade de questionar-se e de questionar a sociedade moçambicana do período pós-independência, Chiziane «actualiza um discurso que inclui o questionamento e a denúncia, dando voz e criando espaços de reflexão ao sujeito que é “silenciado”, tendo como intuito apelar à mulher moçambicana para uma mudança consciencializada» (Mata 2007; 437). Chiziane, empenhada nas problemáticas próprias das relações entre homens e mulheres, pois perceciona a subalternidade da mulher moçambicana, poderia cingir-se a uma análise das condutas masculina e feminina; todavia, o romance apresenta-se como «uma diatribe aberta e descomplexada, mas acutilante, que se transforma numa espécie de farra hedonista, burlesca e simbólica sobre as causas profundas do mal-estar feminino» (Laranjeira 2007; 532). Em rigor, Rami, não só conta a sua trágica história, como aperfeiçoa e subverte os saberes ancestrais, premedita uma vingança astuciosa e direciona as ações para envolver Tony numa “teia nacional”, que o derruba do trono. Convicta de que existe para servir Tony e ser maltratada e traída, Rami desabafa a sua fúria e, como esposa legítima, atua, a partir dos conselhos femininos, para segurar o marido. Esta estratégia consiste em conhecer as rivais e tentar derrubá-las; ter aulas com uma conselheira de amor; recorrer à magia, à feitiçaria e à religião; porém, toma consciência de que as suas adversárias também sofrem e de que nada valeu o plano. Impotente para prender Tony, Rami esboça uma alternativa, que passa por desafiar toda a “teia” criada por ele e apanhá-lo nela: «Acabei de aprender a lição da vida. História de um amor só, um amor imortal? Balelas! (…)

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Amar uma vez na vida? Tretas. Só as mulheres, eternas palermas, engolem esta pastilha. Os homens amam todos os dias (…) Todos os homens são polígamos (…) Eu não desisto desta luta (…) Hei-de apanhá-lo nem que esse seja o último acto» (Chiziane 2002; 71). Para acionar o novo plano, Rami procede a uma redescoberta do sistema poligâmico e de tudo o que implica por parte do homem e das respetivas mulheres e une as esposas de Tony. Essa união permite-lhe o convívio, a partilha das angústias e a descoberta de qualidades que ignorava ter, como a coragem, a força, o poder e a capacidade de amar e amar-se. No fundo, apanhadas no abismo de uma relação poligâmica, feita à medida do polígamo, as mulheres obrigam-no a respeitar a instituição nos seus direitos e deveres: «É preciso inverter a ordem das coisas (…) Somos cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão (…) Não estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme da vida e traçar o destino» (ibidem; 107). Essa inversão traduz-se num conjunto de ações surpreendentes e devastadoras para Tony: a apresentação das rivais e dos filhos à família de Tony, no seu aniversário, perante os convidados e consequente reconhecimento; a exigência e a concretização dos lobolos; o incentivo, o apoio financeiro, o incremento, o sucesso dos negócios das mulheres e a sua independência económica; a exigência e a incapacidade dos deveres conjugais; a realização dos parlamentos conjugais, dirigidos por Rami, para discutir a escala conjugal, regular o serviço ao marido, escolher novas mulheres; a realização de uma orgia para pôr Tony à prova; a contestação do divórcio por Rami; a permissão da concretização do levirato, apesar da viuvez irreal; o casamento monogâmico de Lu com Vítor; o anúncio do casamento de Mauá; a notícia da existência de um marido português para Ju; a gravidez de Rami por Levi. Todos estes factos conspiratórios levaram à ruína de Tony e ao engrandecimento das mulheres. O Tony prepotente caiu na “teia” da poligamia, que ele próprio criou, e terminou destruído pelo envelhecimento e pela perda da virilidade. Ao invés, Rami, a empreendedora de toda a trajetória, de mulher traída e abandonada passa a rainha de uma sociedade poligâmica, a líder das esposas; tira o poder ao marido, derruba-o do trono e toma a coroa de rainha: «Tu és a mulher sobre todas as mulheres do universo» (ibidem; 288). Ao derrubar Tony, símbolo da ocidentalização do homem moçambicano, a obra de Paulina chama a atenção para toda essa problemática e mostra como é essencial a mulher aprender, falar e agir, para conciliar a tradição com a modernidade, pois só dessa

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forma pode haver renovação cultural para a mulher de Moçambique.

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Considerações finais Ao optarmos pela leitura de Niketche, uma história de poligamia, de Chiziane., tivemos em conta a sedução inicial e o desejo de desvendar o universo feminino pintado de forma tão realista, pese, embora, o filtro ficcional. O desejo de continuar a dialogar com a obra permanece, por lhe reconhecermos profundidade no tratamento dos temas. A escritora oferece-nos uma visão contemporânea da mulher moçambicana, ao proceder a um retrato analítico dos seus problemas, dando ressonância a vozes silenciadas. Apropriando-se dos mundos moçambicano e europeu, com que aprendeu a lidar, desvenda o que é ser mulher num mundo masculino. Doando a palavra a Rami, doa-lhe capacidade de reflexão, de autodescoberta e de reconhecimento do seu poder para mudar a sociedade. Assim, assume a sua cultura ancestral, renova-a, abandona a sua vida de submissão e torna-se uma heroína, independente social e economicamente. Numa capital onde os bens materiais e afetivos escasseiam, Rami e as outras mulheres anseiam o amor, o fim do sofrimento infundado, a sua participação ativa na sociedade e querem dizer: «Ao lado dos nossos namorados, maridos e amantes, dançaremos de vitória em vitória no niketche da vida» (ibidem; 293). Através desta viagem pelo texto, foi possível anunciar os condicionalismos reguladores da voz e da ação da mulher moçambicana; revelar estratégias usadas por ela para ganhar voz e agir; salientar que pode criar a sua identidade e, com a especificidade e a sensibilidade femininas, contribuir para a edificação de um país, exercendo uma cidadania ativa. Reconhecemos que foi muito aliciante invadir o universo romanesco de Chiziane, pela sua visão feminina face às questões femininas. Permanece o gosto amargo de não poder dar conta da riqueza do romance que é Niketche. Fica-nos a esperança de que Paulina Chiziane nos ofereça outra dança feminina! Referências Bibliográficas CHIZIANE, Paulina (2002), Niketche, uma história de poligamia, Lisboa, Editorial Caminho, 4.ª edição, pp. 334. DUTRA, Robson (2007), «Niketche e os vários passos de uma dança», in Inocência Mata e Laura Padilha (org.), A mulher em África – Vozes de uma margem sempre presente, s/l, Edições Colibri, 309

– 315. LARANJEIRA, Pires (2007), «O feminino da escrita: espinhoso marfim», in Inocência Mata e Laura Padilha (org.), A mulher em África – Vozes de uma margem sempre presente, s/l, Edições Colibri, 527 – 534. MATA, Inocência (2007), «Mulheres de África no espaço da escrita: a inscrição da mulher na sua diferença», in Inocência Mata e Laura Padilha (org.), A mulher em África – Vozes de uma margem sempre presente, s/l, Edições Colibri, 421 – 441. PADILHA, Laura Cavalcante (2007), «Bordejando a margem (Escrita feminina, cânone africano e encenação de diferenças)», in Inocência Mata e Laura Padilha (org.), A mulher em África – Vozes de uma margem sempre presente, s/l, Edições Colibri, pp. 469 – 487. RAINHO, Patrícia e SILVA, Solanje (2007), «A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de Amor ao Vendo e Niketche, uma história de poligamia» in Inocência Mata e Laura Padilha (org.), A mulher em África – Vozes de uma margem sempre presente, s/l, Edições Colibri, pp. 519 – 525. RUSSEL, G. Hamilton (2007), «Niketche – A dança de amor, erotismo e vida: uma recriação novelística de tradições e linguagem por Paulina Chiziane» in Inocência Mata e Laura Padilha (org.), A mulher em África – Vozes de uma margem sempre presente, s/l, Edições Colibri, pp. 317 – 330. SPIVAK, Sayati Chakravorty (2009), Les subalternes peuvente-elles parler?, Paris, Amsterdam, pp. 42 – 53; 69 – 85.

Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo

Crime e redenção: mulheres que matam Lyslei Nascimento Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)

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Resumo: O delito será tratado, neste artigo, não somente no seu sentido jurídico, mas também, num sentido mais amplo, metafórico, tendo em vista a abordagem de sua incidência na literatura bíblica e na ficção. Estará no horizonte desta análise, a especificidade da relação entre o crime e o feminino no livro de Judite, da Bíblia hebraica, e no conto “Os langores de Holofernes”, de Deana Barroqueiro. Essa especificidade – a do assassinato cometido por mulheres – se traduz a partir, ao que parece, do postulado de que as mulheres que matam o fazem para exercer a justiça, ou seja, acima de tudo, a assassina é, nesses textos, aquela que mata para vingar uma violência, um outro crime, na maioria das vezes, que tem um agente masculino como autor. A capacidade da mulher de revidar faz, assim, migrar sua proverbial condição de vítima para a de agente.

Introdução O delito será tratado, neste artigo, de forma mais ampla, metafórica, tendo em vista que será abordado, de forma preliminar, sua incidência na literatura bíblica ou religiosa e na ficção contemporânea. Estará, assim, no horizonte desta análise, a especificidade da relação entre crime e mulher no livro Judite, dos midrashim judaicos, da Bíblia católica e na sua reescrita no conto “Os langores de Holofernes”, de Deana Barroqueiro. Nesses textos, a especificidade do assassinato cometido por Judite se traduz a partir, ao que parece, do postulado de a personagem mata para exercer a justiça, ou seja, acima de tudo, ela mata para vingar uma violência, um outro crime. A capacidade da mulher de revidar faz migrar, assim, sua proverbial condição de vítima para a de agente. Para Josefina Ludmer, essas mulheres estariam acima das leis, porque condensariam, nelas e no crime que cometem, todas as justiças. O capítulo “Mulheres que matam”, de O corpo de delito, é fundamental para este tema e para os estudos sobre a representação do crime de mulheres na ficção. Segundo a escritora, na literatura, é possível traçar uma cadeia histórica e mutante de mulheres que matam. As mulheres assassinas, na ficção, aparecem, na maioria das vezes, ao lado de prostitutas, adúlteras e feiticeiras. Todas elas, ao longo do tempo, são vistas não só como criminosas, mas como aquelas que cometem seus crimes, enquanto filhas de Eva, sendo sedutoras, malignas

e aliadas do demônio. Essa malignidade ligada ao feminino revelaria o reverso ou a contraface das vítimas, à medida que os crimes são narrados de um ponto de vista masculino. Em “Os agentes de satã: III. A mulher”, Jean Delumeau apresenta o papel mulher na história do medo no Ocidente. Juntamente com o judeu e o muçulmano, a mulher foi identificada, desde a Idade Média, como um perigoso agente de Satã, não somente pela Igreja, mas também pela lei e pela medicina. Esse diagnóstico, no entanto, remonta a períodos mais antigos e arcaicos. Para Delumeau, um antifeminismo virulento, retira das Escrituras suas armas mais ferozes. Incendiárias, as citações são cortadas dos seus contextos, extraídas de maneira arbitrária, revelando acusações teológicas, medo imemorial da mulher, autoritarismo das sociedades patriarcais e orgulho do clérigo masculino. Para estes, Para melhor enganar, ela se pinta, se maquia, chega até a colocar na cabeça a cabeleira dos mortos. Fundamentalmente cortesã, gosta de frequentar as danças que acendem o desejo. Transforma “o bem em mal”, “a natureza em seu contrário”, especialmente no domínio sexual. Há um rol quase interminável e, até certo ponto, lascivo, de acusações contra a mulher e a sua sexualidade. Delumeau lista algumas delas retiradas de De planctu ecclesiae, redigido por volta de 1330, pelo franciscano Álvaro Pelayo, a pedido de João XXII. Segundo Pelayo, a mulher se acasala com animais, coloca-se sobre o homem no ato de

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amor e aceita unir-se a seu marido à maneira dos animais. Ele prossegue nessa lista de acusações contra as mulheres, acrescentando, também, os epítetos de adivinhas ímpias e lançadoras de mau-olhado que se servem de malefícios, de poções e de encantamentos para provocar, principalmente, a esterilidade e a impotência. Na contemporaneidade, e na ficção, alguns crimes de mulheres, no entanto, não seriam puníveis porque são feitos em nome do Estado, da nação, da pátria. Para além da “garra policial”, então, alguma justiça é aplicada.” A mulher que mata em nome da pátria é, na ficção, perdoada e se torna uma espécie de heroína, assemelhando-se, e porque não dizer, elevando-se, desse modo, à condição do homem.

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Para Ludmer, As que matam não recebem justiça por razões médicas, ou porque nem sequer se suspeita delas porque são mães ou virgens, ou porque diante da justiça fazem uma farsa da verdade. Ou porque usam as ervas da exaltação e a morte, ou porque são representantes de Deus e do pai, ou porque são a alegoria da justiça. De todas as justiças: a privada, a sexual, a religiosa e a do pai, e também a justiça social, a econômica e a política. Assim, uma das formas de se matar, nessa espécie de alegoria da justiça, é decapitar o inimigo. Tal ato pode ser visto como uma vingança e, simultaneamente, uma aplicação da justiça. Na Bíblia, Judite corta a cabeça de Holofernes, que oprimia o povo israelita e Davi a de Golias, que afrontava o exército de Israel. Salomé ordena a decapitação de João Batista que, enquanto profeta, aponta os erros da família real que comete crimes, delitos e transgressões sem ter quem lhes oponha. Judite A presença do livro de Judite no conjunto de livros que compõem a Bíblia não é unanimidade. Presente na Bíblia católica, mas ausente da hebraica e da protestante, a história da bela viúva que, segunda a narrativa, se mantém casta após a morte do marido, hoje, pode ser lida como a exaltação da virgindade, da pureza sexual, da viuvez casta, mas, durante séculos, a história foi fonte de inspiração, presente na tradição, à resistência contra os inimigos do povo de Israel. Para a teóloga Amy-Jill Levine, “não há dúvida de que Judite é uma personagem fictícia”. Essa tese é baseada no fato de que o relato “erra” o tempo e o local da história. Betúlia, a cidade de

Judite, nunca teria existido; Nabucodonosor jamais governou a Assíria e viveu por volta de 600 a. C. quando Israel, enquanto nação, não existia. Para Levine, o livro foi escrito entre 200 a 100 a.C. Nesse período, os judeus foram proibidos de estudar a Torá, de praticar ritos e rituais, como a circuncisão, por exemplo, além de outros usos e costumes, por ordem do governo grego na Palestina. Em 167 a. C., os judeus se revoltaram e teve início a Guerra dos Macabeus contra o exército grego. Esse é, para Levine, o pano de fundo da história de Judite. Para ela, os leitores da Torá sabiam de todos os detalhes que contestam a veracidade do relato e isso não era importante. A questão, portanto, de inclusão desse livro na tradição judaica seria que Judite simboliza Israel que vence o inimigo com astúcia, não com força. Tal sabedoria não é incomum nos textos bíblicos, como é o caso do episódio da morte do gigante Golias pelo franzino Davi, por exemplo. O enredo, como todos sabem, começa com a vingança de Holofernes, general do imperador assírio, Nabucodonosor. Este havia enviado uma mensagem à Pérsia, Cilícia, Damasco, Líbano e a tantos outros reinos até aos que habitam além do Jordão até Jerusalém, convocando-os a lutar com ele contra Arfaxad, rei dos medos, em Ectabana. Porém, todos menosprezaram a mensagem do imperador e não se aliaram a ele. Apesar disso, Nabucodonosor é vitorioso e convoca Holofernes, general de seu exército, seu imediato, ordenando-lhe que varresse a terra para encher os abismos com os seus corpos feridos e os rios inundar com os seus cadáveres. Deixando, pois, Nínive, como gafanhotos, invadem, saqueiam, incendeiam, passam a fio de espada. Os israelitas, que habitam a Judeia, ouviram o que Holofernes fizera ne ficaram aterrorizados. Holofernes convoca o seu exército e a todo o seu povo, para avançar contra Betúlia, ocupar as margens da montanha e fazer guerra contra Israel. Então, o ânimo dos israelitas se abateu, porque os inimigos cercaram a cidade e não havia como fugir: Esgotaram para os habitantes de Betúlia todas as vasilhas de água, e as cisternas se esvaziaram. Não tinham água para matar a sede um só dia, pois a água era racionada. As crianças desmaiavam, as mulheres e os adolescentes desfaleciam de sede. Caíam nas ruas e nas saídas das portas da cidade, e não havia mais força neles. Judite, cujo marido, Manassés havia morrido, há três anos e quatro meses, na colheita da cevada ouve que os israelitas estão a ponto de se entregar. Diz o relato bíblico que ela era muito bela e de

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aspecto encantador. Seu marido deixou-lhe ouro, prata, servos, servas, rebanhos e campos e ela administrava tudo com segurança. Além disso, ela era temente a Deus. Mandou Judite chamar os anciões da cidade e repreendeu-os dizendo: A morte de nossos irmãos, a deportação do país, a devastação da nossa herança recairão sobre nossas cabeças não nações onde formos escravos, e seremos objeto de escândalo e de escárnio diante dos nossos dominadores, porque a nossa servidão não será conduzida com benevolência, mas o senhor nosso Deus a converterá em ignomínia. Como é possível perceber, a cidade de Betúlia torna-se, metonimicamente, Israel. Nessa fala de Judite evidencia a sua preocupação nacional. O sentido tribal ou familiar, muitas vezes evocado na Bíblia, assume proporções de país, de nação. Morte, deportação, devastação e servidão são preocupações dessa mulher que administra bem os seus negócios, diferentemente dos líderes. Por isso, ela os chama, exorta-os e avisa: Farei algo cuja lembrança se transmitirá aos filhos de nossa raça, de geração em geração. Esta noite ficareis à porta da cidade. Os líderes, evidentemente, concordaram com tudo o que Judite propõe. Esta se prostra com o rosto por terra, põe cinza sobre a cabeça, cobre-se com pano de saco e em alta voz clama ao Senhor. Sua oração é uma espécie de reivindicação em que as antigas interferências de Deus no destino do povo judeu é lembrado: Senhor, Deus de meu pai Simeão, em cuja mão puseste uma espada para vingança contra os estrangeiros que desataram o cinto de uma virgem, para sua vergonha, que desnudaram sua coxa para sua confusão, e profanaram seu seio, para sua desonra; porque disseste: ‘Não será assim’; e eles o fizeram. Por isso, acrescenta, “dá a minha mão de viúva o ímpeto que pensei”, “quebra sua arrogância pela mão de uma mulher” e “dá-me palavra e astúcia para ferir e matar”. Desse modo, o discurso de Judite é permeado do desejo de livrar o seu povo, mediante a palavra e a astúcia, ou seja, mediante o discurso e a inteligência que pode, também, se referir a outras armas como a sedução. Segue-se a preparação para a realização do seu intento. Não antes sem retirar o pano de saco que vestia, despojar-se do manto de viuvez, lavar-se, ungir-se com excelente perfume, pentear os cabelos e colocar sobre a cabeça um rico turbante, bem como se vestir com um vestido de festa. O

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relato bíblico acrescenta que ela calçou sandálias, colocou colares, braceletes, anéis, brincos, toas as joias, embelezando-se a fim de seduzir, não só Holofernes, mas todos os homens que encontrasse no seu caminho. Judite, com sua extraordinária beleza, se dirige, com sua serva, à tenda de Holofernes que cerca, com seu exército, a cidade de Betúlia. Os homens de Holofernes se admiraram de tamanha beleza e se perguntavam “Quem desprezaria um povo que tem mulheres como esta? Não é bom ficar um só homem deles. Os que ficassem poderiam seduzir toda a terra”. Admirados, eles a conduzem à presença de Holofernes que repousava em seu leito, sob um mosquiteiro de púrpura, bordado a ouro com esmeraldas e pedras preciosas. O soldado, vitorioso, não está mais em campo, mas retirado, gozando das regalias de sua posição e, portanto, desarmado. Sua espada, o leitor saberá depois, jaz pendurada em um dos balaústres de sua cama. O coração de Holofernes é arrebatado por Judite. Possuído de um intenso desejo, o general oferece um banquete e espreita um momento para seduzi-la. Previdente, Judite, ao contrário do general, havia preparado sua própria comida e levado em um alforje, mas, sem despertar suspeitas, responde: “Beberei, sim, senhor, porque nunca, desde o dia em que nasci, apreciei tanto a vida como hoje”. A ambiguidade de sua fala passa desapercebido ao general. O relato bíblico afirma que, tomando o que a serva lhe havia preparado, ela bebe e come diante dele. Fascinado, Holofernes bebeu tanto vinho “como nunca bebera antes em nenhum dia, desde que nascera”. Note-se a duplicação da “apreciação” de Judite com a “embriaguez” de Holofernes. Ela antecipa sua vitória, ele caminha, bêbado, para a armadilha. Deixada sozinha na tenda com Holofernes, Judite contempla o seu inimigo caído em seu leito, afogado em vinho. De novo ela invoca o “Deus de toda força”, avança para o balaústre, desembainha o sabre do general. Em seguida, aproxima-se do leito, pega a cabeleira de Holofernes e golpeia duas vezes o seu pescoço, separando sua cabeça do corpo. Dá a cabeça para sua serva, que a joga no alforje que veio com a comida de Judite. As duas saem juntas, como era de costume, atravessam o acampamento e chegam até Betúlia sem ninguém as interpelar. O povo exaltado, inclina-se e adora a Deus, dizendo, a uma só voz: “Bendito sejas, ó nosso Deus, que hoje aniquilaste os inimigos de teu povo! De forma lírica, o agradecimento a Judite afirma que

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Deus a conduziu para “cortar a cabeça” dos chefes dos inimigos, por isso, ela é “bendita”, mais do que “todas as mulheres da terra”. Nesse sentido, todos os ardis, que poderiam servir para incriminá-la, passam à categoria de inteligência e astúcia e o assassinato de Holofernes, uma questão de Estado, torna-se mérito para Judite. Os soldados inimigos fogem ou são mortos pelos judeus que recebem uma injeção de ânimo saem vencedores na luta. A louvação a honra e a manutenção da pureza (sexual) sugerem que suas “astúcias” sedutoras não passaram de promessas de sexo que não foram cumpridas. Falsas promessas para enganar o arrogante Holofernes que julgava que, tê-la em sua tenda significava tê-la em suas mãos. O enredo demostrou o contrário. As estratégias de sedução de Judite revelam sua habilidade para não se deixar enganar, para negociar com vantagens; sua esperteza, manha, sagacidade e habilidade de dissimular e usar artifícios enganadores. Longe desse contexto de guerra e fé, ou seja, no campo da religião e da defesa da nação, vale todas as armas e armações. A capacidade de Judite de enganar, de dar volteios na imaginação de Holofernes, sem contudo, segundo o relato, ceder às suas investidas, contrasta com a palavra “retamente”, com que Ozias a saúda. Talvez seja esse o maior paradoxo, simular e dissimular. O epílogo dessa história contém uma lição moral, social e religiosa. Após adorar a Deus diante do Templo com o povo, Judite volta à Betúlia. Muitos, assegura o narrador, a pretenderam, mas ela não conheceu homem algum durante todos os dias de sua vida, desde a sua viuvez. Aos cento e cinco anos, deu liberdade à sua serva e, antes de morrer, repartiu seus bens entre todos os parentes próximos do marido e de sua família. Por muito tempo, após sua morte, não houve quem inquietasse os filhos de Israel. 2.1 Judite de Deana Barroqueiro Na ficção, a história de Judite é recontada em inúmeras representações. Pinturas, peças, óperas e literatura desdobram o mito de Judite e sua vingança. O conto “Os langores de Holofernes”, de Deana Barroqueiro, por exemplo, faz parte da coletânea Contos eróticos do Antigo Testamento, publicado no Brasil em 2006. Antes de comentar o texto, propriamente dito, destaco o título do conto que, como se pode observar, aparentemente desloca para o general assírio o ponto de interesse. Judite, no entanto, reina absoluta na narrativa. A ambiguidade e o plural do vocábulo “langores” acentua esse deslocamento. Em português, “lan-

gor” pode significar tanto uma qualidade do que é sensual, uma voluptuosidade, quanto qualidade ou estado do que é mórbido. Holofernes é, assim, duas vezes vitimado no conto de Barroqueiro. Ele é punido por sua lascívia e por sua condição de soldado cheio de si que, em vez de estar junto aos seus comandados, repousa entre almofadas de púrpura. Wander Melo Miranda em “A liberdade do pastiche” chama a atenção para uma “vocação” ou “tentação” a que sucumbe, com prazer e angústia, a ficção contemporânea. Para o crítico, essas questões põem em cena a condição de copista do escritor. Entre duas dimensões, a da leitura e a da escrita, o texto se estabelece entre “pais sábios e autoritários” e a possibilidade de reinvenção. Para Miranda, O que resta a eles, de novo, senão a pilhagem e o pastiche ao infinito de estilos os mais variados – eruditos ou populares – para que o silêncio seja vencido, para que histórias possam ainda ser contadas? A “pilhagem” e o “pastiche”, como estratégia de construção literária, podem ser vistos, no conto de Barroqueiro de forma muito explícita. Na sua apresentação à coletânea, a autora afirma Fiquei prisioneira daqueles textos pelos fios da memória que retomaram os percursos quase esquecidos da minha infância e adolescência de sólida formação católica, embalada pelos contos maravilhosos da Sagrada Escritura, cegamente aceitos por mim até à idade dos treze anos, a que se seguiram tempos de duvidar e de descrer. Prisioneira, portanto, de textos que podem ser considerados, segundo a acepção de Miranda, ou seja, “sábios e autoritários”, que são os textos bíblicos, além de outros como a História das Antiguidades e de relatos arqueológicos, a autora segue “notas, explicações e comentários minuciosos” de estudiosos incansáveis para uma interpretação circunstanciada dos livros sagrados. Ainda na apresentação, Deana Barroqueiro arremata: Senti, então, uma vontade imensa de reescrever algumas dessas histórias, sob um outro ângulo, o de um cronista daquele tempo, um pouco céptico, sem crenças em Baal, Marduk ou Jahweh, interessado em recriar os espaços geográficos, ambientais, sociais e étnicos, segundo os testemunhos que chegaram até nós das placas de argila em escrita cuneiforme de Ur e de Nínive ou hieroglífica do Egito, desdivinizando as lendas e procurando uma explicação mais real e prosaica para os acontecimentos, de acordo com essa sociedade de

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pastores nômades que formaram as tribos de Judá e Israel. Essa vontade de “reescrever” e o ângulo de “um cronista daquele tempo” põe em cena, então, a tentação e a vocação do texto contemporâneo de que tratava Miranda. A reescrita, portanto, incorporando o ponto de vista de um narrador da época põe em evidência, além de um jogo de vozes, no tempo, a dicção do texto bíblico em um texto contemporâneo, e um jogo de máscaras, em que cronista e narrador parecem se fundir. Na dramatização da experiência da leitura e da escrita, o narrador, dublê do cronista bíblico, se distancia do leitor ao se aproximar da ação narrada, simulando o seu locus e o seu tempo de enunciação. Esse deslocamento da voz e da ação, certamente, confere ao texto verossimilhança e, pode, ao leitor desavisado provocar uma identificação entre o texto, notadamente ficcional e o episódio bíblico, que se quer verdadeiro. No entanto, “um curto-circuito interrompe e compromete a relação amistosa entre ambos, quando o leitor percebe que está envolvido num jogo de mostrar e esconder”. Barroqueiro, ainda em sua introdução, revela: Pretendi que este meu livro fosse, em parte, uma crônica histórica da Antiguidade, ficcionada, cujo fio condutor seria a aventura dos sentidos, através do olhar magoado das mulheres e da sua luta pela existência, num mundo em que as desdentes de Eva eram consideradas pelos homens como mercadoria e inferiores aos animais, conceito que perdurará ainda hoje, perpetuado por determinadas interpretações fundamentalistas dos livros ditos sagrados, em nome de uma verdade religiosa que nenhum Deus, bom e justo, poderia alguma vez sancionar ou sequer tolerar. A crônica histórica ficcionalizada dá-se, assim, a partir do “olhar magoado das mulheres”. Nesse sentido, a reconstrução da narrativa se dá na relação ambivalente com o episódio bíblico, realizando-se num misto de homenagem e de provocação, em certa medida, subvertendo os sentidos do texto sagrado, desqualificando o sistema e o código ali vigentes. Por sistema, entendemos o conjunto de elementos intelectualmente organizados, de ideias logicamente solidárias, bem como um conjunto de regras ou leis que fundamentam a narrativa, fornecendo explicação para uma grande quantidade de fatos ali presentes. Por código, compreendemos as regras, os princípios, o sistema de signos simples ou complexos, organizados e convencionados para possibilitar a construção e a transmissão de men-

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sagens presentes no texto. A subversão da cronista, que simula ser uma copista fiel do texto bíblico, ocorre quando introduz em sua versão, o apelo erótico, preconizado desde o título da coleção de narrativas: Contos eróticos do Antigo Testamento. Particularmente em dois momentos esse recurso estabelecerá desvios da narrativa tradicional. Em primeiro lugar, quando o narrador inscreve a dor e o automartírio no contexto judaico da história. Assim, viúva, herdeira dos bens deixados pelo marido, Judite possuía inúmeros pretendentes, “mas a todos recusara com firmeza para viver sozinha, devotada a Deus e à dor da sua viuvez”. Segundo a narrativa, no andar superior de sua casa, a viúva construíra um oratório, na qual se recolhia para rezar e se martirizar: Não largava o cilício que lhe cingia os rins até ao sangue e jejuava sempre, exceto aos sábados, nas luas novas e festas do povo a que assistia envolta em negros trajes de viúva, com o belíssimo rosto pálido e macerados dos jejuns e do sofrimento. Tanto a presença de um “oratório” quanto a de um “cilício”, notadamente um código cristão-católico, não são somente licenças poéticas, mas intromissões fabulares que instauram uma dupla leitura no texto. Para o judaísmo, a vida é uma dádiva de Deus, portanto, não só não se pode atentar contra a própria vida, como também lhe é totalmente proibido, a autoflagelação do corpo. A história, no entanto, registra casos importantes sobre esse tema. Massada, século 1, por exemplo, quando os judeus, acossados pelos gregos, preferiram a morte do que se entregar. Há, também, casos de suicídio de judeus asquenazitas, no século 12, perseguidos durante as Cruzadas. Algumas interpretações rabínicas afirmam, ainda, que é preferível morrer a cometer um dos três “pecados capitais”: idolatria, proibições sexuais e assassinato. A concepção da mortificação e do sacrifício como formas de transcender as limitações da carne podem ser encontrados, também, desde o início do cristianismo. O jejum, a autoflagelação, o celibato, a rejeição aos bens materiais ou a provocação de dor são exemplos desse ascetismo. A princípio, as cenas de mortificação e autoflagelo de Judite, no conto de Barroqueiro, apontam para um desejo de renúncia e de austeridade, no entanto, o limite entre um sacrifício para alcançar a virtude e aperfeiçoar o espírito é transposto. O narrador assim descreve uma segunda cena protagonizada por Judite de oração e autoflagelo: Embalada pelo som e sua própria voz, aumentava o ritmo das chicotadas e a dor que lhe mor-

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dia as carnes causava-lhe um estranho prazer, acelerava-lhe o bater do coração e do sangue nas veias, aquecendo-lhe o corpo como uma chama de purificação. Gemeu de dor e gozo, com os sentidos num turbilhão de sensações contraditórias que a assustavam e inebriavam. O erotismo presente nesta descrição confirma a transgressão. Entre as chicotadas e a chama da purificação, a Judite de Barroqueiro é reescrita afastando qualquer possibilidade de referendamento da casta Judite do narrador bíblico. Por isso, a sequência natural dos eventos no conto caminhem para a consumação do ato sexual entre Judite e Holofernes. Fato contestado pelo narrador bíblico. No conto, o corpo de Judite torna-se “uma harpa tocada pelas mãos de um anjo que das suas cordas tirava uma torrente de sons inesperados e harmoniosos”. Ressalte-se que o “anjo” aqui é o Holofernes. Assim, o general assírio, arremata o narrador, “penetrou-a com a lentidão de um estratego que conquista uma cidade para nela habitar e reinar”. O que se segue, evidentemente, é a reescrita da narrativa bíblica com o seu sabido desfecho: Judite estende a mão para a coluna da cabeceira da cama, retira a espada da bainha e a enterra na garganta de Holofernes. Logo após, corta-lhe a cabeça e foge incólume. Ou não tão incólume assim, é preciso voltar no texto ao momento em que Holofernes, satisfeito, de vinho e sexo, inclina para trás sua cabeça, “expondo a garganta por entre os fios sedosos da barba”. Judite, então, “com o rosto inundado de lágrimas”, o executa. O fim da narrativa, desse modo, não é o fim do texto que continua a produzir sentido no leitor. Na dupla escrita, simulando voz e ponto de vista, o narrador de Barroqueiro entretece, por entre as malhas da letra, a duplicidade de Judite, que só nós podemos entrever por entre o cortinado de púrpura. Para os seus, Judite será para sempre a casta viúva que libertou o seu povo dos grilhões assassinos de Holofernes, mas para o leitor, a articulação do crime com a vingança e desta com a justiça é colocada sob suspeita.

Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

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Trovadorismo, Mulheres e Dança da Ratoeira: registros culturais açorianos na Ilha de Santa Catarina Sumaya Machado Lima*1 (Brasil)

Resumo: Neste texto, a autora comentará algumas das possíveis razões literárias e históricas, pelas quais as Cantigas de Amigo do Trovadorismo português podem ser potenciais marcas do feminino na Dança da Ratoeira, uma cantiga de roda de origem açoriana, que ainda está presente na cultura brasileira. A autora observou a ciranda dançada por mulheres, no Estado de Santa Catarina, Florianópolis, especialmente no bairro Caeira do Saco dos Limões, onde desenvolveu um projeto cultural de preservação e valorização do patrimônio imaterial daquela região. A partir do destaque de alguns textos das cantigas trovadorescas medievais e os desafios de trovas presentes na dança da Ratoeira, apontará hipóteses da permanência da herança açoriana em cantigas populares da ilha catarinense, como também na expressão e formação de papéis sociais femininos de crianças e jovens.

Em 2010, iniciamos um projeto sócio-cultural na comunidade Caeira, no Saco dos Limões, um bairro de Florianópolis. O objetivo primordial era apoiar a Associação dos Moradores, através da rememoração de seu patrimônio imaterial, que vem sendo construído há cerca de quase um século. Entretanto, muito de sua memória estava se perdendo com o falecimento dos mais antigos moradores. Percebemos que as histórias sobre a sua fundação, seu desenvolvimento, bem como a atualização de seu perfil perpassavam por, pelo menos, duas manifestações culturais, que o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) denomina de festas religiosas e festas populares. Ao levantar dados e entrevistar moradores sobre o que os fortalecia no sentido de grupo e de pertencimento de sua comunidade, entre aqueles da faixa etária de 25 a 50 anos, era comum que se lembrassem de sua festa carnavalesca ainda em * SUMAYA MACHADO LIMA é Professora graduada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas. Mestre em Estudos Literários pela Pontifícia da Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina. Sua linha de pesquisas compreende estudos de gênero, cinema e cultura. Atualmente é gestora e produtora de projetos sócio-culturais. Contato: [email protected]

vigor, quando homens desfilam travestidos de mulheres e concorrem a prêmios (evento denominado pela comunidade de “desfile das passarinhas”). Mas na faixa etária entre 55 e 80 anos, a maioria é composta de mulheres, a sua lembrança era das festas de quermesses e da dança da ratoeira. De acordo com depoimentos de moradores, essa dança estava adormecida na comunidade. Bem poucos jovens e alguns adultos tinham ouvido falar a respeito, ao passo que os idosos sempre tinham alguma história para contar a respeito da ratoeira. A nossa preocupação, como coordenadora do projeto, foi incentivar que os idosos do Grupo Alegria1 relembrassem essa manifestação cultural, já que sua memória era também advinda da vivência. Assim pedimos que tocassem a melodia da ratoeira, dançassem, cantassem e declamassem para que a registrássemos em áudio, em texto, em foto e em teatro2. 1 O Grupo Alegria é uma associação de idosos do Caeira do Saco dos Limões, cujos participantes nos concederam várias entrevistas (registramos aqui o nosso agradecimento). 2 Parte dos resultados dessas ações do projeto, que desejou registrar um pouco da memória desse bairro, pode ser encontrada no livro impresso Retratos, no livro digital Memórias, no sítio www.patrimoniocaeira.com.br

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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

Neste texto, levantaremos algumas hipóteses literárias e históricas, pelas quais as Cantigas de Amigo do Trovadorismo português podem ser potenciais marcas do feminino na Dança da Ratoeira, manifestação cultural ainda presente na memória brasileira, no Caeira do Saco dos Limões. Comentarei a seguir como a herança açoriana de cantigas populares da ilha catarinense na ratoeira podem estar relacionadas às cantigas de amigo medievais, bem como à expressão e formação de papéis sociais femininos de crianças e jovens. A Dança da Ratoeira é uma ciranda de origem açoriana, na qual se lançam desafios em trovas. Assim a descreve o professor historiador Nereu do Vale Pereira: Trata-se, a “ratoeira”, de uma brincadeira social, onde os participantes exercitam o canto, o conteúdo, a rima e em repentes se digladiam para ver quem é o melhor, ou mais capaz na criação dos versos para impressionar ou conquistar amores. Quando se reúnem cantam em “rodas, tipo cirandas”, ou dançam aos pares ou coreografias diversas, dentro do compasso de valsa.3 396

Embora, hoje homens possam estar na sua composição, tocando instrumentos, fomos informadas, pelas moradoras do Caeira, que as trovas da ratoeira eram, originalmente, cantadas apenas por mulheres. “O homem não era bem visto se fizesse isso, pois era coisa de moças ou de mulheres casadas”, confirma Magdalena Martins4, uma das mais antigas moradoras do bairro. De fato, encontramos que em comunidades do interior da ilha os homens são muito arredios ao cantar em grupo5. Para entrar na roda, elas usam chapéus ou lenços, muitas pulseiras e brincos, saias bem rodadas e coloridas, blusas com bordados ou rendas, muitas vezes elaboradas por elas mesmas. Para iniciar, entram em fila indiana no recinto e fazem uma roda. Permanecem nela dançando, ao mesmo tempo em que cantam um refrão ou ouvem as trovas das amigas. Há sempre uma puxadora das trovas que organiza turnos de fala na ciranda, isto é, quem vai trovar e em qual ordem o fará, isto é, se será antes ou depois de fulana. A puxadora também é responsável por incentivar os improvisos, as provocações e 3 PEREIRA, 1991, p. 191 O professor Nereu do Vale Pereira possui uma intensa pesquisa sobre a presença da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina. Sobre as festas populares cita a presença da “ratoeira” especialmente na sua parte sul, no bairro Ribeirão da Ilha. 4 Nascida em 06.01.1928. Fundadora do Grupo Alegria moradora do bairro desde 1952. 5 PEREIRA, 1990, p. 192.

as respostas. As temáticas das trovas da ratoeira que encontrei naquela comunidade são desde motivos de saudade do namorado, manifestações de afeto por uma amiga até recados malcriados para homens ou mulheres. Antes e após as trovas canta-se o refrão. Por exemplo: Ratoeira bem cantada, faz chorar, faz padecer Também faz um triste amante Do seu amor esquecer... Meu galho de malva meu manjericão, dá três pancadinhas no meu coração (Bis) Senhora fulana entre dentro desta roda Diga um verso bem bonito Diga adeus e vá se embora Escrevi na areia fina, Com peninha de pavão Para o saber do mundo Que eu de ti tenho paixão Meu galho de malva meu manjericão, dá três pancadinhas no meu coração (Bis)

De acordo com Dona Magdalena Martins, quando ela se mudou para o Caeira nos anos 50, precisava-se construir tudo. Mal havia calçamento. Para construir uma igreja no bairro, precisaram fazer muitos bingos e festas. Vender muitas rifas. E, para deixar as festas mais interessantes, as mulheres se organizavam e anunciavam que iriam fazer a Dança da Ratoeira. Fosse na época Junina ou apenas em quermesses, era uma boa hora para mandar recados para os pretendentes. Algumas pessoas se aglomeravam em torno da roda para ver e ouvir, outras entravam para dançar e cantar. Algumas mulheres já iam com o versinho pronto. Era uma forma de divertir, de trocar amizades, provocar assuntos e unir a comunidade, era uma forma de entretenimento e agregação social coletiva. Segundo a moradora, era uma boa “armadilha” para fazer as pessoas gastarem um pouco nos jogos de prendas e nos quitutes que as mulheres preparavam. De acordo com o professor Pereira quando jovens cantam a ratoeira praticam também a função do namoro; fazem juras de amor;

Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

fazem declarações; repelem ofertas; agradecem favores; criticam figuras; soltam mágoas; fazem desfeitas às rivais no amor, ou simplesmente cantam para se divertirem. Praticar essas funções é exercer autonomia num espaço feminino. Encontramos também os seguintes versos de provocação e resposta no Caeira, mantida a ortografia popular. Quando eu olhei para o céu, Vi o céu todo nublado, Me dizes como passastes Com o teu novo namorado Com o meu novo namorado Vou passando muito bem, Assim como me fizestes, Eu fiz a ti também! Ou juras de amor e referências a elementos da natureza na pesquisa do professor Nereu Pereira. Vou fazer a minha cama Na virada para o rio, Para ver o meu amor Quando passar no navio. O sol é caixão de prata A lua é a fechadura, As estrelas são as chaves, Que fechava nossa ventura. Algumas das razões pelas quais ficamos motivadas a desenvolver essa questão sobre a Ratoeira foram, principalmente, o assunto das trovas, a presença predominantemente feminina na ciranda e os refrãos. Relembro agora as características das cantigas trovadorescas para explicar as possíveis reminiscências naquela festa popular. Na Literatura, consideramos que Portugal começa a sua manifestação literária no Trovadorismo. O marco que inicia este estilo literário é uma canção chamada Cantiga da Garvaia ou Cantiga da Ribeirinha de Paio Soares de Taveirós. Ela data de 1189, portanto, século XII. No conteúdo da canção, encontramos um eu-lírico encantado pela beleza de uma mulher nobre, filha de um homem abastado. O enamoramento de um sujeito por outra pessoa e as decorrências disso, passará a frequentar a literatura até os dias atuais, revigorado, principalmente, no Romantismo, na literatura do século XIX.

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Concomitante às cantigas de amor, cantadas por um eu-lírico masculino, surgiram também as cantigas de escárnio e maldizer (que satirizavam comportamentos) e as cantigas de amigo. Estas são as que nos interessa neste momento. Podemos dizer que as cantigas de amigo se diferenciavam das duas outras formas de cantiga, pelas seguintes características. As cantigas de amigo ou Cantar d’amigo galego-português, de acordo com Segismundo Spina6, comporta pelo assunto: a) Cantar d’amigo exclusivamente amoroso (em que a donzela nos narra a separação do namorado e as circunstâncias acessórias dessa partida; b) O cantar de romaria (em que a donzela convida companheiras, a irmã ou a própria mãe para uma peregrinação a santuários); c) A alva (ou Alba) (cujo tema típico é o da separação dos amantes ao amanhecer, depois de um desfruto amoroso durante a noite); d) A pastorela (que versa normalmente os temas de encontro entre cavaleiros e pastoras que são por eles requestadas de amor); e) As bailadas (que traduzem as manifestações coreográficas das populações primitivas, versando os temas da dança e das circunstâncias sentimentais que ela pode suscitar); Observe-se que, além disso, as cantigas d’amigo possuem refrão, são de origem popular; contêm a presença do Eu-lírico feminino, embora tenham sido escritas por homens; o eu-lírico feminino, ao falar de sua saudade, ou alegria, se dirige às amigas ou à mãe, mas também à natureza. De que forma esses aspectos podem remeter à Dança da Ratoeira encontrada naquela comunidade? Como poderiam ter chegado até nós essa provável herança medieval? Talvez por três fatos: 1) o longo tempo que o trovadorismo permaneceu na cultura lusitana, 2) a posição geográfica da Península Ibérica, isto é, Portugal, especialmente Açores e 3) a presença açoriana na ilha de Florianópolis. No século XIV, enquanto as manifestações poéticas do Renascimento eram florescentes na Itália, com Dante Alighieri e depois Petrarca, em Portugal, o trovadorismo permaneceu tardiamente em Portugal. Provença não exportou para as terras galego-portuguesas a sua língua – como suscedeu na Itália –, mas a influência benéfica e purificadora de sua poesia sobre aquela que já cantavam as populações rústicas e burguesas de Entre Douro e Minho. E, junto da nova 6 Cf SPINA, 1991

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forma importada para os primeiros salões da casa de Borgonha (a canção o cantar d’amor), adquire fotos de cidadania a velha poesia nacional, vestígio ainda florescente do primitivo lastro poético da România, cujo agente criador era a mulher e cuja expressão literária eram as cantigas d’amigo7. Segismundo denomina este como o princípio de uma primeira fase do Trovadorismo português, quando convivem poesia popular e a nova poesia palaciana, até aproximadamente, 1340, resurgindo um século depois. Durante a primeira fase, a poesia está fortemente comprometida com a música e relativamente com a dança, a cantiga d’amigo mais do que a d’amor.

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Com o desenvolvimento crescente da música e da poesia, esse comprometimento entre ambas começa a rarear. Cantigas parecem-se cada vez mais com poesias e os trovadores, profissionalizando-se em poetas. Embora a poesia não se dissociasse totalmente da música, na sua maioria deixou de ser musicada pelo próprio compositor do texto literário; normalmente essa poesia, agora escrita para ser dita, declamada (não cantada), podia, contudo, receber uma melodia musical, composta, via de regra, por esses profissionais que desfrutavam também do convívio da corte. E assim se explica que só nos fins dos séculos XV e princípios do século XVI é que vamos surpreender as primeiras individualidades poéticas.8 Portanto, as cantigas de amigo, possivelmente, advém de cantares populares que acompanhavam danças (ao contrário das cantigas de amor, cujas trovas passaram a ser declamadas em palácios para a nobreza). Haja vista que o movimento trovadoresco em Portugal vai do século XII ao século XV, perguntamo-nos se o período e a circunstância histórica em que surgiu o Trovadorismo, ou seja, o feudalismo, não possa ter contribuído para a sua permanência. Para isso não teria contribuído a posição geográfica da península, mais distante dos grandes centros culturais que se adiantavam ao novo estilo literário? Imaginemos o natural isolamento do sistema político e econômico dos feudos para o isolamento geográfico das Ilhas dos Açores. Lugar ainda mais extremado da Europa. Ainda precisaríamos considerar a peculiaridade de cada ilha dos Açores. Isso equivale também a pensar na escolha de quais costumes e tradições 7 Idem ibidem

os açorianos privilegiariam, preservariam e de que modo o fariam. Mas, o fato é que a cultura açoriana ainda é bastante presente na ilha de Santa Catarina no Brasil. Como lembra Pereira, mais de 2 mil açorianos chegam a essa ilha em 1748, então chamada Nossa Senhora do Desterro. A população que aqui restava era um vilarejo de poucos habitantes entre indígenas e militares. A presença dos novos moradores contribuiria para povoá-la, fortalecendo a soberania brasileira. Deixamos aqui nossas hipóteses sobre a possível relação entre a Ratoeira e o trovadorismo trazido pelos açorianos. Perguntamo-nos se estes não levariam nas malas heranças das cantigas de amigo trovadorescas. Se esse outro isolamento natural, ao qual tornaram a pertencer também não teria contribuído para a preservação deste patrimônio entre as mulheres. Não seria sensato inferirmos que na Desterro do século XVIII, as açorianas e suas descendentes mantivessem as tradições culturais de origem para animarem as festas populares e as quermesses? O duplo isolamento geográfico e cultural dos açorianos não teria reforçado a herança das cantigas, cirandas e temáticas da primeira fase do Trovadorismo? Referências Bibliográficas SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca, 3.ª ed., São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1991.

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Notas sobre a Presença Feminina na Revista de Portugal Adriana Mello Guimarães Instituto Politécnico de Portalegre/Escola Superior de Educação – Universidade de Évora. Portugal

Resumo: Este artigo pretende demonstrar que a Revista de Portugal (18891892) foi um importante espaço de divulgação de ideias e que contou com a colaboração de algumas mulheres, cuja participação abrange vários géneros de produção escrita: desde a poesia ao artigo de opinião.

Em Portugal, uma mulher, excluída da política, da indústria, do comércio, da literatura, pelos hábitos ou pelas leis — fica apenas de posse de um pequeno mundo moral, seu elemento natural — a família. Infinito domínio, o mais profundo, o mais belo, o mais grave. As mulheres queixam-se. (ORTIGÃO & QUEIRÓS, As Farpas, março de 1872, p. 67)

A epígrafe queirosiana, extraída das Farpas é bem representativa da ideia que o escritor Eça de Queirós possuía sobre a condição da mulher portuguesa no século XIX, época em que os papéis sociais masculinos e femininos estavam fundados em fronteiras que demarcavam a esfera pública da esfera privada. No entanto, convém esclarecer que ser mulher no século XIX, não significa apenas viver num período de absoluta submissão. Afinal, esse século assinala também o nascimento do feminismo. Mas o que está por trás da desigualdade entre os papéis sociais? Depois de detetar como sendo o maior defeito da doutrina de Hobbes o fato de que o autor do Leviatã viu na sensualidade o efeito negativo do pouco uso da razão, Rousseau argumentou que desse ponto de vista ele deixara de ver que o mesmo que é considerado efeito negativo do pouco uso da razão também pode ser considerado como a causa positiva que impede o seu abuso (ROUSSEAU, s/d, pp 26,53). Nós acreditamos que o mesmo argumento pode ser usado a favor dos valores femininos, na medida em que se deteta no inconsciente da sociedade, especialmente na era da comunicação, uma violência simbólica contra a mulher que ultrapassa os limites do seu “pequeno mundo moral”. Referimo-nos ao espaço social da mulher, cuja moderna participação nos jornais e revistas do século XIX, como a Revista de Portugal,

nos mostra que ela é obrigada a fazer uso de valores masculinos1 para ampliar seu campo de ação, o que se configura como uma “violência suave, insensível, invisível às próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento” (BOURDIEU, 2002, p. 6). Ao final do século XIX, nada ilustra melhor a moderna mentalidade que se impõe do que as revistas e jornais que circulam pela sociedade e que a caracterizam como um resultado da ação humana mais transparente e mais consciente de si. Algumas revistas incentivavam seus leitores a refletir sobre o mundo circundante em processo de modernização. Este é, sem dúvida, o caso da Revista de Portugal, que rompeu com a tradição ao igualar mulheres — Isabel Leite, Maria Amália Vaz de Carvalho e Alice Moderno — e homens como autores de textos2. Tal facto é relevante por si só e talvez explique a preferência de algumas mulheres pela invisibilidade, como foi o caso de Maria Amália Vaz de Carvalho, que lançou mão do pseudónimo “Junius” na Revista de Portugal. 1 Nesse sentido assinalamos a crítica de Miranda de Andrade na sua análise sobre a Revista de Portugal: “ A pena brilhante, culta e … máscula de Isabel Leite”.(1953, p.47) 2 No Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro (1851-1932), nomes de mulheres colaboradoras aparecem no índice “Senhoras”, ao passo que os dos homens em “Autores”

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Voltadas para a exposição de assuntos específicos, as revistas desenvolveram-se à procura de um espaço cultural. Nesse sentido, e por confiar na capacidade de intervenção cívica dos seus escritos, Eça de Queirós planeou, fundou e dirigiu a Revista de Portugal (1889-1892), uma publicação mensal que contou com a colaboração de intelectuais brasileiros e portugueses. Apesar da brevidade da sua vida, a Revista de Portugal firmou-se como uma das mais cultas e elegantes publicações da sua época, e visando, o universo lusófono: A Revista de Portugal, sendo portuguesa, é também implicitamente brasileira – e para a leitura dos dois povos que habitam os dois solos foi ela desde princípio criada. Se, como se tem afirmado com razão, na língua verdadeiramente está a nacionalidade – duas nações que põem a sua Ideia no mesmo Verbo formam para os supremos efeitos da civilização uma nação una( QUEIRÓS, 1995, pp 114,115).3

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Sucintamente podemos dizer que a Revista de Portugal foi um importante espaço de divulgação de ideias e de relacionamento entre portugueses e brasileiros. Nessa revista colaboraram algumas mulheres ainda que em número bastante inferior ao dos homens, cuja participação abrange todos os tipos de produção: desde a poesia até ao artigo de opinião. Isabel Leite Como podemos constatar no quadro que se segue, a mulher que mais publicou artigos na Revista de Portugal foi Isabel Leite. Mas quem é essa mulher? Miranda de Andrade, no seu estudo sobre a revista, supõe ser um pseudónimo (1953, p.39). No entanto, Jacinto Prado Coelho, no Dicionário de Literatura, afirma que Isabel Leite era irmã do historiador e diplomata Duarte Leite (COELHO, 1978, p. 679). Na realidade, há escassas referências a essa mulher. Ao que nos parece, Isabel Leite deve ter pertencido ao círculo de amigas da esposa do Eça de Queirós. Afinal, é o próprio escritor, numa carta dirigida à sua mulher, ao falar sobre a sua cunhada, Benedita, quem faz a seguinte afirmação: 3 Aqui, a problemática da lusofonia pode ser suscitada, e relacionada com Fernando Pessoa (Bernardo Soares) e a sua famosa asserção “Minha pátria é a língua portuguesa” (1982, p. 17). Parece-nos evidente, pelo menos do ponto de vista histórico da visão do problema, que Eça de Queirós efetivamente contribuiu para a forma cultural e política como hoje ele se apresenta. Neste mesmo sentido, podemos referir-nos também ao escritor brasileiro José de Alencar, quando afirma, no pós-escrito do seu romance Diva, que “A língua é a nacionalidade do pensamento, como a pátria é a nacionalidade do povo” (1980, p. 67). Problemáticas de hoje, que refletem meditações antigas.

Autor Isabel Leite

Pseudónimo volume Artigo 2 Um Romancista da Califórnia 3 O Jornal de uma Princesa Russa 3 Uma Lição Histórica

Alice Moderno M. Amália Vaz de Carvalho

Junius

4

Poesias de H. Heine

4

Cancioneiro da Revista

3

Os Poetas do Norte

Essa Benedita por que não entretém os ócios, e dias vazios que ela aí diz ter, traduzindo ou compondo algum crochet literário para a Revista? Devia imitar a sua amiga Isabel Leite que se estreou na Revista, tão notavelmente, com um artigo – que eu refiz com o suor do meu rosto! – e que lhe pagou, a ela, em bom oiro brilhante e soante! (QUEIRÓS, 2008, p.76) O que deste testemunho se colhe, em primeiro lugar, é que de facto a escritora existiu, não sendo um mero pseudónimo, e, além disso, fica claro que o próprio Eça de Queirós fez a revisão do primeiro artigo que Isabel Leite publicou na Revista de Portugal. Na verdade, estamos a falar de um longo artigo de dezoito páginas, cujo título é “Um romancista da Califórnia”, sobre o escritor norte-americano Bret Harte (1836-1902). Isabel Leite fornece pistas sobre a biografia de Harte e resume as suas histórias, com destaque para a síntese das seguintes obras: Contos dos Argonautas, A fortuna do campo estridente, Os exilados, Gabriel Conroy e Cressy. Ou seja, essa crítica literária marca a estreia da colaboração feminina na revista. Pode ler-se no terceiro volume da Revista de Portugal um outro artigo escrito por Isabel Leite em novembro de 1890, intitulado “Uma lição histórica”. Trata-se de um texto sobre o histórico ultimatum inglês de 11/01/1890. Tema polémico, também abordado na Revista de Portugal pelo seu diretor Eça de Queirós, mas considerado pela cronista de um ângulo diferente. Ora, é consensual que o ultimatum abalou muito a sociedade portuguesa e Isabel leite não deixou de assinalar este facto: “Após estrondosas manifestações de esperança e fervor, invadiu-nos o desalento, acentuou-se-nos dolorosamente a apatia” (LEITE, 1890, p. 123). Na sua abordagem, a autora procura uma ver forma de Portugal reagir à crise que se instalou no país. Para tanto elegeu um exemplo histórico: contou todas as desaventuras políticas que a Alemanha passou e que soube ultrapassar. No fim do texto, Isabel afirma que o que procurou “não foi oferecer um

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conselho, foi apontar uma esperança” (idem, p.152). Cabe destacar, nesse texto, que o jornalismo é entendido como uma força de revitalização da vida pública. Ainda no terceiro volume da Revista de Portugal, Isabel Leite regressa à crítica literária com o artigo “O Jornal de uma Princesa Russa”, onde analisa e resume a obra de Maria Bashkirtseff (1858-1884), jovem aristocrata russa que publica um longo diário. Isabel Leite enumera no seu texto os desgostos de Maria; a separação de seus pais; o seu desejo de ser rica e conhecida; o fato de não saber o que é o amor; os desafios da pintura; os desafios da doença; por fim, a aproximação da morte em plena juventude. Chama a atenção em sua análise que a descrição pormenorizada das características físicas vem acompanhada de referências ao vestuário e a notas como “a vaidade foi neste caso um ingrediente de bom êxito” (idem, p. 539). Ora, temos aqui, como sinal dos tempos, uma evidência da assimilação de valores masculinos na significação da verdade dos factos. Afinal, luxo e vaidade são fatores estruturantes da sociedade de consumo, como observa Gilles Lipovetsky: O século XIX sistematizou e institucionalizou esta preeminência feminina na ordem do parecer, da moda e do luxo. (…) A partilha das aparências caras já não obedece unicamente à divisão de classes, mas também à dos géneros. (…) A era moderna democrática nascente é acompanhada por um despojamento masculino dos sinais de aparências dispendiosas e, simultaneamente, de uma consagração sem igual dos símbolos resplandecentes do feminino. ‘Vitrina’ do homem, a mulher, por intermédio do vestir, torna-se responsável pela exibição pecuniária e estatuto social do homem. (LIPOVETSKY, 2012, pp. 82-83) Se a nota de Isabel Leite pode ser considerada um efeito negativo da submissão a valores masculinos, também é verdade que o mesmo pode ser considerado como causa positiva que incitou a leitura de obras femininas como a de Marie Bashkirtseff, tanto em Portugal como no Brasil. De facto, encontramos alguns testemunhos dos dois lados do Atlântico que comprovam que o livro de Bashkirtseff alcançou um grande êxito junto ao público. Em Portugal, podemos citar Florbela Espanca: “O Diário de Maria Bashkirtseff é qualquer coisa de profundamente triste, de tragicamente humano. Só não compreendo naquela grande alma o medo da morte.” (ESPANCA, 1982, p. 43) No Brasil, Manuel Bandeira escreveu: “Uns tomam éter, outros cocaína./Eu já tomei tristeza, hoje tomo

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alegria./Tenho todos os motivos menos um de ser triste./Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria.../Abaixo Amiel!/E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff (BANDEIRA, 1955, p. 171). A última contribuição de Isabel Leite para a Revista de Portugal foi a tradução de dois poemas do romântico alemão Heine, uma referência nos dois lados do Atlântico, sendo, a propósito, o autor do poema “O Navio Negreiro” (Das Sklavenschiff, de 1853/54), onde ele retrata a condição dos prisioneiros de um navio negreiro aportado no Rio de Janeiro. No Brasil, Heine foi lido por autores seminais como Castro Alves, Machado de Assis e Tobias Barreto, o qual se notabilizou por sua admiração pelo pensamento alemão, cujo estudo ele promoveu em profundidade entre literatos e acadêmicos. Em Portugal, Heine exerceu influência considerável sobre a geração coimbrã. Jaime Batalha Reis, no seu prefácio às Prosas Bárbaras, aponta esta evidência: A maior influência nesse período sobre Eça de Queirós — a de Heine — foi também considerável sobre alguns dos seus mais ilustres contemporâneos e amigos: vê-se nas poesias, mais tarde reunidas por Antero de Quental sob o nome de Primaveras Românticas. (REIS, 2010, pp. 22-23) Resta, ainda, esclarecer uma questão. Afinal, quem foi a misteriosa Isabel Leite? Pouquíssimas referências encontramos na entrada do Dicionário de Mulheres Célebres, que a classifica como uma mulher muito culta, que residiu em Lisboa e na Argentina, acrescentando, como detalhe, uma observação sem dúvida assaz importante para nós: “Usava o cabelo cortado, muito curto, caso raro naquele tempo. Pôs termo a existência com um tiro”. (OLIVEIRA,1981,p.687). Amália Vaz de Carvalho Na edição crítica dos textos queirosianos da Revista de Portugal, indica-se os autores que utilizavam pseudónimos, e o nome de Maria Amália Vaz de Carvalho está assinalado com um ponto de interrogação. No entanto, nos dicionários de pseudónimos consultados, o nome da escritora encontra-se sempre acompanhado pelo pseudónimo “Junius”. Assim, consideramos que a autoria do texto “Os poetas do norte” é de Maria Amália. Maria Amália Vaz de Carvalho foi uma intelectual com grande impacto no final do século XIX, sendo de assinalar que a sua obra pode ser vista por diversos aspetos: ora como alinhada com os interesses masculinos; ora sendo considerada como

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moderna e progressista4. Pensamos que em diversos aspetos os intuitos pedagógicos de conformação com a verdade masculina da articulista devem ser entendidos como uma demonstração pública de alguém que tinha noção permanente de que os seus textos seriam lidos e apreciados no universo masculino. Além disso, economicamente a escritora dependia da venda dos seus textos para sobreviver, pois a seguir a morte do seu marido, o poeta brasileiro Gonçalves Crespo5 a escritora ficou responsável pelo seu sustento e dos seus filhos. Ora, se é verdade que na altura “a mulher estava subordinada ao homem, era pensada por ele, definida em relação a ele” (LIPOVETSKY, 2000 p.232) a escritora Maria Amália consciente dessa dependência, não ultrapassava a fronteira daquilo que os homens oitocentistas pretendiam que ela fosse. Devemos lembrar, ainda, que Maria Amália nasceu em 1847. Ou seja, pertenceu a uma geração anterior à de Ana Castro Osório6. Não sendo feminista, no sentido militante, era no entanto, defensora de uma das suas reivindicações fundamentais — o direito das mulheres à educação e a necessidade da sua valorização. Além disso, foi a primeira mulher a ingressar na Academia de Ciências de Lisboa. Maria Amália publicou uma vasta obra7 e manteve uma intensa colaboração com jornais portugueses e brasileiros, onde usou os pseudónimos “Valentina de Lucena”, Miss Arabela” e “Junius”, foi exatamente este último pseudônimo o escolhido pela escritora para assinar o seu texto “Os poetas do Norte”, publicado no terceiro volume da Revista 4 O escritor Fialho de Almeida, por exemplo, é fã da escritora e dedica o livro O país das uvas à Maria Amália Vaz de Carvalho: “Homenagem aos seus talentos de escritora, às altíssimas virtudes de mulher” (1920, p5). 5 Gonçalves Crespo (1846-1883) nasceu no Rio de Janeiro e faleceu em Lisboa, de mãe negra, formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. O seu talento de poeta e seguidor de um novo estilo (o parnasianismo) assegurou-lhe muitos admiradores, entre os quais a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho, com quem casou. 6 Ana de Castro Osório (1872-1835) foi pioneira na luta pela igualdade de direitos. O seu ativismo levou à criação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Colaborou com Afonso Costa na criação da Lei do Divórcio. 7 Das várias obras ficcionais publicadas por Maria Amália Vaz de carvalho destaca-se Serões do Campo (1877); Arabescos (1880); Contos e fantasias (1880); Mulheres e Crianças (1880); Um conto (1885); Cartas a Luíza (1886); Alguns homens do meu tempo (1889); Crónicas de Valentina (1890); Cartas a uma noiva, Pelo Mundo fora (1896); A arte de viver na sociedade (1897); Em Portugal e no Estrangeiro (1899); Figuras de ontem e de hoje (1902); A vida do Duque de Palmela, D. Pedro de Sousa Holstein (1898-1903); Cérebros e corações (1903); As nossas filhas (1905); Ao correr do tempo (1906); Duquesa de Palmela – In Memoriam (1910); Impressões de Historia (1911); Coisas do Século XVIII em Portugal, Coisas de agora (1913); Páginas escolhidas (1920). Com a colaboração do seu marido, o poeta Gonçalves Crespo, escreveu Contos para os nossos filhos (1886), que o Conselho Superior de Instrução Pública aprovou para uso nas escolas primárias.

de Portugal. Nesse texto a articulista centra o seu discurso na figura do poeta alemão – Klopstock (1724 -1803) autor do poema épico acerca da vida de Cristo, intitulado “Der Messias”, cuja composição dedicou cerca de vinte anos É considerado como um precursor do Romantismo, antecipando-se na escolha de temas patrióticos. Ora, no contexto em que vivia, sob o signo do poder masculino, a pena de Maria Amália Vaz de Carvalho não pode deixar de fazer uma apologia ao poeta alemão. Alice Moderno A produção feminina da Revista de Portugal contou também com uma pequena colaboração da escritora Alice Moderno (1867-1946), que publicou na rubrica “Cancioneiro da Revista” uma poesia intitulada “Relíquia”, que fala sobre o valor de um ramo de flores. Nesse poema, o sentimento e as sensações merecem destaque e afastam a autora da razão e da racionalidade. Miranda de Andrade, ao analisar a revista, chama a atenção para a contribuição pouco valiosa de Alice Moderno (ANDRADE, 1953, p.60). Ora, a questão que se põe é: qual seria o interesse da Revista de Portugal em difundir este género de poesia? Julgamos que poderia ser uma aposta do director, Eça de Queirós, talvez preocupado em dar voz e a incentivar mulheres instruídas a colaborarem com a revista. Afinal, na altura da publicação da Revista de Portugal, a própria vida da autora já merecia destaque: Alice foi a primeira mulher, em Portugal, a dirigir um diário. Assim, julgamos que independentemente da qualidade da sua obra literária, o que devemos apreciar é a autora e as suas reações e atitudes revolucionárias mantidas apesar de todas as circunstâncias desfavoráveis. Alice Moderno, para além de poetisa, foi professora, mulher de negócios e jornalista. Avançou como ativista, nos Açores, das organizações de mulheres da 1.ª República, tendo militado na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, na Associação de Propaganda Feminista e na Associação Feminina de Propaganda Democrática. Ou seja, foi uma precursora do feminismo e, enquanto escritora, as suas melhores publicações estão no jornalismo que praticou. Nos Açores, onde viveu toda a sua vida, Alice Moderno foi pioneira: rompeu com os limites do espaço privado e publicou e dirigiu jornais e revistas em pleno século XIX. E foram muitas as colabora-

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ções na forma de crónicas, de contos, de poesias e de traduções. A sua biografia nos dá conta de alguns aspectos curiosos: os seus pais nasceram no Brasil, mas Alice nasceu em Paris, por mero acaso, e foi para os Açores ainda criança. Em 1887, com apenas vinte anos, fica sozinha em São Miguel (a família muda-se para o interior da ilha) e começa a sustentar-se a si mesma. Passado alguns anos, em 1893, a sua família directa parte para Nova Iorque e Alice continua em Ponta Delgada, como diretora do Diário de Anúncios. Entre as suas múltiplas actividades, julgamos ser importante assinalar os artigos que escreveu para o jornal que fundou em 1902, A Folha, onde defende o movimento feminista. Um século depois de sua publicação na Revista de Portugal, Alice Moderno voltou a despertar interesse. Como resultado, Maria da Conceição Vilhena biografou por duas vezes a vida da jornalista (VILHENA, 1987 e 2001). Todavia, mesmo considerando no decurso desse período a enorme ampliação do espaço social e político da mulher, verificamos nesse interesse uma disputa pela imagem daquela que hoje se transformou num verdadeiro ícone do feminismo em Portugal, pois é evidente o intuito de manipulação ideológica nas referidas biografias. Anna Klobucka e São José Almeida, por exemplo, não só contestam o compromisso com a verdade na versão de Vilhena sobre a vida da açoriana, como destacam o escandaloso apagamento da vida de Alice com Etelvina Sousa, pois, segundo Anna Klobucka, elas de fato viveram juntas por 40 anos e morreram com a diferença de apenas oito dias. Referências Bibliográficas ALENCAR, José de. (1980) Diva: perfil de mulher. São Paulo: Ática. ALMEIDA, São José. (2010) Homosexuais no Estado Novo. Porto: Sextante Editora. ANDRADE, Adriano Guerra. (1999) Dicionário de pseudónimos e iniciais de escritores portugueses. Lisboa: Biblioteca Nacional. ANDRADE, Miranda de. (1953) “Eça de Queirós e a Revista de Portugal”. In: separata de Ocidente, vol. LXIV. Lisboa: Edição de Álvaro Pinto. BANDEIRA, Manuel. (1955) Poesias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. BASHKIRTEFF, Marie. (1888) Journal de Marie Bashkirtseff - avec un portrait. Paris: Charpentier Editeurs. BRAGA, Paulo Drumond. (2010) Filhas de safo. Uma história da homossexualidade feminina em

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Os olhos do D. Varão são de mulher, de homem não Personagens femininas no romanceiro popular ibérico Anamarija Marinovic´ CLEPUL, Portugal

Resumo: Este artigo pretende analisar a mulher e a condição feminina no romanceiro popular espanhol e português. Uma vez que na criação, transmissão e preservação da literatura popular as mulheres tinham um papel importante, ver-se-á de que forma as personagens femininas são vistas no romanceiro popular no ambiente medieval da Península Ibérica profundamente marcada pela cultura patriarcal e masculina. Serão observadas as mulheres como apaixonadas, noivas que esperam pelo seu querido, as que se sacrificam por amor, as adúlteras, as filhas que resistem aos assédios do pai, preservando a sua honra e virgindade e por outro lado salvando a alma do pai do grande pecado que pretendia cometer. Serão também observadas as mães e irmãs dos protagonistas, as religiosas e santas e por último as mulheres guerreiras que se disfarçam de homem para irem lutar pela honra do pai ou apenas para demonstrarem a sua coragem e o seu lugar num mundo visivelmente influenciado pelo género masculino. Este trabalho é uma homenagem à mulher e Às suas representações medievais que variam sempre entre Eva (pecadora, mulher perdida, adúltera) e Maria (mulher exemplar, abnegada, heroica, corajosa). Neste pequeno estudo tentar-se-á explicar e desmitificar alguns estereótipos e lugares-comuns sobre a mulher e a condição feminina vistas pelo prisma socio-cultural medieval em que a mulher não tinha muito espaço fora da esfera privada e familiar.

Introdução Este trabalho tem por finalidade observar e analisar a mulher e a condição feminina vistas pelo prisma do romanceiro popular ibérico, mais concretamente português e espanhol. Uma vez que na criação, transmissão e preservação da literatura popular as mulheres tinham um papel importante, ver-se-á de que forma as personagens femininas são vistas no romanceiro popular no ambiente medieval da Península Ibérica profundamente marcada pela cultura patriarcal e masculina. Diferentemente da poesia épica, que à partida uma poesia mais dedicada ao género masculino, cantando e glorificando as famosas batalhas dos heróis nacionais de cada povo, ou da lírica, em que a mulher é a inspiração e a voz principal que canta os seus sentimentos, as suas preocupações e ideias, o romance, sendo um género lírico-épico, é marcado tanto pelos homens como pelas mulheres. Este facto explica-se pela existência de várias subca-

tegorias: romances históricos, romances amorosos, romance mouriscos, em que o masculino e o feminino se entrelaçam e cruzam de formas muito interessantes. Nos romances históricos destaca-se o grande sacrifício das esposas ou irmãs dos heróis, nos amorosos elas são as musas que inspiram as numerosas provas que o seu amado tem que fazer para as ganhar, como podem ser as adúlteras e traidoras. Mencionar-se-ão as mulheres que se disfarçam de homens para irem salvar a honra do pai, geralmente velho e doente, que ficou sem descendência masculina para o defender na velhice. Dentro da categoria das filhas serão analisadas as personagens de donzelas que resistem aos assédios do próprio pai, conservando por um lado a sua honra e a sua virgindade e por outro, salvando a alma do pai do pecado o incesto. Serão também observadas as mães e irmãs dos protagonistas, as religiosas e as santas. Ver-se-á que a tradição popular do conteúdo religioso

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valorizava muito a religiosidade da mulher, porque este era um dos poucos caminhos que permitia a salvação da mulher. Este trabalho é uma homenagem à mulher e Às suas representações medievais que variam sempre entre Eva (pecadora, mulher perdida, adúltera) e Maria (mulher exemplar, abnegada, heroica, corajosa). Neste pequeno estudo tentar-se-á explicar e desmistificar alguns estereótipos e lugares-comuns sobre a mulher e a condição feminina vistas pelo prisma sociocultural medieval em que a mulher não tinha muito espaço fora da esfera privada e familiar. Como enquadramento teórico para este trabalho servir-nos-emos de alguns estudos de Ramón Menéndez Pidal, Manuel Alvar, João David de Pinto Correia, Carlos Nogueira e outros.

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O papel da mulher na época medieval e na criação e transmissão da poesia popular É de conhecimento geral que na época medieval a mulher não era tão vista no espaço público como o homem, sendo-lhe reservado o papel da esposa e mãe, educadora de gerações mais novas. As mulheres na sociedade medieval eram também categorizadas pelo seu estatuto social, tendo as nobres mais direitos e mais acesso à alfabetização do que as camponesas. Outro factor decisivo na classificação do papel da mulher na sociedade era o seu estado civil; sendo o casamento uma das obrigações sociais mais importantes da mulher. A mulher solteira poderia ser ou freira ou prostituta, sendo apenas poucas as intelectuais ricas (geralmente da linhagem nobre) que podiam não casar sem terem a má reputação. Margaret Labarge (1986) salienta que, ainda que fosse reduzido, o papel da mulher medieval era também o de tratar dos negócios do marido na sua ausência, de partilhar com ele as tarefas camponesas etc. Na criação e transmissão da poesia popular em geral tal como do romanceiro as mulheres tinham um papel fundamental. Mesmo não sendo alfabetizadas na maioria dos casos, elas sabiam um grande número de poemas e transmitiam-nos mostrando desta forma a sua participação na sociedade. Este papel era importante sobretudo para as mulheres mais idosas porque desta forma elas exprimiam a sua sabedoria combinando a experiência de vida com a sua tarefa de educadoras. Carlos Nogueira (2002:3) sobre a transmissão da literatura popular refere o seguinte: “a comunicação oral nas praças, nas feiras e nos lares era um instrumento natural e quotidiano da transmissão literária”. A quotidianidade neste contexto é mui-

to importante porque a transmissão da literatura popular muitas vezes acompanhava as tarefas diárias no campo ou em casa. Elisabeth Houts (2001) destaca que as mulheres desempenhavam um papel importante na preservação de todo tipo de memória, e em especial a relacionada com a maternidade, oração e a vida familiar. Tendo as memórias relacionadas com as suas respectivas famílias, era fácil a mulheres preservarem algumas das memórias das suas comunidades nas que viviam. As mulheres relacionam-se muitas vezes se relacionam especificamente com a transmissão da poesia lírica, também são importantes na transmissão do romanceiro enquanto género lírico-épico, dando uma dimensão mais “feminina” e mais “suave” aos acontecimentos históricos de que se canta neste tipo de poemas. Ramón Menéndez Pidal,(apud. Correia, 1986 um dos maiores especialistas nos estudos da literatura tradicional espanhola define o romance da seguinte forma: “los romances son poemas lírico-épicos breves que se cantan al son de un instrumento, sea en danças corales sea en reuniones tenidas para recreo simplemente o para el trabajo en común.” Esta definição é muito frequentemente citada por outros autores especialistas nesta matéria, mas não explica o papel específico das mulheres na sua criação ou transmissão, o que é um assunto que exigiria uma investigação mais profunda e pormenorizada. De acordo com Ramón Menéndez Pidal (1984) os romances surgiram quando os antigos cantares de gesta começavam a fragmentar-se, permanecendo memória do povo alguns dos episódios mais marcantes do poema primitivo, tornando-se em obras autónomas. Neste processo de transmissão e recriação constante o romance afastava-se dos factos históricos, era frequente alguns dos personagens mudarem de nomes, aos novos poemas dava-se-lhes um toque mais quotidiano e menos documentarista. De acordo com os temas de que tratam os romances podem classificar-se em vários subgrupos: históricos, novelescos, fronteiriços, mouriscos, sacros e outros, sendo no romanceiro espanhol muito importantes os ciclos sobre o Cid Campeador, os Sete Infantes de Lara, Bernardo del Carpio, enquanto no romanceiro português são muito frequentes os romances carolíngios, os sobre os presos e cativos e os que tratam da temática amorosa dos vários pontos de vista. Em todos estes romances o papel e o espaço reservado à mulher varia de acordo com o assunto do romance. Neste trabalho abordaremos tanto algumas das mulheres como personagens históricas (a Cava, amante do rei D. Rodrigo, culpado pela in-

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vasão árabe da Península Ibérica, Jimena, a esposa de Cid, a rainha Santa Isabel ou Inês de Castro em Portugal), mas concentrar-nos-emos mais nas representações femininas que se põem reduzir a uma determinada “categoria tipo” (noivas, esposas, filhas irmãs, santas e finalmente as “donzelas guerreiras” que nos pareceram to interessantes que deram o título a este trabalho. Entre as noivas e esposas distinguir-se-ão basicamente os protótipos das amadas fiéis que são capazes de ficar a aguardar chorando pelo regresso do seu amado da guerra durante vários anos, ou de ir à procura dele pelo mundo sem acreditar na sua morte, ganhando a recompensa merecida no fim do romance e sendo tomadas como exemplo da virtude e da fé cristã e as adulteras e traidoras, que por isso são mortas ou difamadas publicamente. As mulheres como personagens históricas vistas pelo prisma do romanceiro ibérico Mesmo que a época medieval seja visivelmente marcada pela divisão dos papéis sociais baseada na divisão dos géneros masculino e feminino, a mulher no romanceiro desempenhava um papel importante, tanto na sua criação e transmissão, com na qualidade de personagem. A importância que se pode dar ao protagonismo da mulher no romanceiro popular poderia explicar-se pela possível autoria feminina de alguns romances. No romanceiro ibérico, no ciclo dos romances históricos aparece a personagem da bela cava, filha do conde Julião e amante do último rei godo D. Rodrigo, vista no imaginário popular espanhol como uma mulher fatal e sedutora, por cuja beleza o rei se tornou traidor. O romanceiro espanhol nela vê tanto todas estas imagens como a de uma “mulher sem ventura”, que é muito desgraçada pela sua beleza e que traz desgraça aos outros. No romanceiro popular português, a personagem da Cava quase não se vê, sendo dedicada muita atenção mais à penitência do rei D. Rodrigo que passa a sua velhice como ermitão. Dos seguintes versos ver-se-á a imagem que o povo tinha dos amores ilícitos entre Cava e D. Rodrigo: Si dicen quién de los dos La mayor culpa ha tenido Dicen los hombres: la Cava Y las mujeres: Rodrigo (Menéndez Pidal,op.cit.44) Aqui está clara a divisão dos públicos com base no seu género, sendo as mulheres as que defendem a Cava, vendo-a como vítima do poder masculino e os homens os que estão a favor de Rodri-

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go, como o homem que não resistiu aos encantos da pérfida sedutora que desperdiçou a sua honra e levou em perigo a Península Ibérica. A Cava no romanceiro português não é abordada com muitos pormenores, uma vez que este romance é mais frequente nas suas versões espanholas. No romanceiro popular português o episódio dos amores da Cava e do rei D. Rodrigo, que causaram a perdição da Espanha não parece ser tão importante, sendo dedicada maior atenção à penitência do rei, que passa a sua velhice no recolhimento de uma ermida. Como este episódio diz mais respeito à história da Espanha, é natural que neste país haja mais versões do romance popular. Para a interpretação correcta deste romance e da personagem feminina nele, o leitor deve enquadrar o seu pensamento no imaginário medieval e entender o código da honra masculina e feminina, o sistema feudal e patriarcal que valorizava muito o poder do homem e parecia sempre culpar a mulher. Não se sabe, porém se neste romance a culpa pela destruição da Espanha é efectivamente da Cava e das suas capacidades sedutoras ou da fraqueza e incapacidade do rei D. Rodrigo de dominar os seus impulsos. A próxima mulher histórica que será mencionada neste trabalho é Jimena, a esposa de Cid o Campeador, representada como quem se debate entre o amor pelo pai, a vingança de reclama e o amor por Cid, que foi o causador da morte do seu pai. Todas estas características tornam-na uma personagem profunda e complexa, que não se pode reduzir apenas à categoria de boa filha ou esposa fiel. Alguns versos caracterizam-na de “brava” e “furiosa”, outros vêem nela exemplo da fé e das virtudes cristãs. No romanceiro português não se lhe dedica a atenção que ela merece, sendo o Cid o herói nacional espanhol e a sua esposa também faz parte de todo um imaginário ligado a ele. Em Portugal, uma espécie de equivalente de Jimena seria a D. Inês de Castro, conhecida pela sua história de amor com o rei D. Pedro, que se debatia também entre a lealdade ao seu país e os sentimentos pelo seu amado e amante. Na tradição peninsular tanto os “romances velhos” como os da tradição oral moderna tratam do tema dos amores de D-Pedro e D. Inês de Castro. Todos eles abordam a morte de D. Inês, a possibilidade da existência dos filhos entre os amantes, a vingança de D. Pedro pela morte da sua amada. o imaginário ibérico vê nela ao mesmo tempo adúltera e vítima e por isso no romanceiro popular da Espanha e de Portugal a personagem dela ter duas formas de ser encarada: a muito negativa, como falsa e traidora, exemplo da transgressora de regras da moral pública medieval e a grande apaixonada cujo amor

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não cabe numa sociedade bem hierarquizada e muito cruel com aqueles que se atrevem a agir de forma esperada. A última mulher histórica que abordaremos nesta parte da investigação será a rainha Santa Isabel, mais presente no imaginário português, conhecida pelo seu milagre das rosas e pela sua grande fé cristã e comportamento virtuoso. O romanceiro popular português glorifica-a como exemplo do altruísmo que mostrava em relação aos pobres, da abnegação e do amor cristão, tal como pela sua grande devoção a Deus e á Igreja católica.

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As mulheres como noivas, esposas e amantes no romanceiro popular ibérico Uma vez que na época medieval o estado civil era uma das marcas muito importantes da mulher e do seu papel social, nesta parte do trabalho abordaremos as mulheres como namoradas, noivas, esposas e amantes vistas pelo prisma do romanceiro popular ibérico. Como namoradas elas muitas vezes não têm nomes e são apresentadas como “belas infantas” que têm os cabelos doirados e que os penteiam com um pente de prata fina, embelezando-se para o seu amado, num ambiente de eterna primavera na natureza. Como tais são ideais da beleza e da fidelidade, são objectos de sonho do seu namorado e então ele sonha um belo “soñito de alma mia” (Menéndez Pidal,op.cit.62), consistindo esse sonho em abraçar a amada. Tanto na Espanha como em Portugal elas reduzem-se ao estereótipo da dama idealizada. Como noivas são conhecidas como fiéis ao seu noivo, mas também pela gravidez ilegítima com ele. Desta forma dos amores dos noivos da “hermosa Jimena”, irmã do rei D. Afonso o Casto e do conde de Saldanha nasce Bernardo del Carpio, no romanceiro tradicional espanhol e no romanceiro tradicional português os amores clandestinos entre o criado Gerineldo e a sua amada infanta são defendidos a pesar da espada que o rei tinha posto na cama entre eles. Estas histórias de amor têm uma determinada simpatia pelas mulheres que infringiram as regras da moralidade cristã medieval e das regras do bom comportamento de damas que delas se exigia. Apesar de não terem preservado a sua virgindade, elas são corajosas, defendem o seu amor e por isso, mesmo que estejam encerradas numa alta torre ou ameaçadas de morte, elas não são vistas completamente como transgressoras ou pecadoras, dando-se-lhes o direito de recuperarem a sua honra casando no fim dos romances com o seu amado. Muitas vezes recebendo a má notícia da morte do seu noivo elas também caem mortas,

com o qual se enfatiza a impossibilidade de elas viverem sem o seu noivo, sendo apresentadas como constantes no amor, leais, corajosas e mulheres cuja morte heróica merece ser cantada nos poemas populares. A categoria das esposas no romanceiro tradicional ibérico torna-se muito mais complexa, uma vez que se pode dividir em dos subcategorias: as esposas fiéis e as infiéis. A infidelidade feminina na Idade média era muito mal vista uma mulher que não guarda a fidelidade ao marido é sempre vista como calculada, traidora, adúltera, que deve ser morta ou castigada no fim. No imaginário espanhol o assunto aprofunda-se ainda mais com a figura do marido enganado, que frequentemente é visto como fraco e ridículo, e comportamento adúltero da sua mulher é quase justificado. O tema da mulher malcasada é muito antigo na tradição oral da Europa ocidental, já que entre os nobres e membros da realeza a maior parte dos casamentos eram combinados e baseados nos factores da linhagem ou estatuto social. Nestas situações o adultério é quase a única solução que uma mulher infeliz tem para a sua posição. A tradição popular espanhola e portuguesa costuma mencionar o período de sete anos da infelicidade matrimonial da mulher após o qual o aparecimento do amante é quase um remédio e a forma de ela se vingar do marido que não ama, denunciando a temática complexa dos casamentos combinados e reivindicando o seu direito de amar e ser amada. As mulheres propositadamente infiéis como no ciclo sobre D. Bernardo da França, presente nos dois países ibéricos são as que abrem as portas do castelo ao seu amante sendo descalças e vestidas apenas de uma camisola de dormir, mostrando-se assim como pouco cuidadosas com a sua honra e desejosas de sentir o prazer do amor carnal quanto antes, sem ter que despir muita roupa. Quando a infiel é a própria rainha, pode acontecer que a sua filha seja testemunha da desonra do bom rei, e é chantageada pela mãe a guardar segredo, o que filha honesta, como protótipo de uma boa donzela se recusa a fazer e a rainha merece o seu castigo. Existem também romances na tradição espanhola ou portuguesa em que o rei perdoa a rainha e mata o seu amante. Com esta atitude mostra-se mais o carácter nobre do rei e a bondade da sua filha, do que propriamente qualqr qualidade de arrependimento da rainha. A moralidade medieval nestes casos põe no primeiro plano o respeito da autoridade real e conjugal, a infalibilidade masculina e a sua superioridade sobre uma mulher pouco exemplar. Por vezes a sua infideli-

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dade é descoberta quando elas abrem a porta do castelo, pensando que se trata do amante, quando na realidade é o marido enganado que regressa da guerra ou de uma longa viagem. As amantes e ao mesmo tempo esposas infiéis lavam os pés do amante, fazem-lhe a cama macia, dão-lhe de comer os manjares ricos, aproveitando a oportunidade de falar mal do marido, Nos casos de não reconhecerem o marido falam-lhe no pavor que ele deveria ter do pai ou dos irmãos dela. Tanto a tradição espanhola como a portuguesa não toleram esta atitude feminina e condenam a mulher ou `uma morte violenta pela espada do marido, ou à vergonha e isolamento. As mulheres fiéis, porém, nas duas tradições populares são dignas de louvor, são símbolos de paciência, constância, amor, fé cristã e coragem. No Romance de la condesita espanhol (in: Menéndez Pidal, op.cit.) é apresentada uma jovem cujo marido vai para a guerra, e apesar de ele próprio lhe ter permitido casar de novo se não soubesse notícias dele durante três anos, ela mostrou-lhe a sua absoluta fidelidade durante sete anos, foi procurá-lo pelo mundo e mereceu estar com ele no fim, apesar de e se ter casado no seu novo reino. O novo casamento do conde deve-se a um encantamento, pelo qual ele não sabia o que fazia. O motivo da mulher que durante m determinado número de anos guarda fidelidade ao marido e após o prazo terminado vai à sua procura, também é frequente nos contos tradicionais de vários povos europeus. A rainha discreta e o exemplo de boa esposa apresenta-se-nos no romance português Os dois amantes (in: Pinto-Correia, 2003). Ela é tão virtuosa e compreensível que até permite que o seu amado rei morra por causa do seu “mal de amores”, quando vê que a antiga namorada do seu marido o tinha vindo buscar, após ter viajado pelo mundo durante três anos. As esposas são qualificadas como “discretas”, “esposas da alma”, “damas” etc. o que lhes confere um estatuto de dignidade, respeito, honra, constância e virtude, o que as esposas infiéis perderam ou nunca tiveram. Como viúvas as esposas que o romanceiro tradicional ibérico nos dá a conhecer são exemplares, recolhidas, constantes na sua tristeza tal como o foram no seu amor. No romanceiro espanhol é conhecido o exemplo de uma viúva que comparada a uma “tortolica” que lamenta a morte do seu “ruiseñor” e no romanceiro português a D. Alda pressente a mor do seu esposo depois de ter um sonho premonitório e morre no mesmo momento que o seu marido. As mulheres como filhas honradas no roman-

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ceiro popular ibérico A filha do rei é uma categoria especial de personagens no romanceiro tradicional ibérico. Geralmente os romances tradicionais apresentam uma situação em que um rei tinha três ou sete filhas; todas “alvas como prata fina” sendo “a mais moça” a filha predilecta do pai. Até aqui o romanceiro dá a ideia muito presente também nos contos tradicionais, que sobrevaloriza a filha mais nova em relação às outras duas irmãs. Pela sua beleza, discrição e virtudes esta menina é uma espécie de equivalente a esta figura nos contos tradicionais, com a diferença que no romance as suas irmãs não são más. Quando se explicita que o pai “se namorou” da sua filha mais nova, esta temática deixa de ser inocente e come a preocupar o ouvinte ou leitor cristão do ponto de vista do incesto como pecado e da perspectiva dos temas da salvação ou perdição da alma, da honra da filha e da preservação da sua virgindade. O pai pecador é condenado a arder eternamente no Inferno e a nina quando morre merece o céu e o louvor de Deus, tanto por ter preservado a sua castidade, como por ter impedido a que o seu pai a “acometesse de amores”. Embora no romanceiro tradicional espanhol este tema exista e seja abordado da mesma forma, no romanceiro português são mais numerosos os romances sobre a dona Aldina, Alba, Silvana ou donzelas com outro nome que rejeitam com horror e prudência “fazer a cama” ou namorar com o pai, invocando as penas do Inferno, Deus do Céu, a “hóstia sagrada”. A paixão pecaminosa do pai é tal que diz que não se importaria de passar os sofrimentos do Inferno para poder passar uma noite com ela. A cúmplice da filha na sua decisão de se manter pura e de salvar o pai de tão grande pecado é a mãe que veste o vestido da filha e dorme com o seu marido. O pai, porém, merece o Inferno, porque se atreveu não apenas a “acometer de amores” a sua filha, mas também por amaldiçoá-la. A filha nestes romances é corajosa, porque se opõe à vontade do pai, e não teme o cruel castigo de estar encerrada numa alta torre durante sete anos, condenada a comer carne crua e beber água salgada. Ela é pura, sábia, conhecedora dos dogmas cristãos, mas também astuta porque promete amar o pai da forma em que ele quer apenas para conseguir a sua liberdade. A mãe e as outras irmãs, embora a amem e tratem de “rica filha/mana da minha alma”são mostradas como mais fracas e pessoas que têm medo da crueldade e do castigo do marido ou do pai. Com isto apenas se acentua o martírio da menina durante a vida e a sua glória após a morte.

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As mulheres que fazem o papel de filho varão no romanceiro popular ibérico Um outro tipo de filhas conhecidas pela sua coragem no romanceiro tradicional ibérico são as “donzelas guerreiras”, que nascem como sétimas ou terceiras meninas numa família sem descendentes masculinos. Num perigo de guerra ou numa situação em que é necessário salvar a honra do pai, velho rei, a filha mais nova decide assumir o papel do filho varão que o rei não tem e de ir e fazer a guerra. Após ter cortado o cabelo, apertado o peito e disfarçado todos os demais sinais da feminilidade, a donzela consegue enganar todos durante três ou sete anos, menos o filho do rei da terra em que ela se encontra. O rapaz apaixona-se por ela por causa dos seus olhos, que são o único sinal que a revela. No romance espanhol sobre Don Martín esta paixão descobre-se nos versos: “Los ojos de don Martín son de mujer, de hombre no” e no romance português trata-se dos versos: “os olhos do D. Varão, são de mulher, de homem não”. Nalgumas variantes deste romance menciona-se o nome “Dom Martinho”, que claramente testemunha a origem espanhola do romance. A ideia de uma filha assumir as responsabilidades do filho varão está bastante difundida também nos Balcãs, o que mereceria um outro estudo mais pormenorizado. A menina que assumiu o papel do rapaz também é reflexo dos antigos mitos clássicos e orientais, com um ligeiro toque local na história. Embora em nada se distinga da coragem e força física masculinas (no uso das armas, do cavalo, na destreza com a qual faz a guerra, o príncipe apaixonado não consegue ter sossego por causa da beleza feminina dos olhos da donzela guerreira. A sua conselheira na tarefa de descobrir o sexo natural do “Dom Varão” é a mãe que sabe quais seriam os comportamentos típicos de uma mulher em várias situações (colher flores, comer couves, senta-se na cadeira baixa, as formas de partir o pão, não se despir facilmente na presença de um homem desconhecido). A menina guerreira faz exactamente tudo o que se esperaria de um homem, mas os seus olhos continuam a delatá-la. No momento de ter de se despir , ela como uma boa e honrada virgem, inventa que tem de ir para o seu reino porque os seus pais estão a morrer. O príncipe permite-lhe que regresse respeitando o seu luto e apenas então revela-se a verdadeira identidade do “dom Varão”, e o romance pode ter vários fins: na versão espanhola Don Martín após a tarefa cumprida cm sucesso pede à sua mãe que lhe prepare a roca porque “tem vontade de fiar”, assumindo-se de novo como completamente satisfeita com o seu papel de mulher. Nas versões portuguesas

salienta-se que ela veio virgem e continua a sê-lo enquanto “o filho do rei como asno /atrevido ficou”. Na melhor das hipóteses a menina permite ao príncipe que a siga e que case com ela, uma vez que ele foi o único que a reconheceu e que teria o direito à sua “recompensa” merecida. Conclusões Após termos analisado as personagens femininas no romanceiro tradicional ibérico do ponto de vista da sua existência na história, da perspectiva do seu estado civil (noivas, esposas, viúvas), do seu lugar na família (irmãs e filhas) e da sua santidade, chegou-se à conclusão de que o imaginário popular ibérico (o espanhol e o português) não varia demasiado nas ideias que tem sobre a mulher medieval na sociedade, sendo os mesmos comportamentos considerados como vícios e pecados (o adultério. a sedução, a traição) e por outro lado como virtudes (honra, fidelidade, religiosidade, castidade e coragem) são igualmente valorizadas nos dois espaços culturais, sendo as cristãs superiores às mouras. No último caso propagam-se os valores da Reconquista cristã, pondo-se o cristianismo por cima do islão. As visões da mulher e do feminino no romanceiro popular ibérico correspondem completamente às visões dos mesmas assuntos na Europa medieval toda, tendo porém um ligeiro colorido local, que faz com que o romanceiro espanhol e português sejam são atuais ainda hoje em dia. Referências bibliográficas: CORREIA; João David Punto (1986) O Essencial sobre o Romanceiro Tradicional, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa ________________(2003) Romanceiro Ora da Tradição Portuguesa,, Edições Duarte Reis, Lisboa HOUTS, Elisabet van (ed.) (ed.) (2001) Medieval Memories, Men, Women and the Past, Longman, London LABARGE, Margaret Wade (1986) La mujer en la Edad Media, Nerea, Madrid NOGUEIRA, Carlos (2002), O Essencial sobre o Cancioneiro Narrativo Tradicional, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa PIDAL, Ramón Menéndez (1986), Flor Nueva de Romances Viejos,Espasa-Calpe, Colcción Austral, Madrid

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A Representação do Feminino nas Crônicas de Luiz Fernando Veríssimo e David Coimbra1 Camilla Compagnon2 e Sibila Rocha3 Centro Universitário Franciscano – Santa Maria – RS, Brasil

RESUMO: O estudo se insere nas discussões sobre como o universo feminino é representado, discursivamente, em dispositivos midiáticos. Neste sentido, investigaram-se os modos e representações sociais do feminino através do uso de discursividades nas crônicas publicizadas no Jornal Zero Hora /RS/ Brasil. Por meio de processo observacional e metodologias qualitativas, foram mapeadas estratégias discursivas, produzidas pelas crônicas de dois autores gaúchos consagrados nacionalmente: David Coimbra e Luiz Fernando Veríssimo. Analisou-se a partir de três categorias temáticas: femilidade, sexo e profissão. 1. INTRODUÇÃO Esse artigo é resultado de uma pesquisa com bolsa de iniciação científica patrocinada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), realizada no Centro Universitário Franciscano de Santa Maria, RS. O estudo foca nos modos como o universo feminino é abordado nas crônicas de Davi Coimbra e Luis Fernando Veríssimo. O objetivo é investigar qual o perfil de mulher que os autores constroem, discursivamente, em crônicas publicadas no jornal Zero Hora no período de julho de 2005 a março de 2012. Trata-se de uma análise que interpreta as representações sociais enunciadas em dispositivo midiático, mais especificamente no gênero crônica. 2 BREVE QUADRO TEÓRICO: O JORNALISMO, A CRÔNICA E SUAS REPRESENTAÇÕES 2.1. A NARRATIVA JORNALÍSTICA COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL A importância dos meios de comunicação na sociedade, para Souza (2002), está na capacidade que esses meios possuem de representar as pessoas, a sociedade e a cultura, ou seja, na forma como influenciam na produção e na reprodução 1 Artigo resultante da pesquisa “A Representação do Feminino nas Crônicas de Luiz Fernando Veríssimo e David Coimbra”, patrocinada pela FAPERGS. 2 Estudante de Graduação 7º. Semestre do Curso de Jornalismo da UNIFRA-RS, email: [email protected] 3 Doutora em Ciências da Comunicação pela UNISINOS e Professora Adjunta da UNIFRA dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda – RS email: [email protected]

dos processos sociais e culturais. Com essa análise, o autor infere que o campo das representações midiáticas auxilia na criação referencial de uma análise de determinada sociedade, de sua cultura e política organizacional, dentre outras ramificações. Para Putnam (1988) a construção de representações é um resultado da atividade mental em interação com o ambiente externo. A maneira como vemos o mundo, a partir do que nos é exposto dentro da nossa realidade, dentro de nossas crenças e vivências. No entanto, para o autor, a relação de representação pode ser perturbada pela fraqueza da imaginação, do preconceito, que faz com que se tome o engodo pela verdade, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma realidade que não o é. “A teoria das representações sociais argumenta que por detrás das ações e fundamentando as razões do fazer, está uma representação do mundo racional e cognitiva, mas que é muito mais que isso: é um conjunto amplo de significações criadas e partilhadas socialmente. É todo um sistema de crenças e valores que todos possuímos e que não é apenas individual, mas que é também social e comanda, verdadeiramente, as ações das pessoas.” (Guareschi, 2000, p. 70) Representar é uma forma sagaz de fazer a existência perpassar a outro patamar de definições, denominações, interpretações, julgamentos, dentre outros próprios à condição humana. Uma vinculação entre o que ocorre fora da nossa mente (o fato),

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com o que ocorre dentro (interpretação desse fato). As representações são a essência do processo comunicacional, onde cada associação possui uma visão civilizada que pode variar entre sua cultura e crenças. De acordo com Alsina (1989), o jornalismo é um dos lugares privilegiados para construção da realidade, afinal, trata-se do espaço onde se produzem sentidos a partir dos fatos ocorridos. Segundo ele, o jornalista age sobre a realidade social, na medida em que elabora e determina o que merece ou não um status noticioso. A notícia é “uma representação social da realidade cotidiana produzida institucionalmente que se manifesta na construção de um mundo possível” (p. 18). Seguindo essa linha, Soares (2009) vai além e revela que a pesquisa da representação no jornalismo e em sua cultura midiática, tem como foco mais recorrente de investigação as representações da mulher, de minorias e de etnias, embora, em princípio, qualquer assunto possa ser objeto de estudo. Para ele, as representações desempenham papéis distintos nos três grandes gêneros da cultura midiática: a ficção, a persuasão (publicidade comercial, propaganda política) e a informação (jornalismo). Soares (2009) também conceitua que as representações, aplicadas ao campo da comunicação midiática, resultam em uma síntese entre os fatores racional-cognitivo, social e técnicos envolvidos no processo, permitindo a superação de antagonismos entre abordagens, como, por exemplo, aquele que confronta, de um lado, as análises das mensagens e, de outro, a recepção, buscando estabelecer o momento da produção de sentido. “As representações seriam consideradas como constituídas de redes de interação entre pessoas e artefatos (mensagens), nas quais o polo individual só é possível na presença dos polos social e o material. Uma concepção distributiva considera as representações mentais, os processos sociológicos e as representações mediáticas como instâncias que incidem umas sobre as outras e retroagem, de forma dinâmica.” (Soraes, 2009, pg. 22) Nesse sentido as representações sociais no campo do discurso jornalístico assumem um posicionamento de protagonistas das práticas vigentes da sociedade. A representação, compreendida como um processo midiático estabelece identidades individuais e coletivas. Os discursos e os sistemas das representações sociais constroem a realidade de maneira recorrente, a partir das quais os indivíduos podem se posicionar. Um dos discursos privilegiados desta fluidez é a crônica jornalística, que une o factual e a ficção num discurso híbrido,

traduzindo o cotidiano de forma opinativa e, portanto como alavanca na produção de sentidos. 2.3 A CRÔNICA: UM GÊNERO JORNALÍSTICO Um dos gêneros que mais traduzem as representações culturais no jornalismo é a crônica: um gênero híbrido entre jornalismo e literatura que trabalha com ficção do cotidiano e vem ganhando destaque no jornal impresso diário devido às suas características acessíveis de leitura. Ela se constrói da análise de comportamentos e acontecimentos contemporâneos com toques e temperos ficcionais, vindos da literatura. Por possuir a qualidade de um dispositivo híbrido, a crônica, além de expressar o cotidiano e reproduzir os fatos ou impressões pessoais sobre o mundo, é responsável pela criação de referencialidade jornalística e literária. O que define a crônica no jornal é a sua capacidade de compreender várias expressões estéticas, como a linguagem cinematográfica, poética, radiofônica, sem reduzir-se apenas à literatura (PEREIRA, p. 28). Trata-se de uma linguagem leve, envolvente e que transmite, na maioria das vezes, uma mensagem clara e direta. É fundamental analisar a crônica dentro do âmbito jornalístico e a partir deste, notar como ela amplia seus significados denotativos ou conotativos rompendo algumas barreiras estéticas impostas pela linguagem jornalística padrão.  “[...] a crônica determina novas relações com os gêneros jornalísticos, não se limitando a informar ou opinar; mas construindo novos significados na própria articulação entre várias linguagens que o cronista exercita para explicar as representações de seu mundo ao leitor”. (Pereira, 2004, p.32). A crônica está na fronteira entre narração literária e informação jornalística da realidade. Segundo Santaella (1996), ao recriar a realidade, a crônica abre campo para uma visão crítica que necessita da criatividade para vir à tona. Neste sentido, crítica e criatividade encontram-se e reforçam-se na crônica jornalística. Atualmente, a crônica possui lugar fixo no jornal e o cronista é como se fosse um amigo íntimo com quem o leitor conversa e compartilha opiniões, troca experiências do dia-a-dia. Wellington Pereira (2004) entende que no jornalismo a crônica pode ser definida como um gênero de autonomia estética que abriga as várias manifestações da linguagem, cuja característica principal é reescrever os acontecimentos cotidianos de forma que os seus significados não sejam impostos ao leitor (PEREIRA, 2004, p. 164).

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O autor da crônica pode se colocar no centro da narrativa e escrever sobre suas percepções em relação a um tema qualquer ou também, pode ser um texto em que o autor cria personagens e conta uma narrativa, uma pequena história. As crônicas do Luis Fernando Veríssimo e do David Coimbra nos servem como exemplo. 3. METODOLOGIA 3.1. NATUREZA DA PESQUISA A pesquisa possui caráter qualitativo, pois é caracterizada pela interpretação dos dados, considerando que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, que não pode ser traduzido em números. A pesquisa qualitativa envolve o uso e coleta de uma variedade de materiais empíricos, tais como: estudo de caso, experiência pessoal, introspecção, história de vida, entrevista, artefatos, textos e produções culturais, textos observacionais, históricos, interativos e visuais — que descrevem momentos e significados na vida dos indivíduos. Entende-se, contudo, que cada prática garante uma visibilidade diferente ao mundo levando assim, a pesquisa qualitativa a ser vista como um campo de investigação que atravessa disciplinas, campos e temas. O foco da abordagem está nos processos, nos seus significados e efeitos de sentido. 3.2. TÉCNICAS DE PESQUISA As técnicas de análise discursiva constituem em ferramentas metodológicas que viabilizam a observação e identificação dos elementos que compõe e dão sentido aos produtos midiáticos. O estudo contou com uma análise baseada na desconstrução de enunciados e de relações sociais dadas a partir de uma construção da realidade, ou seja, da capacidade do homem de comunicar-se e de se inserir em sua realidade social e política, a partir de crônicas jornalísticas. A análise de discurso é muito utilizada para analisar textos da mídia e as ideologias que os engendram. Segundo Pinto (2002, p.27), “a análise de discurso não se interessa tanto pelo que o texto diz ou mostra, pois não é uma interpretação semântica de conteúdos, mas sim em como e por que diz o que mostra”, ou seja, para o autor, a análise discursiva tende a se focar no objeto concreto da linguagem e na interpretação da maneira como os conteúdos foram enunciados estruturalmente. Na análise de discurso, a linguagem não é considerada

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transparente e possui uma materialidade simbólica significativa em sua discursividade. Assim, relacionando a história da linguagem com a da produção de sentidos, os estudos dos discursos trabalham a forma material que é a forma caracterizada por produzir sentidos. “Os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das, intenções dos sujeitos” (ORLANDI, 2003, p.30). A análise do discurso não considera apenas a produção de sentidos nos textos verbais, mas também nos não-verbais. A imagem, que igualmente é fonte de significados, é integrada ao texto, mantendo funções semânticas próprias. 3.3. OBJETO EMPÍRICO Tem-se como objeto empírico crônicas publicadas por David Coimbra e Luiz Fernando Veríssimo no jornal Zero Hora entre o período de julho de 2005 a agosto de 2010. Para as crônicas selecionadas foram escolhidas três categorias de análise: feminilidade, sexo e profissão. Essas categorias, por representarem a essência feminina, permitem investigar como o universo feminino é representado na perspectiva de cada um dos autores. 3.3.1. DAVID COIMBRA David Coimbra formou-se em jornalismo pela PUC-RS em 1984 e trabalhou como assessor de imprensa da Livraria e Editora Sulina, redigindo resenhas de livros, entrevistando autores, acompanhando escritores em suas visitas ao Estado. Atualmente é diretor executivo de Esportes e colunista de Zero Hora, além de comentarista da TVCOM, onde participa do Café TVCOM. Participa também do Programa de debates Sala de Redação, na Rádio Gaúcha. 3.3.2 LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos. Como jornalista iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto Alegre, em fins de 1966, onde começou como copydesk, mas trabalhou em diversas seções (“editor de frescuras”, redator, editor nacional e internacional). Participou também da televisão, criando quadros

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para o programa “Planeta dos Homens”, na Rede Globo e, mais recentemente, fornecendo material para a série “Comédias da Vida Privada”, baseada em livro homônimo. 3.3.4. JORNAL ZERO HORA Foi fundado em 4 de maio de 1964 servindo de porta-voz do Regime Militar (1964-85). Sua antiga sede localizava-se na Rua Sete de Setembro, centro de Porto Alegre. Em 1969, foi inaugurada a sede na Avenida Ipiranga, no bairro Azenha, onde permanece até hoje. Em 1996 a edição e produção do jornal passam a ser totalmente digital. Em 19 de setembro de 2007, entrou no ar o website ZeroHora.com, que apresenta notícias atualizadas 24 horas por dia, sete dias por semana, mais a versão impressa do periódico. 4. RESULTADOS E SISTEMATIZAÇÃO DE DADOS

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4.1. A FEMINILIDADE A feminilidade se refere às características e comportamentos considerados por uma determinada cultura por ser associados ou apropriados a mulheres. No dicionário Aurélio, encontramos a definição de feminilidade como a “qualidade, caráter, modo de ser, de viver, de pensar, próprio da mulher.”. Na crônica “Túnel do tempo: A culpa é das mulheres”, David Coimbra singulariza a mulher dos primórdios da seguinte forma: [...] “Quando voltavam para a clareira onde haviam deixado as mulheres e os filhos, elas, as mulheres, os esperavam com muitos frutos e raízes na panela e pouca roupa no corpo rijo de fêmeas habituadas a longas caminhadas. Os homens se sentavam em torno da fogueira, narravam suas aventuras, agora com detalhes aumentados de façanhas e heroísmos, e depois era aquela festa. Ninguém era de ninguém. Não existia monogamia, não existia casamento, não existia fidelidade, não existia isso de mulher ficar fuçando no celular do homem para descobrir quem ligou na noite anterior. [...] (crônica de David Coimbra, publicada pelo jornal Zero Hora no dia 25 de agosto de 2010) Nesta crônica, David Coimbra situa a mulher nos primórdios do tempo e retrata a mesma, de acordo com os comportamentos relacionados às culturas mais antigas. Nesta época, mulheres eram consideradas menos importantes que os homens e a grande disparidade de direitos era notória. Coim-

bra conota o espaço onde mulher e filhos ficam de “clareira”, com uma atitude de aguardo com intuito de agradar o homem. Uma submissão feminina e sexual “com pouca roupa no corpo rijo de fêmeas”. Esta submissão é apontada na categoria feminilidade quando o autor se refere ao final da narrativa como “aquela festa”. O percurso gerativo deste signo permite ler nas entrelinhas uma grande entrega das “fêmeas” para os machos. Ou seja, ele insinua que “ninguém é de ninguém” ressaltando que nos tempo de hoje a fidelidade e a igualdade do controle da mulher sobre o homem é negativo. Há, nesta categoria uma exacerbação da submissão feminina sobre o seu homem, ou seja, uma crônica que aponta dados machistas de tempo anteriores. [...] “Esse era o Paraíso. Não sou eu quem o afirma; é a Bíblia. Adão e Eva eram caçadores e coletores. Eram nômades a vagar alegremente pela vasta área do Jardim do Éden. Eram, como já disse, felizes. O que aconteceu para que tudo se transformasse? Aconteceu que a mulher fez o homem mudar. A história está toda lá, nas entrelinhas da lenda do Gênesis. Quer ver? Prova número 1: o que significa a maçã do conhecimento que Eva oferece a Adão? Resposta: significa a Civilização. Eva, a mulher original representando todas as mulheres originais, convence Adão, o homem original representando todos os homens originais, a se civilizar. O que, então, tem de fazer Adão? Tem de trabalhar, o que, além de ser um apanágio da Civilização, é um castigo divino. Deus, claramente, desgosta da Civilização. Queria o homem no Paraíso, nu, desocupado e feliz.” [...] (crônica de David Coimbra, publicada pelo jornal Zero Hora no dia 25 de agosto de 2010) Na continuidade, o cronista sinaliza uma transformação no modo de vida primitivo, a partir da mulher. A mulher, em toda sua suposta reclusão, é o gancho que levará o homem a um processo de aquisição de valores culturais, sociais e tecnológicos, ou seja, o ato de civilizar-se. Quando o autor diz “que a mulher fez o homem mudar” ele deixa evidente a intenção de que Eva seduziu Adão com objetivos além da percepção do mesmo. Até mesmo o “Deus” é representado como oposto à ideia do início da “civilização”. Estas estratégias linguageiras conotam, na categoria feminilidade, que é este ser, chamado mulher, que aponta para o homem uma visão mais ampla da sociedade, aqui chamada de “civilização”. Com isso o universo feminino é exposto como único e além da compreensão do homem que prefere manter-se “deso-

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cupado e feliz”. Por outro lado, encontramos no cronista Veríssimo, em sua crônica “Mulheres”, uma narrativa menos figurativa e que retrata e representa a feminilidade da mulher através de uma visão mais clara e objetiva. O autor fala sobre o poder do sexto sentido feminino e na capacidade que as mulheres têm de prever acontecimentos ou de estarem sempre certas em suas previsões. O bom senso feminino, evidencia à mulher, uma capacidade de ver o mundo em seus pequenos detalhes. [...] “Pare para refletir sobre o sexto-sentido. Alguém duvida de que ele exista? E como explicar que ela saiba exatamente qual mulher, entre as presentes, em uma reunião, seja aquela que dá em cima de você? E quando ela antecipa que alguém tem algo contra você, que alguém está ficando doente ou que você quer terminar o relacionamento? E quando ela diz que vai fazer frio e manda você levar um casaco? Rio de Janeiro, 40 graus, você vai pegar um avião pra São Paulo. Só meia-hora de vôo. Ela fala pra você levar um casaco, porque “vai fazer frio”. Você não leva. O que acontece? O avião fica preso no tráfego, em terra, por quase duas horas, depois que você já entrou, antes de decolar. O ar condicionado chega a pingar gelo de tanto frio que faz lá dentro!” (crônica de Luiz Fernando Veríssimo, publicada pelo jornal Zero Hora no dia 21 de junho de 2009) Nessa crônica, Veríssimo realça o poder de sensibilidade feminina e o chama de “sexto-sentido”. A mulher é capaz de precaver-se contra um mundo de acontecimentos, enquanto o homem sequer os prevê. Ao ressaltar as situações do cotidiano como quando “uma mulher manda você levar um casaco”, o autor conota como as mulheres podem ser prestativas e minuciosas ao seu modo. Também é atribuída à mulher, uma característica de preocupação constante com o seu homem, o que relaciona esse “sexto sentido” aos vínculos eternos entre mulher e homem. Ainda em “Mulheres” Veríssimo cita a capacidade feminina de ser mãe. [...] “E não satisfeitas em ensinar a vida elas insistem em ensinar a vivê-la, de forma íntegra, oferecendo amor incondicional e disponibilidade integral. Fala-se em ‘praga de mãe’, ‘amor de mãe’, ‘coração de mãe’” [...] (crônica de Luiz Fernando Veríssimo, publicada pelo jornal Zero Hora no dia 21 de junho de 2009)

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Nesse parágrafo o autor se refere à “disponibilidade integral” das mulheres em função de seus filhos, a quem dão “a vida” e ensinam “a vivê-la” por vontade própria. Ele constrói a função de “ser mãe”, como algo inerente ao universo da feminilidade. Em ambas as crônicas analisadas nessa categoria, a representação da mulher é construída como um ser vinculado ao homem. Ora sendo submissa, ora influenciando, ora desejando e sendo desejada e/ou apresentando uma força e um cuidado maior que o do homem. Em ambas as narrativas, entretanto, são percebidas que as relações entre a feminilidade e suas práticas sociais são fontes geradoras de vida e não passam despercebidas de seus parceiros. 4.2. SEXO Selecionamos nesta categoria denominada sexo, o conjunto de idéias, signos e representações que se referem à exploração das qualidades sensuais, apelativas e de relacionamentos entre homens e mulheres onde o desejo é o principal objeto de análise. Coimbra ressalta em grande parte de suas crônicas, uma narrativa mais chamuscada e com mais apelo ao lado sexual feminino. Na crônica “O Mistério do cabelo molhado”, David Coimbra narra o desejo de um garoto de 17 anos, por uma mulher mais velha do que ele: [...] “Aí vi aquela morena. Tinha cabelos longos, olhos castanhos, belas pernas mal cobertas por um shortinho branco e devia ser uns oito anos mais velha do que eu. Talvez rondasse a fronteira dos… 25 anos.” [...] (crônica de David Coimbra, publicada pelo jornal Zero Hora no dia 18 de outubro de 2009) O autor narra uma mulher, que se insinua através de roupas provocativas. Não cita características psicológicas ou nome, apenas se refere à idade e a descreve pelos atributos físicos e vestimenta. O desejo do homem pelo físico da mulher e seus contornos e formas de vestir. A sedução esta nas entrelinhas deste texto que remete ao poder sensual da fêmea sobre o macho. Quando o assunto é sexo, percebe-se a construção de Veríssimo na crônica quando diz: [...] “É sabido que as mulheres confundem sexo e amor. E isso seria uma falha, se não obrigasse os homens a uma atitude mais sensível e respeitosa com a própria vida. Pena que eles nunca verão as mulheres-anjos que têm ao lado. Com todo esse amor de mãe, es-

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posa e amiga, elas ainda são mulheres a maior parte do tempo. É nessa hora que elas se sentem o próprio amor encarnado e voltam a ser anjos. E levitam. Algumas até voam. Mas os homens não sabem disso. E nem poderiam. Porque são tomados por um encantamento que os faz dormir nessa hora” [...] (crônica de Luiz Fernando Veríssimo, publicada pelo jornal Zero Hora no dia 21 de junho de 2009) Neste texto, o autor permite inferir que as mulheres fazem sexo com amor e amor com sexo, o que as torna mulheres superiores, ao representar este modo de ser como “mulheres-anjos”, capazes de voar e levitar. Mostra ainda as diferenças existentes entre o modo de fazer sexo do homem e o encantamento do sexo feminino.

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4.3. PROFISSÃO A inserção da mulher dentro do mercado de trabalho tem se mostrado cada vez maior a partir de uma combinação de fatores econômicos, culturais e sociais. Um dos grandes fatores para essa massiva inserção feminina é a maior diversidade de funções que as mulheres têm ocupado. Hoje em dia, a mulher atua nas mais diferentes áreas e circula até mesmo em profissões que, por um determinante cultural, eram consideradas estritamente masculinas. O cronista David Coimbra em sua crônica “Tudo”, apesar de não evidenciar o papel da mulher dentro do trabalho para a sociedade, gera um perfil dessa mulher profissional da descrição de suas atitudes: [...] “Tríssia era uma mulher sofisticada. A psicóloga do clube. Alta, morena clara, ela não andava; deslizava pelo mundo a um palmo do chão. Jamais levantava a voz, jamais fazia um gesto brusco, jamais se alterava. Era uma rainha. Por isso detestava aquele falastrão. Natan sentia a repulsa de Tríssia e se mantinha à distância. Até porque Tríssia não dava confiança a homem nenhum. Nenhum! Tríssia não precisava de homens. Tríssia era soberana.” [...] (crônica de David Coimbra, publicada pelo jornal Zero Hora no dia 03 de julho de 2005) O autor descreve a psicóloga Tríssia como uma mulher que evidencia seus valores a partir da sua atitude ao falar ou andar. Coimbra utiliza de elogios como “uma rainha”, remetendo à profissional Tríssia características soberanas e exemplares. Na mesma crônica, David Coimbra ainda cita mulheres em outros cargos profissionais como o de [...] Lívia, a secretária do Departamento de futebol [...]

revelando o envolvimento da mulher com o futebol, uma área claramente designada ao público masculino. Apesar da descrição designada à personagem Tríssia em “Tudo”, Coimbra possui como característica em suas narrativas, uma apelação para o lado sexual da mulher e tenciona a retratar o lado físico do corpo feminino como prioridade, ao falar da mesma. No mesmo sentido da inserção da mulher no campo profissional, encontramos no autor Luiz Fernando Veríssimo em sua crônica “Meu camarim” a seguinte descrição: [...] “Três tenistas russas. De saiote. Uma massagista sueca e uma tailandesa que trabalhem em conjunto. Uma, a parte de baixo, outra, a parte de cima.” [...] (crônica de Luiz Fernando Veríssimo, publicada pelo jornal Zero Hora no dia 5 de março de 2012) Ao citar essas mulheres, o cronista mostra a ocupação de um cargo que, antigamente, por se tratar da área esportiva, era voltado ao gênero masculino. Apesar de citar a profissional “tenista”, o autor se refere também à vestimenta utilizada pelas profissionais da área, o “saiote”. Aponta a presença de duas massagistas como mulheres capazes de desempenhar funções profissionais e, ao mesmo tempo, prazerosas. Nessa categoria, a crônica chamada “Outra carta da Dorinha”, de Veríssimo retrata uma mulher mais atual, que foge aos padrões do ponto de vista feminino na antiguidade: [...] “continua ativa à frente do seu grupo de debate e pressão, as Socialaites Socialistas, que pregam a implantação no Brasil do socialismo no seu último estágio, que é a volta ao tzarismo.” [...] (crônica de Luiz Fernando Veríssimo publicada pelo jornal Zero Hora em 16 de janeiro de 2012). Nesta crônica o autor se refere a um grupo de debates, controlado por mulheres, referente ao campo político. Ele cria mulheres elegantes (socialaites) que “pensam” temáticas voltadas para igualdade dos direitos (socialismo). A aparente contradição discursiva produz um sentido de engajamento social e político de mulheres que mesmo belas enquadram-se na luta por direitos iguais. Nas entrelinhas, o autor não exclui a mulher/beleza de uma profissão voltada para aspectos cidadãos. No gênero profissão, ambos os autores retratam um realocamento da mulher na sociedade. Está subentendido nos textos que elas circulam nos circuitos sociais, profissionais e culturais com legitimidade e competência sem “descer do salto”.

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5. NOTAS CONCLUSIVAS Este texto remete a interpretações subjetivas de aspectos dos gêneros femininos nas crônicas dos autores David Coimbra e Luis Fernando Veríssimo. Neste sentido, não é um texto hermético, fechado, mas tem um ponto final em razão de um enquadramento metodológico do trabalho científico. Porém, sabe-se que outras interpretações, a partir de outras percepções podem agregar-se a essa reflexão. Entretanto, alguns encaminhamentos de pesquisa podem ser elencados como notas conclusivas deste estudo. O primeiro diz respeito à complexidade do universo feminino. A mulher ainda carrega uma áurea que a conduz muito sutilmente, às imagens conceituais contraditórias que circulam entre as idéias de maternidade à liberdade; de dona de casa à profissional aguerrida; de sensualidade à puritanismo, explicitadas na sociedade a partir de códigos simbólicos. Percebe-se este fascínio pelo universo feminino a partir do grande número de crônicas voltadas, dedicadas e concentradas na mulher. Na busca por crônicas que dessem conta do nosso objeto de estudo, registrou-se um grande número de discursividades desta temática. A segunda reflexão conclusiva diz respeito às três categorias analisadas. A feminilidade da mulher é ressaltada como algo sublime, apaixonante e valorizável. O sexo já é sugerido como algo mítico, provocante, incitante e não como uma prática natural de um ser humano, que provavelmente encare o sexo como algo presente no seu cotidiano. Já profissionalmente os textos sinalizam para a efetiva vivência da mulher no mundo do trabalho. Em resumo, este estudo aponta que o universo feminino faz parte do imaginário do homem de diferentes formas, diferentes níveis e dependendo das diferentes emoções que ele desperta. Trata-se, portanto, de uma construção discursiva subjetiva, imaginativa e simbólica. 6. REFERÊNCIAS BRAGA, José Luiz, Constituição do Campo Da comunicação, 2011, Revista da comunicação Verso e Reverso XXV, Unisinos. ALSINA, M. R. La construcción de la noticia. Buenos Aires: Paidós Ibérica, 1989 CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2. ed. São Paulo, SP: Contexto, 2006. 555 p. ________ . Discurso das mídias. São Paulo, SP: Contexto, 2006. p.285

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Profissões no Feminino: a Enfermagem no Estado Novo Helder Manuel Guerra Henriques Instituto Politécnico de Portalegre/Escola Superior de Educação CEIS20 – UC/ C3I, Portugal

Resumo: Este artigo tem como objectivo nuclear compreender como se construiu uma “identidade genderizada” da enfermagem no Estado Novo?! Pretendemos discutir, por um lado, a enfermagem como um “projecto pessoal” de mobilidade socioprofissional no feminino no interior daquele regime político. Por outro lado, apresentaremos a ideia da enfermeira – modelo e os principais requisitos que deveria cumprir. Para o efeito recorreremos aos teóricos da História e da Sociologia das Profissões, bem como à literatura produzida no domínio da História da Enfermagem. Do ponto de vista metodológico, utilizaremos a análise sóciohistórica, e a respectiva triangulação dos dados, numa perspectiva diacrónica. O corpus documental define-se pela imprensa especializada, legislação, manuais de enfermagem, material de arquivo de instituições escolares, entre outros. Em conclusão, assumimos, por um lado, que a enfermagem construiu a sua jurisdição profissional de acordo com um projecto político, com características próprias, a partir de uma prática credencialista assumida pelas escolas de enfermagem. Nestas instituições escolares procedia-se ao recrutamento e à socialização das alunas-enfermeiras com vista ao alinhamento das futuras enfermeiras com os valores defendidos pelo Estado Novo. Por outro lado, mostraremos a importância desta actividade profissional como um “projecto” de mobilidade social que as mulheres encontraram para conquistar uma maior autonomia pessoal. Introdução O propósito deste trabalho consiste na discussão sobre o lugar ocupado pela mulher no regime político do Estado Novo, entre as décadas de 30 e 70 da centúria de novecentos. Equacionamos um conjunto de questões que permitem compreender discursos, práticas e estratégias que conduziram as mulheres portuguesas para fora da esfera doméstica. Para o efeito, tomamos como objeto de estudo o processo de construção identitário da enfermagem portuguesa no arco temporal previsto. Do ponto de vista teórico socorremo-nos das perspetivas da sociologia das profissões (DUBAR & TRIPIER, 1994; WITZ, 1992; RODRIGUES, 2002, MACDONALD, 1999, Etc.), nomeadamente da abordagem interacionista e sistémica (ABOTT, 1988; FREIDSON, 1986), da História das profissões (HENRIQUES, 2012; SILVA, 2008) em conexão com as questões de género (AMÂNCIO, 1994) e de literatura produzida por enfermeiros/as sobre a sua atividade (ESCOBAR, 2004; SOARES; 1997; AMENDOEIRA, 2006; ABREU; 2001; ESPINEY, 2003). A opção metodológica prende-se com uma abordagem sóciohistórica, numa perspetiva diacró-

nica, constituindo um importante meio interpretativo sobre o assunto em estudo, dado que facilita a compreensão das dinâmicas e interdependências estabelecidas entre os assuntos em análise. As fontes documentais que utilizamos, encontram-se na antiga Escola de Enfermagem de Castelo Branco que servirá de arena de discussão e ilustração de alguns dos elementos que evidenciaremos. A legislação produzida pelo Estado Novo sobre o ensino e o exercício da enfermagem; os materiais de arquivo da instituição escolar referida e ainda entrevistas concedidas no âmbito de um trabalho de doutoramento sobre esta matéria, constituem as principais fontes de informação que permitiram a construção deste texto. As questões de género assumem uma enorme centralidade no interior deste trabalho. Lígia Amâncio (1994) salienta que não nos podemos deixar influenciar pelos discursos masculinos que gerem a sociedade. Segundo a autora, o que se encontra em causa é a negociação coletiva entre géneros, onde determinadas ocupações assumem destaque, sobretudo pelo nível de conflitualidade, permitindo uma maior objetivação destes aspetos.

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A autora desfaz a questão principal em que muitos estudos relacionados com a problemática em análise têm assentado, nomeadamente no facto destes tomarem o género como um atributo ou uma caraterística constante, isto é natural, acompanhando uma lógica discursiva masculina que tem influenciado a sociedade. A este propósito salienta o seguinte: No pensamento social, a dominância simbólica do masculino resulta, portanto, da estreita interrelação entre a representação do “ser homem” e a do “ser indivíduo”. É precisamente, porque no processo de construção social do género masculino e feminino se confunde o masculino com o indivíduo que (…) o comportamento dos indivíduos do sexo masculino é aparentemente caracterizado pela distintividade, o que faz com que a identidade masculina seja vivida e percebida enquanto singularidade “real” que obscurece a sua origem coletiva (AMÂNCIO, 1993: 127-140). De acordo com a autora, é preciso reconceptualizar os discursos relacionados com a construção social dos géneros que circulam na sociedade de um modo atribuído e natural (AMÂNCIO, 1994: 33). A propósito desta premissa defendemos a necessidade de se compreenderem as diferenças num quadro alargado onde as Ciências Sociais e Humanas devem assumir destaque. Neste contexto o Estado assume um papel ativo na divisão social do trabalho e, muitas vezes, promove a construção de identidades profissionais genderizadas, como aconteceu com a enfermagem portuguesa. As ocupações ou profissões estabelecem com o Estado nexos que importa analisar, uma vez que podem constituir a porta de entrada para o alargamento de uma visão masculina com que a sociedade se tem identificado. A compreensão sobre as atividades que as mulheres e os homens ocupam é um eixo de análise da maior importância. Não é de forma inocente ou natural que, por exemplo ao longo do Estado Novo, as questões de género estiveram presentes nos discursos políticos da época refletindo-se na divisão do trabalho na sociedade. Da relação entre a dimensão teórica e prática que acabamos de apresentar vamos continuar a problematizar as questões de género, no interior de um regime político com caraterísticas próprias, tendo como objeto de estudo o ensino e o exercício da enfermagem em Portugal. 1. A mulher e o ato de cuidar: uma perspetiva histórica Ao longo do devir histórico a mulher foi associada ao ato de cuidar, como uma dimensão natural e atribuída em diferentes períodos. Por outro lado,

a perspetiva histórica mostra que os grupos de mulheres que assumiam tarefas relacionadas com o ato de cuidar, á medida que nos aproximamos e relacionamos com a contemporaneidade, foram estabelecendo estratégias, negociações ou conflitos com outros grupos ou com o Estado, na tentativa de afirmar a sua identidade e construir jurisdições profissionais próprias (ABBOTT, 1988). De acordo com Lucília Escobar até à revolução industrial, quem prestava cuidados de saúde também fazia muitas vezes prescrições de tratamentos (ESCOBAR, 2006: 40). O aumento do poder de compra e o crescimento da classe média possibilitaram o pagamento desses cuidados. A autora refere que: Conservar homens, mulheres e até crianças com uma boa saúde, visando a rendibilização máxima das suas potencialidades de trabalho, passou a ser um assunto de interesse geral a nível das cidades e de muitos países industrializados; importava tratar mas também prevenir a doença e promover a saúde (ESCOBAR, 2006:4). O aumento das possibilidades económicas, aliadas a um processo de escolarização dos conhecimentos científicos, nomeadamente da medicina, provocou, gradualmente, o afastamento das mulheres não qualificadas do domínio da saúde, levando a efeito um fechamento e uma demarcação nos cuidados de saúde por parte dos médicos. Anne Witz é perentória nesta análise quando refere que o fechamento correspondeu a uma estratégia de afastamento das mulheres em relação ao exercício da medicina e; a demarcação, constituiu o momento em que os médicos, nomeadamente na Inglaterra (Medical Registration Act), definiram quais eram as suas competências e quais as tarefas que deviam encontrar-se subordinadas a si, consolidando um domínio profissional próprio com autonomia. A partir deste momento, as mulheres foram colocadas num papel secundário e muitas vezes esquecido pela perspetiva histórica. Witz defende que o “Medical Registration Act de 1858, selou o destino das mulheres no interior da profissão médica moderna. A mulher não tinha acesso ao registo médico” (WITZ, 1992: 83) impossibilitando o seu exercício1. No caso português apenas no final da centúria de oitocentos encontramos uma mulher a frequentar o curso de medicina na Universidade de Coimbra. 1 Pamella Abbott et al. (1998: 9) defendem que as mulheres desafiaram a dominação masculina e desenvolveram estratégias para conseguir legitimar o seu status profissional havendo, desde logo, resistência por parte dos homens e, inclusivamente, de algumas mulheres.

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Anne Witz realça que, também, a enfermagem tentou registar o seu “Nurse Act”, desde a década de 70, do século XIX, o que veio a acontecer apenas no século seguinte. Este foi um processo com muitos avanços e recuos. O objetivo estratégico era alcançar o “self-government” da atividade e do grupo. Como salienta: A campanha longa e amarga por um sistema de registo da enfermeira, ao abrigo do Estado-patrocinador, ocorreu entre 1888, quando a Associação de Enfermeiros Britânica formada com o objectivo de obter o Status legal de uma profissão, e 1919, quando o “Nurse Act” foi aprovado. Este processo foi descrito como “A guerra dos trinta anos”, por Abel-Smith (1960) (1992: 128). Esta conflitualidade no processo que Anne Witz descreve, associado à enfermagem e à prestação de cuidados, inscreve-se num quadro alargado dos processos de escolarização e de credenciação da enfermagem com o objetivo de constituir uma jurisdição própria, individualizada e com autonomia onde as questões de género também influenciaram a constituição da enfermagem enquanto atividade profissional. No caso da enfermagem existiu uma clara tentativa de alcançar maior prestígio e reconhecimento social, ao longo do século XX, através da procura constante de um domínio académico e profissional assente numa determinada cientificidade que haveria de se verificar apenas na 2ª metade de novecentos no caso português (HENRIQUES, 2012). Segundo Pamela Abbott et al. o processo de cientificidade da enfermagem não foi fácil, dado que quando falamos de cuidados devemos reconhecer que este conceito pode dividir-se em duas partes: por um lado, contém uma componente emocional; por outro, uma componente prática e física (corporal). A enfermagem teve muitas dificuldades em afirmar-se como um saber consolidado, tal qual a medicina, porque o entendimento social sobre a atividade, constituída maioritariamente por mulheres, era diferente em relação ao da medicina. Na perspetiva desta autora, o ato de cuidar era “geralmente visto como uma experiência positiva de um estado interior emocional” associado às mulheres, o que dificultava o processo de cientificidade desejado pelo grupo das enfermeiras. Era “necessário distinguir entre “preocupar-se com” e “cuidar de” (ABBOT, 1998: 10). Esta é uma das chaves para compreender a importância dos grupos ocupacionais no desenvolvimento deste tipo de tarefas. Apesar da maioria dos cuidados informais serem realizados, naturalmente e com sentido de dever moral, por elementos femininos não especializados, por familiares por exemplo como a esposa

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ou uma filha; o ato de cuidar formal, isto é especializado, deve ser interpretado de outro modo, porque obedece a princípios racionais. Desde logo, torna-se necessária uma formação especializada em instituições específicas que formem para aquele trabalho, no caso da enfermagem, associadas à figura do Estado. Apenas deste modo se alcança a cientificidade e o reconhecimento social necessários, á constituição de uma jurisdição profissional (ABBOTT, 1988). Todavia as atividades que assumem o seu campo de trabalho no interior do ato de cuidar, como a enfermagem ou o trabalho social, também têm as suas potencialidades, uma vez que lidam diretamente com as pessoas e ajudam a moldar o caráter do Ser Humano, a estruturar contextos sociais e culturais e são capazes de construir os seus próprios objetos de estudo (ex. “o mau paciente”, “o bom paciente”, etc…) encontrando formas de intervenção sobre os mesmos. É este processo que as “caring professions” são capazes de desenvolver de uma forma especializada, a partir de instituições escolares próprias, criando ritmos de intervenção normalizadores da própria sociedade que interessam ao Estado. É esta capacidade de decidir o que é ou não solucionável, através de um caminho teórico-prático, que define um expert, por exemplo em enfermagem, e possibilita a construção do seu domínio profissional: os cuidados de enfermagem. Não é tarefa simples delimitar os contornos do grupo das/os enfermeiras/os. Existe até uma certa tradição em não considerar a enfermagem como uma profissão (ETZIONI,1969) uma vez que, segundo alguns autores, se constrói do ponto de vista identitário na dependência de outros saberes como a medicina (FREIDSON, 1986). De facto, o problema da definição da enfermagem como uma “profissão estabelecida”, tal como os médicos ou os advogados, decorre em grande parte da dificuldade da definição da sua área de intervenção do ponto de vista dos Saberes que mobiliza com autonomia. Este tem sido um debate que, pelo menos desde a década de 70, ganhou uma enorme relevância e contribuiu para a definição de caminhos que visaram, no fundo, a clarificação e reconhecimento de uma determinada identidade profissional inscrita num quadro alargado das questões políticas e de género. Todavia, uma profissão não pode ser interpretada como algo atribuído ou natural. Pelo contrário, devemos olhar para as dinâmicas processuais que implicam a definição e a construção do estatuto de profissional. É importante realçar as estratégias de desenvolvimento profissional que os grupos foram

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construindo de modo a reforçar-se a si mesmo. No mesmo sentido também é importante compreender os processos axiológicos que os grupos desenvolveram funcionando como uma forma de coesão e socialização profissional ou, ainda, a capacidade dialogante inter e intra grupal (HENRIQUES, 2012). Lígia Amâncio refere que ao longo da história “os homens se opunham ao desempenho de uma profissão por parte das mulheres, e que elas partilhavam esta posição, sobretudo no caso de mulheres com filhos pequenos, uma vez que os cuidados com as crianças e as tarefas domésticas eram consideradas atividades exclusivamente femininas” (AMÂNCIO, 1994: 33). A autora prossegue a sua interpretação realçando que “existia também consenso quanto às profissões para as quais era reconhecida competência às mulheres, as profissões ligadas à saúde e assistência social, que indicavam um prolongamento para a esfera pública da sua função no âmbito da família” (AMÂNCIO, 1994: 70). Segundo Marie-Françoise Colliére, a enfermagem é bem o reflexo desta prática de prolongamento dos cuidados domésticos para uma esfera de ação pública que constitui um campo discursivo criado pelo universo masculino e aceite naturalmente pelas mulheres (1989). Esta ponte que se estabeleceu entre o papel social da mulher e a prática dos cuidados do corpo e da alma é secular, conventual, religiosa e Cristã. A forte influência moral cristã ao longo da História da enfermagem terá contribuído para associar a noção de cuidar à de serviço e de dever. Estava-se próximo da ideia de Vocação, por um lado, e muito próximo da ideia de vocação religiosa, por outro. Quando as enfermeiras se referem a uma «filosofia de enfermagem», os filósofos falam em «religião de enfermagem»”(RIBEIRO, 1995: 42). A ideia de vocação, do nosso ponto de vista, pode ser considerada como um dispositivo que permite a articulação entre o sentido doméstico atribuído à vida da mulher e a domesticidade da mulher na esfera pública constituindo este o canal de ligação e de escrutínio entre o privado e o público. Em Suma, os grupos ocupacionais que prestam cuidados foram vistos como a “franja das profissões” até há pouco tempo. Isto é, situavam-se, no entender de alguns autores, quase sempre, numa zona de fronteira face às profissões “estabelecidas”. Pamela Abbott et al. defendem que a atividade dos “grupos que cuidam”, maioritariamente femininos, tem sido vista “como uma extensão do trabalho que espera as mulheres na esfera domés-

tica, e neste sentido o trabalho que podem desenvolver “naturalmente”” (1998:8). Em Portugal a visão apresentada anteriormente também se aplica. Sobretudo quando analisamos o papel socioprofissional da mulher entre as décadas de 30 e 70 do século passado. 2. A Enfermagem no Estado Novo: uma política de espirito A educação, a saúde e a assistência social emergiram como atividades ocupacionais relacionadas com a mulher fazendo parte, simultaneamente, de estratégias possíveis de emancipação social e individual do género feminino. Quando Marie-Françoise Colliére (1989) defende que existia uma obrigação moral das mulheres ao nível dos cuidados do corpo, da alimentação, do cuidado das crianças ou da ajuda aos mais velhos, remete-nos para um conjunto de discursos construídos historicamente no sentido de prolongar o mundo doméstico para o espaço público e, assim, deliberadamente dar uma certa sensação de emancipação e de autonomia ao público feminino, através da ideia de vocação que mais não é que um dispositivo de seleção, controlador e disciplinador da própria mulher à entrada para o mundo do trabalho público. No início da década de 30, do século XX, António de Oliveira Salazar concedeu uma série de entrevistas a António Ferro. Nessas entrevistas foi abordado o assunto relacionado com as questões de género e do lugar que a mulher ocupava na sociedade que estava em processo de edificação. A este propósito Salazar respondeu do seguinte modo: Temos que distinguir. A mulher solteira que vive sem família, ou tendo de sustentar a família, acho que devem ser dadas todas as facilidades legais para prover o seu sustento e ao sustento dos seus. Mas a mulher casada, como o homem casado, é uma coluna da família, base indispensável duma obra de reconstrução moral. Dentro do lar, claro está, a mulher não é uma escrava. Deve ser acarinhada, amada e respeitada, porque a sua função de mãe, de educadora dos seus filhos, não é inferior à do homem. (…)Deixemos, portanto, o homem a lutar com a vida no exterior, na rua…E a mulher a defendê-la, a trazê-la nos seus braços no interior da casa. Não sei afinal qual dos dois terá o papel mais belo, mais alto e mais útil…. (SALAZAR IN FERRO, 1978 (ED. ORIGINAL 1933): 156 E 157) A transcrição apresenta a ideia que Salazar tinha para os elementos do género feminino, distinguindo entre mulheres solteiras e casadas. Às mulheres solteiras devia ser dado o impulso para poderem

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integrar o mercado de trabalho em áreas relacionadas com a educação ou o assistencialismo. O lugar das mulheres casadas seria o de assumirem as suas funções familiares, no interior do seu lar e apresentando-se como exemplo para os seus filhos, auxiliando-os sempre que necessário. De acordo com António de Oliveira Salazar, o lugar que a mulher ocupava na sociedade portuguesa estava bem definido e não deveria ser contestado uma vez que esta era a “base indispensável duma obra de reconstrução moral” (idem). No que diz respeito à enfermagem é possível encontrar muitas vezes interessantes considerações provenientes das mais altas instituições políticas do Estado. Em 1947, por exemplo, falava-se da importância da mulher no seio desta atividade e do “espírito de missão” que lhe competia enquanto enfermeira: O curso oferecia vantagens evidentes e a garantia do ingresso certo e imediato nos quadros hospitalares, mas ainda não se criou suficientemente no espírito, das nossas raparigas o gosto e o entusiasmo pela enfermagem e a consciência de que a profissão de enfermeira, que também é um sacerdócio, será sempre estimada e respeitada no mundo moderno, como uma missão nobre, bela e socialmente útil2. Os valores presentes na transcrição anterior, ajudam a definir os processos de construção das identidades profissionais, neste caso associada à enfermagem portuguesa. Estes valores são indicadores variáveis do modo como uma atividade se procura identificar, ou que a identifiquem, numa determinada época. Lesley Mackay defende, sobre a ideia de vocação, que esta foi construída quase sempre acompanhada pela ideia de disciplina e de obediência, constituindo uma “inevitável necessidade (…) na enfermagem” (1998: 65) segundo o modelo profissional médico. Salienta que “esta combinação entre a obediência e a disciplina pode ter ajudado a produzir uma força de enfermagem estática, não questionadora. Isto é, uma força de trabalho que sabe qual é o seu lugar na equipa de saúde (…)”(idem).Estas questões podem ser objetivadas com a política assumida pelo Estado Novo, a partir de 1942, quando legislou3 para que a entrada nas escolas de enfermagem fosse preferencialmente de elementos do género feminino, de preferência mulheres solteiras ou viúvas, de comportamento 2 Cf. Debates Parlamentes – Câmara dos Senhores Deputados de 25/03/1947, pp. 1044 [Consultado no dia 31 de Março de 2009]. 3 Decreto – lei nº 31.913 de 12 de Março de 1942 [Realça a importância do recrutamento de enfermeiras viúvas e sem filhos].

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moral irrepreensível e que tomassem a atividade como um verdadeiro sacerdócio, numa lógica de obediência e submissão quer ao Estado ou a outros grupos profissionais. Também a questão do casamento evidencia este problema. Entre 1942 e 19634 a enfermeira hospitalar não podia oficialmente casar-se ou constituir família. Esta medida servia principalmente para motivar as mulheres a assumir a enfermagem como a sua missão a que deviam dedicar todo o seu tempo sem possuírem qualquer vínculo que as afastasse da “religião da enfermagem”. 3. A Enfermagem como projeto de emancipação social e profissional O Estado Novo favoreceu a entrada dos elementos do género feminino na educação e na área dos cuidados sociais ou de saúde. Todavia, embora este caminho fosse caraterizado pela submissão a princípios do Estado Novo e de outros grupos profissionais, as mulheres conseguiram alcançar uma determinada autonomia que de outra forma dificilmente alcançariam. Além de se constituir a oportunidade para sair de casa e modificar a sua condição de doméstica, verifica-se que a entrada no mercado de trabalho controlado pelo Estado constituiu uma forma de alcançar maior autonomia sobre as suas próprias vidas e conquistar alguma independência face aos seus destinos “naturais”, incluindo independência do ponto de vista monetário. Quando analisamos o caso particular da Escola de Enfermagem de Castelo Branco, percebemos que esta instituição escolar constituiu uma oportunidade de vida para um conjunto alargado de jovens mulheres. A análise que fizemos entre o momento anterior à entrada na escola e o momento posterior à sua saída, permitiu evidenciar que a maioria das mães que enviava as suas filhas para aquela instituição escolar era doméstica, o que permite falar de um projeto de mobilidade social e profissional numa sociedade fechada, controlado pelo Estado e muito genderizada no que diz respeito ao trabalho. As escolas de enfermagem que se foram espalhando pelo país ao longo do século XX constituíram um nicho que permitiu a muitas mulheres conquistar alguma autonomia e reconhecimento pessoal e socioprofissional. Consequentemente, a própria atividade foi adquirindo junto da sociedade maior credibilidade social. Estes aspetos confirmam-se e tornam-se ainda mais visíveis a partir da 4 Decreto-lei nº 44.923 de 06 de Março de 1963 [Termina a obrigatoriedade de recrutamento de enfermeiras hospitalares solteiras].

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reforma do ensino da enfermagem de 1965, que abriu caminho para uma valorização socioprofissional da atividade e permitiu, de certo modo, a constituição de carreiras próprias de enfermagem (1967)5. Gradualmente, o universo escolar, também se foi caraterizando por um conjunto alargado de enfermeiras-monitoras que caraterizaram o ensino da enfermagem principalmente a partir da década de 60, consolidando-se na década seguinte. Algumas mulheres também se tornaram diretoras das escolas de enfermagem (Escola de Enfemagem Bissaya Barreto – Enfermeira Delmina dos Santos Moreira) e trabalharam junto dos serviços centrais (Fernanda Resende) nas décadas de 60 e 70 (HENRIQUES, 2012). No caso das enfermeiras hospitalares alcançaram principalmente maior autonomia financeira o que acabou por dar um novo ímpeto às suas vidas pessoais e no interior da sociedade permitindo alcançar uma forma de vida diferente, embora enquadrado no regime político, daquela que era proposta inicialmente por António de Oliveira Salazar.

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Considerações Finais Em suma, tudo isto resulta de um conjunto alargado de negociações, conflitos e dependências que aos poucos foram aproveitados pelas mulheres e que lhes permitiu assumir uma intervenção pública, ainda que controlada, mas a sentirem fazer parte de um projeto de mobilidade pessoal, social e profissional tornando-as mais realizadas; muito embora numa sociedade caraterizada fundamentalmente pelas relações patriarcais instituídas. Este exemplo serve, apenas, para nos inscrever na problemática das questões de género num quadro onde as mulheres, ao longo do século XX, assumiram uma estratégia social que passou pela sua própria valorização através de projetos profissionais (LARSON, 1979) ainda que, a maior parte das vezes, segmentados como aconteceu no caso da enfermagem em Portugal. Nada do que apresentamos neste texto aconteceu naturalmente, pelo contrário tudo foi construído de acordo com interesses individuais, de grupo, da sociedade e do Estado. A Enfermagem é um bom exemplo desta realidade difícil enfrentada pelas mulheres portuguesas. Referências Bibliográficas ABBOTT, Andrew (1988), The System of Profes5 Decreto 46448, nº 160, de 20 de Julho de 1965 [Reforma do ensino da enfermagem, entre outros aspectos altera condições de admissão aos cursos]. Decreto-Lei nº 48166 de 27 de Dezembro de 1967 [Constitui as carreiras de enfermagem hospitalar, saúde pública e de ensino].

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A Mulher na revista Selecções do Reader’s Digest (1950-1960): Representações (re)configurando identidades Sandra Monteiro Lemos PPGEDU/UFRGS, CNPq, (Brasil)

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RESUMO: A partir do referencial teórico dos Estudos Culturais e da sua articulação aos estudos de Gênero, este trabalho, recorte de pesquisa mais ampla, problematiza as representações da mulher e sua implicação nas (re)configurações identitárias, circulantes, em especial, no Brasil, entre as décadas de 1950 e 1960, presentes na revista de origem estadunidense Seleções do Reader’s Digest, de grande penetração entre os leitores brasileiros e ainda hoje em circulação no País. Para tanto, tomam-se, mais especificamente, as edições que circularam entre as décadas de 1950 e 1960 como corpus empírico, por ser este um período de profundas modificações na vida cotidiana da população urbana e rural e de consolidação de um mercado de bens simbólicos brasileiro, como um dos possíveis índices da modernidade do país. Para o presente trabalho, pinçam-se vinte números da revista Seleções, editados nas décadas citadas, partindo-se do entendimento de que os artefatos da cultura, como a televisão, os jornais, as revistas, as peças publicitárias, praticam pedagogias, isto é, nos ensinam coisas, nos contam histórias e nos educam. Especificamente foram selecionadas vinte matérias da revista Seleções que trazem, de alguma forma, abordagens sobre o ser mulher – tanto as assinadas por mulheres quanto por homens, e que foram capturados a partir dos títulos e/ou a partir da totalidade do texto, sendo elas examinadas em relação aos textos verbais e/ou imagéticos, tendo em vista o objetivo de mapear determinadas as representações de gênero circulantes na época. As análises empreendidas no material permitem apontar para diversas representações da mulher que circulavam na revista, no período, intermediadas e constituídas pela cultura, abrangendo tanto imagens tradicionais, ligadas à maternidade, ao cuidados com a casa, à sedução feminina, quanto representações que apontam para novas identidades.

Introduzindo o assunto Minha contestação, embora exaltada, não deixava de ser a expressão de uma verdade: eu era, e sou, uma representante da nação das mulheres. (Phyllis Macley - “A honra de ser mulher”)1 Entendo que os artefatos da cultura, como a televisão, os jornais, as revistas, as propagandas, praticam pedagogias, isto é, nos ensinam coisas, 1 Seleções do Reader’s Digest, tomo XXXVII, nº 216 – janeiro de 1960, p. 88-91.

nos contam histórias, nos dizem como as coisas são, como as coisas não são e como as coisas devem ser. É inspirando-me em tal entendimento que apresento o presente trabalho, como recorte de um estudo mais amplo2, que toma como objeto empírico, em um de seus eixos de análise, uma revista norte americana de circulação no Brasil – a revista Seleções do Reader’s Digest (ainda hoje em circulação tanto no formato impresso quanto em meio 2 Projeto de Tese intitulado Revista Seleções do Reader’s Digest: leitores, leituras, textos e tramas, orientado pela Profª Drª. Rosa Maria Hessel Silveira, no PPGEDu/UFRGS, defendido em março de 2011.

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digital)3. Julgo importante destacar que a revista Seleções se mantém no Brasil desde 1942 e teve nas décadas de 50 e 60 uma repercussão estrondosa. Sobre os números da revista, um fato curioso é que, segundo o Instituto Verificador de Circulação – IVC, a revista Seleções do Reader’s Digest, em 2004, mais de 60 anos após sua entrada no Brasil, ainda ocupava a segunda posição dentre as revistas mensais mais vendidas. É preciso dizer ainda, que a revista Seleções não é uma publicação dirigida especificamente ao público feminino, sendo considerada como uma revista de variedades e de informações em geral. Dentre as edições selecionadas para análise, na edição de janeiro de 1960, encontrei um artigo que identifico como emblemático para tecer minhas reflexões sobre as representações da mulher que eram estampadas na revista, no período recortado. Por isso o escolhi, para iniciar esse artigo. Trata-se de matéria intitulada “A honra de ser mulher”, escrita por uma poetiza, esposa e mãe - Phyllis Macley, ao qual retornarei, mais adiante. Com essa breve introdução delineio o propósito do estudo ora apresentado, o qual busca problematizar as reapresentações de gênero, em especial, as marcações identitárias referentes à mulher que estariam presentes em uma revista de procedência norte americana, mas em circulação no Brasil. Para tanto, examino vinte edições da revista Seleções do Reader’s Digest que circularam no Brasil entre as décadas de 1950 e 1960. Para dar conta, mesmo que parcialmente, da minha proposta de incursão sobre a revista Seleções e as representações de gênero ali presentes, conto com o aporte dos Estudos Culturais, que, articulado aos Estudos de Gênero, permite trazer contribuições valiosas no sentido de problematizar a conjuntura das desigualdades vivenciadas pelas mulheres. As discussões de gênero promovem um redirecionamento significativo destas questões, permitindo lançar um olhar sobre as relações sociais e a formação das identidades, a fim de problematizar as situações de igualdade/desigualdade que se estabelecem, sempre, em relação ao outro. Isto implica dizer que uma análise de gênero focaliza a relação entre os gêneros – vistos como construções culturais do sexo - em contextos sociais e culturais específicos. A relação entre revistas e a mulher vem sendo evidenciada desde há algum tempo. Um dos 3 Conforme informações veiculadas na imprensa, a revista do Reader´s Digest conhecida no Brasil como Seleções, permanece em circulação com uma base atual de 400 mil assinantes. Disponível em: http://oglobo.globo.com/ economia/mat/2010/02/23/reader-digest-sai-da-concordata-nos-eua-operacao-no-brasil-pode-ser-beneficiada-915924800.asp Acesso em 02/02/2010.

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trabalhos, publicado em 1981, revisado e reeditado em 2009, oferece determinada visibilidade sobre tal relação podendo ser localizado na obra de Dulcília Schoeder Buitoni (2009) intitulada Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina.4Na obra a autora debruça seu olhar sobre a representação da mulher na imprensa feminina brasileira, desde o século XIX até os dias atuais. Através da análise de textos selecionados dos diferentes estágios percorridos pela imprensa feminina brasileira, a autora buscou captar a imagem da mulher construída pela imprensa especializada. Os estudos da autora enfatizam as articulações existentes entre os mecanismos de divulgação, a sociedade e o feminino, propondo que tais articulações estariam impondo uma imagem que é um produto já preparado por um “certo horizonte” de expectativa marcadamente “ideológico”. Ou seja, para a autora, representa-se “aquela mulher” que a sociedade dirigida pelos homens espera ver representada. Sobre as ferramentas teóricas Entendendo o sujeito – seja ele homem, mulher, criança, jovem, idoso – como construído socialmente, através das redes de poder, filio esta pesquisa a uma perspectiva pós-moderna, que desconfia dos saberes totalizantes – as grandes narrativas ou metanarrativas – que buscam explicar a estrutura e o funcionamento do universo e do mundo social através de grandes teorias (Silva, 1999). A partir desses pressupostos, utilizo esse campo de estudos na vertente das análises textuais, nas quais todos os artefatos culturais são tidos como textos produzidos através de processos de construção social. É importante destacar, também, que considero como instrumental teórico em minhas análises do discurso algumas contribuições do referencial de Michel Foucault. Segundo essa perspectiva é preciso trabalhar arduamente com o próprio discurso, deixando-o aparecer na complexidade que lhe é particular. Ou seja, há uma necessidade constante de tentar desprender-se de um longo e eficaz aprendizado que muitas vezes nos faz olhar para os discursos como um conjunto de signos, cujos significantes se referem, de forma fixa, a determinados significados. Já os estudos de Gênero, associados às perspectivas teóricas citadas anteriormente, enfatizam “a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas” (Louro, 1997, p. 22). 4 BUITONI, Dulcília Schroeder. Mulher de papel, a representação da mulher na imprensa feminina brasileira. São Paulo: Ed. Summus, 2009.

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Dessa forma, o conceito de gênero passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem” (Louro, 1997, p.23).

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Reconheço, então, gênero como sendo produto de um determinado número de tecnologias sociais, e dentre estas, considero a mídia, mais especificamente, neste estudo, a mídia impressa do tipo revista, e seu conteúdo – expresso em material escrita e/ou imagético, constituiria uma das técnicas implicadas na construção do gênero. Sobre a representação, conto com entendimentos fornecidos por Hall, o qual considera que nem as coisas por si próprias nem os usuários da linguagem podem fixar sentido na linguagem. Coisas não significam: nós construímos sentido usando sistemas de representação – conceitos e signos (Hall,1997: p.25). Isso posto, salvaguardo o entendimento de que as representações não são fixas e nem suas transformações expressam aproximação do correto, do verdadeiro ou do melhor. Passo a seguir a apresentar minhas reflexões sobre a problematização proposta. “A honra de ser mulher” Ao analisar as edições da revista Seleções que circularam no Brasil durante a década de 1940, verifiquei que, em relação à autoria, são relativamente poucos os artigos assinados por mulheres, localizando-se com mais facilidade matérias que, apesar de abordarem assuntos supostamente do universo feminino, eram assinadas por homens. Nas décadas de 1950 e 1960 encontrei um maior número de artigos assinados por mulheres e, especialmente, uma intensificação das representações da mulher na publicidade, nos mais variados tipos de anúncios de produtos: higiene e beleza, alimentos, móveis e utensílios para o lar, equipamentos industriais, dentre outros. Dentre as edições selecionadas para análise, inicio, com uma matéria, que circulou na edição de janeiro de 1960, conforme já anteriormente apresentada. “A honra de ser mulher”, escrita por uma poetiza, esposa e mãe, procura definir a

verdadeira feminilidade – conforme anunciado na publicação. Entretanto, no decorrer de seu texto faz emergir uma identidade contraditória da mulher e, por vezes cambiante. Nela, Phyllis McGinley – uma mulher norte-americana – apresenta reflexões sobre a trajetória de conquistas cotidianas da mulher, com seus desafios e incertezas. Embora iniciando seu texto com uma exaltação ao seu marido como sendo uma pessoa maravilhosa, a autora vai descrevendo a difícil situação alcançada pelas mulheres, até aquele momento, comparando esse período, ao que seria um “Estado” criado após uma guerra. Nas palavras da autora: [...] E apesar de nossas recentes liberdades, de nossas recentes habilidades, fôrças e aptidões, nós não queremos pensar como homens, nem sentir como homens, nem agir como homens – e sim como mulheres e criaturas humanas. Mas isso é difícil. As mulheres se assemelham a um dos Estados criados depois de uma guerra. Não temos bastante tempo de liberdade para saber exatamente como devemos usá-la (Phyllis Macley - “A honra de ser mulher”)5 As contradições, ora em tom de desabafo, ora de exaltação, busca mapear a situação em que as mulheres se encontravam, naquele momento. Tais apontamentos, feitos pela autora, podem ser assim sintetizados: a dona de casa e mãe estaria sendo louvada pela sua resistência, mas, ao mesmo tempo, seria objeto de compaixão pela falta desse reconhecimento; se a mulher deixasse que nascessem muitos filhos, seria criticada por superpovoar a terra; ao mesmo tempo, se não tivesse filhos, seria amaldiçoada por não cumprir a “sua missão”; a mulher ora era incitada a procurar empregos, ora era advertida pela concorrência com os homens; o que quer que tenha estudado – Antropologia, Administração Comercial ou Medicina, descobrirá que as portas se abrem de par em par para os rapazes e se contraem enormemente para ela.6 Ao final do seu texto, alinhavando suas reflexões, a autora deixa claro seu posicionamento a favor do casamento, reconhecido como uma “vocação”, para a mulher, e que não teria a necessidade de preparo. Porém, a autora conclama que o “verdadeiro” casamento deveria se afastar da falsa concepção de uma “associação completa”, 5 Seleções do Reader’s Digest, tomo XXXVII, nº 216 – janeiro de 1960, p. 88-91. 6 Seleções do Reader’s Digest, tomo XXXVII, nº 216 – janeiro de 1960, p. 89.

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destacando o quanto seria importante acentuar as diferenças e semelhanças entre os sexos, ensinando, sobretudo, às filhas, a não abrir mão da “nova cultura”7 da verdadeira glória de ser mulher que envolveria sacrifício, moderação, orgulho e prazer de seus “dons naturais”. Vejamos algumas reflexões possíveis de ser desencadeadas, a partir dessa matéria que circulou em uma revista de grande penetração nos lares brasileiros naquele período. Ao representar-se “aquela mulher” que a sociedade dirigida pelos homens espera ver representada – conforme referenciado na introdução desse estudo, considerando algumas conclusões do estudo de Buitoni (2009) e, ao mesmo tempo retornando as reflexões sobre “A honra de ser mulher” de Phyllis Macley, não há como deixar de associar a elas os ensinamentos de Foucault (1995)8, que entende que são as práticas discursivas existentes no contexto que definem as condições de possibilidade para que o enunciado possa surgir e ser validado. Isto posto, na sequencia, apresento, algumas dessas possibilidades que possivelmente estariam imbricadas na constituição de determinadas representações do “ser mulher”, nas edições da revista Seleções, que circularam no Brasil, entre as décadas de 1950 e 1960. Mulher: “boa mãe” e esposa O modelo norte-americano de ser é considerado “marca” da Seleções, desde seu primeiro exemplar, lançado nos Estados Unidos em 1922, pelo casal Roy William DeWitt e Lila Acheson Wallace. Os fundadores eram filhos de pastores protestantes, que diziam acreditar na simplicidade, individualidade, boa-fé e patriotismo. Era tradição da revista veicular temas tradicionais norte-americanos, que estariam vinculados à “América construída pelo homem comum” (JUNQUEIRA, 2000, p. 22-23)9. É possivel encontrar, facilmente, nas revistas Seleções que circularam no período entre 1950 e 1960, matérias com histórias envolvendo relações e ambiente familiar. Recebendo os títulos de: “Boas maneiras para os americanos” (Seleções, maio de 1955), “O melhor conselho que já recebi” (Seleções, dezembro de 1953) e “Nossos filhos lêem histórias 7 A autora faz uma diferenciação entre a maneira como as mulheres eram “honradas” antigamente e a partir da “nova cultura”, reconhecida, dentre outras situações, após o direito ao voto, o acesso aos aparelhos elétricos e ao trabalho fora de casa. 8 FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da Hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249. 9 JUNQUEIRA, Anne Mary. Ao sul do Rio Grande. Bragança Paulista. SP:EDUSF, 2000.

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em quadrinhos” (Seleções, setembro de 1964), ilustram apenas alguns, dos muitos exemplos de histórias sobre família, sobre os cuidados com os filhos, sobre religiosidade, sobre a importância da disciplina para a conquista das realizações, dentre outros aspectos, encontrados nas narrativas publicadas na revista. A partir dessas matérias, de forma sintética podemos concluir que as “boas” mães são, especialmente, aquelas que se preocupam com a alimentação de seus filhos e com sua educação. Em algumas matérias, é notável a frequencia com que esse tipo determinado de discurso aparece. São os discursos “autorizados” advindos dos cientistas que “põem a mulher em face da responsabilidade mais essencial que lhe outorga o papel de mãe”. Outras vezes, matérias com temáticas semelhantes também são apresentadas por psicólogos, jornalistas, romancistas e, em menor número aparecem narrativas de pessoas “comuns” as quais vão contando histórias “pessoais” que enaltecem e incentivam o papel da esposa e em especial da mãe. Enfim, tais histórias fornecem consistentes “receitas” que preconizam aquilo que seria “perfeito” para uma vida em família e em sociedade contemplando aspectos comportamentais, morais e religiosos. Na família-modelo dessa época, os homens detinham a autoridade e o poder sobre as mulheres. Os homens eram responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos. A mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais – ocupações domésticas e os cuidados com os filhos e com o marido – e das características próprias da feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e doçura. É consenso dentre pesquisadores que a publicidade foi um dos campos férteis para a penetração do pan-americanismo10 no Brasil, pois a maioria dos periódicos dependia da publicidade para sobreviver, e, devido aos problemas internos enfrentados nos Estados Unidos, as agências publicitárias buscavam conseguir espaços para anunciar os produtos em outros países. A instalação das 10 Utilizo-me de Junqueira (2000) para explicar que a política de Boa Vizinhança foi proposta por Franklin D. Roosevelt em 1933, e tinha como objetivo acabar com a intervenção armada norteamericana na América Latina, ocorrida nas primeiras décadas, nos países da América Central e Caribe. Após o crash da bolsa de Nova York em 1929 e o início da Grande Depressão, os Estados Unidos passariam por vários problemas internos, precisando, então, mudar suas táticas de domínio na América Latina. A Doutrina Monroe e o seu corolário foram repudiados no início da década de 1930, por serem considerados agressivos e prejudiciais para a imagem do país na comunidade internacional. A política de Boa Vizinhança fixava o princípio do pan-americanismo, na perspectiva de uma América como a terra da liberdade, com a idéia de uma comunidade americana de nações, que provocaria a criação de uma “solidariedade” continental e, ao mesmo tempo possibilitaria a abertura de um canal de comercialização e novos mercados para a indústria norte-americana que viria a se estabelecer no pósguerra

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agências de publicidade em outros países era uma das suas mais importantes fontes de captação de divisas, e, em conjunto divulgar também a integração pan-americana e os ideais norte americanos de família, patriotismo, individualidade e progresso. Estudos de Buitoni (2009) e Töpke (2007)11 nos oferecem um panorama contextual da década de 1950 e 1960 no Brasil. Em 1950 com a chegada da televisão ao Brasil há uma maior ênfase em aconselhamentos sobre os cuidados com a beleza da mulher. Os problemas físicos devem ser dissimulados e a publicidade mostra o sofrimento da mulher que não é bela e que por essa razão teria dificuldades em encontrar um marido. No final da década a beleza começa a aparecer como um “direito”. Na década de 1960 dá-se início ao movimento de “libertação” da mulher. No governo JK, ela entra no mercado de trabalho. A TV dissemina novos modelos de feminino (uso de anticoncepcionais, lei do divórcio, etc). Fala-se na construção de uma beleza autêntica. A mulher que é feia seria assim, porque não se esforçaria suficientemente para tornar-se bonita, portanto ela não se amaria. É oportuno, então, considerar neste estudo, o papel da publicidade, que inserido no conjunto de instâncias culturais, é concebido como mecanismo de representação, ao mesmo tempo em que opera como constituidor de identidades culturais. E nesse sentido, de acordo com Sabat (1997), muito mais do que seduzir o/a consumidor/a, ou induzi-lo/a a consumir determinado produto, tais pedagogias e currículo culturais, próprias da publicidade, entre outras coisas, estariam produzindo valores e saberes; regulando as condutas e os modos de ser; fabricando identidades e representações; constituindo, assim, certas relações de poder. Mulher: da função social ao “consumo” Fraisse e Perrot (1991)12 argumentam que as normas estabelecidas no início do século XIX seriam normas coletivas que definem uma função social à mulher, a de esposa e de mãe, regulamentando o direito da mulher em função dos seus deveres, o que caracterizaria finalmente as mulheres como um grupo social cujo papel e comportamento deve ser uniformizado, e portanto, idealizado 11 Denise Rugani Töpke, da Faculdade de Comunicação Social do Rio de Janeiro, nos apresenta, em sua Dissertação de Mestrado intitulada “Miss anos dourados: as representações da mulher nos anúncios da Seleções do Reader’s Digest” um interessante estudo em que toma como corpus de análise vinte anúncios – de higiene e beleza – da revista Seleções que circularam na década de 1950. 12 FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle. Introdução: ordens e liberdades. In: FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle (orgs.). História das mulheres no ocidente – o século XIX. São Paulo, SP: Afrontamento, 1991. v.4.

(FRAISSE & PERROT, 1991). Segundo os autores, essa representação totalizante vai se desfazendo no decorrer do século XIX e a identidade feminina passa a assumir uma multiplicidade de papéis: a mãe, a trabalhadora, a celibatária, a emancipada, etc. Essa multiplicidade levou a sociedade à discussão de novos temas concernentes à mulher, que passaram então a ser matérias obrigatórias e constantes nas revistas do século XX. Várias matérias discutindo temas referentes à multiplicidade de papéis e posições sociais podem ser localizadas em diversas edições de Seleções; a exemplo disso encontrei algumas matérias, como por exemplo: Jane Froman, um exemplo de coragem (Seleções, agosto de 1953); Mademoiselle em Hollywood (Seleções, agosto de 1953); Polícia de saias (Seleções, junho de 1958) Posfácio ao casamento (Seleções, julho de 1960); A freira médica de Formosa (Seleções, outubro de 1960); Maternidade aos quarenta anos (Seleções, maio de 1963); Pílula ou não? (Seleções, março de 1968) dentre outros. A partir da década de 30, a normalização da sexualidade feminina dentro do casamento foi contemporânea à consolidação do processo de industrialização na Europa e nos Estados Unidos e à responsabilização das mulheres pelas compras da casa. Enquanto estas se tornavam o público alvo da indústria alimentícia, de eletrodomésticos e cosmética, a publicidade ganhou força social, passando a interferir nas escolhas, preferências e necessidades de consumo. Matérias veiculadas em edições de Seleções que circularam entre as décadas de 1950 e 1960, através de artigos ou mesmo através de matérias publicitárias, ilustram tal situação. No artigo intitulado Uma criatura sem par: a avoada (Seleções, fevereiro de 1950, p. 61) é possível identificar certa “apologia” a situações de mulheres reconhecidas como “fúteis”, por serem “avoadas”, engraçadas e consumistas, apenas preocupadas com os vestidos das outras mulheres que entram na festa. De forma semelhante, encontro na mesma edição, em Como são as americanas? uma narrativa que apresenta mulheres que gastam grandes somas em dinheiro com tratamentos de beleza, penteados e correção de formas para melhorar a aparência ou acentuar o sex appeal. Ao mesmo tempo em que a revista apresentava narrativas que ironizava e/ou criticava tais perfis femininos, difundia representações de uma mulher diferenciadamente marcada pelo estilismo hollywoodiano. Isso tudo descrito como fazendo parte do desejo de ser mais femininas,

Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo

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presença dos astros de Hollywood que povoavam suas páginas. Mira (2003), citando o estudo de Meneghelo, no qual a autora enfatiza o modo como se materializaria o elo entre cinema e revista, argumenta que tais modos estariam expressos na:

conforme aparecia em alguns textos enaltecendo a feminilidade. Esse “novo” estado de ser da mulher alinhava-se ao “novo” que impregnaria as mais variadas matérias, o que podemos reconhecer já em seus títulos, nos quais é possível localizar o “novo” como constantemente presente, vejamos: Última novidade em pintura de casas (Seleções, dezembro de 1961); Novos usos para os átomos “neuróticos” (Seleções, dezembro de 1961); A nova professora (Seleções, agosto de 1964); Nova era da madeira (Seleções, novembro de 1953); Novidades em borracha (Seleções agosto de 1953); Nova operação para corações doentes (Seleções, novembro de 1957); dentre outros. Nas matérias publicitárias, um outro exemplo, encontramos slogans exaltando igualmente o “novo”, expresso da seguinte maneira: As novas maquillage para os olhos de Helena Rubinstein (Seleções, janeiro de 1960); as novas receitas de Maizena (Seleções, janeiro de 1960); a sua chance depende de um novo Westclox (Seleções, novembro de 1957); conheça o novo modelo da Walita (Seleções, junho de 1955); nova embalagem das Sardinhas Coqueiro, novo sabor para seus pratos (Seleções, fevereiro de 1953); Exclusivo! Novo Chevrolet (Seleções, fevereiro d e1963); Nova escova York (Seleções, outubro de 1960). Juntamente com o “novo”, alguns anúncios incorporavam o termo “moderno”, como por exemplo: Frigidaire, modernos aperfeiçoamentos, novos detalhes de qualidade (Seleções, março de 1963); Insuperáveis e modernos eletrodomésticos Lorenzetti (Seleções, março de 1963); dentre outros. Buitoni (2009) nos dirá que o termo “moderno”, que passa a ser utilizado pela imprensa de um modo generalizado estaria representando o “novo”13, contudo, esse “novo” não seria vanguarda, não inovaria. Seria sim, o novo que não pertence à arte e sim ao consumo. Assim, a partir desse enfoque, e em especial, no final da década de 1940 e início da de 1950 a mulher estaria sendo instada a renovar-se dia a dia, da cabeça aos pés. A mulher, então, não pode ser bela, sensível, alegre por si só. Ela só conseguirá essas qualidades se “tiver” determinados objetos. Para “ser” ela precisa “ter” (BUITONI, 2009, p. 196). Estudos da área da comunicação apontam para o efetivo interacoplamento entre a indústria cinematográfica norte-americana e as revistas – entre as décadas de 1940 e 1950 –, na promoção de um gosto e de uma moral, através da constante

A beleza tornava-se “fundamental”, e a indústria cosmética aproveitou-se da representação feminina criada pelo cinema para, através das promessas publicitárias, adentrarem a vida das mulheres. Quando da entrada de Seleções no Brasil, em 1942, os cosméticos eram raramente anunciados. Gradativamente a partir de 1944 observa-se uma intensificação na sua presença. Exemplifico com a propaganda de alguns produtos: produtos da marca Michel, em que se pode ler: Batons, rouge, pó de arroz realçam a formosura. Não é verdade?15; no anúncio do creme Pond’s, presença constante nas revistas a partir de 1943, lê-se: A arte de ser mulher... educada, fina, impondo-se como valor artístico e intelectual, a Eva moderna não se descuida de ser mulher... Normalmente são peças publicitárias ilustradas com fotografias – ao estilo hollywodiano, de mulheres identificadas como sendo da “elite” americana e brasileira. No início da década de 195016 o merchandising explícito e admitido do Reader’s Digest passa a introduzir em suas edições – ora localizado nas primeiras páginas, ora no meio, ora nas últimas paginas –, matéria assinada por Nancy Sasser. Inicialmente ocupando duas páginas, a matéria vai ganhando mais espaço na revista, atingindo cinco páginas, e poderia ser caracterizada como contendo uma mistura de contato “direto” com

13 Conforme Buitoni(2009) o “novo” surge idealmente na década de 1900 (a mulher é o novo bom que há nas coisas), para começar a se delinear mais claramente na década de 1930 (a nova mulher, profissional independente) e ir crescendo nas etapas seguintes, 1940, 1950. Sendo que o termo “moderno” passa a ser bastante utilizado.

14 MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revista: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo. SP. FAPESP, 2003. 15 Seleções do Reader’s Digest, tomo V nº 27 – abril de 1944. 16 É possível encontrar essa seção nas edições da revista Seleções que circularam até o final da década de 1960.

[...] maneira de se viver, de arrumar a casa, de conquistar o amor, de se vestir, de viajar, de ter uma família. Felicidade, simplicidade, glamour e sofrimentos são desenrolados como em um novelo no “depois dos filmes” pelas publicações, fotos, músicas. Os modos de ser hollywoodianos são vários, e longe de estarem isolados para o momento do “tempo dos sonhos”, estão altamente cotidianizados. Percebe-se como o cinema norte-americano efetivamente tem seus canais interacoplados, de maneira a promover a formação de um gosto e de uma moral, agenciando processos de subjetivação. (MENEGHELO apud MIRA, 2003: p. 31)14

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leitores, conselhos e, mais especialmente, publicidade. Nancy Sasser era uma personagem criada para responder às dúvidas das leitoras sobre como resolver problemas de casa, com os filhos, assuntos de beleza e utensílios para o lar. Conforme nos explica o publicitário Edeson Ernesto, que trabalhou nos escritórios do Reader’s Digest, no Brasil, nesse período.

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Eu mesmo cheguei a escrever algumas notinhas para a Nancy Sasser. Era uma tabela paga, aberta, assumida, e eu acho que até estava escrito “Informe publicitário”, e a Nancy Sasser dava conselhos. “Se você tem problema com o cabelo, se a roupa enruga e não passa, se esse está queimando, se está dando brilho, ou se o chão precisa encerar e eu não sei”, ela explicava tudo. Então, o anunciante dava as referências e nós lá no Reader’s Digest fazíamos. Seriam quase dicas. As cartas eram verdadeiras: “Experimentei tal coisa, quero agradecer à senhora.” Essa Nancy Sasser já existia nos Estados Unidos. Seria a tia Chiquinha, a vovó Estela. As cartas eram voluntárias. O Reader’s Digest vendia espaço como se fosse publicidade, mas era uma sessão de quatro, cinco páginas. Isso aí foi a primeira maneira aberta de merchandising. Não tinha logotipo nem ilustração nem nada. Era texto. Só que eram textos em blocos. Não contava uma história toda e enfiavam os anúncios, feito novela de televisão.17 O contato direto com os leitores através de cartas, muito provavelmente, encontre semelhanças em alguns modelos de merchandising, considerados “inovadores”, adotados pela imprensa, na França e, posteriormente introduzida nos Estados Unidos, no início da década de 1940. Mira (2003) nos explica que a revista Confidences, seria um desses exemplos. Confidences foi uma revista que provocou uma verdadeira catarse na França, pelas respostas que dava a correspondências que recebia de seus leitores – na década de 1940. Tal fórmula de contato com os leitores teria sido elemento principal a ser incorporado na publicação de revistas. A revista Confidences conforme a autora caracterizava-se por não considerar mais a mulher como uma boneca a ser vestida ou meramente mãe de família, mas teria se tornado “uma com17 COELHO, Edeson Ernesto. Edeson Ernesto Coelho (depoimento, 2004). Rio de Janeiro, CPDOC, ABP – Associação Brasileira de Propaganda, Souza Cruz, 2005. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/historiaoral/arq/Entrevista1213. pdf Acesso em 10/12/2010.

panheira da mulher”, conversando com ela sobre seus problemas cotidianos. Muito provavelmente a criação e inserção da coluna de Nancy Sasser, na revista Seleções, como vimos no parágrafo anterior, estaria imbricada em aspectos conjunturais de um momento que propiciariam seu sucesso. Inúmeros outros olhares e análises podem ainda ser realizados nesse material, mas, devido aos limites propostos para esse trabalho, encaminho sua finalização. Encaminhando o necessário fechamento As análises aqui apresentadas, sem a pretensão de serem únicas, ou mesmo serem esgotadas, sendo, portanto, singulares, permitem pontuar alguns dos discursos sobre a representação da mulher que estariam presentes na revista Seleções que circulou no Brasil no período recortado para esse estudo. As análises empreendidas no material permitiu fazer breves reflexões sobre as diversas representações da mulher que circulavam na revista, no período, intermediadas e constituídas pela cultura, abrangendo tanto imagens tradicionais, ligadas à maternidade, ao cuidados com a casa, à sedução feminina, quanto representações que apontam para novas identidades. Essa “nova identidade” seria aquela que estaria sendo interpelada por nuances dos discursos feministas. O estudo, identificou, também, o quanto a publicidade pode ser considerado com um dos agenciadores de tais representações e o consumo como um dos produtos desse agenciamento. Finalizo essa escrita com um excerto extraído do artigo de Phyllis McGinley, da própria revista analisada, que deu origem às reflexões deste trabalho, o qual aborda “A honra de ser mulher”: [...] Carregamos os terríveis fardos de igualdade, e nossos ombros vergam um pouco porque a igualdade é apenas nominal. As mulheres, sustento eu, não são iguais aos homens senão na responsabilidade. Também não somos inferiores a eles, nem mesmo superiores. Somos simplesmente uma raça diferente. É outra corrente que pulsa em nosso sangue[...] (Phyllis McGinley – Seleções, janeiro de 1960, p. 88). Intriga-me pensar sobre quais seriam os discursos sobre a representação da mulher que estariam nos subjetivando hoje.

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Outro lugar para a mulher em “Correio Feminino”, de Clarisse Lispector Yvonélio Nery Ferreira1 (UFAC; PPGL/UFSC), (Brasil)

Marília Simari Crozara2 (UFU), (Brasil)

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Resumo: Os temas do amor e da sedução foram abordados desde a Antiguidade Clássica por diferentes escritores e perpetuam como assuntos recorrentes na contemporaneidade. Neste estudo, objetivamos realizar apontamentos sobre a (des)construção do feminino quanto a tais questões, mediante a obra Correio Feminino (2006), de Clarice Lispector. Esse livro corresponde a uma seleção de crônicas publicadas pela escritora nos jornais Correio da Manhã, O comício e Diário da Noite. A obra foi organizada em cinco seções, valendo-se de regularidades com que a autora busca, no papel de artífice da palavra, elaborar reflexões junto às mulheres ocidentais sobre a natureza que as constitui, (re)conduzindo-as ao lugar de emancipação feminina. Pensando nisso, recortaremos a seção ‘Aulas de sedução’ e buscaremos discutir em que medida a autora elabora críticas ao posicionamento da mulher brasileira das décadas de 1950 e 1960 quando oferece conselhos sobre beleza, moda, sedução e feminilidade. Para tanto, utilizaremos o pensamento de Susana Bornéo Funck (1994), Heloísa Buarque de Hollanda (1992), Lúcia Osana Zolin (2005), e de outros estudiosos que se façam necessários.

OUTRO LUGAR PARA A MULHER EM “CORREIO FEMININO”, DE CLARICE LISPECTOR Ao observarmos a história da literatura e, consequentemente, o cânone estabelecido ao longo de seu desenvolvimento, é notória a supremacia da produção literária do homem ocidental, branco e de classe média/alta sobre a da mulher. A ela, da mesma forma que outras minorias, como os negros, os pobres ou os homossexuais, era destinada a exclusão de seus escritos. O olhar da crítica voltava-se para a valorização da autoria masculina e legava à autoria feminina o status de inferioridade. Tendo como pano de fundo a bandeira do feminismo, a crítica feminista em meados de 1970, 1 Professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Acre, Campus Floresta, Centro Multidisciplinar, Cruzeiro do Sul – Acre – Brasil. Doutorando em Literatura – Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil. [email protected] Mestre em Linguística - Universidade Federal de Uberlândia – Minas Gerais – Brasil. [email protected]

impõe à história da literatura o resgate de inúmeras obras de autoria feminina no fito de discutir a até então ideologia dominante. Desestruturam-se inúmeros padrões estabelecidos, uma vez que a mulher passa a questionar e a atuar em um espaço tradicionalmente destinado ao homem, o da crítica − o mundo acadêmico − e o da escrita literária. Em Palavras da crítica (1992), Maria Consuelo Cunha Campos afirma que a autoria feminina elabora-se por meio de espaços produtores de sentido concernente à marginalização/opressão do feminino. Nesse sentido, pode-se dizer que a escrita da mulher percorreu três estágios para a sua fundamentação: a primeira é marcada pela mulher imitando a escrita masculina, adotando pseudônimos, vestuários e padrão de conduta do gênero oposto. A segunda corresponde a uma autoria em que a mulher luta por seu direito por meio de uma escrita de protesto em relação à exclusão e rebaixamento sofridos. A partir dos anos 60, é possível evidenciar os traços de uma terceira fase na escrita feminina, uma vez que é marcada pela conscienti-

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zação, pela autoafirmação da escrita-mulher, pela diferenciação de todo o gênero feminino frente ao masculino. Portanto, tentar ler a cultura ocidental a partir de olhares ficcionais garante o entendimento histórico da enunciação da mulher. Pensar nesse processo histórico de politização e conscientização do espaço social feminino é imprescindível para que entendamos o lugar da mulher na sociedade contemporânea. Com efeito, é possível dizer que Clarice Lispector elabora uma ‘escrita de protesto’ a favor do feminino que implica em uma conscientização existencial do leitor por meio das narradoras das crônicas, inicialmente encontradas nas páginas do jornal Comício, em 1952. Mas para se chegar a esse momento é necessário fazermos aqui um breve histórico destas conquistas com base na evolução do movimento feminista brasileiro. O termo “feminismo”, no Brasil, sempre carregou em seu seio a marca do preconceito e, mesmo tendo conquistado vitórias e derrotas, não conseguiu se impor como motivo de orgulho para a maioria das mulheres. O anti-feminismo, por vezes, era tão forte que atribuía as feministas o caráter contrário a feminino. Por receio de estigmatizações, várias escritoras e outras mulheres brasileiras rejeitaram serem chamadas de feministas. O que se tem é o fato deste movimento ser pouco conhecido, uma vez que é pouco contado e compreendido verdadeiramente. A história do feminismo no Brasil pode ser abarcada a partir de quatro momentos em que o movimento atingiu seu ápice, havendo entre eles um entremeio de mais ou menos cinquenta anos cujas ideias ficaram em estado de letargia, são os anos de 1830, 1870, 1920 e 1970. O primeiro momento carrega em seu bojo a luta das mulheres para o direito básico de ler e de escrever (exclusivo ao sexo masculino) e o momento inicial desta conquista foi a legislação de 1827, que autorizava a abertura de escolas públicas femininas. Antes disso, poucos eram os lugares possíveis para que as mulheres entrassem em contato direto com a leitura e a escrita. Segundo Constância Lima Duarte (2003, p. 153) (...) foram aquelas primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma educação diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais companheiras, e abriram escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler nem escre-

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ver. Na busca pela educação escolar surgem, no Rio de Janeiro e em outros locais do país, jornais e revistas de caráter notoriamente feministas que não publicavam apenas artigos referentes à vida doméstica da mulher ou a romances de folhetins e poemas, mas levantavam bandeiras clamando pelo acesso ao Ensino Superior e a implantação do trabalho remunerado. Eis o segundo estágio do movimento feminista brasileiro em meados de 1870. Dentre outras temáticas abordadas por esses jornais, destacam-se assuntos como a dependência econômica feminina ser determinada pela subjugação ao homem, o progresso do país depender também das mulheres, a denúncia da opressão, os protestos contra a insensibilidade masculina, a luta pelo direito ao Ensino Superior, ao divórcio, ao trabalho remunerado e ao voto. Na década de 1920, as mulheres continuam buscando sua liberdade, marcada pela luta pelo direito de voto − que será atingido somente em 1932 com Getúlio Vargas −, ao acesso ao Ensino Superior e à ampliação do mercado de trabalho, abrindo espaço para o terceiro momento dos movimentos feministas desse país. Vários anseios feministas foram ridicularizados e sufocados por movimentos masculinos e políticos contrários, por exemplo, à campanha do voto, que se prolongou até 1928. Para a maioria dos homens, a mulher deveria manter seu papel de “dona de casa”, pois qualquer outro lhe era incompatível. A revolução sexual da década 1970 funcionará como um divisor de águas no quarto momento das lutas feministas. Vários costumes mudaram radicalmente e reivindicações antes consideradas absurdas se tornaram práticas normais no seio social. Diante disso, inúmeros encontros são organizados para discussões acerca do papel da mulher em diferentes setores sociais. O Dia Internacional da Mulher é instituído, 8 de março, por iniciativa da ONU. No Brasil, a institucionalização dos estudos sobre a mulher e sua legitimação diante dos saberes acadêmicos, ocorrerá no final dos anos de 1970 e durante a década de 1980, quando, então, passará a ocorrer simpósios, seminários, encontros para a troca de experiência entre os pesquisadores da área. Por sua vez, a partir da década de 1990 observa-se uma acomodação gradativa da militância e o enfraquecimento de uma história que começava a ser escrita, mas, segundo Constância Lima Duarte, (2003, p. 168):

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Com certeza vivemos outros e novos tempos, e o movimento feminista parece atravessar um necessário e importante período de amadurecimento e reflexão. O que não se sabe é como retornará na próxima onda. Aliás, nem mesmo é possível saber se haverá outra onda, que formato e dimensões poderia ter.

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O lugar que a mulher passa a ocupar na sociedade em virtude do movimento feminista se reflete em setores como a crítica literária, até então destinada quase em sua totalidade ao domínio masculino. As mulheres passaram a escrever tanto literatura quanto crítica literária sem temer a rejeição masculina típica de outros tempos. Há, a partir dessa nova crítica, o resgate da produção literária feminina esquecida até então, o que resultou, no Brasil, na descoberta de obras de inúmeras escritoras do século XIX nunca antes citadas pela crítica. Nas primeiras décadas do século XX a lista de escritores reconhecidos traz pouquíssimos nomes de mulheres; já a partir dos anos de 1970 há uma modificação neste quadro, pois escritoras como Cecília Meireles e Raquel de Queiroz, reconhecidas nacionalmente, fazem com que diversas outras mulheres sejam inseridas no mercado editorial. Por sua vez, foi Clarice Lispector quem abriu “uma tradição para a literatura da mulher no Brasil, gerando um sistema de influências que se fará reconhecido na geração seguinte”, como destaca Lúcia Helena Viana (1995, p. 172). Não há intuito de classificar a obra de Clarice Lispector como feminista, mas, sim, de mostrar que há um questionamento de diversos valores patriarcais, apontando outro caminho ficcional baseado na conscientização do ser humano, mas valorizando o universo feminino marcado pela repressão diante de uma sociedade guiada por preceitos dos homens. Então, segundo Zolin (2005, p. 280) “são narrativas que questionam, por meio de discurso irônico, o modelo patriarcal em que a mulher fica reduzida ao que o espaço privado pode lhe proporcionar”. Tais questões podem ser observadas na coletânea de contos Laços de família (1998), em que algumas narrativas são representativas desses questionamentos acerca da relação mulher-sociedade. Os contos “Amor” e “A imitação da rosa”, são bons exemplos do enquadramento da mulher na vida familiar e de como esta é responsável pelo massacre de anseios e desejos, aprisionando a consciência crítica e legando à mulher a obediência a regras basilares da família patriarcal brasileira.

Na esteira desse pensamento, visualizamos, também, a obra de Lispector destinada a imprensa feminina. Considerando esse recorte, existiam dois estilos de jornalismo definidos: o “tradicional”, que propagava a ideia de que a mulher ainda deveria se dedicar às atividades vinculadas ao lar e à família, e o “progressista”, defensor dos direitos das mulheres. Essa imprensa feminina de cunho progressista foi, tardia e primeiramente, realizada por homens, a guisa de exemplificação, o Jornal de Senhoras editado em 1852, no fito de fazer com que o sexo masculino passasse a visualizar e respeitar o novo lugar do feminino que se organizava na sociedade ocidental. Paulatinamente, essa imprensa fomentadora de um olhar libertário para o universo feminino também será elaborada por mulheres. Entretanto, moda e dicas de como se vestir bem sempre foram temas do universo literário feminino, porém, na escrita de Lispector, essas questões se elaborarão no fito de deslocar esses lugares comuns mediante a crítica aos costumes sociais, viabilizando a equidade entre homens e mulheres. Com efeito, a década de 50 do século XX corresponde a um momento de intensa produção da imprensa feminina no Brasil, haja vista ser desejo da mulher brasileira, que já conseguira o direito ao Ensino, discutir as questões relacionadas ao ambiente doméstico, mas, sobretudo, problematizar os dilemas sentimentais (des)construídos frente essa (re)formulação social. Mediante uma linguagem simples e acessível a todos os tipos de leitoras, Clarice se valerá dos pseudônimos Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares para ultrapassar o trivial e o corriqueiro, presentes no cotidiano das mulheres brasileiras, conduzindo-as ao lugar da emancipação feminina. É dessa perspectiva da (des)construção do senso comum em direção a outro lugar para o feminino que passaremos à leitura da seção “Aulas de sedução”, da obra O Correio Feminino (2006), de Clarice Lispector. Faz-se mister sublinhar que a obra em questão corresponde a reunião das crônicas clariceanas publicadas nos jornais Correio da Manhã, O comício e Diário da Noite. Ao atentar para a escritura de Clarice Lispector, é notório o alto grau de introspecção aliado ao processo de epifania e de fluxo de consciência. Sua literatura sempre foi observada como retrato do cotidiano feminino em diversas implicações rotineiras, suscitando, em suas personagens, a conscientização, mesmo que momentânea, de seu papel enquanto mulheres, tanto em família quanto em sociedade. Além dessa literatura encontrada em contos,

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romances, pulsações, ficção e novela, Clarice Lispector, como já mencionado, dedicou-se à escrita de crônicas para o público feminino em páginas de alguns jornais brasileiros. A decisão de assinar com pseudônimos, revela inicialmente o temor de que tais textos não fossem entendidos e aceitos pelo público de seus livros, uma vez que o teor era bem diferente daquele encontrado em seus escritos já conhecidos. Segundo Aparecida Maria Nunes (2006, p. 7-8): Clarice tinha consciência de que não podia esquecer o perfil do público para quem dava conselhos utilitários e ensinava a refletir sobre cenas domésticas e do universo da mulher. A ficcionista sabia também que tinha de manejar uma linguagem mais despojada e adotar um discurso calcado na estética da imprensa feminina, construída no tom de conversa íntima, afetiva e persuasiva. [...] Assim, seguindo disfarçadamente a natureza dos textos da imprensa feminina, Clarice publicará algumas narrativas, sob a forma de conselhos, receitas e segredos. Textos esses que seguem o paradigma da imprensa feminina, bem ao gosto do status quo. Porém, a página de jornal, ao se tornar espaço de diálogo, aproximando a colunista de sua interlocutora, através do fio condutor “a mulher e o espaço em que vive”, em alguns momentos, poderá se transformar em pretexto para a escritora iniciar a leitora. Ao conquistar seu público pelo tom de confidente e conselheira, Clarice Lispector, valendo-se dos “pequenos textos inofensivos” sobre o comer, o vestir, o enfeitar-se, instiga sua leitora a refletir sobre as duas realidades em que se estrutura a realidade: o mundo das simulações e o da verdadeira natureza das coisas. No capítulo da obra em estudo, Clarice Lispector apresenta métodos da sedução a suas leitoras. O estilo elaborado é claro, didático e, quase sempre, as informações são tratadas como verdades inquestionáveis. As possibilidades descritas para que a mulher não apenas se sinta, mas se apresente sedutora são diversas: trato na aparência física, personalidade cativante, alegria, delicadeza, feminilidade, postura corporal, tons a serem utilizados em roupas, como se perfumar, entre outros, sempre na busca de ensinar e despertar em suas leitoras a arte da sedução. Em crônicas como “Sedução e feminilidade”, “Qualidades para tornar a mulher mais sedutora”,

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“Descobrindo o próprio ‘sex-appeal’”, podemos observar as sutilezas de discursos que perpassam a atitude feminina aliada à valorização da mulher, indicando uma possível postura feminista. Em momentos como o apontado na crônica “Qualidades para tornar a mulher mais sedutora”, Clarice Lispector afirma que Os tempos modernos trouxeram a emancipação da mulher em quase todos os campos. Eis um grande bem. No entanto, muita confusão se faz em torno disto e o que se vê é que muitas representantes do sexo feminino entendem que ser emancipada e ter personalidade marcante é imitar os homens em todas as suas qualidades e defeitos. (LISPECTOR, 2006, p. 100). Nesse sentido, perceptível o destaque dado ao novo papel que a mulher estava assumindo na sociedade, não mais aquela submissa e dependente do homem, mas capaz de trilhar os próprios caminhos e segui-los, sem que houvesse preocupação com discurso arcaico da supremacia masculina. Ao mesmo tempo em que Clarice Lispector apresenta a suas leitoras a posição dessa nova mulher na sociedade, ela afirma que a feminilidade é algo fundamental para a arte da sedução que se configura, também, por outros fatores como a alegria e a delicadeza dos gestos, das atitudes e das palavras. Além disso, observa-se a ênfase dada à personalidade, pois a mulher que pretende ser sedutora não pode se impor com gritos e com exigências, mas moldar uma personalidade ao lado de seu companheiro, ajudando-o, incentivando-o e compreendendo-o. Aliar um discurso feminino a uma postura aparentemente feminista parece contraditório, mas é importante ressaltar que Clarice Lispector não se preocupa em levantar bandeiras defendidas pelas feministas, mas apenas mostrar a autonomia feminina frente a uma nova estrutura familiar advinda da evolução e das conquistas adquiridas ao longo de anos, conquistas essas que não fazem mais da mulher um ser submisso e sem destaque na família e na sociedade. É possível entrever que, a todo o momento, a autora procura despertar em suas leitoras as duas posturas, a de mulher atraente e sedutora e a de mulher autônoma e consciente de seu papel, pois é fundamental que “A mulher deve ser primeiro que tudo feminina” (LISPECTOR, 2006, p. 100). Há momentos de críticas a mulheres que veem nessa

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autonomia feminina um motivo para perder a feminilidade e buscar se igualar ao homem fisicamente e em gestos, como observado neste trecho da crônica “Sedução e feminilidade”: “Muitas mulheres modernas adotam atitudes masculinizadas, palavreado grosseiro, liberdade exagerada de linguagem ou de maneiras, e julgam que isso é bonito, que vão encantar os homens.” (LISPECTOR, 2006, p. 95). Em crônicas como “A cor do glamour”, “Perfume, a mais antiga das armas”, “O perfume deve anunciar a presença da mulher”, “O mistério do perfume”, “Perfume e veneno”, “Frascos”, “Como se perfumar”, entre outras, Clarice Lispector aborda a atitude de se perfumar e como transformar esse ato rotineiro em uma arma de sedução. Para tanto, ela critica os excessos, demonstra os melhores locais para se aplicar o perfume, explica qual o melhor tamanho de frascos, comenta sobre o tipo de perfume e os melhores horários para usá-lo, entre diversas outras dicas a serem seguidas por suas leitoras para se aprimorar a arte da sedução. Clarice também aborda outros assuntos em suas crônicas, apontados como fundamentais no desenvolvimento e aprimoramento da sedução feminina, a saber: a importância da autenticidade da mulher para criar seu próprio método de sedução; a arte de seduzir em outras épocas da história e os métodos utilizados pelas mulheres desses tempos; o fato de ser irresistível sem possuir beleza; o fato do homem moderno não buscar apenas uma mulher bonita; o tema do amor relacionado à idade; dicas de cultura geral; a utilização de cores; atitudes e gestos utilizados pelas mulheres; entre outros temas desse universo. Como podemos notar, em suas crônicas destinadas às “Aulas de sedução”, Clarice Lispector perpassa as diversas facetas da mulher na sociedade, destacando-a como um ser emancipado do homem. Apesar dessa nova postura, a autora afirma a necessidade dessa mulher não perder sua feminilidade. Para tanto, as dicas dadas neste capítulo estão naquilo que está aparente e subentendido na mulher; em seus gestos, atitudes e posturas; na busca de um único aprendizado: a arte da sedução. Referências Bibliográficas CAMPOS, M. C. C. Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 144p.

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