A Moral Do Ressentimento - Genalogia Da Moral

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Grupo de Professores. Os Filósofos Através dos Textos. São Paulo, SP: Paullus, 1997. P. 263 – 267 – A Genalogia da Moral – A Moral do Ressentimento.

Texto Digitalizado por Gilberto Miranda Jr. – [email protected]

NIETZSCHE (1844-1900)

74. A MORAL DO RESSENTIMENTO A tábua dos valores morais, onde figuram o bom e o mau, a prudência e a imprudência, a felicidade e a infelicidade, não deve ser considerada em si mesma, como uma tábua dada, impondo-se como tal; seu conteúdo só tem sentido ligado à sua origem. Porque não se sabe o que se deve entender pelo bem e pelo mal, pela felicidade e pela infelicidade, enquanto não se tiver posto a questão de saber quem formula essas distinções e promove esses valores; o estabelecimento de uma genealogia da moral é o único método de interpretação da tábua hierárquica dos valores. Ora, esses que, porque são fracos, são escravos, dão aos valores morais um sentido inteiramente diferente dos fortes. Os fracos e os impotentes, que sua vida decadente e extenuada

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torna incapazes de verdadeiramente querer, que seu estado de dominados priva de autêntica iniciativa, rebaixam os fortes por ressentimento. Incapazes de se vingar realmente da opressão que os domina, vingam-se simbolicamente, no imaginário, persuadindo e persuadindo-se de que o bom e o bem são o que não são os outros, os fortes. Os escravos não se julgam bons positivamente. Não situam os valores positivos na positividade do querer e da ação. Julgam-se bons contra os fortes, por contestação. A positividade de seus valores positivos resulta do não que somente pode dizer sua pequenez. Não há positividade na sua negação, não há ação na sua reação, e todo seu querer está no seu estado; o ressentimento é, entre os fracos, o substituto do sentimento espontâneo do qual são incapazes. Aborrecidos contra si mesmos, cheios de fel quanto aos que não podem ser, porque revoltados contra seu estado, sua consciência, em vez de ser a boa companhia deles mesmos, é a expressão de seu dilaceramento. Assim, a moral do ressentimento é uma moral que usurpa seu nome. Não regula os costumes, impede de viver; não busca positivamente o que quer que o diga, o bem e a felicidade, posto que é constituída de ódio e de vida lânguida, posto que o bem é só o repúdio dos outros, posto que a felicidade é relaxamento e repouso. Seu verdadeiro nome não é moral, mas moralismo que aprisiona e mortifica, pelo qual a vida frágil e degenerada se dá solas de chumbo. Porque o ódio é pesado de carregar; ao que diz dele Spinoza tão profundamente, que é a própria impotência, éjDreciso acrescentar que é um peso, cuja natureza é crescer. E da natureza do homem do ressentimento não conhecer nunca o frescor e a leveza do momento aurorai, porque o ódio, sendo reativo, não tem nunca a iniciativa, e porque o rancor é incapaz do esquecimento. O poder do esquecimento é a marca dos fortes. Amar a vida é a mesma coisa que viver, e viver é agir. A ação é viva e leve. Sacode, a cada uma de suas empresas, todo o amontoado de insultos e ciúmes que só tornam pesados os fracos, porque isto é empreender; o desprezo dos fortes pelas insinuações e rancores àos íracos torna mais leve; o desprezo do homem do ressentimento pelos fortes que ele não pode igualar, torna peA lição de Nietzsche é que é impossível eVencar sob as categorias de que a moral aí põe; porque a prudência, a felicidade, o amor não são necessariamente bons, nem necessariamente más a cólera ou a vingança. Os valores só valem o que vale a qualidade da vida que os engendra; é por isso que é preciso desmascarar o moralismo camuflado de moral e o ódio escondido no respeito às regras. Porque o ódio realmente suja tudo e não respeita nada. Só há verdadeiro respeito na soberana afirmação da vida forte, forte o bastante para não odiar e para não ferir, bastante esportiva para estimar até bom e de mau o

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A revolta dos escravos na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento desses seres, para quem a verdadeira reação, a da ação, é interditada e que só acham compensação numa vingança imaginária. Enquanto toda moral aristocrática nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a moral dos escravos opõe desde o princípio "não" ao que não faz parte dela mesma, ao que é "diferente" dela, ao que é seu "não-eu": e esse não é seu ato criador. Essa inversão do olhar apreciador — esse ponto de vista necessariamente inspirado pelo mundo exterior em vez de repousar sobre si mesmo — pertence propriamente ao ressentimento: a moral dos escravos sempre e acima de tudo teve necessidade, para nascer, de um mundo oposto e exterior: é-lhe preciso, para falar fisiologicamente, estimulantes exteriores para agir; sua ação é fundamentalmente uma reação. O contrário se dá, quando a apreciação dos valores é a dos senhores: age e cresce espontaneamente, só busca seu antípoda para afirmar a si mesmo com maior alegria ainda e reconhecimento — seu conceito negativo "baixo", "comum", "mau" é só um pálido contraste nascido tardiamente em comparação com seu conceito fundamental, impregnado de vida e de paixão, esse conceito que afirma "nós os aristocratas, nós os bons, os belos, os felizes!" Quando o sistema de apreciação aristocrática desconfia e peca contra a realidade, é numa esfera que não lhe é suficientemente conhecida, uma esfera que ela se defende mesmo com desdém de conhecer tal qual é: acontece-lhe, pois, desconhecer a esfera que despreza, a do homem comum, a do povo baixo. Considere-se, por outro lado, que o hábito do desprezo, do olhar altivo, do olhar de superioridade, supondo-se que falseie a imagem do desprezado, permanece sempre bem longe da desfiguração violenta à qual o ódio concentrado e o rancor do impotente se entregarão — em efígie, bem entendido — sobre a pessoa do adversário. De fato, há no desprezo muita negligência e despreocupação, muita alegria íntima e pessoal, para que o objeto de desprezo se transforme em uma verdadeira caricatura, num monstro. Que não se percam de vista os matizes quase benevolentes com que a aristocracia grega, por exemplo, enfeita todas as palavras que lhe servem para estabelecer a distinção entre ela e o povo baixo; aí se mescla constantemente o mel de uma espécie de piedade, de atenção, de indulgência. [...] Os "homens de alto nascimento" tinham o sentimento de serem os "felizes"; não tinham necessidade de construir artificialmente sua felicidade, comparando-se a seus inimigos, impondo-se a eles (como fazem todos os homens do ressentimento); e do mesmo modo, na sua

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Nietzsche

qualidade de homens completos, transbordantes de vigor e, em conseqüência, necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação — neles, a atividade era necessariamente posta na conta da felicidade (daí a origem da expressão eü práttein). — Tudo isto está em contradição profunda com a "felicidade" tal como a imaginam os impotentes, os oprimidos, acabrunhados sob o peso de seus sentimentos hostis e venenosos, em quem a felicidade aparece principalmente sob a forma de estupefativo, de sonolência, de repouso, de paz, de "sabbat", de relaxamento para o espírito e o corpo, em suma, sob sua forma passiva. Enquanto o homem vive cheio de confiança e de franqueza em relação a si mesmo (gennaios, "nascido nobre", sublinho o matiz de "franqueza" e talvez o de "ingenuidade"), o homem do ressentimento não é nem franco, nem ingênuo, nem leal em relação a si mesmo. Sua alma é ambígua, seu espírito gosta dos recantos, dos subterfúgios e das portas secretas, tudo o que se esconde o encanta, é ai que ele redescobre seu mundo, sua segurança, seu abandono; ele concorda em guardar o silêncio, não esquecer, esperar, diminuir-se provisoriamente, humilhar-se. Tal raça composta de homens do ressentimento acabará necessariamente por ser mais prudente que não importa qual raça aristocrática; honrará também a prudência numa medida inteiramente diversa: fará dela uma condição de existência de primeira ordem, enquanto entre os homens distintos a prudência assume facilmente certo verniz de luxo e de refinamento: é que aí ela tem importância bem menor que a completa segurança no funcionamento dos instintos reguladores inconscientes ou mesmo que certa imprudência, por exemplo, a temeridade irrefletida que persegue o perigo, que se lança sobre o inimigo ou ainda que esta espontaneidade entusiasta na cólera, no amor, no respeito, na gratidão e na vingança com que as almas distintas se reconheceram em todos os tempos. E mesmo o ressentimento, quando se apropria do homem nobre, acaba e se esgota por uma reação instantânea, porque não envenena: ademais, em casos muito numerosos, o ressentimento não se manifesta, enquanto entre os fracos e os impotentes isso seria inevitável. Não poder levar muito tempo a sério seus inimigos, suas infelicidades e até suas faltas — é o sinal característico das naturezas fortes, que se acham na plenitude de seu desenvolvimento e que possuem uma superabundância de força plástica regeneradora e curativa que chega até a fazer esquecer. (Um bom exemplo nesse gênero, tomado no mundo moderno, é Mirabeau, que não tinha lembrança dos insultos, das infâmias que se cometiam contra ele e que não podia perdoar, unicamente porque — esquecia.) Tal homem, com uma sacudida só, se

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desembaraça de muita vérmina que nos outros se instala de maneira estável; é somente aí que é possível o verdadeiro "amor a seus inimigos", supondo-se que tal seja possível na terra. Que respeito por seu inimigo o homem superior tem! — e tal respeito já é a via inteiramente traçada em direção ao amor... Senão, como faria para ter seu inimigo, um inimigo que lhe é próprio como uma distinção, porque ele não pode suportar senão um inimigo em quem não tenha nada a desprezar e muito a venerar! Ao contrário, se imaginamos "o inimigo" tal como o concebe o homem do ressentimento, — constataremos que aí está sua exploração, sua própria criação: concebeu "o inimigo mau", o "maligno" enquanto conceito fundamental, e é a esse conceito que imagina uma antítese, "o bom", que não é outro senão — ele mesmo... Nietzsche, La généalogie de la morale (A genealogia da moral), 1 B Dissertação, § 10, Mercure de France, pp. 50-55.

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