A Escola Portuguesa

  • June 2020
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A Escola que temos, é a Escola que queremos?

I. Neste artigo procuro reflectir sobre a escola pública portuguesa na medida em que ela pode, ou não, ser permeável à influência de movimentos sociais, da mais diversa índole, bem como, por outro lado, ela pode ser um centro de irradiação de inquietações sócio-culturais capazes de terem um impacto mobilizador na comunidade envolvente. Isso torna premente a análise das condições de funcionamento da escola atendendo ao actual quadro institucional criado por três referenciais legislativos que as actuais políticas do Ministério da Educação impuseram à escola: o estatuto da carreira docente1; o estatuto do aluno2 e o Decreto-Lei que introduz mudanças significativas na gestão das escolas3. Trata-se de três diplomas legais que se articulam em torno de um eixo comum: a concatenação destes normativos vai determinar, nos próximos anos, a forma como a escola se vai relacionar com o meio envolvente, como o Ministério da Educação, com as Autarquias Locais e, ainda, como ela se vai configurar internamente. Do conhecimento da sociedade à sociedade do conhecimento A escola pública portuguesa, nos últimos trinta e cinco anos, se tomarmos como marco temporal a revolução dos cravos de Abril de 1974, tem sido sujeita a vagas sucessivas de reformas curriculares que nunca puderam ser levadas às suas últimas consequências, nem foram objecto duma avaliação profunda. A par destas reformas a escola, em pouco mais de três décadas sofreu mudanças estruturais profundas, aplicadas sem uma preparação prévia, e sucessivamente abortadas plena implementação de novas medidas, sem que se lhe desse tempo para assimilar essas mudanças de forma construtiva e evolutiva. Pode dizer-se que o sector da educação em Portugal vive, desde a refundação do Estado português como Estado de direito democrático, num permanente estado de excepção: as leis têm uma vigência demasiado restrita no tempo, às leis fundantes vão-se acrescentando portarias, despachos, ou simples ordens de serviço, que as deturpam, ou mesmo contrariam. Neste sentido a litigância nos tribunais cíveis e administrativos tem aumentado exponencialmente no domínio educativo, o que está longe de contribuir para uma sedimentação de valores, de práticas e de atitudes capazes de contribuírem para uma melhoria significativa do ambiente educativo em Portugal. Por outro lado, a sociedade portuguesa tem sofrido nestas últimas décadas mudanças estruturais muito profundas. A seguir à revolução de Abril de 1974, a prioridade dos governos foi a estabilização da economia e a normalização da vida política, a que se seguiu, em meados dos anos 80, um período de expansão económica, movido pela adesão de Portugal à União Europeia, na altura a Comunidade Económica Europeia. Durante esse período foi implementada uma reforma educativa de largo espectro, sob a orientação do então ministro da educação Roberto Carneiro, assente numa visão tecnocrática do saber e da sociedade, em linha com as grandes orientações políticas do governo chefiado por Aníbal Cavaco Silva: em vez de se colocar como prioridade estratégica o investimento no conhecimento e na qualificação profissional, levou-se a cabo um intensíssimo programa de mega-investimentos em infra-estruturas rodoviárias que absorveu uma parte significativa dos fundos comunitários que atingiam montantes astronómicos e foram o principal motor da economia portuguesa durante os três governos liderados por Cavaco silva, um governo minoritário que não chegou ao fim da legislatura e dois governos assentes nas duas primeiras maiorias absolutas da democracia portuguesa. 1 Decreto-Lei n.º 15/2007. 2 Lei n.º 3/2008, de 18 de Janeiro. 3 Decreto-Lei n.º 75/2008.

Aplicada num clima de conformismo político propiciado pelas maiorias absolutas (na altura falava-se em ditadura da maioria), a reforma de Roberto Carneiro foi imposta às comunidades educativas que, na sua larga maioria, quer por razões ideológicas, quer por razões corporativas, obstaculizaram a sua implementação, dentro dum quadro de grande conflitualidade, que levou à substituição periódica dos ministros da educação, mesmo havendo maioria absoluta4. Houve medidas que foram aplicadas com deturpações funcionais e estruturais, como é o caso da Área-Escola, pensada como forma de incentivar a interdisciplinaridade e o trabalho cooperativo entre os professores da mesma turma, acabou por se transformar num pretexto para realizar actividades lúdicas ou visitas de estudo, sem grande preparação ou alcance pedagógico. Havia uma aposta na dinamização dos conselhos de turma enquanto estruturas capazes de atenderem às necessidades educativas dos alunos, considerados na sua individualidade e em articulação com o grupo-turma. Mas essa aposta na dignificação dos conselhos de turma fracassou porque as escolas estavam estruturadas em torno dos grupos disciplinares, cujos representantes tinham um peso determinante na definição da política de gestão da escola, uma vez que, em conjunto, formavam uma maioria no conselho pedagógico. Assim, os professores integravam os conselhos de turma orientando-se pelas linhas condutoras decididas pelos seus grupos disciplinares, resistindo, até por defesa contra os diversos problemas funcionais que surgiam dentro da escola, resultantes do alargamento da escolaridade obrigatória até ao 9º ano e da massificação do ensino que foi um dos efeitos mais positivos da instauração da democracia, mas que obrigou as escolas a adaptarem-se a ela sem terem os meios materiais e humanos capazes de sustentar uma resposta pedagogicamente adequada. Isto porque a par da política do betão e do alcatrão, os investimentos infra-estruturais na escola foram diminutos e a construção de novas escolas não acompanhou o crescimento demográfico dos grandes centros urbanos, especialmente nas áreas suburbanas. E o investimento nos meios humanos assentava na contratação de professores, sem qualquer orientação prospectiva promotora duma formação adequada aos novos desafios colocados por uma acelerada mudança de paradigma ao nível dos contextos culturais, resultante das mudanças tecnológicas que dão forma à sociedade do conhecimento. Para além dos professores a contratação de outros profissionais qualificados foi praticamente nula, o que explica a não existência nas escolas, ou então um grande défice, de técnicos informáticos, de bibliotecários, de animadores culturais, de profissionais de saúde, de assistentes sociais, de psicólogos, de professores realmente qualificados no âmbito do ensino especial, etc. Com o tempo os professores foram ocupando certos nichos criados por essas carências, adaptando-se a funções muito afastadas da docência, muitas vezes sem formação adequada e seguindo um espírito voluntarista que, em muitos casos é louvável, mas, quase sempre, pode ser um obstáculo à implementação dentro da 4 Uma das razões para esta conflitualidade prendia-se com a própria orgânica do Ministério da Educação: tratava-se dum corpo caótico, acéfalo e disforme, com um número astronómico de funcionários e de professores nele destacados, alguns dos seus organismos tinham funções conflituantes e as cadeias decisórias eram muito burocráticas e desarticuladas. Apesar de se terem extinguido e fundido muitos serviços, hoje a situação é pior, uma vez que foram introduzidas reformas que comprometeram ainda mais a unidade orgânica do ministério, isto depois de, na viragem do milénio, a situação ter melhorado significativamente, se sequência das medidas introduzidas pelos governos do engenheiro António Guterres. Actualmente o Ministério da Educação continua a centralizar as tomadas de decisão mais importantes para o sistema educativo, mas a sua direcção política, corporizada pela equipa ministerial, está desarticulada em relação ao resto das estruturas do Ministério, havendo muitas medidas que são comunicadas através da comunicação social com vista à sua prossecução por parte dos serviços que não têm a uni-los uma cadeia funcional coerente.

escola de práticas adequadas às exigências que lhe são colocadas pelas transformações sociais e espistémicas. Por esta razão, hoje na escola portuguesa fazem-se muitas coisas sem a existência dum suporte crítico e reflexivo assente em áreas do saber que, mesmo não tendo ainda direito de cidade dentro da escola, são estruturantes no que diz respeito ao funcionamento da sociedade. Até saberes que deveriam ter um papel estruturante da vida da escola, como a Psicologia e a Sociologia, são vistos como corpos alienígenas, muitas vezes desautorizados e desacreditados em nome duma pedagogia da acomodação e da reprodução de modelos acriticamente instituídos como inamovíveis: é frequente, por exemplo, os conselhos de turma ignorarem recomendações de psicólogos, psiquiatras, e outros profissionais que acompanham os alunos com necessidades educativas especiais, em nome da pedagogia e da justiça da avaliação, como se a avaliação dos alunos devesse servir para a normalização das inteligências e não para a sua estimulação para a criatividade. Para se ter uma ideia dos anquilosamentos estruturais da escola pública portuguesa, basta notar-se que a informatização intensiva das escolas é muito tardia, data da segunda metade da década de 90, e só depois do ano 2000 a ligação das escolas à internet se tornou prioritária. E mesmo com a melhoria das condições funcionais trazidas pela informatização, muitas escolas estão muito aquém do esperado no que respeita à rentabilização das infra-estruturas e dos equipamentos informáticos por falta de técnicos qualificados, quer na supervisão do hardware, ou das redes, quer na produção e gestão de conteúdos. Neste contexto os programas lançados pelo actual governo de disponibilização aos alunos, em condições materialmente sustentáveis pelas famílias, de computadores portáteis e de ligação à internet, por muito meritórios que sejam, acabam por significar que, no que se refere à adequação da escola à sociedade do conhecimento, se está a querer começar o edifício pelo telhado. Primeiro há que lançar os alicerces, ou seja, estruturar a escola de forma a garantir-lhe os meios funcionais para poder desempenhar as funções que, progressivamente, lhe têm sido outorgadas. E isso não pode fazer-se sem uma verdadeira revolução das mentalidades. E esta só pode acontecer se a escola for, verdadeiramente, democrática, quer na sua gestão, quer na sua interacção com as comunidades de base em que está inserida. Ora, na legislatura que terminou há poucos meses foram implementadas medidas legislativas que vão no sentido de tornar a escola cada vez menos democrática, não só por lhe impor uma organização interna hierarquicamente estruturada, sem que os membros da comunidade escolar, mesmo os professores, possam intervir de forma actuante e crítica nas tomadas de decisão. O Decreto-Lei nº 75/2008 introduz na escola a figura do director, rompendo com a tradição democrática de eleição, por toda a comunidade escolar, duma equipa directiva. Até à entrada em vigor deste DecretoLei os membros dos orgãos internos da escola eram eleitos democraticamente, mesmo no caso do conselho pedagógico. Este último órgão formado por representantes da comunidade escolar e com a responsabilidade de orientar as tomadas de decisão no campo pedagógico e curricular, foi sofrendo progressivas alterações estruturais que visaram diminuir o peso relativo dos representantes dos professores, diminuindo o poder de intervenção de cada um dos professores nas decisões de carácter pedagógico e didáctico. Até meados dos anos 90 os professores estavam agrupados por grupos disciplinares e cada grupo disciplinar elegia um representante no conselho pedagógico, posteriormente os grupos disciplinares foram agrupados em departamentos curriculares e cada departamento elegia um representante no conselho pedagógico, o que diminuiu drasticamente o número de representantes directos dos professores no conselho pedagógico, diminuindo, também, a sensibilidade epistémico-didáctica desse órgão, uma vez que as exigências e as necessidades específicas de muitas disciplinas passaram a ter pouco eco nesse órgão, por nele não terem voz os professores responsáveis por essa disciplina, por falta dum seu representante. E não se trata aqui duma visão corporativa da escola, mas da necessidade desta ser capaz de dar conta da diversidade de saberes e

orientações culturais que dão sentido à sociedade da qual a escola faz parte e da qual não se pode desligar, sob pena de correr o risco de sufocar por emparedamento cultural. A criação dos departamentos curriculares não obedeceu a um modelo único para todas as escolas, uma vez que progressivamente se foi sedimentando no discurso político a necessidade de afirmação da autonomia das escolas. Ora, o que aconteceu na fase final da anterior legislatura, o governo sob a presidência do cidadão José Sócrates resolveu obrigar a que todas as escolas seguissem a mesma grelha funcional, o que levou a uma reorganização dos departamentos curriculares, contra a cultura de cada uma das escolas, sedimentada em mais de uma década de trabalho continuado. Hoje a figura do Director é o centro nevrálgico do funcionamento da Escola, mas não se trata propriamente duma liderança nascida da dinâmica da própria Escola em evolução, trata-se dum curto-circuito organizacional que ressuscita muitos fantasmas. A Escola hoje está mais burocratizada, mais rotineira, mais fechada à inovação e à livre discussão. E onde se nota mais isto é ao nível dos funcionários a quem foi aplicada uma avaliação draconiana e indignificante. E note-se que há uma grande precariedade em termos de vínculo laboral dos funcionários, muitos estão colocados com contratos de provimento há quase duas décadas, sem direito a uma carreira, vendo os seus salários congelados no mesmo índice, salários de miséria, diga-se em abono da verdade. Isto torna abjecta a avaliação a que os funcionários foram sujeitos pelo governo do cidadão José Sócrates. É urgente repensar a Escola. Mas há um obstáculo de monta: a opacidade que rodeia os muros da Escola pública. Escreve-se muito e fala-se muito da qualidade de ensino, ou da sua falta, pasma-se e vocifera-se perante as sazonais listas de ordenação das escolas pelos jornais, a partir dos dados dos exames nacionais, fazem-se comparações entre realidades incomparáveis, assume-se a existência de um facilitismo que se pretende combater com um facilitismo ainda maior e mais monstruoso: é fácil ensinar os bons alunos, é muito fácil chumbar os alunos problemáticos, mandá-los de volta para as barracas, agora travestidas em bairros sociais que servem para criar em guetos os marginais do futuro, aqueles mesmos que justificarão a nossa falência enquanto construtores de sociedade humana, de sociabilidade humana. É fácil, demasiado fácil, ensinar os marrões a tornarem-se bestas, prontos a entrarem nas fileiras dos que vivem da e para a miséria de termos cada vez mais recursos cada vez menos distribuídos por todos. Esse é o pior dos facilitismos. É muito fácil decretar que só vai para médico quem tem uma média de 19. O difícil será escolher os candidatos a médicos de forma humana, procurando indícios vocacionais (a vocação existe, embora talvez não exista um sujeito transcendente que patriarcalmente vocalize o chamamento para esta ou aquela via existencial e profissional), seleccionando os candidatos que mostrem qualidades humanas de excelência para a prática da medicina. Mas isso fica para posteriores reflexões. (continua)

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