[2005] Patriarcalismo Uma Discussao Do Conceito

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Patriarcalismo: uma discussão do conceito em Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Antonio Candido Leandro C. Câmara

O objetivo desse trabalho é realizar uma releitura do conceito de patriarcalismo na sociedade brasileira colonial. Para tal, discutiremos três autores centrais na consolidação desse conceito: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Antonio Candido 1 . Em suas obras percebemos a construção de uma certa interpretação da sociedade brasileira ancorada numa perspectiva familista. Tal perspectiva, em linhas bem gerais, aponta para a centralidade da família no movimento de colonização portuguesa na América. Deste modo, era apenas no seio familiar que os indivíduos encontravam espaço de atuação na sociedade. Em decorrência, a estrutura familiar era tipicamente extensa, formada por um grande número de parentes e agregados, todos submetidos aos poderes do patriarca. Finalmente, eram estas estruturas familiares que controlavam a Igreja, o Estado e as Instituições econômicas locais 2 . Entretanto, este modelo começou a ser criticado por pesquisas mais recentes, especialmente aquelas produzidas a partir da década de 70. A obra de Eni de Mesquita Samara foi pioneira nesse sentido 3 . A autora, utilizando as listas nominativas de habitantes da cidade de São Paulo no início do século XIX, demonstrou que uma parte 1

Oliveira Vianna, Populações meridionais: populações rurais do centro sul; Gilberto Freyre, Casa-

Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos; Antonio Candido, The Brazilian Family. 2

Conferir Eni de Mesquita Samara. Patriarcalismo, Família e Poder na Sociedade brasileira (séculos

XVI-XIX) p. 11-16. 3

SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. Além das

obras de Samara, os trabalhos de Iraci Del Nero da Costa e de Maria Luiza Marcílio tiveram destacado papel na crítica do modelo patriarcal tradicional.

2

significativa dos domicílios locais eram bem menos complexos do que se pensava: “Em resumo, percebemos que as famílias eram em sua maioria nucleares, com poucos filhos, considerando que interferiam nesse quadro fatores como: mobilidade espacial da população e alta taxa de mortalidade infantil” 4 . Na mesma linha crítica temos o artigo “Repensando a família patriarcal brasileira” de Mariza Correa. A autora critica enfaticamente a adoção de um modelo único de família, homogeneizando uma realidade social muito mais complexa e diversificada 5 . Para a autora, tanto Gilberto Freyre quanto Antonio Candido compartilham “com muitos outros estudiosos a ilusão de que o estudo da forma de organização familiar do grupo dominante, ou de um grupo dominante numa determinada época e lugar, possa substituir-se à história das formas de organização familiar da sociedade brasileira” 6 . O problema dessas interpretações seria o aspecto simplificador da realidade, tentando acomodar todos os elementos multifacetados da sociedade num modelo familiar único. Corrêa defende que a família patriarcal pode ter existido de fato, mas ela não existiu sozinha e nem foi o modelo preponderante da família brasileira no passado 7 .

4

Conferir Eni de Mesquita Samara. Patriarcalismo, Família e Poder na Sociedade brasileira (séculos

XVI-XIX) p.23. 5

“A história das formas de organização familiar no Brasil tem-se contentado em ser a história de um

determinado tipo de organização familiar e doméstica – a família patriarcal –, um tipo fixo onde os personagens, uma vez definidos, apenas se substituem no decorrer das gerações, nada ameaçando sua hegemonia, e um tronco de onde brotam todas as outras relações sociais” em Mariza Corrêa, Repensando a família patriarcal brasileira, p. 13 6

Mariza Corrêa, Repensando a família patriarcal brasileira, p. 17.

7

“A ‘família patriarcal’ pode ter existido, e seu papel ter sido extremamente importante, apenas não

existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda da casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira” e continua “O conceito de ‘família patriarcal’, como tem sido utilizado até agora, achata as diferenças, comprimindo-as até caberem todas num mesmo molde que é então utilizado como ponto central de referência quando se fala de família no Brasil” em Mariza Corrêa, Repensando a família patriarcal brasileira, p. 25.

3

Outros historiadores, ao trabalharem com diversas localidades, também questionaram o modelo patriarcal. Com pesquisas voltadas para a família escrava, os papéis sociais das mulheres na sociedade, os sistemas de casamento, as estruturas domiciliares, estes autores relativizaram o modelo único de família extensa e o alcance dos poderes do patriarca 8 . Esse conjunto de estudos revisionistas, apesar da grande diversidade de opções teórico-metodológicas, apresenta dois pontos comuns na sua crítica. Em primeiro lugar, calcados em dados empíricos demográficos, apontam para a pequena porcentagem de domicílios patriarcais ou extensos 9 . Assim, questionam a posição central da família patriarcal no conjunto da sociedade brasileira. Seria possível falar de patriarcalismo numa sociedade onde apenas uma minoria das famílias realmente se organizava nesses moldes? A segunda crítica é, em certa medida, um desdobramento da primeira. A família patriarcal não seria um modelo válido para todo o Brasil. Ao contrário, seria um modelo regional típico da sociedade do açúcar seicentista. Logo, o erro de autores como Vianna, Freyre e Candido foi desdobrar essa realidade específica para a colônia como um todo. Em outros termos, patriarcalismo achata a complexa realidade social da colônia extirpando qualquer outro modelo alternativo de família em prol da família patriarcal.

8

“The beginning of the revision of the great myths and archetypes of Brazilian society in the 1970s laid

the groundwork for greater pluralism in the studies undertaken in the 1980s. These studies dealt with gender roles, marriage, cohabitation, sexuality, families in the despossessed sectors, and the process of transferring fortunes” em Eni de Mesquita Samara e Dora Isabel Costa Paiva, Family, Patriarchalism, and social change in Brazil, p. 215. 9

José Flávio Motta deixa bem claro essa identificação de família patriarcal com família extensa: “(...) na

medida em que se identificou a família patriarcal com a família extensa, isto é, com as estruturas domiciliares mais complexas, verificou-se que, em muitos casos, a família patriarcal teve de fato pouca expressão” em Demografia histórica no Brasil, p. 477-478.

4

Mais recentemente, todavia, Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Faria e B. J. Barickman 10 colocaram em dúvida a pertinência de tais críticas. Assim, Vainfas aponta que patriarcalismo não é sinônimo de família extensa e que autores como Gilberto Freyre ou Antônio Cândido não deram ênfase ao “número de moradores em cada domicílio, mas tão-somente acentuaram-se as estruturas de poder que norteavam a vida social da Colônia, historicamente ligadas à escravidão, à prepotência senhorial e às tradições culturais ibéricas” 11 Já Barickman crítica dois aspectos dos estudos revisionistas. O primeiro é aquilo que ele chamou de refutações indiretas. Como a maior parte dos estudos demográficos analisam a região centro-sul (especialmente São Paulo) no final do século XVIII e XIX, e Freyre privilegiou em suas análises o nordeste, não é possível um confronto direto dos dados demográficos com as reflexões de Gilberto Freyre 12 . O segundo aspecto, e o mais relevante, é a confusão conceitual dos estudos revisionistas. Argumentando de forma similar a Ronaldo Vainfas, Barickman aponta que esses trabalhos tendem a identificar família patriarcal com domicílio extenso, 10

Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial; Sheila

de Castro Faria. História da Família e Demografia Histórica; B. J. Barickman. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do recôncavo baiano em 1835. 11

Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial. p. 110.

(grifos nossos). Esta ressalva é importante, contudo, nem todas as pesquisas que criticaram o modelo de família extensa negaram a importância das relações familiares na constituição das estruturas de poder. Neste sentido, Eni de Mesquita Samara é bastante clara quando diz que “No plano social mais amplo, laços de solidariedade, parentesco e trabalho redundavam em dependência mútua entre os indivíduos e as famílias locais. Assim, articulação de poder também se insere no plano das relações familiares, se pensarmos que os grupos sócio-econômicos definiam estratégias para a sua sobrevivência” em Eni de Mesquita Samara. Patriarcalismo, Família e Poder na Sociedade brasileira (séculos XVI-XIX), p.31. 12

“No entanto, apesar de suas valiosas contribuições, a literatura revisionista tem pelo menos um ponto

fraco: quase todos os estudos baseados em censos nominativos focalizam São Paulo e Minas Gerais. (...) Como resultado, as pesquisas revisionistas podem, no máximo, refutar de modo indireto a visão tradicional da casa-grande patriarcal que se associa a Freyre” em B. J. Barickman. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do recôncavo baiano em 1835, p. 83-84.

5

demonstrando a seguir que essa estrutura domiciliar era numericamente pouco significativa. Em sua opinião, o conceito de patriarcalismo “pouco ou nada tem a ver com a presença de noras, genros, netos, filhos casados, sobrinhos e outros parentes como moradores da unidade doméstica. Antes, é um conceito que remete sobretudo ao poder pátrio, à autoridade dada aos pais e aos maridos, como pais e maridos, sobre suas filhas e esposas” 13 . Logo, tanto para Vainfas quanto para Barickman o problema do patriarcalismo reside longe da estrutura domiciliar, o argumento central dos trabalhos revisionistas. Nossa idéia de realizar uma releitura dos “clássicos” nesse trabalho segue essa problemática. Se existe uma “confusão conceitual” é fundamental retornar aos trabalhos que lançaram as bases do referido conceito. Assim, tentaremos aqui retomar tais obras buscando entender de que modo os três autores – Vianna, Freyre e Candido – desenvolveram em suas reflexões a noção de patriarcalismo. Nesse sentido, são duas as questões centrais de nosso trabalho: o que significa patriarcalismo? Esse conceito ainda é pertinente para compreender a sociedade colonial? O percurso desse trabalho é uma tentativa de responder tais questões.

“Populações Meridionais: populações rurais do centro sul” de Oliveira Vianna Oliveira Vianna começou a publicar seus trabalhos na década de 1920. Sua primeira obra, talvez a de maior impacto e repercussão, foi a parte inicial de “Populações Meridionais: populações rurais do centro sul” lançada em 1920. É, portanto, anterior às grandes reflexões ensaísticas da década de 1930 – especialmente Raízes do Brasil e Casa Grande & Senzala – marcando a produção intelectual da época.

13

B. J. Barickman. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do recôncavo

baiano em 1835, p. 120-121.

6

Como aponta Lucia Lippi Oliveira, a reflexão de Vianna foi fortemente marcada por seu tempo, sendo este autor o elo de ligação entre a chamada geração de 1870 e o pensamento nacionalista brasileiro pós Primeira Guerra Mundial 14 . Sua obra, assim como o discurso intelectual da época, é fortemente impregnada de categorias próprias do evolucionismo social e do darwinismo social 15 . Visto como um autor conservador e autoritário e fortemente identificado com o Estado Novo 16 , Oliveira Vianna foi praticamente esquecido pela tradição acadêmica por muitas décadas. Foi apenas a partir de 1980 que seus trabalhos começaram a ser revisitados e relidos. Entretanto, mesmo com essa acolhida crítica bastante desfavorável, sua obra marcou profundamente o pensamento social brasileiro e muitos autores sofreram influência de sua obra. Como aponta José Murilo de Carvalho, há uma “inegável influência de Oliveira Vianna sobre quase todas as principais obras de sociologia política produzidas no Brasil após a publicação de Populações meridionais. Dele há ecos mesmo nos autores que discordam de sua visão política. A lista é grande: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Nestor Duarte, Nelson Werneck Sodré, Victor Nunes Leal, Guerreiro Ramos e Raymundo Faoro, para citar os mais notáveis” 17

Nesse sentido, parece-nos ideal começar o percurso desse trabalho com a leitura do

primeiro

volume

de

“Populações

meridionais”.

Essa

leitura

pretende

fundamentalmente identificar como o autor trabalha com o conceito de patriarcalismo. 14

Lucia Lippi Oliveira, Uma leitura das leituras de Oliveira Vianna em O pensamento de Oliveira

Vianna, p. 242. 15

Sobre essa temática consultar a obra de Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças.

16

Oliveira Vianna fez parte do governo de Getúlio Vargas na década de 30 e sua obra foi identificada

como suporte ideológico desse governo. Ver Lucia Lippi Oliveira, Uma leitura das leituras de Oliveira Vianna em O pensamento de Oliveira Vianna 17

José Murilo de Carvalho, A utopia de Oliveira Vianna em Estudos Históricos, vol 4, n. 7, p. 83

7

--- x --O objetivo de Oliveira Vianna com seu livro era “estabelecer a caracterização social do nosso povo, tão aproximado da realidade quanto possível, de modo a ressaltar quanto somos distintos dos outros povos, principalmente dos grandes povos europeus, pela história, pela estrutura, pela formação particular e original” 18 . Essa caracterização, entretanto, não pode ser homogênea. O autor acredita que existam três organizações sociais bastante diferentes no Brasil: a população do norte (os sertanejos), a do centro-sul (os matutos) e a do extremo sul (o gaúcho). O primeiro volume de sua obra se volta apenas paras as populações do centro sul, já que cabe a estas o papel histórico preponderante do povo brasileiro 19 . As influências teóricas de Vianna vão desde a antropogeografia de Ratzel, a antroposociologia de Gobineau e Lapouge, a psicofisiologia de Ribots, aos trabalhos de Le Play e outros 20 . Esse conjunto de autores dá o tom evolucionista que marca com tanta força sua obra. Logo, determinismos raciais ou geográficos estão presentes a todo o momento no livro de Oliveira Vianna 21 . O grande objetivo da obra é, portanto, identificar o que há de específico e único na organização social do centro-sul do Brasil. Para Vianna a chave dessa especificidade é a forte herança rural deixada pelo processo de colonização e formação do povo brasileiro. Essa herança é o resultado do embate entre o espírito peninsular aristocrático, acostumado a vida em cidades, e o novo meio inóspito e selvagem. Logo, nos primeiros tempos os portugueses estabelecem algumas vilas e cidades, mas rapidamente as 18

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 15

19

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 282

20

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 14

21

Um exemplo claro desse tipo de determinismo é quando Vianna aponta que “não há tipos sociais fixos,

e, sim, ambientes sociais fixos” Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 18.

8

exigências do ambiente estabelecem um efeito centrífugo em direção ao campo. Daí, ocorre um processo de decadência da vida urbana e organização de um modo de vida tipicamente rural. Oliveira Vianna vê nessa adaptação a raiz de nossa especificidade: “Ora, a verdade é que este retraimento [das cidades] significa apenas que a vida social dos colonizadores do Brasil se está organizando, diferenciando e adquirindo uma fisionomia própria” 22 Portanto, a força do meio e a necessidade de adaptação vão criando lentamente no território colonizado uma organização social bastante distinta. As cidades vão se encolhendo e a vida no campo vai florescendo. E este florescimento vai ter uma atuação decisiva no modo de organização social do centro-sul. Com o retraimento urbano acontece também um profundo retraimento da vida social. Os laços comunitários vão cedendo espaço para os laços familiares. A organização dessa sociedade vai sendo mais e mais voltada para a vida doméstica. Oliveira Vianna aponta que essa preponderância da vida familiar vai influenciar significativamente a mentalidade dessa sociedade, tornando-a uma “classe doméstica” 23 Dessa forma, sob a influência desse modo de vida rural a família se torna a forma mais importante de organização social desse tipo de sociedade. No entanto, para Vianna não existe apenas uma forma de família. Ele vai identificar uma diferença profunda na organização familiar dos estratos superiores da sociedade (os fazendeiros) daquela encontrada nos estratos inferiores (aqueles sem terras): “Nesse ponto, a organização da família fazendeira se distingue nitidamente da organização da família nas classes inferiores, na plebe rural. Nesta, o princípio dominante da sua formação é a mancebia, a ligação transitória, a

22

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 31

23

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 49.

9

poliandria difusa – e essa particularidade de organização enfraquece e dissolve o poder do pater-familias. Daí o ter a nossa família plebéia, em contraste com a família fazendeira, uma estrutura instabilissima”

24

Logo, a família dos grupos superiores é marcada pela estabilidade, pela ligação oficial e permanente, e pelo poder do pai de família. Já no restante da sociedade, marcado por aqueles que não possuem terra e escravos, o que reina é a instabilidade, as ligações não-oficiais e o grande enfraquecimento da autoridade paterna. Nesse trecho é possível identificar outro desdobramento importante do acentuado desenvolvimento da vida rural: a propriedade da terra é a grande marca distintiva na sociedade. Logo, Oliveira Vianna aponta que “os que não conseguem um grande domínio agrícola com farta escravaria ou tendo-o conseguido, fracassaram, ficam à margem, nesse grupo indefinido da plebe, entra a escravaria e a mestiçagem (...). Premidos pelos preconceitos sociais e pela necessidade, esses desclassificados se mergulham nas zonas obscuras dessa sociedade ruralizada. Fazem-se clientes dos grandes latifundiários”

25

Quem tem terra consegue se classificar socialmente. Quem não tem terra vive a margem da sociedade, sem um lugar definido e claro. A única alternativa que resta a tais “desclassificados” é estabelecer relações clientelares com os grandes proprietários. E é apenas através do grande domínio rural que se fundamenta o poder nessa sociedade ruralizada. Surge daí a imagem dos senhores envoltos por uma vasta parentela e agregados agindo em comum acordo 26 .

24

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 49 (grifos nossos)

25

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 60

26

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 65

10

Para Oliveira Vianna, esses homens agregados se diferenciam dos escravos pela sua origem étnica, pela sua situação social um pouco mais favorável e, o mais significativo, pela “sua residência fora da casa senhorial”, habitando em “pequenos lotes aforados, em toscas choupanas, circundantes ao casario senhorial, que, do alto da sua colina os centraliza e domina” 27 Portanto, já vemos claramente duas formas bastante diferentes de organização familiar nessa sociedade. De um lado, esses homens livres pobres que habitam em casas miseráveis e vivem de forma instável graças a submissão aos grandes proprietários. Do outro lado, temos os grandes fazendeiros habitando em imensos solares, assim descritos por Vianna: “Dentro do solar fazendeiro, o núcleo familiar deve ser grande, maior do que o do IV [sic] século. O tipo conventual das antigas fazendas coloniais, com a sua série interminável de janelas e as suas inúmeras alcovas e os seus pomposos sobrados, denunciam o tamanho da família senhorial desses tempos. Os parentes, em número já considerável, são acrescidos ainda de alguns agregados de melhor extração, que se incorporam à família senhorial como amigos, comensais ou favoritos do senhor”

28

Famílias instáveis de um lado, Famílias extensas e luxuosas do outro. Essa é uma oposição fundamental na representação da família de Oliveira Vianna. É a terra o elemento que distingue uma da outra. O desdobramento desse processo de ruralização é a profunda simplificação da organização social brasileira. Essa simplificação se dá por conta das próprias necessidades das grandes propriedades: “Dispersos e isolados na sua desmedida

27

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 65-66

28

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 66 (grifos nossos)

11

enormidade territorial, os domínios fazendeiros são forçados a viver por si mesmos, de si mesmos e para si mesmos” 29 As grandes propriedades se isolam, produzindo tudo aquilo que precisam para sua sobrevivência. Logo, não existe espaço para cidades, comércio ou indústrias nesses territórios 30 . A grande fazenda basta por si só, e é ela sozinha que sustenta os pilares da sociedade colonial. Essa caracterização é importante para Oliveira Vianna pois é através dela que se explica as relações de poder. Sendo a grande propriedade a base da organização social, não é difícil de perceber que todas as relações sociais convergem na direção do grande proprietário de terras. É esse grande patriarca, comandando uma vasta parentela e agregados, a única fonte de poder e justiça nessa sociedade. Vianna caracteriza essa estrutura como o “clã fazendeiro”, sendo nessa sociedade simplificada a única forma de solidariedade social realmente existente 31 . Outro conceito importante que decorre dessa organização é a idéia de “anarquia branca”. Estando o poder nas mãos desses oligarcas locais fica claro que a justiça e qualquer amparo social ficam marcados pela vontade dos potentados locais. São eles que mandam e desmandam na vida local. Logo, “as instituições de ordem administrativa e política, que regem a nossa sociedade durante a sua evolução histórica, não amparam nunca de modo cabal, os cidadãos sem fortuna, as classes inferiores, as camadas proletárias contra a violência, o arbítrio e a ilegalidade” 32

29

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 113

30

“Em síntese, [não existe] nem classe comercial; nem classe industrial; nem corporações urbanas” em

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 119 31

“é o clã fazendeiro a única forma militante da solidariedade social em nosso povo” em Oliveira Vianna,

Populações meridionais, p. 145 32

Oliveira Vianna, Populações meridionais, p.142

12

A única alternativa para essa população é agregar-se aos grandes clãs fazendeiros 33 . Existe uma lógica circular que rege essa sociedade: o poder dos potentados atrai para si as camadas inferiores, e é essa atração que permite o fortalecimento do poder do clã rural, reforçando a anarquia e o desmando. Esse é o ponto fundamental para entender o conceito de patriarcalismo na obra de Oliveira Vianna. A formação desses poderosos clãs rurais marca profundamente a vida social da colônia. Sustentados por imensas hordas de capangas, parentes, agregados e escravos, os potentados locais definem a sua feição as relações políticas nessa sociedade. Não existe nenhuma instituição que possa fazer frente a tal poderio. Essa sociedade é patriarcal porque tudo converge para o patriarca dos clãs rurais. Nesse sentido, patriarcalismo significa muito mais do que família extensa ou imensos domicílios. Esse talvez seria o aspecto material e concreto dessa sociedade. Mas além do concreto há uma forma própria de organização política, onde o poder se encontra fragmentado pelos diversos potentados locais, onde reina uma espécie de anarquia difusa pautada pelos mandos e desmandos dos senhores de terra. O argumento central do livro de Oliveira Vianna é justamente a crítica dessa forma de organização social. A preocupação de Vianna é identificar as raízes desse espírito faccioso tão presentes na política brasileira. O objetivo de seu livro não é entender como funcionava no passado a família brasileira, mas buscar na organização dessa família as bases de uma estrutura de poder que tinha profundas implicações na organização da sociedade brasileira. Logo, esse nos parece ser um caminho mais fecundo para entender o conceito de patriarcalismo na obra de Oliveira Vianna. Como um conceito que não se limita apenas 33

“Só à sombra patriarcal deste grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais vivem o pobre e o

fraco com segurança e tranqüilidade” em Oliveira Vianna, Populações meridionais, p.142 (grifos nossos)

13

a morfologia do domicílio ou da família brasileira, se esparramando por todos os aspectos da vida social, econômica e política. Em suma, patriarcalismo é muito mais uma forma de exercer o poder e a sociabilidade nessa sociedade do que um tipo definido de família.

“Casa-Grande & Senzala” e “Sobrados e mucambos” de Gilberto Freyre Os trabalhos de Gilberto Freyre marcaram profundamente o pensamento brasileiro. Desde a publicação de Casa-Grande & Senzala no início da década de 1930, os estudos de Freyre inovaram em diversos sentidos a reflexão sobre a sociedade brasileira. Essa renovação foi especialmente importante no campo dos estudos da família brasileira. As imagens da família mais fortemente cristalizadas no nosso imaginário social foram, sem nenhuma dúvida, elaboradas nas diversas obras de Gilberto Freyre 34 . A concepção de patriarcalismo e de família patriarcal deve muito as diversas leituras feitas de sua obra a partir da década de 1930. Dessas leituras se consolidou uma determinada interpretação do passado colonial fortemente amparada numa noção familista da sociedade. Essa noção apontava para a centralidade da instituição familiar na vida social. Nesse sentido, a família patriarcal extensa se tornou a base e o modelo da sociedade colonial. No entanto, como já apontamos no início do trabalho, uma historiografia revisionista a partir da década de 70 começou a questionar a validade das interpretações

34

“(...) foi Gilberto Freyre o grande idealizador da noção de família que predominou durante décadas na

historiografia brasileira” em Sheila de Castro Faria, História da Família, p. 252. Eni de Mesquita Samara é da mesma opinião: “É inegável a importância e influência da obra de Gilberto Freyre na historiografia brasileira, especialmente nos estudos de família” em Relendo os “clássicos” e interpretando o Brasil, p. 303

14

e das leituras da obra de Gilberto Freyre. O modelo patriarcal de família e a validade de muitos dos argumentos de Freyre foram duramente criticados e questionados. Mas o que significa patriarcalismo e família patriarcal? Será que podemos assumir patriarcalismo como sinônimo de família patriarcal e esta como sinônimo de família extensa? A dificuldade em responder tais questões justifica uma releitura dos trabalhos de Gilberto Freyre. Logo, o que tentaremos fazer aqui é buscar em “Casa-Grande & Senzala“ e “Sobrados e mucambos”, dois textos centrais na discussão de patriarcalismo, um melhor entendimento do significado de patriarcalismo na reflexão de Gilberto Freyre. --- x --“Casa-Grande & Senzala” inaugurou uma série de quatro livros 35 voltados para a formação e o desenvolvimento da sociedade brasileira. Gilberto Freyre pensou esse conjunto de trabalhos como uma “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”. Portanto já nos títulos podemos perceber a importância central que o conceito de patriarcalismo apresenta na obra de Gilberto Freyre. No entanto, Freyre nunca chegou a definir com clareza o que entendia por patriarcalismo. Pelo contrário, encontramos em suas obras uma imensa quantidade de referências a tal expressão sem um maior cuidado com a clareza. Assim, Freyre fala de uma “família patriarcal ou “parapatriarcal” 36 , de um “regime patriarcal de economia” 37 , de uma “formação patriarcal do Brasil” 38 , de um “sistema patriarcal de 35

Os quatro livros são: Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de

economia patriarcal; Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano; Ordem e Progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre; O quarto e último volume, com título provisório Jazigos e cova rasa não chegou a ser preparado. 36

Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 136, nota 55

37

Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 44

38

Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 47

15

colonização portuguesa” 39 , de um “sistema patriarcal-escravocrático” 40 , e daí por diante. Nessa profusão de conceitos já notamos aquela imprecisão apontada por muitos comentadores como típica da argumentação de Gilberto Freyre 41 . De qualquer modo, patriarcalismo não parece se referir apenas a um tipo específico de família, ou a forma de organização familiar brasileira. Mais do que isso, é a idéia de patriarcalismo que forma o fio condutor de todo o desenvolvimento da sociedade brasileira. O que Freyre tentou com suas obras foi explicar a formação, a decadência e a desagregação de um tipo de sociedade específica: a sociedade patriarcal. É nessa perspectiva que se torna importante voltar para a colonização portuguesa na América já que para Freyre está é a chave para o entendimento dessa sociedade 42 . Com a colonização “formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição” 43 . São essas as características básicas da colonização. E é sob o efeito desses traços que vai se formar na colônia uma sociedade distinta da portuguesa. A base dessa sociedade agrária foi o binômio casa-grande/senzala. Foi através da família que Portugal conseguiu encontrar condições materiais de desenvolver esse processo colonizador. Daí, a afirmação de Freyre: “A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no 39

Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 48

40

Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 67

41

“Efetivamente, a ‘imprecisão’ conceitual é vista como um dado constitutivo da argumentação freyriana”

em Jessé Souza, Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira, p. 73 42

“Freyre propôe diversas teses fundamentais em Casa-Grande, que são repetidas ao longo do livro. A

mais importante é seu argumento de que o Brasil moderno foi indelevelmente marcado pelo legado do complexo colonial do latifúndio escravocrata e plantações (...) e a estrutura familiar patriarcal que o acompanhava” em Thomas E. Skidmore, Raízes de Gilberto Freyre, p. 52 43

Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 79.

16

Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase que reina sem governar” 44

Nesse contexto a família ganha proeminência sobre todas as demais instâncias sociais, tornando-se o motor e a base do processo de formação social do Brasil. No processo de colonização prevaleceu um espírito privatista, com o poder pessoal do grande senhor de escravos submetendo as autoridades externas (como o Estado e a Igreja). Assim, na reflexão de Freyre a casa-grande senhorial funciona como um microcosmo da sociedade, lançando as bases para o desenvolvimento dessa sociedade e de sua economia. Desse modo, quando Freyre fala de uma economia patriarcal está se referindo a essa economia agrícola subordinada ao poder do pater familias 45 . Portanto, a família tinha suas funções políticas, econômicas e sociais ampliadas nessa sociedade. Em outras palavras, em decorrência das especificidades da colonização portuguesa, a família tornava-se o elemento central dessa sociedade: “A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (...); de religião (...); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (...); de política (o compadrismo)” 46 Portanto, sociedade patriarcal é aquela que possuiu como unidade social básica a família. Nessa sociedade não existem limites para autoridade pessoal do senhor de terras

44

Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 92

45

Ana Cristina Veiga de Castro, Intepretações da colônia no pensamento brasileiro, p. 26-27.

46

Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 96.

17

e escravos 47 . Para Gilberto Freyre, nem a Igreja e nem o Estado conseguem se impor acima e além do pater familias. Nessa acepção podemos entender a existência de um “regime patriarcal de economia” ou um “sistema patriarcal-escravocrático”. Nesse sentido, podemos distinguir patriarcalismo de família patriarcal. O primeiro seria essa preponderância da família sobre as demais instituições sociais, seria uma espécie de sistema ou modo de organização social, norteando as relações de poder e as relações institucionais da sociedade. Já a família patriarcal seria a materialização desse patriarcalismo. Seria ao redor dessas famílias patriarcais que flutuaria a sociedade colonial. E em nenhum momento Freyre identifica essas famílias como do tipo extenso e tampouco as identifica como o tipo de família mais representativo dessa sociedade. Para Freyre, a família patriarcal não é única e nem a mais numerosa, ela é apenas aquela para qual as relações de poder convergem 48 . Essa acepção de patriarcalismo fica ainda mais clara em “Sobrados e mucambos”. Se no primeiro livro o que estava em questão era a formação da sociedade patriarcal, nessa obra o ponto central é o “embate entre a tradição patriarcal e o processo de ‘ocidentalização’ a partir da influência da Europa ‘burguesa’” 49 . Em outros termos, o que está em questão é o choque do tradicional (o patriarcal) com o moderno (o burguês).

47

“Por muito tempo as Câmaras, os juízes, as Ordens Reais, quase nada puderam contra particulares tão

poderosos. A sombra feudal da casa-grande do rico ou do jesuíta caía em cheio sobre as cidades” em Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 34. 48

“Parece-nos inegável a importância da família patriarcal ou parapatriarcal como unidade colonizadora

no Brasil. É certo que o fato dessa importância antes qualitativa que quantitativa, não exclui o fato, igualmente importante, de entre grande parte da população do Brasil patriarcal ‘a escravidão, a instabilidade e segurança econômicas’ terem dificultado a ‘constituição da família, na sua expansão integral, em bases sólidas e estáveis’” em Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 136, nota 55. 49

Jessé Souza, Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira, p. 72

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A urbanização, o desenvolvimento do comércio, o fortalecimento do Estado, a vinda da família real, são alguns dos fatores que começam a transformar a sociedade patriarcal que foi se consolidando na América Portuguesa. Com isso, o poder patriarcal foi lentamente dissolvido, estabelecendo novas formas de sociabilidade e de relações de poder. É essa, em linhas gerais, a idéia desse livro. Essa lenta dissolução, entretanto, não significou a desagregação do patriarcalismo. Longe disso, o que se deu foi uma certa transplantação da sociedade patriarcal agrária para as cidades. E no prefácio do livro Freyre retoma e explica com um pouco mais de clareza o que entende por patriarcalismo, já que este continua sendo um conceito fundamental para entender a sociedade brasileira da virada do século XVIII para o XIX. Assim, Freyre começa apontando que em seus estudos centralizou a atenção ao estudo da casa e do espaço privado pois o desenvolvimento no Brasil desde o século XVI se fez “patriarcalmente: em torno do pater familias, dono de casas características menos do seu domínio de homem, que do domínio da família representada por ele” 50 Essa passagem é reveladora. O poder do pater familias não vem de seu poder enquanto homem, mas vem do poder que a família tem sobre a sociedade. Portanto, patriarcalismo não tem a ver apenas com a esfera privada da família, mas com a família se lançando para o espaço público. Isso se dá pois a família é a instituição fundamental da vida social. Como já apontamos, o principal desdobramento da idéia de patriarcalismo é familismo enquanto uma forma de exercer poder nessa sociedade 51 . Em seguida, Freyre aponta que: 50

Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 52.

51

Outra passagem igualmente interessante é a seguinte: “[Família patriarcal] ou ‘tutelares’, como diria o

professor Zimmermamm, a quem repugna a expressão ‘patriarcal’ pelo que parece atribuir de absoluto ao poder do patriarca-indivíduo, quando esse poder seria antes da família investida de funções tutelares do que do seu chefe” em Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 58.

19

“A nós, parece, hoje evidente – depois de estudos já longos da formação brasileira – que o Brasil teve no complexo ou sistema patriarcal, ou tutelar, de família, de economia, de organização social, na forma patriarcal de habitação (...) e na forma patriarcal de devoção religiosa, de assistência social e de ação política – seu principal elemento sociológico de unidade. Mais do que a própria Igreja (...) foi a família patriarcal ou tutelar o principal elemento sociológico de unidade brasileira”

52

Essa passagem sintetiza bem tudo aquilo que viemos apontando até agora. Patriarcalismo é um modo de organização onde o “principal elemento sociológico de unidade” é a família, onde esta subordina e se impõe a todas as demais esferas sociais. Além disso, temos a própria família patriarcal, materializando essas relações sociais. Para Gilberto Freyre, a verdadeira base da colonização portuguesa foi unicamente a família. Foi ela quem sustentou o desenvolvimento do complexo agroexportador e da sociedade em seu conjunto. E mais importante, foi o desenvolvimento desse “sistema patriarcal-escravocrático” que diferenciou a colônia da metrópole 53 . É importante não perder de vista essa perspectiva sistêmica adotada por Gilberto Freyre. É nessa perspectiva que a família torna-se uma “instituição total” 54 que explica e da sentido ao conjunto das reflexões do autor. É sob a lógica familista que Freyre entende nosso passado colonial.

52

Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 63.

53

“A verdade é que foi o sistema patriarcal-escravocrático, ou tutelar escravocrático, que, de suas bases

(...) deu efetivo significado econômico e importância política ao Brasil, identificado principalmente com o açúcar aqui produzido. Foi o sistema patriarcal-escravocrático que se tornou a base principal da cultura diferenciada de Portugal que foi aqui se desenvolvendo” Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 67. 54

“Acredito que o patriarcalismo familial rural e escravocrata para Freyre envolvia a definição de uma

instituição total, no sentido de um conjunto articulado onde as diversas necessidades ou dimensões da vida social encontravam uma referência complementar e interdependente” em Jessé Souza, Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira, p. ?

20

Logo, muito mais do que uma reflexão sobre um tipo de família o que Gilberto Freyre faz é construir uma reflexão sobre o ethos social do brasileiro. Essa organização social se desdobrava em redes de sociabilidade e de poder de um tipo bastante específico. Mais do que isso, formava-se um estilo de sociedade ancorado em valores específicos: familismo, privatismo e personalismo 55 . Portanto, a desintegração do patriarcalismo não significa apenas a formação de famílias nucleares e simplificadas, como poderia ficar subentendido por certas leituras críticas de sua obra, mas significa a afirmação de um ethos burguês, especialmente a afirmação do individualismo 56 . Nesses termos fica muito mais clara a oposição entre tradicional/moderno que percorre sua obra. Patriarcalismo está para o tradicional assim como a sociedade burguesa está para o moderno. Podemos concluir essa leitura com dois desdobramentos importantes. Em primeiro lugar, patriarcalismo não é um traço típico de uma determinada região (o nordeste açucareiro), mas da empresa colonial como um todo 57 . Em segundo lugar, a sociedade não será mais ou menos patriarcal de acordo com o número de domicílios extensos existentes, sendo preciso dissociar totalmente patriarcalismo e família patriarcal de domicílio extenso 58 .

“The Brazilian Family” de Antonio Candido 55

“Para Freyre, houve no passado um estilo brasileiro de sociedade baseado no patriarcalismo, com seus

atributos de personalismo, familismo e privatismo, atributos esses que são despóticos e segregadores, de um lado, mas democráticos e inclusivos, de outro. É a dialética desses pólos que tem garantido a longevidade do patriarcalismo brasileiro” em Lucia Lippi Oliveira, Ordem e Progresso em Gilberto Freyre, p. 143. 56

Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 90.

57

“A casa-grande, embora associada particularmente ao engenho de cana, ao patriarcalismo nortista, não

se deve considerar expressão exclusiva do açúcar, mas da monocultura escravocrata e latifundiária em geral” em Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 55. 58

Ver nota 48.

21

O breve ensaio “The Brazilian Family” de Antonio Candido, publicado numa coletânea de textos sobre o Brasil voltada para o público americano 59 ocupa um lugar central nas críticas feitas pela historiografia revisionista. É nesse texto que, salvo engano, encontramos a definição mais precisa e concreta da noção de família patriarcal brasileira. Logo, grande parte das críticas feitas pelos revisionistas é feita a partir de uma certa leitura do texto de Candido. Ainda assim, esse é um ensaio pouco lido. É uma daquelas obras mais criticadas do que verdadeiramente lidas. A falta de uma tradução ou publicação do texto no Brasil talvez ajude a entender essa situação. Apesar disso, essa breve reflexão retoma de modo bastante interessante o conceito de família patriarcal, dialogando diretamente com os trabalhos de Oliveira Vianna e Gilberto Freyre. Com a leitura do texto de Antonio Candido finalizamos o percurso desse trabalho. O objetivo dessa leitura é, novamente, identificar o que significa patriarcalismo para Candido. E de que modo se funda a organização familiar numa sociedade patriarcal. --- x --Em seu texto, Antonio Candido tenta realizar um estudo sociológico numa perspectiva histórica da família brasileira. Nesse sentido, o autor pretende estudar a família sob três perspectivas: sua estrutura, sua função e seus aspectos morais. Daí, seria possível identificar de que modo transformou-se a família brasileira desde sua forma patriarcal (patriarchal family) até a moderna família conjugal (modern conjugal family).

59

Lynn Smith e Alexander Marchand (org.), Brazil portrait of half a continent.

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No entanto, a ênfase do texto não é na família moderna, e sim em sua forma patriarcal, já que está é a base da família moderna 60 . Foi junto ao processo de colonização que o modo de organização patriarcal foi se afirmando no Brasil, sendo um modelo familiar típico dos estratos sociais dos colonizadores portugueses. Isso não significa, entretanto, que houve uma simples transposição das famílias portuguesas no território colonial 61 . A falta de mulheres brancas, a escravidão, as relações extraconjugais e a miscigenação marcaram profundamente a família brasileira. Logo, para evitar a desagregação a família patriarcal foi obrigada a se adaptar e se definir sobre novas bases. É dessa adaptação que surge a famosa estrutura dual da família brasileira: “Frequently the solution was found in the patriarchal organization of the family itself, which presented a double structure: a central nucleus, legalized, composed of the white couple and their legitimate children; and a periphery not always well delineated, made up of the slaves and agregados, Indians, Negroes, or mixed bloods, in which were included the concubines of the chief and his illegitimate children”

62

A família patriarcal era, portanto, antes de tudo uma organização de acomodação. Os diversos grupos sociais hierarquicamente diferenciados podiam se integrar através da agregação à estrutura da família patriarcal. É uma idéia bastante similar com a noção de clã familiar de Oliveira Vianna. A função da família seria antes

60

“The emphasis upon the patriarchal family of the past centuries is justified by the fact that it was the

base upon which developed the modern conjugal family, whose traits can be understood only if we examine its origins” em Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 291. 61

“Actually, although in theory and, in many cases, in practice the Portuguese familial organization was

transplanted here at the beginning of the colonial period, it did no find a favorable environment in the colony” em Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 292. 62

Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 294. (grifos nossos)

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de tudo dar estabilidade para as discrepâncias sociais. Como veremos depois, aqueles que se mantivessem fora dessa estrutura acabavam se tornando socialmente desclassificados flutuando a deriva na sociedade. O núcleo central era a base da família e da sociedade. Era dentro desse grupo que se encontravam os elementos socialmente mais destacados e era daí que emanava o poder e prestígio social. Novamente, como em Oliveira Vianna, era o chefe de família a grande força do nosso passado colonial: “The legal nucleus was the core of the domestic organization and from the beginning it developed according to molds which persisted until a few decades ago. The chief’s dominance was almost absolute, corresponding to the necessities of social organization in an immense country lacking police, and characterized by an economy which depended upon large-scale initiative and the command over a numerous labor force of slaves. It was a type of social organization in which the family necessarily was the dominant group in the process of socialization and integration, a group in which the distances were rigidly marked and regulated by the hierarchy”

63

Além de sua função estabilizadora a família também era a base da organização social mais ampla. Era ela a fonte de poder e de controle da sociedade. Numa economia baseada na grande produção escravista e na ausência de instituições disciplinadoras atuantes, cabia ao senhor e pai de família disciplinar e controlar a sociedade. Logo, já identificamos dois aspectos do tripé apontado no início. Quanto a estrutura, a família patriarcal era definida por dois grupos distintos mas relacionados: o núcleo e a periferia. Quanto a sua função era dupla: garantir a coesão social e assegurar o domínio político-econômico dessa sociedade.

63

Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 294. (grifos nossos)

24

A decorrência direta disso era o pleno poder da autoridade paternal. Era ao pai de família que cabia a ação da justiça e do policiamento, era ele quem decidia os rumos dos demais membros da família, bem como de todos aqueles elementos agregados que circulam pela periferia da família. Antonio Candido, no entanto, relativiza um pouco esse poder quanto trata do papel da mulher nessa sociedade. Ainda que subordinada ao marido, esta ocupava uma função complementar aquela do marido 64 . De qualquer modo, ainda que com certa margem de liberdade, a mulher é somente o outro lado do poder patriarcal. É nessa complementaridade que a família patriarcal pode continuar cumprindo sua função política-econômica. O núcleo central compunha apenas um lado da estrutura da família patriarcal. Esta era completada pela sua periferia composta de agregados, escravos, parentes distantes, capangas, etc. Era essa extensão da família, englobando todo um conjunto de pessoas ao redor do pai de família que dava as bases do poder político e econômico à família patriarcal. Todos aqueles que não fossem amealhados pelas estruturas desse sistema patriarcal tornavam-se socialmente desclassificados: “Therefore if we adopt the criterion of the organization and the selfdetermination of the group we may say that colonial society was divided into two parts, familial and nonfamilial. The former, composed of the double structure that has already been analyzed, was made up of an autonomic group (the nucleus) and a heteronomic one (the periphery). The nonfamilial portion consisted of a nameless mass of the socially degraded, those cast off

64

“They are two complementary spheres, each with its ethos more or less differentiated from that of the

other, often in conflict, but generally supporting each other in the maintenance of a considerable sociological balance” em Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 295-6.

25

by the family groups or brought up outside them. They reproduced themselves haphazardly and lived without regular norms of conduct”

65

Logo, não existia apenas uma forma de organização familiar (a patriarcal), no entanto todos aqueles que não estivessem ligados de alguma forma a esta organização estavam excluídos das redes de poder e sociabilidade nesta sociedade. Portanto, para Antonio Candido a família patriarcal era mais do que uma estrutura definida de família, ela era a base da sociabilidade nesta sociedade 66 . Nesse sentido, os aspectos funcionais e morais da família patriarcal convergiam para estes aspectos políticos, econômicos e sociais. O que Antonio Candido entende pela transição da família patriarcal para a família conjugal moderna é justamente a progressiva perda de suas funções econômicas e políticas para manter apenas funções afetivas e sentimentais: “The history of the Brazilian family during the last 150 years consists essentially of an uninterrupted series of restriction upon its economic and political function and the concentration upon the more specific functions of the family (from our point of view)”

67

Essa transformação está intimamente atrelada com a modernização e a urbanização do país. Com a crescente divisão social do trabalho advinda dessa urbanização o pai de família começa a perder seu poder e sua liderança. Daí, os

65

Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 304. (grifos nossos)

66

“To some extent it may be said that it [a família patriarcal] constituted the fundamental organization of

the colonial period, production, administration, defense, and the social status of the individual being dependent upon it. It is as a function of this organization that we are able to understand the society of the time, because one who did not belong to it lacked means of participation in the collective life” em Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 303 67

Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 304.

26

membros da família ganham maior individualidade e a estrutura dual da família perde seu sentido, desagregando-se. Nesse sentido, o significado de família patriarcal para Candido vai muito além da pura morfologia domiciliar como certas críticas apontam. Família patriarcal seria uma forma própria de organização social e de sociabilidade em oposição a forma moderna e individualizada de sociedade. O exemplo mais claro disso é a profunda imbricação da esfera privada (a família) com a esfera pública (a política ou a economia). Em nenhum momento Antonio Candido coloca claramente que toda a estrutura da família patriarcal reside sob um mesmo domicílio ou conjuntamente. Isso nem importa muito. O que é importante é a presença da solidariedade parental como o vínculo social mais importante nessa sociedade. Portanto, podemos entender patriarcalismo como o prevalecimento da esfera familiar sob as demais esferas sociais. Parece-nos que essa acepção é mais adequada com aquilo proposto por Candido em seu texto. Logo, provar que a maioria dos domicílios não são extensos é uma crítica adequada a esse modelo? Acreditamos que não...

Considerações finais Ao longo do trabalho buscamos entender o significado de patriarcalismo nos trabalhos de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Antonio Candido. Com isso, pudemos notar uma profunda semelhança na argumentação dos três autores. Essa convergência pode nos ajudar a estabelecer uma definição, ainda que provisória e incipiente, do conceito de patriarcalismo. Em primeiro lugar, para todos os autores é a especificidade da colonização portuguesa na América o nexo explicativo central para se entender a formação de uma sociedade patriarcal. Foi com o processo colonizador que essa sociedade foi ganhando

27

uma feição particular, um modo de organização que privilegia a família como elemento de sociabilidade central. É esse foco na família o segundo ponto em comum nos autores. De um jeito ou de outro todos apontam para sua centralidade nas relações sociais, políticas e econômicas. Foi através da família que a empresa colonial conseguiu se estabelecer e se desenvolver. Era também no seio da família que se encontravam as bases de poder nessa sociedade. Outro ponto em comum é a oposição tradicional/moderno tendo como eixo o familismo. Para todos os autores a superação dos traços tradicionais do Brasil está relacionada com a formação familiar. É com a superação dessa sociabilidade familiar que se torna possível a afirmação de valores burgueses modernos. Nessa perspectiva, patriarcalismo parece muito próximo de um ethos social. Patriarcalismo seria um modo tradicional de organização. Uma organização centrada na família e que sufoca outras instâncias sociais como o Estado ou a Igreja. Portanto, patriarcalismo é fundamentalmente uma forma de exercício do poder nessa sociedade. Nessa sociedade não seriam os indivíduos, mas sim as famílias que ganhariam importância social e econômica. Se entendermos patriarcalismo como esse ethos tradicional, como uma forma de organização que privilegia a família, fica difícil concordar com a crítica dos revisionistas. Afinal de contas, não é a importância quantitativa da família patriarcal que torna essa sociedade patriarcal. Falar em patriarcalismo é falar de relações de poder e de sociabilidade e o estudo dos domicílios dificilmente pode tratar desses temas. Assim, fica claro que o problema das críticas é muito mais um problema conceitual e teórico do que um problema metodológico e empírico. O problema surge

28

desde o princípio ao assumir que patriarcalismo significa domicílios de tipo extenso. Mas não é isso. Ou melhor, nossa leitura não aponta nesse sentido. Com tudo isso, ficou claro que o conceito ainda apresenta uma grande pertinência para compreender a sociedade colonial. É impossível discutir poder local, relações senhor/escravo, sociabilidade cotidiana, transmissão de riquezas, questões de gênero, entre outros assuntos, sem dialogar com o conceito de patriarcalismo. É evidente que isso não significa reificar o conceito. Colocar a família como um nexo fundamental das relações sociais não significa dizer que ela é o único nexo. Outras instituições, como as câmaras municipais ou as instituições religiosas, são tão fundamentais quanto a família para a compreensão das relações sociais. Também é preciso historicizar o conceito. O próprio Gilberto Freyre apontou que em certo momento a sociedade patriarcal começou a se diluir e se transformar. Logo, é preciso tratar o conceito como ele é, ou seja, como um modelo, não como a realidade concreta. Nessa perspectiva, os estudos da família ganham uma importância central na compressão da sociedade colonial. Perder de vista a centralidade da família nessa sociedade pode inviabilizar sua própria compreensão. É preciso, portanto, mais do que nunca pensar a sociedade colonial como uma sociedade patriarcal. Bilbliografia

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