[2003] Economia E Familia

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Economia e Família: Estruturas Populacionais nos Bairros Rurais Paulistas no início do século XIX

Leandro Calbente Câmara 1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo estudar as estruturas populacionais nos bairros rurais paulistas, especialmente em Nossa Senhora do Ó e Penha, que circundavam a cidade de São Paulo, no início do século XIX. A idéia é delinear o perfil profissional e econômico e as tipologias das estruturas domiciliares, localizando as principais diferenças destas características nos bairros rurais, que apresentavam uma economia mais dependente da prática agrícola, e no núcleo central da cidade, já mais urbanizado e menos agrícola. Para tal, trabalhamos com os maços de população dos anos de 1827 e 1836, documentos que apresentam importantes informações sobre a população de tais regiões.

Unitermos: São Paulo, demografia, bairros rurais, história

1

Graduando em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e bolsista PIBIC-

CNPq com o projeto São Paulo: 1827, uma análise demográfica, Penha, Nossa Senhora do Ó e Santana. Texto apresentado na I Jornada Internacional de História da Família: Uma abordagem interdisciplinar, 2003, FFLCH-USP.

1

A capitania e posterior província de São Paulo, no início do século XIX, apresentava um panorama de desenvolvimento econômico. Graças a uma política de reestruturação e ordenamento, implementada inicialmente por Morgado de Mateus em 1765, e continuada pelos seus sucessores no governo local, São Paulo integrou-se definitivamente no mercado atlântico de exportações. A conciliação entre os interesses do poder público e dos produtores locais concretizou uma série de transformações na infraestrutura do planalto e assegurou a consolidação de vias para o escoamento da produção local, um dos principais entraves para o desenvolvimento econômico da região 2 . Foi a partir da segunda metade do século XVIII que São Paulo começou a produzir e a exportar uma crescente quantidade de açúcar. Esta produção de açúcar, no entanto, não se estabeleceu no vazio. A região do planalto paulista articulava uma série de redes para a distribuição de produtos voltados ao abastecimento interno desde meados do século XVII 3 . Temos assim, o florescimento de uma agricultura para exportação articulada a uma produção voltada ao mercado interno, a qual foi fundamental para a estruturação das vias de circulação e das relações de produção locais 4 .

2

Ver DOLHNIKOFF, Miriam. Caminhos da conciliação. Dissertação de mestrado. São Paulo: FFLCH-

USP, 1993. especialmente o capítulo 3. O trabalho de BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo : Humanitas-FAPESP, 2002. apresenta a mesma questão, só que indicando a sua importância já ao longo do século XVII. 3

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994. 4

As principais produções do planalto eram a mandioca, o milho, o trigo e a cana. Ver PUNTSCHART,

William. Negócios e negociantes paulistas :1808-1822. Tese de doutorado. São Paulo: FFLCH-USP, 1998., p.36.

2

Atrelado a este processo, a capitania começou a passar por um forte crescimento populacional. As principais causas para este incremento foram as altas taxas de imigração e de natalidade e a ausência de crises populacionais do tipo “Antigo Regime” 5 . No entanto, foi a população cativa aquela que mais cresceu. O desenvolvimento da economia de exportação foi responsável pela entrada de um maior número de escravos, promovendo em certas regiões um crescimento da população cativa muito mais rápido do que o da população livre 6 . É neste contexto de desenvolvimento econômico e crescimento populacional que a cidade de São Paulo estava situada no início do século XIX. Contudo, os ritmos de crescimento da capital, quando comparados ao restante da capitania/província, apresentaram-se de forma menos intensa. Na primeira metade do século XIX, regiões como Itu, Porto Feliz, Campinas e Piracicaba, atraíram um grande contingente populacional, especialmente de cativos, movimento que não aconteceu da mesma forma na própria cidade 7 . Contudo, tal localidade formava um importante núcleo para toda a conexão da capitania. Sendo um ponto de convergência de diversas vias de escoamento, a cidade realizava uma articulação polivalente com as diversas regiões do planalto 8 .

5

Ver MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista, 1700-1836. São

Paulo, HUCITEC/EDUSP, 2000. 6

TEIXEIRA, Paulo Eduardo, Mulheres, domicílios e povoamento: Campinas, 1765-1850. Dissertação de

Mestrado. Franca: UNESP, 1999. aponta que de 1774 para 1829, em Campinas, a população de livres caiu de 71,4% para 38,4%, graças a grande entrada de cativos, p. 66. 7

MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo, Ed.

Pioneira: EDUSP, 1973 p.99-101. 8

PUNTSCHART, William. Negócios e negociantes paulistas :1808-1822. Tese de doutorado. São Paulo:

FFLCH-USP, 1998., p.65.

3

Os bairros rurais 9 eram essenciais para realizar tal articulação. Situados nas rotas destes caminhos, Penha, em direção ao Rio de Janeiro, e Nossa Senhora do Ó, na trilha dos tropeiros vindos de Goiás, eram verdadeiras embocaduras de gêneros alimentícios para abastecer a cidade 10 . A própria predominância de pequenos produtores agrícolas, nestas regiões, indica a existência de uma economia direcionada ao abastecimento do núcleo central da cidade 11 . Desta forma, os vínculos que ligavam os bairros rurais com o núcleo central eram essenciais para ambos. A população na cidade de São Paulo, nas décadas de 1820 e 1830, situada por volta de 20.000 habitantes 12 , gerava uma grande demanda de bens agrícolas para a sua própria manutenção. É neste sentido que os bairros rurais ganhavam importância, produzindo excedentes para abastecer parcialmente as zonas mais urbanizadas da cidade. Por outro lado, as instituições político-administrativas, localizadas na parte central da cidade, tornavam estes bairros rurais dependentes das instituições e da cena política da cidade. No entanto, o desenvolvimento econômico não aconteceu de forma igualitária nestes bairros. Ao lado do aumento da produção acontecia um processo de concentração

9

Entendemos bairros rurais segundo a definição de KUZNESOF, Elizabeth. Household Economy and

Urban Development, São Paulo, 1765 to 1836. Boulder, Colo., Westview Pres, 1986., p.97. Contudo, não utilizamos informações de Santana pois esta não se encontrava na lista de 1836. 10

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. rev. São

Paulo: Brasiliense, 1995., p.31. 11

Para o ano de 1827, temos 44% dos fogos da Penha voltados para a agricultura. Em Nossa Senhora este

número é ainda mais expressivo, sendo um total de 71% dos fogos dedicados às atividades agrícolas. Dados da lista nominativa de 1827, Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, ano de 1827. 12

MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo, Ed.

Pioneira: EDUSP, 1973.p.99.

4

de terras e da mão-de-obra, paralelo a um empobrecimento geral da população 13 . Tal movimento foi acompanhado por mudanças nas estruturas domiciliares e nos grupos familiares. Buscando novos arranjos sociais, os moradores locais criavam estratégias de sobrevivência, muitas das quais são evidentes nas mudanças da composição dos fogos. Seguindo tais perspectivas, a idéia de nossa apresentação é lançar algumas idéias sobre a dinâmica populacional dos bairros da Penha e Nossa Senhora do Ó e suas relações com as transformações econômicas locais. Utilizando listas nominativas dos anos de 1827 e 1836, podemos traçar características relativas à organização familiar e produtiva dos domicílios e da população estudada.

Inserido no contexto de crescimento populacional da capitania/província de São Paulo, os bairros rurais paulistanos não seguiram as mesmas tendências. Oscilando ora numa direção de crescimento, ora numa de decrescimento, o número de habitantes permaneceu quase constante nas primeiras décadas do século XIX 14 :

Tabela 1: Quadro Comparativo entre os recenseamentos – 1765/1802/1827/1836 17651 18022 18273 18364 Total de Habitantes Penha 450 1194 1118 1207 Nossa Senhora do Ó 408 1378 1233 1332 Total Geral 858 2572 2351 2539 Fonte: 1Marcílio, Maria Luiza. A cidade de São Paulo. pág. 102; 2Kuznesof, Elizabeth 3 Anne. Household economy and urban development. pág. 103; Acervo CEDHAL, Maços de População, 4 Capital, 1827; Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1836.

13

KUZNESOF, Elizabeth. Household Economy and Urban Development, São Paulo, 1765 to 1836.

Boulder, Colo., Westview Pres, 1986. 14

Na lista nominativa de 1836, o bairro de Nossa Senhora está incompleto. Num total de 8 quarteirões, os

dois primeiros estão perdidos. É preciso ter em mente esta falha ao observar nosso dados, já que faltam cerca de 400 habitantes de tal bairro.

5

Podemos observar um crescimento real de meados do século XVIII ao início do XIX. No entanto, os dados de 1765 apresentam uma falha importante, contabilizando exclusivamente a população livre. É possível, portanto, que o crescimento não tenha sido tão significativo quanto os dados apontam. De qualquer modo, fica evidente a tendência oscilante destes bairros. Ao contrário de outras regiões da capitania/província que cresceram com a entrada de um grande contingente de escravos, os bairros paulistanos passaram por situação bastante diversa. A população cativa manteve-se estacionada durante o período.

Tabela 2: Quadro Comp. entre os recenseamentos –1802/1827/1836: Cativos Habitantes cativos 18021 18272 18363 Penha 284 281 261 Nossa Senhora do Ó 469 403 433 Total Geral 753 684 694 1 Fonte: Kuznesof, Elizabeth Anne. Household economy and urban development. pág. 103; 2Acervo 3 CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827; Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1836.

O número de fogos, todavia, não se manteve constante. Em 1802, existiam cerca de 325 fogos. Já em 183, havia pelo menos 400 fogos 15 . Mesmo em 1827, quando houve o maior declínio populacional, temos cerca de 323 domicílios nos bairros rurais 16 . Fica evidente que o aumento do número de fogos foi acompanhado por uma diminuição no 15

Lembrando novamente que faltam dois quarteirões ao documento referente ao bairro de Nossa Senhora

no ano de 1836. Estimando um número médio de fogos, tendo como base os demais quarteirões, faltariam em torno de 60 fogos. Infelizmente não é possível confirmar tais valores. Para os dados de 1802 ver KUZNESOF, Elizabeth. Household Economy and Urban Development, São Paulo, 1765 to 1836. Boulder, Colo., Westview Pres, 1986., p. 97. 16

Vale mencionar que usamos o termo fogo e domicílio de forma indistinta. Ver SAMARA, Eni de

Mesquita, As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco Zero-SECSP, 1989. p. 25.

6

tamanho médio de cada um deles. Observando a tabela abaixo podemos ter uma idéia mais clara da situação: Tabela 3: Média de habitantes por fogo– 1802/1827/1836 Média de habitantes por fogo 18021 18272 18363 Penha 7,11 6,62 5,83 Nossa Senhora do Ó 8,78 8,01 6,83 Total 7,91 7,28 6,32 1 Fonte: Kuznesof, Elizabeth Anne. Household economy and urban development. pág. 97-103; 2Acervo 3 CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827; Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1836.

A diminuição do tamanho dos fogos foi constante nos três períodos e aconteceu igualmente nos dois bairros. Uma possível explicação para esta queda seria pensá-la através de um quadro de transformações econômicas. A atividade predominante destas regiões era a agricultura, tanto para abastecimento das populações locais quanto para troca na parte central da cidade. Contudo, a produção local nunca foi grandemente satisfatória e não apresentava um grande dinamismo. Os bairros rurais paulistanos podem ser entendidos como uma zona periférica no contexto mais amplo da economia paulista do início do século XIX. Assim, numa situação de declínio econômico, uma alternativa para os moradores locais era migrar a procura de melhores oportunidades. Além disso, com a ausência de atividades produtivas atrativas, não era possível acumular uma grande quantidade de recursos para adquirir escravos. Daí temos dois resultados: a população livre seguiria uma tendência de queda e as estruturas domiciliares formariam arranjos menos complexos, especialmente do tipo nuclear 17 . A população cativa, seguindo a mesma direção, também deveria diminuir, compondo plantéis reduzidos e se concentrando nas mãos de menos proprietários.

17

Usamos a tipologia desenvolvida por SAMARA, Eni de Mesquita, As mulheres, o poder e a família: São

Paulo, século XIX. São Paulo: Marco Zero-SECSP, 1989.

7

Observando mais detalhadamente a composição dos fogos poderemos ter uma idéia mais clara desta situação.

8

Tabela 4: Média de habitantes por fogo– 1802/1827/1836 18 Tamanho médio dos domicílios

1827 Tamanho médio da família Penha 4,5 Nossa Senhora do Ó 4,8 Total 4,6 Número médio de agregados Penha 0,5 Nossa Senhora do Ó 0,6 Total 0,6 Número médio de escravos Penha 1,7 Nossa Senhora do Ó 2,6 Total 2,1 Fonte: Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827 e 1836.

1836 4,2 3,9 4,1 0,4 0,7 0,5 1,3 2,2 1,7

A primeira coisa que notamos é uma redução generalizada tanto do núcleo familiar quanto daqueles membros externos. O número de filhos residindo no domicílio foi um fator importante nesta diminuição, passando de 2,6 para 2,3 neste intervalo. Os números também indicam uma pequena diminuição no número médio de escravos na população geral, de 29% em 1827 para 27% em 1836. Mais acentuada foi a concentração da posse dos escravos. Em 1827, 34% dos fogos possuíam pelo menos um cativo, já em 1836, apenas 27% dos fogos haviam adquirido algum escravo. Se adotarmos o número de cativos como um indicador de riqueza 19 , notamos um acentuado processo de concentração das posses, ou até de empobrecimento local. A distribuição de

18

Consideramos como família todos habitantes que tivessem algum tipo de relação parental com o chefe do

domicílio, indicado pela documentação. Já os agregados são todos aqueles membros sem nenhum tipo de relação ou aqueles denominados como agregados pelo próprio documento. 19

É claro que não podemos considerar os escravos de forma universal. Havia uma grande diferença entre o

valor de um escravo em idade adulta para uma criança escrava ou um escravo incapacitado ao trabalho. Assim, comparamos a distribuição dos cativos apenas para levantar uma hipótese inicial. Para confirmá-la precisaríamos realizar uma comparação mais minuciosa.

9

escravos no ano de 1802, 41% dos fogos possuíam pelo menos um cativo 20 , deixa ainda mais evidente esta dinâmica. Como já indicamos, os domicílios eram compostos, em sua grande maioria, de estruturas simples. Fogos nucleares e desconexos formavam o grosso da população nestes bairros. Por outro lado, domicílios singulares e extensos apareciam com uma freqüência bastante reduzida. Podemos constatar esta configuração através da tabela abaixo: Tabela 5: Tipologia dos fogos–1827/1836 Tipologia dos fogos singular desconexa nuclear extensa aumentada fraterna total Penha 4% 10% 56% 7% 24% 0% 100% 1827 8% 8% 55% 5% 24% 0% 100% 1836 Nossa Senhora do Ó 2% 11% 41% 8% 38% 0% 100% 1827 4% 19% 45% 3% 30% 0% 100% 1836 Total 3% 11% 49% 7% 31% 0% 100% 1827 6% 13% 50% 4% 27% 0% 100% 1836 Fonte: Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827 e 1836.

Os arranjos domiciliares mantiveram-se quase constantes no intervalo acima. Contudo, notamos um movimento, mesmo que bastante modesto, de simplificação destas estruturas. Tanto os domicílios extensos quanto os aumentados apresentam uma certa diminuição. Isto significa que parentes, no caso dos fogos extensos, agregados e escravos, no caso dos fogos aumentados, tornaram-se menos comuns. Segundo Sheila de Castro Faria 21 , lavradores precisavam do suporte de uma organização familiar mais complexa para a divisão do trabalho, deste modo podemos levantar a hipótese de que a simplificação dos fogos também foi acompanhada por uma nova configuração produtiva 20

KUZNESOF, Elizabeth. Household Economy and Urban Development, São Paulo, 1765 to 1836.

Boulder, Colo., Westview Pres, 1986., p. 103.

10

nestas localidades. Todavia, para confirmar tal proposta precisaríamos classificar as estruturas domiciliares dos bairros rurais no início do século XIX. De qualquer modo, podemos observar as transformações nos setores produtivos locais através da tabela a seguir: Tabela 6: Ocupação por setores–1827/1836 Setor Primário Setor Secundário Setor Terciário Outros Sem Profissão Penha 48% 57%

39% 31%

14% 11%

5% 2%

0% 2%

78% 63%

16% 9%

6% 17%

0% 0%

0% 21%

60% 28% 10% 3% 60% 20% 14% 1% Fonte: Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827 e 1836.

0% 11%

1827 1836 Nossa Senhora do Ó 1827 1836 Total 1827 1836

Apesar da diminuição das estruturas domiciliares, o setor primário ainda é predominante. Mas vemos uma queda significativa da produção primária, composta basicamente por agricultores, no bairro de Nossa Senhora do Ó. Também foi neste bairro que tivemos uma grande redução nos domicílios dos tipos extenso e aumentado. Assim como tivemos uma redução mais significativa do número de escravos nesta localidade. Portanto, pode ser plausível a hipótese que havíamos indicado anteriormente, Nossa Senhora do Ó passava por transformações econômicas e sociais, diminuindo paulatinamente a importância, ou pelo menos o vigor, da sua produção agrícola, buscando alternativas principalmente em atividades comerciais. Mesmo passando por tal contexto, Nossa Senhora do Ó apresentava indícios de uma economia mais vigorosa que a da Penha no início do século XIX. Por um lado 21

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de

Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998. pág. 53.

11

existiam menos escravos, ficando em torno de 22% da população na Penha e de 33% na Nossa Senhora do Ó, por outro, os cativos se encontravam menos distribuídos entre os domicílios, 21% dos fogos no primeiro e 34% no segundo bairro. Outra evidência é a razão de masculinidade entre os cativos, muito mais alta na Nossa Senhora do que na Penha, tendo em vista o fato de que os valores de cativos masculinos geralmente eram mais elevados que os femininos, podemos supor que os agricultores tinham menos recursos na Penha para investir em mão-de-obra escrava. Acreditamos que a explicação para a diferença entre os dois bairros encontra-se nas suas respectivas produções. Nossa Senhora produzia principalmente aguardente e cana 22 . Já na Penha o grosso da produção era de milho, feijão e farinha de mandioca. Desta forma, os rendimentos seriam superiores na Nossa Senhora do Ó, assim como existiria uma maior demanda de mão-de-obra. A situação econômica local também influenciou no equilíbrio de homens e mulheres na população. Através da tabela abaixo podemos perceber tal situação:

Tabela 7: Razão de Masculinidade–1827/1836 Brancos Negros livres Negros cativo Pardos livres Pardos cativos Total Penha 1827 1836 Nossa Senhora do Ó 1827 1836 Total 1827 1836

80,4 78,3

88,2 75,9

93,5 98,7

79,3 69,2

82,1 88,3

100 88,9

189 150,0

73,4 92,3

81,4 91,7 139,6 76,9 83,0 80,9 132,1 80,2 Fonte: Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827 e 1836.

22

64,4 67,7

81,3 77,5

111,11 100,2 90,2 102,9 89,9 76,4

90,7 90,0

Na lista nominativa de 1836 encontramos arrolados em cada fogo os gêneros agrícolas produzidos.

Apesar de não termos contabilizado tais informações fica evidente a diferença entre os bairros. Ver também KUZNESOF, Elizabeth. Household Economy and Urban Development, São Paulo, 1765 to 1836. Boulder, Colo., Westview Pres, 1986.

12

Vemos duas situações distintas: a população livre apresentou, em todas as situações, um desequilíbrio em favor do número das mulheres. A população cativa, especialmente o grupo de negros, que formava o maior número dos escravos, tinha um desequilíbrio inverso. Como indicamos anteriormente, a razão de masculinidade entre os escravos apresenta-se de forma elevada devido a preferência por cativos homens para o trabalho na lavoura. Estes eram vistos como mais produtivos e por isso atingiam valores mais elevados. Todavia, este número apresenta uma certa diminuição de 1827 para 1836, o que poderia ser explicado justamente por um declínio no desempenho econômico local, levando produtores menos abastados, com uma maior freqüência, a recorrer ao trabalho de mulheres cativas. Um outro ponto importante é o desequilíbrio de homens também na população livre. Havíamos indicado anteriormente que as dificuldades econômicas promoviam a migração em busca de melhores oportunidades. Com o desenvolvimento da agricultura de exportação, eram as zonas agrícolas, especialmente novas zonas fronteiriças, aquelas que proporcionavam as melhores oportunidades. Deste modo, eram os homens em idade produtiva aqueles que migravam em primeiro lugar 23 . Não é possível entender as transformações nos bairros rurais paulistanos sem observar suas relações com a parte central da cidade de São Paulo. Esta, tanto quanto

23

Sobre isso ver SAMARA, Eni de Mesquita. Mulheres chefes de famílias no Brasil:

séculos XIX e XX. Paper apresentado no PRÉ-CONGRESSO DO XIII ENCONTRO NACIONAL DA ABEP (Associação Brasileira de Estudos Populacionais) OURO PRETO (MG), 04 a 08 DE NOVEMBRO DE 2002. Ver também SOCOLOW, Susan Midgen. Women and migration in Colonial Latin America. XIII Encontro Internacional da AHILA. Ponta Delgada (Açores), 3 a 8 de setembro de 2002.

13

suas zonas rurais, passava por um acentuado processo de modificação de suas estruturas sócio-econômicas 24 . Nas primeiras décadas do século, a concentração urbana começava a configurar um modo de vida bastante distante daquele agrário. As roças eram abandonadas e as pessoas precisavam buscar outras atividades para alcançar seu sustento. O comércio, as atividades liberais ou burocráticas, o artesanato, os serviços domésticos e cotidianos ganhavam destaque na cena diária da cidade. Poucos eram aqueles que podiam continuar vivendo apenas de suas lavouras. É evidente que num novo contexto, a dinâmica demográfica da cidade passava por reajustes e reconfigurações. Em linhas bem gerais, a historiografia aponta um ritmo de urbanização bastante acentuado para a cidade. Em 1836, apenas 10% dos fogos na zona urbana ainda desenvolviam algum tipo de atividade relativa ao setor primário 25 . Na cidade, os domicílios também eram menores e mais simples. Em 1836, 12% eram singulares; 33% eram desconexos; 29% eram nucleares; apenas 1% era extenso, bem como fraterno; 24% eram aumentados 26 . No entanto, a presença de escravos era um pouco superior, 32% da população era cativa em 1836 27 . Ao contrário dos bairros rurais, sua população encontrava-se em crescimento no início do século.

24

KUZNESOF, Elizabeth. Household Economy and Urban Development, São Paulo, 1765 to 1836.

Boulder, Colo., Westview Pres, 1986. 25

KUZNESOF, Elizabeth. Household Economy and Urban Development, São Paulo, 1765 to 1836.

Boulder, Colo., Westview Pres, 1986., p. 123. O núcleo central era composto pelas freguesias da Sé, de Santa Efigênia e do Brás. 26

SAMARA, Eni de Mesquita, As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo:

Marco Zero-SECSP, 1989. pág. 34. Os dados não incluem a freguesia do Brás. 27

MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo, Ed.

Pioneira: EDUSP, 1973., p.102.

14

Nesta cidade em mudança não era mais a agricultura que decidia os rumos de seu desenvolvimento, ao contrário, muito mais importante era o comércio e a circulação de bens. Nas últimas décadas do século XVIII, foi inaugurado o primeiro mercado fixo da cidade, pensado especialmente para facilitar a comercialização de gêneros alimentícios e bens necessários para o sustento da cidade.Também foram melhoradas as estradas e os caminhos, passando todos pela cidade, para escoar a produção do planalto até o litoral. A cidade se urbanizava mas não podia tornar-se autônoma do mundo rural. Era deste mundo que vinha o sustento e o abastecimento da cidade. É justamente neste ponto que chegamos a um problema crucial. Ao longo de nossa apresentação pontuamos uma série de indícios e evidências, tentando demonstrar a possibilidade dos bairros rurais que circundavam a cidade viverem, no início do século XIX, um processo de desaceleração econômica, afetando as estruturas sociais e familiares nestas regiões. Também havíamos apontado que tais bairros eram importantes vias de acesso para a cidade, por onde circulavam gêneros agrícolas vindos de distantes localidades. Como entender e conciliar estes dois movimentos: uma cidade em crescimento e em urbanização, dependendo mais e mais da produção agrícola de outras localidades para sua manutenção, enquanto bairros rurais próximos a esta mesma cidade que tinham sua economia, baseada majoritariamente nestes mesmos gêneros alimentares, em aparente declínio? O intuito de nossa apresentação é, menos do que responder, propor tal questionamento. Sabemos bem que nossa pesquisa ainda não permite resolvê-lo de maneira satisfatória. Para isso, é necessário dar continuidade ao nosso trabalho de pesquisa documental. A quantidade de informações nas listas nominativas é bastante

15

grande. Assim, ainda precisamos trabalhá-las com mais cuidado, como também precisamos buscar outras listas, especialmente do início do século XIX, para poder observar melhor as transformações ao longo do período estudado. Desta forma, a continuidade de nossas pesquisas seguirá esta indagação fundamental. Acreditamos que a compreensão das relações entre a cidade e seus bairros rurais é importante para o entendimento de aspectos mais amplos da vida social e econômica da cidade de São Paulo. O empobrecimento dos bairros rurais não pode ser pensado como um fenômeno interno a tais localidades. E o resultado destas transformações nas estruturas domiciliares também não está separado das mudanças ocorridas através da urbanização e do crescimento da cidade.

16

Bibliografia

Fontes Primárias Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827.

Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1836.

Fontes Secundárias BARRO, Máximo. Nossa Senhora do Ó. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, Divisão do Arquivo Histórico, 1977.

BLAJ, Ilana. A trama das tensões: O processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681/1721). São Paulo: Humanitas-FAPESP, 2002.

BONTEMPI, Silvio. O bairro da Penha. Departamento do Patrimônio Histórico, Divisão do Arquivo Histórico, 1969.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. rev. São Paulo: Brasiliense, 1995.

DOLHNIKOFF, Miriam. Caminhos da conciliação: poder provincial em São Paulo, 1835-1850. Dissertação de mestrado. São Paulo: FFLCH-USP, 1993.

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998.

HENRY, Louis. Técnicas de análise em demografia histórica. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1977.

17

KUZNESOF, Elizabeth. Household Economy and Urban Development, São Paulo, 1765 to 1836. Boulder, Colo., Westview Pres, 1986.

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